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QUEM PAGA O PATHOS? PSICANÁLISE E CLÍNICA SOCIAL

RESUMO:

Considerando a intensificação dos desamparos, nas esferas individuais e coletivas, observamos a retomada de uma psicanálise sensível ao contexto social, disposta a sair dos consultórios para reencontrar seu lugar nos espaços públicos. Mediante o resgate histórico das clínicas públicas da primeira geração de psicanalistas, bem como após trazer o debate e os testemunhos em torno de múltiplas experiências de uma clínica expandida da psicanálise, chamamos a atenção para algumas características centrais de uma atuação psicanalítica comprometida com a dimensão político-social e para as linhas de força de sua possível expansão.

Palavras-chave:
clínica extramuros; clínica pública de psicanálise; formação psicanalítica; psicanálise na universidade pública; psicanálise nos serviços públicos

ABSTRACT:

Bearing in mind the alarming growth of both individual and collective vulnerabilities, we cast a light upon the promising resurgence of a psychoanalytic praxis more sensitive to the social context and willing to leave the comfort zone of the private praxis to reclaim its stand in public spaces. By reclaiming the history of the free clinics ventured at by the first generation of psychoanalysts and drawing upon the testimony of several social-oriented clinical experiences to the center of the debate, we aim to draw attention to some key features of a psychoanalytic endeavor committed to the current social-political context and the driving forces towards its eventual growth.

Keywords:
psychoanalysis on the streets; psychoanalysis in public spaces; psychoanalytical training; psychoanalysis at the public universities; psychoanalysis and public services

INTRODUÇÃO

A falácia da transmissão de uma psicanálise apolítica, incompatível com a dimensão do social, vem caindo por terra entre nós. E já não era sem tempo. A multiplicação de experiências clínicas para além dos consultórios particulares, como, por exemplo, no atendimento a pessoas em situações sociais extremas - seja no campo da iniciativa privada de coletivos e sociedades psicanalíticas, ou das instituições de saúde e implementação de políticas públicas - vem promovendo o resgate histórico de uma psicanálise de atuação política e socialmente engajada, desde a sua primeira geração.

Paralelamente, temos visto uma maior permeabilidade da psicanálise e dos psicanalistas aos estudos interdisciplinares de orientação feminista, antirracista e decolonial. A interseccionalidade entre os marcadores de raça, classe social e gênero tem sido crescentemente, embora ainda timidamente, levada em consideração quanto à distribuição desigual das precariedades e vulnerabilidades político-sociais daqueles a quem nos propomos escutar, além de abrir um novo campo de elaborações transferenciais e contratransferenciais no âmbito do encontro clínico, dentro e fora dos consultórios. Se só é possível criar o novo com base em uma tradição, como nos diz Winnicott (1971WINNICOTT, D. The Location of Cultural Experience. In: WINNICOTT, D. Playing and reality. New York: Routledge, 1971, p. 128-139.), é no próprio fundador da psicanálise que vamos mais uma vez buscar - e, felizmente, encontrar! - filiação.

Objetivamos, assim, destacar alguns aspectos identificáveis nas experiências de clínicas psicanalíticas socialmente atuantes. Após um resgate das clínicas públicas no início da psicanálise, procedemos então a uma breve discussão a respeito da abertura e inventividade da técnica no contexto dos settings não tradicionais - e sobre a importância do trabalho nos territórios afetados -, o que implica no questionamento da modalidade individual de atendimento, abrindo caminho para um trabalho que leve em maior consideração o coletivo e os dispositivos grupais. Por fim, abordamos a questão da reestruturação e democratização da formação psicanalítica, imaginando futuros possíveis e necessários neste campo. Cada um desses aspectos mereceria um estudo à parte, mas, no presente texto, nos contentaremos em apenas indicá-los, ficando seus desdobramentos para trabalhos futuros.

VOCAÇÃO PÚBLICA E SOCIAL DA PSICANÁLISE

Na conferência intitulada Caminhos da terapia psicanalítica, ocorrida em Budapeste, no ano de 1918, encontramos em Freud o gérmen das clínicas de vocação pública e social em psicanálise. O tom político-programático da referida conferência é atribuído à interlocução especial com representantes de Estado da Hungria, Áustria e Alemanha presentes naquela ocasião. Após um período de experiência coletiva de grande turbação dos encontros e da vida cotidiana, ao longo da Primeira Guerra Mundial, Freud se propõe a fazer um apanhado das contribuições da psicanálise à sociedade e ao campo da saúde mental até aquele momento, traçando caminhos para sua possível evolução.

