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A POSIÇÃO DA POESIA NA TEORIZAÇÃO FREUDIANA: O ATO DO POETA ENTRE O PARTICULAR E O UNIVERSAL

The position of poetry within Freudian theorization: The poet’s act between the particular and the universal

RESUMO:

Em 1911, no artigo em que sistematiza a dualidade de princípios (de prazer e de realidade) que rege o funcionamento anímico, Freud consagra um parágrafo inteiro à arte. Partimos dessa caracterização sumária para constatar que, conquanto mereça destaque da parte de Freud, a arte (e a literatura) ocupa uma posição dúbia em sua teorização. Dirigimo-nos então a dois momentos da obra freudiana (um trecho da Interpretação dos sonhos e o Complemento B da Psicologia das massas), nos quais o escritor literário é analisado por Freud, para aprofundar nossa análise e para, por fim, indicar um possível ponto de encontro entre a escrita literária e a teorização analítica.

Palavras-chave:
Freud; literatura; fantasia; poesia; mito

Abstract:

In 1911, in the article in which he systematized the duality of principles (of pleasure and reality) that governs the psychic functioning, Freud devotes an entire paragraph to art. We started from this summary characterization to verify that, although it is foregrounded by Freud, art (and literature) occupies a dubious position within his theorization. We then parted to two moments of Freud’s work (an excerpt from the Interpretation of Dreams and the Complement B from the Group Psychology), in which the literary writer is analysed by Freud, in order to deepen our analysis and, finally, to indicate a possible point of encounter between literary writing and analytical theorization.

Keywords:
Freud; literature; fantasy; poetry; myth

INTRODUÇÃO

No breve texto de 1935 em homenagem ao sexagésimo aniversário de Thomas Mann, Freud afirma: “as palavras do poeta são atos” (FREUD, 1935/1989FREUD, S. A Thomas Mann, en su 60º cumpleaños (1935). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 22, p. 233), p. 233)1 1 Todas as citações de Freud são oriundas da edição Amorrortu (Buenos Aires). Todas elas serão traduzidas por nós, assim como citações de outros autores em língua estrangeira. . Tomando essa breve sentença como uma espécie de epígrafe e guia deste estudo, nosso objetivo é verificar qual a natureza desse ato2 2 O termo usado por Freud em sua carta a Thomas Mann é Taten, plural de Tat (“ato”, “ação”, “feito”), derivado do verbo tun, que significa “fazer”. Não se trata, pois, do “ato” entendido como conceito psicanalítico (como na “passagem ao ato” ou no “acting-out”); para essa gama de sentidos, Freud emprega o verbo agieren (como em Repetir, recordar e elaborar e no caso Dora). Neste nosso artigo, queremos explorar a criação artística como um “fazer”, uma “feitura”, um ato (Tat) muito específico, que não deve ser confundido com o ato da passagem ao ato, que, em vez de criador, é mormente pensado como desintegrador e desconstrutivo. que é a escrita literária de acordo com Freud, tentando apontar também a posição que ele ocupa nos ínterins da teorização freudiana.