Freud, aliás, desde o início de sua fala, mantém o que nos parece o cerne de uma postura verdadeiramente psicanalítica: a abertura conceitual, não-dogmática, à primazia da experiência: “Estamos prontos, tanto antes como agora, a admitir a incompletude do nosso conhecimento, a aprender coisas novas e mudar em nosso procedimento aquilo que pode ser substituído por algo melhor” (FREUD, 2018FREUD, S. Caminhos da teoria psicanalítica (1919 [1918]). In: TAVARES et al. (orgs.). Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2018, p. 191-204., p. 191). Pode-se, assim, reconhecer sua fala como verdadeiro “ato político contra a tendência ao dogmatismo precocemente presente no movimento psicanalítico” (FREUD, 1919FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-99. (Obras Completas Psicanálise, 15)[1918] / 2018FREUD, S. Caminhos da teoria psicanalítica (1919 [1918]). In: TAVARES et al. (orgs.). Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2018, p. 191-204., p. 204). A menção direta a Ferenczi, único de seus colaboradores nominalmente citado em seu discurso, aponta para o reconhecimento da necessidade de uma certa ousadia ao enfrentar impasses na clínica - o que viria, posteriormente, a substanciar os estudos ferenczianos sobre a técnica e sua elasticidade. Afinal, como nos lembra Gondar, Ferenczi era “mais engajado nas causas sociais do que Freud, mais genuinamente preocupado com o sofrimento e mais sensível aos problemas subjetivos vivenciados nos jogos de poder” (GONDAR, 2012GONDAR, J. Ferenczi como pensador político. Cad. psicanal. [online], v. 34, n. 27, p. 193-210, 2012., p. 195), produzindo conceitos e inovações clínicas cujas implicações são também políticas.

Vale ressaltar que, embora chancele uma postura favorável à flexibilidade e abertura técnicas, Freud ratifica que o efeito terapêutico de uma escuta de orientação psicanalítica, em qualquer modalidade que venha a ser prestada, continuaria se devendo ao reconhecimento e consideração à dimensão do inconsciente e às dinâmicas transferenciais do encontro. É também nessa conferência que identificamos em Freud um escrúpulo ético ante toda forma de influência violenta e colonizadora do outro. Esclarece ainda que pôde “ajudar pessoas com as quais não tinha qualquer laço de raça, educação, posição social ou visão de mundo, sem incomodá-las em suas peculiaridades” (FREUD, 1919FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-99. (Obras Completas Psicanálise, 15)[1918] / 2018FREUD, S. Caminhos da teoria psicanalítica (1919 [1918]). In: TAVARES et al. (orgs.). Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2018, p. 191-204., p. 198) e conclama a uma ética de não-direcionamento, embora admita alguma esfera de influência analítica, ou mesmo educacional em situações específicas: “O paciente não deve ser educado para ser semelhante a nós, mas para a libertação e concretização de sua própria essência” (FREUD, 1919FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-99. (Obras Completas Psicanálise, 15)[1918] / 2018FREUD, S. Caminhos da teoria psicanalítica (1919 [1918]). In: TAVARES et al. (orgs.). Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2018, p. 191-204., p. 199). É também movido por esse escrúpulo que Freud resiste em colocar a psicanálise a serviço de uma visão de mundo específica (Weltanschauung), o que seria “apenas violência, mesmo que encoberta pelas mais nobres intenções” (idem).

Em uma interessante passagem da conferência, Freud reconhece a escassez de psicanalistas formados naqueles tempos e, em todo caso, a limitação que tem um analista de dar conta de uma grande quantidade de atendimentos individuais ao longo de sua vida. Igualmente, reconhece a dependência da sobrevivência material do analista às camadas pagantes da sociedade, o que, de certo modo, contribuiria para afunilar o acesso aos efeitos terapêuticos da psicanálise por meio de um gargalo de classe. Aposta, assim, na mudança da formação psicanalítica, imaginando uma organização que pudesse multiplicar o número de analistas para “o tratamento de massas maiores de pessoas” (FREUD, 1919FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-99. (Obras Completas Psicanálise, 15)[1918] / 2018FREUD, S. Caminhos da teoria psicanalítica (1919 [1918]). In: TAVARES et al. (orgs.). Fundamentos da Clínica Psicanalítica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2018, p. 191-204., p. 201). Ao questionamento crítico e necessidade de reformulação da formação psicanalítica retornaremos oportunamente.

Por enquanto, basta-nos ressaltar que Freud postulava, já naquela ocasião, a saúde mental como questão de saúde pública e, portanto, como direito social e individual, prevendo, inclusive, situações em que o atendimento de saúde mental deveria ser prestado, não apenas de forma gratuita, mas ao lado de efetivo apoio material às populações atendidas. Certamente, Freud almejava que a psicanálise se tornasse o principal balizador das práticas em saúde mental no âmbito da saúde pública. Cogitava, assim, a instituição de tratamentos gratuitos para a população, com a possibilidade de suporte privado e/ou estatal na assunção dos custos dos tratamentos e na formação e remuneração dos analistas, nos moldes de uma parceria público-privada.

A obra de fôlego de Elisabeth Ann Danto, As clínicas públicas de Freud, traduzida e publicada em português apenas em 2019DANTO, E. A. As Clínicas Públicas de Freud. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019., recupera a experiência histórica das primeiras clínicas gratuitas de psicanálise empreendidas pelos psicanalistas da primeira geração, como efeito direto da conclamação freudiana na citada conferência. Muito antes da possibilidade de leitura e estudo sobre a atividade das referidas clínicas, chegaram à América Latina e ao Brasil as repercussões vivas das clínicas públicas no corpo dos imigrantes oriundos da diáspora psicanalítica do pós-guerra. Embora não possamos, nos limites deste artigo, nos deter sobre as particularidades da expansão da psicanálise no Brasil, é interessante reforçar que, salvo raras exceções, a ideia de neutralidade do analista gozou de uma quase cínica aceitação, especialmente no contexto da ditadura militar, servindo como suporte “para uma clínica que se revelou desimplicada do social e da política” (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, C. L. M. V. Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro v. 24, supl. , p. 79-90, nov. 2017.). De acordo com Oliveira, os psicanalistas promoviam a elitização da psicanálise, de modo que “enriqueciam enquanto deslocavam a escuta analítica, com tradição na clínica social, para uma nova clientela de alto poder aquisitivo, originária de uma burguesia esclarecida ou das camadas médias em ascensão e ávidas de tratamento psicoterapêutico” (OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, C. L. M. V. Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro v. 24, supl. , p. 79-90, nov. 2017., p. 81).

Exemplo de resistência ao discurso da neutralidade e à elitização da psicanálise foi a Clínica Social de Psicanálise que funcionou de 1973 a 1991, empreendida pela iniciativa conjunta de, dentre outros, Kattrin Kemper e Hélio Pellegrino, e que bebia diretamente na vivência do casal Kemper na paradigmática Policlínica de Berlim (FERREIRA, 2019FERREIRA, J. B. Clínica Social Anna Kattrin Kemper. In: DADOORIAN, D.; FAGUNDES, L.M.R.; PEREIRA, R. C. (orgs.). Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro 50 anos. Rio de Janeiro: CPRJ, 2019.). Desvinculada de um objetivo de formação, diferente portanto de Serviços de Psicologia Aplicada em faculdades de psicologia ou de clínicas vinculadas a Escolas e Sociedades de Psicanálise, a Clínica Social tinha como proposta que cada profissional ligado ao projeto disponibilizasse algumas horas de atendimento por semana a pacientes que pagavam quantias simbólicas. Tal iniciativa de um banco de horas ampliava e democratizava a psicanálise para a escuta dos que estavam excluídos de seu acesso.

Diz-nos Brum que a escrita no Brasil “escreve para deixar de fora” e que, portanto, “apaga enquanto escreve, apaga os que não quer que existam” (BRUM, 2021BRUM, E. Banzeiro Òkòtó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 88). Ora, a recuperação dessa história, após anos de recalque e denegação, desvela os indícios de um apagamento que vai muito além do lapso inconsciente, refletindo uma escolha intencional de perpetuar uma certa versão desengajada da psicanálise.

Em entrevista a Canavêz e Pacheco-Ferreira (2020CANAVÊZ, F.; PACHECO-FERREIRA, F. Nas margens da clínica: a psicanálise implicada de Miriam Debieux Rosa. In: PACHECO-FERREIRA, F.; VERZTMAN, J. (orgs.). O Público na Psicanálise. 1. ed. [s.l.]. Curitiba: Editora Appris, 2020, p. 35-49.), a psicanalista Míriam Debieux Rosa menciona a significativa supressão da passagem “o inconsciente é político” quando da tradução para o português de um Seminário de Lacan. Segundo Rosa, a intencionalidade desse modo de apagamento se via confirmada em sua experiência clínica pela relação conflituosa de sua atividade para com colegas defensores do pacto apolítico de um certo establishment da psicanálise. Essa resistência de classe do analista, como Rosa a denomina, teve não apenas repercussões epistemológicas, concorrendo para o desconhecimento de autores que se viram relegados à periferia da teorização psicanalítica, como restringiram e restringem concretamente a capacidade do analista de escutar os desmentidos sociais (CANAVÊZ; VERZTMAN, 2021CANAVÊZ, F.; VERZTMAN, J. S. Somos capazes de escutar os desmentidos sociais?Revista de Psicologia, v. 8, 2021.).

Como meio de estar advertido e de superar esta resistência, Canavêz e Verztman (2021CANAVÊZ, F.; VERZTMAN, J. S. Somos capazes de escutar os desmentidos sociais?Revista de Psicologia, v. 8, 2021.) convocam a uma escuta psicanalítica ativamente decolonial, desconstruindo a falácia do sujeito neutro e não-situado, pretensamente universal, de modo a reconhecer as peculiaridades dos sofrimentos e violências a que estão expostos grupos específicos, em razão da distribuição desigual das precariedades. Na visão dos autores, a indiferença quanto a esses marcadores (re)produziriam o trauma do desmentido e a conservação perversa dos silenciamentos, em vez de dar lugar à possibilidade do testemunho, objeto da demanda por uma escuta efetivamente psicanalítica. Nesse sentido, lembra-nos Martins que, quando há uma reiteração da surdez seletiva na escuta, “a pessoa passa a nem desejar mais dizer, como uma espécie de censura prévia” (MARTINS, 2021MARTINS, R. C. R. “Fazer Nada” como dispositivo de intervenção clínica e política em territórios. Tese de Doutorado. IP/USP. 2021., p. 94), o que talvez esclareça porque, durante longo tempo, algumas formas de sofrimento pareciam escandalosamente ausentes dos consultórios de psicanálise.

Assim, a torção do questionamento em torno da possibilidade ou impossibilidade de o sujeito falar para a indagação em torno de nossa capacidade de escutar, contribui para que nós, psicanalistas, possamos ir rompendo, enquanto membros da sociedade, com o pacto de invisibilização de sujeitos cujas existências têm sido historicamente relegadas às margens. É justamente na contramão desse apagamento que temos presenciado inúmeras iniciativas de grupos de pesquisa e coletivos de psicanálise no sentido de resgatar sua linhagem, reconhecendo-se enquanto continuadores dos princípios que nortearam as clínicas públicas da primeira geração de psicanalistas e, ao mesmo tempo, pensando a especificidade deste tipo de iniciativa em nossa realidade atual.