I

Foi em 1911, em um denso e breve artigo intitulado Formulações sobre os dois princípios do funcionamento anímico, que Freud alçou a realidade ao estatuto de princípio, colocando-a ao lado do prazer (e desprazer) para formar a dualidade de princípios que regem o funcionamento anímico. Nesse texto, ele volta a enunciar o primeiro princípio do funcionamento anímico, já descrito em 1900, o princípio de prazer-desprazer (“ou de modo mais curto, princípio de prazer” (FREUD, 1911/1989FREUD, S. Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico (1911). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 12, p. 223-231), p. 224): as pulsões em seu regime basal não fazem nada além de pressionar o organismo à sua satisfação; elas demandam satisfação imediata, descarga energética, e nada além disso. As primeiras satisfações pulsionais, ocorridas logo no início da vida graças ao zelo dispensado pelos cuidadores do bebê, deixam marcas no organismo recém-nascido, sob a forma de representações mnêmicas, representações estas que serão reativadas automaticamente a cada novo período de desejo, em que as pulsões voltem a premir por descarga. Essa reativação, entretanto, só pode se dar de maneira alucinatória: o bebê alucina que está satisfazendo a desejos opressivos, embora nada ocorra de fato. Tal estratégia é desde o princípio fadada ao fracasso, e “em vez dela, o aparelho psíquico teve de resolver-se a representar as relações reais do mundo exterior e a procurar pela alteração real. Assim se introduziu um novo princípio na atividade psíquica; já não se representou o que era agradável, mas sim o que era real, ainda que fosse desagradável” (FREUD, 1911/1989FREUD, S. Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico (1911). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 12, p. 223-231), p. 224).

O novo princípio, agora oficialmente alcunhado princípio de realidade, instaura-se como que à força, a partir de choques sólidos que a realidade apresenta ao sujeito que deseja. A realidade é, pois, contrária à pulsão, e a sequência do texto curará de apresentar e descrever as diferentes consequências dessa instauração. Trata-se de uma longa pedagogia da pulsão, se assim podemos exprimir-nos, e uma série de funções anímicas terão de se desenvolver para que o organismo não sucumba ao império do prazer: consciência, atenção, memória, juízo, ação e pensamento, tais as funções descritas sequencialmente por Freud, que vão desde a captação dos estímulos sensoriais externos (consciência), sua filtragem (atenção) e retenção (memória) até a mudança real da realidade externa (ação) e o ensaio refletido dessa mesma ação (pensamento).

Mais consequências da instauração do princípio de realidade serão apontadas por Freud ao longo do texto; podem-se destacar, dentre elas, a fantasia e a neurose, por exemplo. Mas nós nos alongaremos no parágrafo dedicado à arte, pois é dela que nos ocuparemos ao longo deste artigo. Nas últimas páginas do texto, eis que um longo parágrafo desponta, no qual Freud apresenta seu esquema de entendimento da arte.

Em nossa opinião, este é um parágrafo3 3 Passaremos por todo este parágrafo (de Freud) no decorrer dos próximos três parágrafos. Todas as citações serão dele retiradas. A citação e sua paginação virão no fim, quando terminarmos de citá-lo. Em todas as subsequentes citações deste artigo, os grifos serão dos autores. fundamental para que se possa compreender o estatuto da arte dentro da teoria freudiana, e é, ao mesmo tempo, um conjunto de afirmações que apontam mais para problemas do que para suas soluções, tendo em vista o seu caráter altamente sintético e indicativo. “A arte logra por um caminho peculiar uma conciliação dos dois princípios”, diz sua primeira frase. Atenção seja dada à palavra “conciliação”, pois aparentemente em nenhum outro lugar uma conciliação desse tipo é encontrada. “O artista é originariamente um homem que se afasta da realidade porque não pode haver-se com a renúncia à satisfação pulsional que ela primeira lhe exige, e dá livre curso na vida da fantasia a seus desejos eróticos e de ambição”. Pois bem, o artista é um homem que encontra refúgio em sua própria fantasia, e esta aparece aqui já como uma atividade anímica subjacente ao criar artístico. Porém, o caminho peculiar pelo qual o artista caminha passa pela fantasia, entretanto, também a ultrapassa, fazendo um uso idiossincrático dela: “[...] mas ele encontra o caminho de regresso a partir desse mundo de fantasia até a realidade; e o faz, em virtude de dotes particulares, plasmando suas fantasias em um novo tipo de realidades efetivas que os homens reconhecem como cópias valiosas da realidade objetiva mesma”. O artista, portanto, usa suas próprias fantasias como uma ponte para regressar à realidade da qual previamente se havia apartado: utilizando-se delas, cria novas realidades (suas obras), que mantêm, no entanto, uma relação com a realidade mesma, pois são encaradas como cópias valiosas dela; o artista a um só tempo nega e recusa a realidade e se apoia nela, criando-lhe cópias valiosas.

O retorno à realidade se dá, assim, com a criação de novas realidades, de realidades segundas, e a complexidade e, diríamos, ambiguidade da relação entre o artista e a realidade só aumenta na frase seguinte de Freud: “[...] por essa via ele [o artista] se converte, de certa forma, realmente no herói, no rei, no criador, no acariciado pela fortuna que ele gostaria de ser, sem empreender para tanto o enorme desvio que passa pela alteração real do mundo exterior”4 4 Atentemos ao fato de que Freud, ao descrever a arte e o artista de um modo geral, acaba por se referir mais especificamente aos escritores e à literatura. Isso nos dá fundamento para, baseando-nos nesse parágrafo, passar nossa análise para a posição do escritor e da literatura (ou poesia) dentro da obra de Freud. . Ora, aqui tudo ganha um novo sentido: os personagens fantasiados pelo artista somente em imaginação acabam sendo encarnados por ele próprio na vida real, a partir mesmo de suas criações estéticas. Mas não só isso: ele consegue tal façanha sem precisar causar alteração real nenhuma no mundo em seu entorno. É criando um tipo de realidade objetiva, a partir da qual nada é realmente alterado na realidade objetiva da qual ele primeiramente se apartou, que ele consegue um sucesso que antes somente imaginara ou desejara. Ou seja, existe um uso da fantasia que acaba por ter consequências importantes na realidade objetiva mesma, servindo-se de uma característica fundamental da atividade fantasmática: o fato de ela ser inócua e, apesar de obedecer ao princípio de prazer, fazê-lo somente no plano imaginário, sem alterar nada concretamente da realidade material. Esse uso é precisamente a criação de uma obra de arte, que é, a um só tempo, um novo tipo de realidade objetiva, mas que não se caracteriza como uma ação a partir do qual desejos são realmente satisfeitos.

Pois bem, o artista executa tal façanha primorosa, mas não sozinho: ele pode fazê-lo somente “porque os outros homens sentem a mesma insatisfação que ele com essa renúncia real exigida, porque essa insatisfação que resulta da substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade constitui por sua vez um fragmento da realidade objetiva mesma” (FREUD 1911/1989FREUD, S. Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico (1911). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 12, p. 223-231), p. 229). Assim está claramente explicitado o papel que o restante dos homens exerce nessa façanha do artista: sem eles e sem sua insatisfação permanente, a obra de arte não traria nenhum benefício ao seu criador. O final do parágrafo é peremptório: essa insatisfação não é apenas frequente nos homens, ela é generalizada, universal, e constitui, ainda, um fragmento da realidade objetiva mesma. Trocando em miúdos, a miséria da vida é universal, e é graças a ela que o artista atinge o seu sucesso. O artista se apoia, assim, tanto na miséria da vida real quanto na possibilidade (residual) de realizar desejos na vida da fantasia para, a partir de um ato duplo (forjar uma obra e doá-la ao seu público), atingir o seu sucesso. O artista se afasta da realidade, mas retorna a ela com sua obra em mãos, e seu êxito dependerá de seu talento em mobilizar um importante fragmento da mesma realidade da qual ele se apartara e que pode passar despercebido: a insatisfação generalizada dos homens.