Dentre tais iniciativas, chama-nos a atenção também o papel da mudança do corpo social das universidades públicas nas últimas décadas, resultado de políticas de ação afirmativa, no questionamento de uma psicanálise nos moldes privatistas e ambulatoriais, muitas vezes restrita às elites econômicas. A partir de discussões que começaram a ganhar fôlego no final da década de 1990 e culminaram na aprovação da lei n. 12.711/2012, o sistema de ensino superior passou por transformações relacionadas à criação de uma série de políticas e iniciativas que promovem direitos civis, políticos e culturais aos mais variados grupos sociais que são ou foram objeto de discriminação, ampliando o acesso de estudantes de escolas públicas, de baixa renda, das pessoas pretas, pardas e indígenas aos cursos de graduação. No que diz respeito ao ensino da psicanálise na universidade, percebemos um questionamento crítico dos estudantes de graduação a um certo universalismo presente em muitos conceitos psicanalíticos, produzindo um chacoalhar que talvez esteja demorando um pouco mais a chegar às sociedades e escolas de formação psicanalíticas. A universidade, portanto, pode ter uma posição estratégica no movimento psicanalítico, no que diz respeito a tensionar proposições conceituais pouco situadas, justamente porque vem sendo mais diretamente questionada por sujeitos historicamente discriminados. Pensamos aqui nas provocações de Thamy Ayouch (2019)AYOUCH, T. Psicanálise e hibridez: gênero, colonialidade, subjetivações. Calligraphie: São Paulo, 2009., no sentido de pensar uma escuta e teorização psicanalíticas que possam levar em conta aspectos particulares da subjetivação relacionados a posições étnicas, culturais, linguísticas, sexuais e sexuadas minorizadas.

Com esta inquietação, organizamos um seminário em 2021, intitulado Novos dispositivos da clínica psicanalítica rumo à escuta dos sofrimentos sociais, para o qual foram convidados psicanalistas de orientações diversas para discutirem suas experiências de uma clínica empreendida extramuros1 1 ¹ Seminário coordenado por Fernanda Pacheco-Ferreira e Julio Verztman e oferecido nas grades das pós-graduações em Teoria Psicanalítica, ligadas ao Instituto de Psicologia da UFRJ e do Mestrado Profissional em Saúde Mental (IPUB/UFRJ). Gostaríamos de agradecer a todos os inscritos e ouvintes e, em especial, aos convidados: João Batista Ferreira (CPRJ), Rosana Onocko (UNICAMP), Tales Ab’Saber (UNIFESP), Miriam Debieux Rosa (USP), Anna Turriani (Coletivo margens clínicas e doutoranda USP), Raonna Caroline Martins (USP), Nelma Cabral (EBEP-Rio e projeto Psi Maré) e Eloá Bittencourt Nóbrega (SBPRJ e projeto Psi Maré), Fernanda Canavêz (UFRJ). . Ao aprofundarmo-nos nas experiências clínicas compartilhadas no decorrer do seminário, pudemos identificar algumas características que perpassam a atitude de uma psicanálise sócio-politicamente engajada desde a primeira geração da psicanálise até os dias atuais, isto é, desde as clínicas públicas do entreguerras e de outras intervenções psicanalíticas expressivas da segunda geração - com destaque aos registros de Winnicott na obra incontornável Privação e delinquência (Deprivation and delinquency, 1984WINNICOTT, D. Deprivation and delinquency. New York: Routledge, 1984.) - até os dispositivos discutidos em sala de aula. Observamos, ainda, certas posturas comuns, presentes em maior ou menor grau, na atitude psicanalítica daqueles implicados nas iniciativas sobre as quais nos detivemos. Como não poderia deixar de ser, constata-se uma convergência entre características do enquadre interno do analista (FIGUEIREDO, 2021FIGUEIREDO, L. C. A Mente do Analista. 1. ed. São Paulo: Editora Escuta, 2021.) e os enquadres ad hoc os quais este é capaz de partilhar e sustentar em suas experiências clínicas (FIGUEIREDO, 2014FIGUEIREDO, L. C. Cuidado, Saúde e Cultura. São Paulo: Editora Escuta, 2014.), conforme veremos a seguir.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS COMUNS

A inventividade técnica, central ao método psicanalítico, pode ser observada a cada vez que a psicanálise se lança a novos campos de escuta, uma vez que conduz ao enriquecimento e alargamento do fazer psicanalítico e de sua respectiva teorização. Nas clínicas públicas citadas por Danto, por exemplo, verificamos que havia uma imensa pluralidade entre os indivíduos admitidos em tratamento nas clínicas sociais. Não apenas acolhiam-se indivíduos de outros extratos sociais e contextos culturais bastante distintos dos da burguesia da época, como também incluíam uma vasta gama de situações clínicas antes reputadas como inanalisáveis à luz de um enquadre inicialmente criado para o tratamento das neuroses de adultos. Compunham os quadros de atendimentos das clínicas um grande número de crianças, idosos, psicóticos, adictos, trabalhadores, intelectuais, artistas e profissionais autônomos de classe média, pessoas sem recursos financeiros etc. Com a pluralização dos atendimentos, ia-se também observando que algumas manifestações nosográficas não guardavam, como se esperava a princípio, qualquer relação com a idade, a classe ou o gênero do paciente. Em contrapartida, verificava-se que alguns sofrimentos psíquicos eram claramente desencadeados, favorecidos e magnificados pelas condições sociais e de classe específicas da pessoa atendida.