O parágrafo é valiosíssimo para quem deseja estudar os pontos de vista freudianos acerca da arte, mas algo não deixa de espevitar o leitor: que papel tem esse parágrafo dentro do texto? Uma leitura mais demorada de seu tecido e do percurso de sua argumentação poderia muito bem caracterizá-lo como “excedente”: de fato, tudo indica que, se Freud não houvesse falado sobre a arte, o seu artigo em nada perderia de concretude ou solidez. Ele estaria, por assim dizer, completo. As consequências da instauração do princípio de realidade, a listagem de funções anímicas que aparecem no decorrer do desenvolvimento do sujeito, o resíduo que sobra ao sujeito adulto para realizar desejos imaginariamente, o papel da educação, os casos em que há adoecimento neurótico. Nada indica que a arte pertence necessariamente a esse conjunto de reflexões freudianas. Mas eis que ela está ali, sucinta e sinteticamente, é verdade, eis que ela marca presença. Que ligação tem ela com o restante do artigo? Pois bem, é evidente que o parágrafo não é um completo peixe fora d’água, na medida em que ele trata da relação delicada entre os dois princípios existente na confecção de uma obra de arte. Podemos referir-nos também à breve descrição da religião e da ciência, esboçada anteriormente por Freud, que constitui um tríptico caro a ele (religião, arte, ciência), e que reaparecerá na última das suas Novas Conferências Introdutórias. Mas isso não é explicitado e, mesmo que fosse, não nos parece ser o suficiente para explicar a aparição súbita da arte nesse curto texto quase programático. Ela poderia não estar aí, e tudo estaria bem. Mas ela está.

Essa posição estranha da arte dentro desse artigo reflete, de alguma forma, o estatuto da arte no próprio discurso freudiano: se, por vezes, é objeto de investigação ou mesmo colaboradora do afazer teórico, levando Gómez Mango a afirmar que Freud “fez do poeta um dos interlocutores maiores da sua obra” (GÓMEZ MANGO, 2012GÓMEZ MANGO, E. Note sur le Dichter. In: PONTALIS, J.; GÓMEZ MANGO, E. Freud avec les écrivains. Paris: Gallimard, 2012, p. 12-21., p. 21), em outros momentos, a arte é considerada como um mero e inócuo conjunto de ilusões, com pouca utilidade perante a miséria real da vida dos homens. É o que faz Freud na última das suas Novas Conferências (1932/1989) e também no Mal-estar na cultura (1929 [1930]/1989). O trecho é famoso, e, nele, Freud não apenas reafirma a relação umbilical entre arte e fantasia, como também coloca as obras de arte no amplo domínio das “ilusões” que a “vida da fantasia” nos proporciona:

A satisfação se obtém com ilusões admitidas como tais, mas sem que essa divergência sua com relação à realidade efetiva arruíne o gozo. O âmbito do qual provêm essas ilusões é o da vida da fantasia; em seu tempo, quando se consumou o desenvolvimento do sentido da realidade, ela foi subtraída expressamente das exigências do exame de realidade e ficou destinada à realização de desejos dificilmente exequíveis. Acima, entre essas satisfações da fantasia, está o gozo de obras de arte, acessível, por intermédio do artista, mesmo para aqueles que não são criadores. As pessoas sensíveis à influência da arte nunca o estimaram tanto como fonte de prazer e consolo na vida. No entanto, a suave narcose que a arte nos causa não pode produzir mais do que uma subtração passageira das aflições da vida; não é suficientemente intensa para fazer esquecer a miséria real. (FREUD, 1929 [1930]/1989FREUD, S. El malestar en la cultura (1930 [1929]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 21, p. 65-140), p. 80).