Em razão de tal prática clínica expandida e das especificidades de sua demanda, alguns postulados do enquadre tradicional foram sendo questionados e relativizados, introduzindo-se, por exemplo: aplicação de psicoterapias breves, em contraposição aos tratamentos de longa duração; diminuição do tempo de sessão para 50 ou 45 minutos; admissão de atendimento face-a-face, em substituição ao dispositivo do divã etc. Danto descreve, ainda, a interessante experiência de Reich com o atendimento itinerante, indo ao encontro das populações periféricas e suburbanas de Viena, bem como o crescente questionamento de Simmel e Alexander à manutenção dos atendimentos individuais, como selos de burguesia (DANTO, 2019DANTO, E. A. As Clínicas Públicas de Freud. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.), delineando os caminhos das intervenções em grupo e dos fazeres coletivos em psicanálise.

Note-se que o campo amplo da abertura e da inventividade técnicas vai além de uma elasticidade ou adaptação das técnicas já existentes às novas situações atendidas. Nesse sentido, Verztman e Canavêz (2021CANAVÊZ, F.; VERZTMAN, J. S. Somos capazes de escutar os desmentidos sociais?Revista de Psicologia, v. 8, 2021.) propõem uma psicanálise não meramente adaptada à escuta das populações marginalizadas, mas pensada e desenvolvida a partir do encontro com elas, de suas realidades e experiências específicas de mundo, na esteira do que defendia Winnicott sobre a importância da criatividade e originalidade no enfrentamento de impasses ad hoc (WINNICOTT, 1984WINNICOTT, D. Deprivation and delinquency. New York: Routledge, 1984.). Dizia o psicanalista inglês que a capacidade inventiva nas situações clínicas inusitadas era de mais valor do que a previsibilidade do enquadre, sendo bem-vinda alguma propensão à originalidade criativa do profissional responsável pelo manejo das situações críticas, desde que baseada em um interesse vivo e na atenção sensível às necessidades efetivas dos beneficiários do cuidado (WINNICOTT, 1984WINNICOTT, D. Deprivation and delinquency. New York: Routledge, 1984.).

Nas intervenções psicanalíticas no campo político-social, os profissionais envolvidos precisam, ainda, estar aptos a lançar mão de uma certa capacidade negativa (FIGUEIREDO, 2014FIGUEIREDO, L. C. Cuidado, Saúde e Cultura. São Paulo: Editora Escuta, 2014.), suportando a latência necessária, um “fazer-nada” (MARTINS, 2019) até que um dispositivo suficientemente operativo e eficaz possa ir tomando forma. Para tanto, contribuem uma postura interna não-dogmática (ROUSSILLON, 2018ROUSSILLON, R. Manual da Prática Clínica em Psicologia e Psicopatologia. São Paulo: Blucher Editora, 2019.), bem como a capacidade de resistir a transformar um dado dispositivo em técnica (MARTINS, 2021MARTINS, R. C. R. “Fazer Nada” como dispositivo de intervenção clínica e política em territórios. Tese de Doutorado. IP/USP. 2021.), burocratizando-o e despotencializando-o. O grande norteador da intervenção deve ser sempre, e a qualquer tempo, “o sujeito em sofrimento, que nos faz interrogar a respeito das condições necessárias para atendê-lo do modo como ele pode se apresentar naquele momento” (SATO et al., 2017SATO, F. O dispositivo grupal em psicanálise: questões para uma clínica política do nosso tempo. Psicologia Política, v. 17, n. 40, p. 484-499, 2017., p. 493, grifo nosso.). Essa atitude de porosidade do profissional dedicado ao cuidado em relação às necessidades e potências peculiares dos beneficiários da escuta lembra-nos de que “trata-se de algo mais radical nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se da identidade própria e construir sua deriva inusitada” (PELBART apudBRUM, 2021BRUM, E. Banzeiro Òkòtó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 243), sem, no entanto, perder a meta de ser si mesmo e de comportar-se segundo a ética de seu ofício (WINNICOTT, 1965WINNICOTT, D. The aim of the psychoanalytic treatment (1962). In: WINNICOTT, D. Maturational Processes and the Facilitating Environment. Karnak Books: Londres, 1965, p. 166-170.).

Para tanto, faz-se necessário que “a mente do analista abra espaço interno para um lugar de observação, auto-observação e reflexão, que lhe possibilite uma atividade livre de pesquisa e busca da verdade emocional do que se passa entre ele e seu analisando” (FIGUEIREDO, 2021FIGUEIREDO, L. C. A Mente do Analista. 1. ed. São Paulo: Editora Escuta, 2021., p. 49-50), incluindo-se aí a capacidade do analista de manter o que Figueiredo designa de contratransferência primordial, isto é, a disponibilidade para verdadeiramente escutar o outro que sofre e colocar-se a pensar na situação analisante, ainda que esta pareça vacilar diante de alguns desafios - e, acrescentamos, de situações sociais insuportáveis. É necessário, portanto, uma máxima disponibilidade ao atravessamento dos aspectos intensivos e afetivos da clínica e, ao mesmo tempo, uma capacidade de estabelecer uma reserva interior dotada de suficiente reflexividade, o que nos leva a pensar na importância, sempre que possível, da presença do analista no território onde deve se desdobrar a intervenção do cuidado.

O trabalho no território é, portanto, outro aspecto que merece atenção especial. Zygouris (2013ZYGOURIS, R. A escola da Rua. In: DUVIDOVICH, E. (org.). Diálogos sobre formação e transmissão em Psicanálise. São Paulo: Zagadoni, 2013, p. 50-65.), em um belo texto, lembra do apelo de Freud (1900) para que não confundamos o andaime com o edifício, sugerindo que os analistas se dispam dos antolhos das instituições e das próprias teorias para abrirem-se para a rua. Em suas palavras, os analisandos

[p]ermanecem na esfera do privado porque imaginam que é isso, e apenas isso que interessa o analista e que é o que se deve falar em análise [...]. De certo modo estão certos. Basta ler o que se escreve sobre a transferência [...]. As teorias sobre a transferência são um revelador daquilo que interessa aos psicanalistas. Nem por isso, em certas ocasiões, a rua deixa de tomar o poder, impondo-se ao nosso imaginário e a nosso afeto, e nessas situações é preciso que o analista não seja surdo. A rua é a metáfora onde se mistura o político e o sexual, onde as pulsões são solicitadas e se lançam numa desordem amorosa, de uma espécie não repertoriada pelo discurso familiar e psicanalítico. (ZYGOURIS, 2013ZYGOURIS, R. A escola da Rua. In: DUVIDOVICH, E. (org.). Diálogos sobre formação e transmissão em Psicanálise. São Paulo: Zagadoni, 2013, p. 50-65., p. 53).

A autora nos chama ainda a atenção para o fato de que a rua proporciona ao psicanalista um saber diverso e mais amplo do que aquele dispensado pela instituição e, acrescentaríamos, daquele oriundo da experiência de intimidade do consultório privado.

Como nos lembra Broide (2019BROIDE, J. A clínica psicanalítica na Cidade. In: BROIDE, E. (ed.). Psicanálise nos Espaços Públicos. São Paulo: IP/USP, 2019, p. 48-65.), com a reforma psiquiátrica iniciada no final dos anos 1970, os psicanalistas vieram a ocupar diversos dispositivos públicos de assistência em Saúde Mental, evidenciando a impossibilidade de a clínica dissociar a realidade externa da realidade interna, devendo buscar escutar o que acontece na pólis.

Há o atendimento nas ruas, e trabalhos desenvolvidos no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Assistência Social, com direitos humanos, com adolescentes em conflito com a lei, com a população de rua, na saúde mental, com a formulação de políticas públicas, enfim, em todos os setores sociais em que nosso país se encontra no olho do furacão. (BROIDE, 2019BROIDE, J. A clínica psicanalítica na Cidade. In: BROIDE, E. (ed.). Psicanálise nos Espaços Públicos. São Paulo: IP/USP, 2019, p. 48-65., p. 52).

Esta seara mais ampla, em que o psicanalista é convocado a se posicionar diante dos conflitos e sofrimentos que tomam lugar na pólis, configuraria o campo de atuação de uma psicanálise clínico-política (ROSA, 2016), para a qual “faz-se imprescindível o deslocamento do psicanalista ao território onde urgem esses conflitos sociais” (SATO et al., 2017SATO, F. O dispositivo grupal em psicanálise: questões para uma clínica política do nosso tempo. Psicologia Política, v. 17, n. 40, p. 484-499, 2017., p. 491). Embora o consultório seja, para o psicanalista, apenas um dos espaços possíveis para o exercício clínico, a imagem do processo analítico como uma conversação a dois dentro de um setting protegido pela intimidade do encontro, visando à escuta do inconsciente como produção de uma verdade individual, geralmente retorna pela porta dos fundos (PACHECO-FERREIRA; VERZTMAN, 2020PACHECO-FERREIRA, F.; VERTZMAN, J. (org.). O Público na Psicanálise. 1. ed. [s.l.]. Curitiba: Editora Appris, 2020.).

Sensível ao efeito do social encarnado na cidade sobre o psíquico, Viñar (2014) afirma que a ditadura ajudou a revelar que o ruído da cidade que chega ao consultório não é algo a ser descartado, devendo-se reconhecer “uma influência da vida íntima e da vida pessoal que se projeta no trajeto social de um indivíduo; que há algo da história coletiva que atravessa o indivíduo, e algo da vida pessoal que constitui o indivíduo como sujeito social” (VIÑAR, 2014, p. 228 apudOLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, C. L. M. V. Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro v. 24, supl. , p. 79-90, nov. 2017.). Vem-nos à mente o episódio em que Winnicott interrompe a apresentação da colega Elisabeth Rosemberg sobre as neuroses de guerra na Sociedade Britânica de Psicanálise, sobre o pano de fundo de sirenes e explosões intermitentes, para registrar que um ataque aéreo estava em andamento, insistindo no contato com a realidade em lugar da abstração teorizante (KAHR, 1996).