Ao mesmo tempo em que merece um lugar dentro do artigo de 1911, a arte surge em 1930 como causa tão-somente de uma “suave narcose” que não produz mais do que uma “subtração passageira das aflições da vida”. Essa caracterização freudiana da arte reaparecerá em 1932, na última das Novas Conferências Introdutórias; Freud então põe em comparação a ciência com os “três poderes” que lhe podem ser contrários: “dos três poderes que podem disputar com a ciência o seu território, o único inimigo sério é a religião. A arte é quase sempre inofensiva e benéfica, não pretende ser outra coisa senão uma ilusão. Excetuadas as poucas pessoas que, como se diz, estão possuídas pela arte, ela não se atreve a imiscuir-se no reino da realidade” (FREUD, 1932/1989FREUD, S. En torno de una cosmovisión (35ª conferencia) (1932). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 22, p. 146-168), p. 148). Segundo Ludwig Marcuse, visto que os artistas, à diferença dos teólogos e dos filósofos, não criam “sistemas metafísicos” que pretendem explicar o mundo, não reivindicando para suas obras, pois, valor de veracidade, Freud pode conviver muito bem com eles - precisamente por serem “inofensivos”: “dado que os artistas não fazem essa reivindicação, Freud podia dedicar-se à vontade às suas criações; ele nunca as viu em conflito com a ciência. Elas são ‘inofensivas’, porque não querem ser nada além de ‘ilusões’” (MARCUSE, 1957MARCUSE, L. Freuds Ästhetik. Publications of the Modern Language Association of America, v. 72, n. 3, p. 446-463, 1957., p. 446). Nessas passagens, parece estar claro que, para Freud, a obra de arte não possui em si nenhum valor epistemológico: poderia servir para agradar, afetar, mover seu consumidor, mas pararia aí, na ilusão estética por ela proporcionada.

Afinal, como compreender essa situação, na qual a arte pode ser vista ora como dotada de importância, ora como destituída dela? Como é possível que Freud, que se utiliza de obras artísticas (sobretudo as literárias) como pontos de interlocução, como molas ou motores de suas reflexões e articulações teóricas, possa qualificar a arte como um conjunto de ilusões sem muita serventia frente à “miséria real”? Tudo isso aponta para o ponto dúbio que a arte5 5 Essa posição dúbia da arte na teoria freudiana já foi atestada por outros comentadores. Pierre Bayard, por exemplo, diz o seguinte: “[...] toda a obra de Freud é habitada pela celebração de sua dívida para com os escritores que, dotados de uma presciência misteriosa dos fenômenos psíquicos, seriam os verdadeiros inspiradores de sua teoria”; apesar disso, “a proclamação dessa dívida [...] não é feita sem alguma ambiguidade” (BAYARD, 2004, p. 23). Trata-se, aqui como no caso genérico do artista, da possessão “imperfeita”, por assim dizer, de um conhecimento a respeito dos processos psíquicos inconscientes; o artista saberia fatos ou verdades psíquicas, sem saber, porém, que os sabe: ao mesmo tempo em que “é julgada portadora de um conhecimento incomparável”, à literatura é atribuído “um lugar secundário, pois que ela não é capaz de entregar sem mediação um conhecimento que não lhe pertence verdadeiramente. Assim, o escritor se parece com um mensageiro que transportaria letras cujo conteúdo ele ignora” (BAYARD, 2004, p. 25). Tudo isso culminaria na atitude que Freud demonstra num artigo de 1910: por estarem atados ao objetivo de dar prazer estético, os “poetas” não podem figurar a “realidade tal qual” ela é. “Assim, torna-se imprescindível que a ciência, com mãos mais toscas e um menor ganho de prazer, se ocupe das mesmas matérias com que a elaboração poética deleita os homens há milênios” (FREUD, 1910/1989, p. 159). ocupa nos interstícios da teorização freudiana. Se a relação entre o artista e a realidade é tudo menos simples, pautando-se em concomitantes recusa e apoio, pode-se dizer que Freud tem perante a arte a mesma atitude: recusa e apoio concomitantes, contraditórios e, quem sabe, complementares.

Para aprofundar nossa análise, partiremos para outras passagens da obra de Freud em que o poeta (representante privilegiado da classe dos artistas) faça presença e tenha o seu ofício perscrutado e analisado por ele. A primeira parada (ou retorno) é 1900.