A mobilidade do psicanalista por estes outros territórios, geográficos e teóricos, bem como o reconhecimento da realidade sócio-político-econômica em que analista e analisando estão inseridos pode, a nosso ver, contribuir para minorar a violência política que divide as “geografias e existências entre zonas onde se é e zonas onde se tem negado o direito de ser” (FANON apudTURRIANI, 2019TURRIANI, A. Questões subjacentes às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios vulnerabilizados pela violência política. Teoría y Crítica de la Psicología, n. 12, p. 340-351, 2019. Disponível em:Disponível em:http://www.teocripsi.com/ojs/ . Acesso em: 22 mar. 2022.
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, p. 343). Isto porque a escuta do sofrimento, como bem nos adverte Rosa (2016), extrapola a lógica privatista dos romances familiares, do enredo edípico, do desamparo constitutivo a todo sujeito, levando-nos a identificar este outro, mais insidioso desamparo, que resulta do desvalimento - ou invalidamento - discursivo que impede certas narrativas de integrarem a gramática das existências reconhecíveis e desejantes, ficando barradas enquanto “eu” e destituídas da composição de “nós”, de comunidades de destino. Deve-se ter em mente que, para que essas situações de sofrimentos ou conflitos sociais possam efetivamente constituir um acontecimento clínico-político, faz-se necessário que sejam escutadas como mensagens, implicando o sujeito falante e o destinatário da fala.

Ao se deixar atravessar por todas essas “diferenças que se apresentam sem palavras e com toda a força na transferência: diferenças de classe, ideologia, ética, estética, segurança, arquitetura, alimentação, moda, cheiros, barulhos, sons, temperaturas, músicas, produtos nas lojas, e na forma de andar, falar, pensar etc.” (BROIDE, 2019BROIDE, J. A clínica psicanalítica na Cidade. In: BROIDE, E. (ed.). Psicanálise nos Espaços Públicos. São Paulo: IP/USP, 2019, p. 48-65., p. 54), o analista pode não apenas dar-se a escutar o território e a identificar neste as ancoragens do sujeito, como também a escutar o modo como ele próprio é afetado por esses atravessamentos, além de desafiar-se a escutar aquilo que estava impossibilitado por “sua condição de classe, de cor, de gênero, de privilégios” (TURRIANI, 2019TURRIANI, A. Questões subjacentes às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios vulnerabilizados pela violência política. Teoría y Crítica de la Psicología, n. 12, p. 340-351, 2019. Disponível em:Disponível em:http://www.teocripsi.com/ojs/ . Acesso em: 22 mar. 2022.
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, p. 347).

Talvez, como corolário da natureza estruturalmente não-toda do saber psicanalítico, ou de qualquer saber, sobretudo em face do que desencadeia desamparo e revela a distribuição desigual das precariedades, parece-nos especialmente importante, como indicamos mais acima, o questionamento dos limites do modelo individual de análise (DANTO, 2019DANTO, E. A. As Clínicas Públicas de Freud. São Paulo: Editora Perspectiva, 2019.). Nesse sentido, desde as Clínicas Públicas de Freud, passando pela experiência de Winnicott (1984WINNICOTT, D. Deprivation and delinquency. New York: Routledge, 1984.) com os abrigos para crianças e adolescentes realocados no período da Segunda Guerra Mundial, as múltiplas experiências no Brasil com grupoterapia nos anos 70 (FERREIRA, 2016, p. 61), até os relatos que nos chegam de experiências contemporâneas, observamos que esse tipo de clínica tende a se organizar espontaneamente como um fazer coletivo.

Claro está que não se trata de estimular a mera aglomeração de sujeitos alienados de si e entre si, ou a formação de massas homogeneizantes, nos moldes descritos por Freud (1921FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 13-99. (Obras Completas Psicanálise, 15)), isto é, constituídos em torno da identificação imaginária, via ideal do eu, com a figura de um líder. A importância de pensar alternativas ao trabalho individual, a nosso ver, reside menos na oferta de um dispositivo técnico e mais no resgate da dimensão coletiva e comunitária enquanto reconhecimento da capacidade, e diríamos mesmo, da necessidade vincular enquanto elemento de saúde psíquica, a contrapelo do individualismo intensificado pela radicalização do capitalismo neoliberal:

As elites brasileiras se acostumaram à lógica de que, para manter seus privilégios, outros perderão seus corpos. Essa lógica infecta toda a sociedade, inclusive suas vítimas. Em países como o Brasil, a ideia de progresso está ligada ao acesso a privilégios. E é do progresso do indivíduo que se trata, já que a ideia de comunidade está arruinada. (BRUM, 2021BRUM, E. Banzeiro Òkòtó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 250).

CONCLUINDO: CLÍNICA SOCIAL HOJE?

A nosso ver, o resgate histórico das ditas “clínicas sociais” é fundamental para nos perguntarmos em qual sentido e com que intenção empregamos esta denominação. Frequentemente, a expressão é usada para designar um atendimento franqueado às populações de baixa renda. Práticas clínicas denominadas de “sociais”, ou “a preço social”, dizem respeito a um tratamento oferecido a classes economicamente menos abastadas, muitas vezes servindo como início de carreira, uma etapa de aprendizagem, para os profissionais recém-formados que estão em busca de se firmar em seus consultórios privados. Uma clínica social, ao contrário, deveria estar a serviço da população de forma crítica e implicada. De certo modo, não há sentido em qualificar uma clínica como social, pois toda clínica deveria ser, por definição, social, se levamos verdadeiramente em conta a problematização, feita por Freud, da linha demarcatória, construída na modernidade, entre as esferas pública, social e cultural, por um lado, e as esferas singular, individual e íntima, por outro. Se vamos manter esse tipo de designação, que seja como posição estratégica, como forma de chamar atenção para algo que insiste em ser suprimido da prática concreta dos analistas, isto é, como um esforço ativo para mudar o foco da constatação das precariedades para o reconhecimento das potencialidades. Há um risco, como alerta Campos, de se colocar as populações periféricas em um lugar de eternos carentes e dependentes, oferecendo-lhes uma assistência arbitrária, dissociada de suas reais necessidades, sobretudo a necessidade de crescimento e autonomia, confinando-os ao “direito de pedir e receber” (CAMPOS, 2014CAMPOS, R. O. Comportamento antissocial nos jovens como sequela na privação. Interface - comunicação, saúde e educação, 2017., p. 26), em uma construção evidente de passividade.

Chegamos, então, ao último e talvez mais espinhoso aspecto que gostaríamos de ressaltar nesta discussão: a questão da formação do analista. Como afirma Turriani, mais do que democratizar o acesso ao tratamento psicanalítico, “necessitamos transformar radicalmente os modos de transmissão e formação em psicanálise, pois pouco adianta que sigamos elaborando teorias sobre o sofrimento psíquico nas periferias - ou seja, teorias sobre uma maioria da população excluída do direito de contar sua história em nome próprio - se essas mesmas pessoas são privadas dos recursos teóricos e técnicos para elaborarem suas próprias versões sobre seus sofrimentos e também sobre os nossos” (TURRIANI, 2019TURRIANI, A. Questões subjacentes às margens da clínica e da transmissão psicanalítica em territórios vulnerabilizados pela violência política. Teoría y Crítica de la Psicología, n. 12, p. 340-351, 2019. Disponível em:Disponível em:http://www.teocripsi.com/ojs/ . Acesso em: 22 mar. 2022.
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, p. 345).

Como então operacionalizar essa mudança nos moldes da formação psicanalítica, sem abrir mão do tripé que lhe dá sustentação (análise pessoal, formação teórica continuada, supervisão)? Pensamos que as sociedades psicanalíticas podem lançar mão de alguns dispositivos já amplamente utilizados nas universidades, como, por exemplo, a implementação de políticas afirmativas, estabelecendo cotas e concedendo bolsas, de modo a favorecer que os custos de formação não sejam estrita e individualmente suportados por parte dos alunos que não disponham de outro investimento disponível além deste que é fundamental: seu compromisso de se deixar atravessar pela experiência psicanalítica e seu desejo de contribuir de modo transformador em seu entorno a partir de seu ofício. Este era, aliás, o modelo já vislumbrado por Freud e posto em prática nas Clínicas Públicas da primeira geração. Deste modo, a própria sociedade psicanalítica estabeleceria, validaria e sustentaria, para além do discurso, um outro sistema de trocas, uma outra economia do dom, a contrapelo da lógica neoliberal. A pluralização no campo da formação não deve, no entanto, ficar restrita ao acesso a um maior e mais diverso corpo de candidatos, devendo-se também favorecer o protagonismo de subjetividades historicamente minorizadas na própria transmissão psicanalítica, na condução de grupos de estudo, seminários teóricos, bem como na adoção e produção ativa de outras epistemes, em uma construção conjunta do esforço decolonial. Certamente, a implementação dessas importantes mudanças no âmbito da formação traria consigo a necessidade de revisão de alguns conceitos e pressupostos psicanalíticos a partir de todo um novo campo de saberes.

Parece-nos, portanto, fundamental refletir sobre o fato de que todas as experiências clínicas social e politicamente engajadas estiveram historicamente ligadas à crítica e reestruturação dos modelos de formação psicanalítica (desde as Clínicas Públicas de Freud) e da transmissão da psicanálise (BROIDE; BROIDE, 2016BROIDE, J.; BROIDE, E. E. A psicanálise em situações sociais críticas. São Paulo: Editora Escuta, 2016.), bem como à admissão da heterodoxia na formação (abertura cada vez maior a não-médicos e não-psicólogos, isto é, ao analista leigo). Quanto à transposição dessas importantes reflexões não apenas para o âmbito das formações, mas também para a prática clínica, ressaltamos que não se trata de idealizar as mudanças possíveis para os sujeitos atendidos, de sonhá-las pelo outro e de impô-las a ele. Isto apenas reproduziria a violência dos mecanismos de assujeitamento. Trata-se de tentar contribuir para que o sujeito tenha condições de conceber e pôr em movimento estratégias mais compatíveis com a vida, em particular com o sentir-se vivo, necessidade primordial de todo ser humano. E trata-se, por fim, de

[...] reconhecer as margens como aquilo que são: centros de resistência contra todas as formas de morte, e de criação de vidas possíveis, mesmo no impossível. A margem não como exclusão, mas como insurgência. (BRUM, 2021BRUM, E. Banzeiro Òkòtó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 344).

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    ¹ Seminário coordenado por Fernanda Pacheco-Ferreira e Julio Verztman e oferecido nas grades das pós-graduações em Teoria Psicanalítica, ligadas ao Instituto de Psicologia da UFRJ e do Mestrado Profissional em Saúde Mental (IPUB/UFRJ). Gostaríamos de agradecer a todos os inscritos e ouvintes e, em especial, aos convidados: João Batista Ferreira (CPRJ), Rosana Onocko (UNICAMP), Tales Ab’Saber (UNIFESP), Miriam Debieux Rosa (USP), Anna Turriani (Coletivo margens clínicas e doutoranda USP), Raonna Caroline Martins (USP), Nelma Cabral (EBEP-Rio e projeto Psi Maré) e Eloá Bittencourt Nóbrega (SBPRJ e projeto Psi Maré), Fernanda Canavêz (UFRJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2021
  • Aceito
    05 Abr 2022
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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