II

O fato é conhecido: ao tratar, no quinto capítulo de sua Traumdeutung, de um tema interessante, porém teoricamente não tão importante assim à primeira vista (os sonhos típicos), Freud expõe pela primeira vez em uma publicação oficial a teoria do que anos mais tarde viria a ser sintetizado com o epíteto famígero - o complexo de Édipo. A lógica freudiana é implacável: discorrer sobre sonhos de mortes de parentes é discorrer sobre o oposto do afeto vinculado à morte (o ódio); é ter de lidar com o amor incestuoso pelas pessoas da própria família.

Então, é não somente o mito, mas a peça sofocliana que entra em cena. Freud se utiliza dos sonhos para explicar a peça, Freud se utiliza da peça para explicar os sonhos: via dupla, na qual o palco onírico se confunde com o palco grego. O que está em jogo é muito precisamente o efeito que a peça de Sófocles gera até hoje em seus espectadores. A pergunta freudiana não é nada simples: como uma peça de mais de dois mil anos de idade consegue comover os homens até hoje? A resposta, Freud a dá categoricamente - é o conteúdo da peça o que revela o segredo sua eficácia, a despeito do que nossos olhos moralizados possam reter em primeira instância.

Em primeiro lugar, entretanto, dirijamo-nos às palavras de Freud: “a antiguidade nos legou uma saga cuja eficácia” é “total e universal” (FREUD, 1900/1989FREUD, S. La interpretación de los sueños (1900). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 4 e 5, p. 1-608), p. 269-70), e é essa eficácia que ele tratará de explicar. E o fará através do conteúdo da peça, que, segundo Freud, é igualmente universal:

Se Édipo rei sabe comover os homens modernos com não menor intensidade que os gregos contemporâneos de Sófocles, a única explicação é que o efeito da tragédia grega não reside na oposição entre o destino e a vontade dos homens, mas sim na particularidade do material em que essa oposição é mostrada. Há de haver em nossa interioridade uma voz predisposta a reconhecer o império fatal do destino de Édipo [...]. E, com efeito, um fator assim está contido na história de Édipo. Seu destino nos comove unicamente porque poderia ter sido o nosso, porque antes que nascêssemos o oráculo fulminou sobre nós essa mesma maldição. Talvez a todos nós se tenha obrigado a dirigir a primeira moção sexual à mãe e o primeiro ódio e desejo violento ao pai; nossos sonhos nos convencem disso. O rei Édipo, que deu morte a seu pai Laio e desposou sua mãe Jocasta, não é nada senão a realização de desejo de nossa infância. [...] Ao passo que o poeta [...] vai trazendo à luz a culpa de Édipo, vai nos forçando a conhecer a nossa própria interioridade, onde aqueles impulsos, ainda que sufocados, seguem existindo. (FREUD, 1900/1989FREUD, S. La interpretación de los sueños (1900). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 4 e 5, p. 1-608), p. 271).

Assim, existe uma particularidade do material com que se tece a peça, e essa particularidade é que esse material é universal. Ou seja: a particularidade da peça sofocliana, que pode estar ausente de outras peças, cuja eficácia será tanto menor, é verdadeiramente uma universalidade do material que a perfaz. Mas esta é uma universalidade esquecida. Se Sófocles nos comove, não é simplesmente porque nos mostra um destino banal conhecido por todos, mas sim justamente porque mostra um destino comum a todos os homens e plenamente desconhecido por eles. Esse fator, o do esquecimento, é fundamental, pois o que o dramaturgo faz é nada menos do que nos forçar a nos conhecer a nós mesmos durante a encenação de sua peça, ainda que ignoremos que assim nos conheçamos. O escritor, portanto, trabalha em uma obra singular, manejando conteúdos fantasmáticos tirados de dentro de si mesmo, e atinge a todos os seus leitores, porque toca no drama universal que existe em cada um deles. A fórmula usada para investigar a peça de Sófocles pode ser ampliada para o ofício poético ou literário como um todo (o que explicaria o sucesso ou fracasso de determinadas obras). O poeta, se nos toca, é porque tocou em um universal que nos habita. Como afirmou Soria: “O poeta expõe em suas criações as fantasias de cada homem, e estas apontam em direção ao que em cada homem é universal” (SORIA, 2010SORIA, A. A. S. Interpretação, sentido e jogo: um estudo sobre a concepção de fantasia (Phantasie) em Sigmund Freud. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010., p. 144). A fantasia, pois, sendo uma criação idiossincrática de cada indivíduo baseada em suas próprias vivências infantis, também contém um quê de universal, que o une ao restante dos homens. E é com esse entrelaçamento entre particular e universal que o poeta trabalha e, caso alcance fazê-lo bem, logra comover um grande número de leitores, espectadores e ouvintes.

Em primeiro lugar, relembremos que o poeta se serve de suas fantasias idiossincráticas para forjar uma obra (singular); essas fantasias são, segundo exprime Freud (1908 FREUD, S. El delirio y los sueños en la “Gradiva” de W. Jensen (1907 [1906]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 9, p. 7-79)[1907]/1989) em seu artigo sobre o escritor literário e o fantasiar, como as fantasias de quaisquer indivíduos, repugnantes e por si sós não seriam capazes de causar prazer aos outros. Relembremos, também, que, a partir de um objeto particular (sua obra), o escritor obtém o seu sucesso, tendo atingido cada sujeito individual (particular) a partir de no mínimo um ponto que lhes é comum (o universal). A fantasia seria, nesse sentido e segundo as palavras de Green, um pré-texto “comum àquele que escreve e àquele que lê” (GREEN, 1971/1992GREEN, A. La déliaison (1971). In: GREEN, A. La déliaison. Paris: Les Belles Lettres, 1992, p. 11-42., p. 21). Façanha curiosa esta, a do escritor, pois que nem mesmo ele está ciente de como conseguiu realizá-la: em 1908, Freud se queixa de que, caso questionado sobre o seu ofício, o poeta não nos daria respostas proveitosas. O poeta “plasma personagens em sua fantasia” (FREUD, 1907 [1906]/1989FREUD, S. El creador literario y el fantaseo (1908 [1907]). Buenos Aires: Amorrortu Editores , 1989. (Obras completas, 9, p. 127-135), p. 8), como se encontra escrito no estudo sobre a Gradiva de Jensen, mas, manejando - quem sabe se voluntariamente -suas fantasias conscientes, ele acaba trazendo à tona, sem que o saiba ou o queira, conteúdos de suas fantasias inconscientes. São esses conteúdos, afinal, o que permitem que sua obra seja bem-sucedida. A atitude do escritor perante suas próprias fantasias inconscientes não é, assim, muito diferente da atitude do seu leitor - a diferença é que aquele trabalha suas fantasias inconscientes, transformando-as e lhes impondo uma forma nova, enquanto este é como que somente passivo perante seus fantasmas. De alguma forma, a verdade age dentro da obra, porém isso não se dá a partir de uma vontade consciente ou de um ato intencional do seu autor. Vê-se assim que o acesso à verdade que a obra permite é delicado, e feito não somente à revelia do leitor, como o parágrafo de 1900 explicitamente indica, mas também à revelia do próprio autor da obra6 6 “Percebe-se o alcance do ‘invariante estrutural’: o texto literário diria a mesma coisa que o mito, mas dando, ao leitor, acesso ao conteúdo (inconsciente) do mito à sua revelia, ou mesmo a uma dupla revelia - do autor e do leitor” (ASSOUN, 1996, p. 144). . A verdade força seu caminho por meio da obra, assim como o princípio de realidade atinge o indivíduo à força, sem que ele espere por isso ou tenha qualquer defesa suficiente contra o seu choque abrupto.

Por aquele parágrafo de 1911, cujos passos argumentativos nós acompanhamos de perto, o sucesso alcançado pelo escritor se encontrava vinculado ao manejo de um “fragmento da realidade”, aquilo que chamamos a insatisfação generalizada dos homens. Mas essa insatisfação, assim posta, é demasiado abstrata. Já em 1900, Freud nos dá elementos para compreender mais concretamente como se dá esse manejo estético da insatisfação vivida pela humanidade em geral. O poeta trabalha, pode-se deduzir do que recém vimos, com um entrelaçamento delicado entre o particular e o universal. Pode-se depreender que, na leitura freudiana da peça sofocliana, o universal habita o particular, ou melhor, age através dele, por meio dele - os indivíduos da peça são particulares, por exemplo, de categorias cada vez mais abrangentes (rei, príncipe, filho, mãe, homem, mulher etc.), mas o tecido da narrativa, que entrelaça os destinos desses personagens aparentemente tão longínquos dos cidadãos atuais, faz com que os atos e as relações entre eles espelhem as relações reais em que se encontra engajado cada sujeito individual que assiste à peça: a mãe da peça reflete a minha mãe, e assim por diante. Fato de linguagem operado pela obra (ou melhor, pela relação obra-público) que Assoun compreende com um termo técnico da retórica:

Distingue-se o que se poderia denominar o efeito de ‘antonomásia’: esse termo designa em retórica a figura de estilo que consiste em tratar um nome próprio como um nome comum. É o que se passa aqui, de Sófocles a Freud: Édipo se torna o revelador daquilo que todo espectador foi e continua sendo ‘um Édipo’. Efeito de indução trágica que dá sua realidade viva ao ‘complexo’ do qual Édipo é o herói epônimo. (ASSOUN, 1996ASSOUN, P L. Littérature et psychanalyse. Paris : Ellipses, 1996., p. 97).

Cada indivíduo é um Édipo: aqui, a conjugação entre o artigo indefinido (um) e um nome próprio (Édipo) faz emergir um sintagma no qual o universal e o particular estão entrelaçados de maneira inextrincável, e que somente um personagem literário, parece-nos, pode encarnar: Édipo é cada indivíduo e cada indivíduo é Édipo, mas só tomamos consciência disso porque um mito foi forjado um dia, um dia foi forjada uma peça dramatúrgica em que o personagem Édipo veio ao palco. Através dessa metonímia específica, o individual é marcado por um nome próprio de um sujeito particular (o personagem da peça), que nada teria a ver com ele em princípio; essa marca, no entanto, é apenas reveladora do pertencimento prévio a um universal. O que a obra faz, segundo Freud, é desvelar, à força, esse pertencimento, doando-lhe um nome e uma forma nova, um novo tipo de realidade objetiva, para usar a expressão freudiana.

Nós não saberíamos dizer em que lugar ou em que horizonte esse desvelamento poderia se dar a não ser sob uma forma estética - única forma, talvez, em que o particular e o universal podem encontrar-se desse modo relacionados. E é no mínimo impressionante que nós encontremos um fio lógico muito similar nos apêndices de um texto de Freud algo longínquo da obra maestra de 1900, escrito mais de vinte anos depois.

III

“Mito científico”, tais as palavras com que o próprio Freud (1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 128) rotula em 1921 sua narrativa antropológica (ou arqueológica) contida em Totem e Tabu, cujos quatro ensaios foram publicados entre 1912 e 1913. Se o mito de Édipo tem uma importância fundamental para a psicanálise em seu estatuto duplo de conceito e de obra literária, o mito psicanalítico da horda primeva também talvez nos revele muito acerca da teorização freudiana. E isso a partir de um aprofundamento que lhe faz Freud em seu texto sobre a psicologia coletiva. Mas primeiro retomemos, de forma resumida, essa narrativa de Freud.

De acordo com essa hipótese, no início da humanidade, em sua época pré-cultural, haveria uma horda de humanos, a chamada horda primitiva (Urhorde); o líder dessa pequena comunidade seria o pai primevo (Urvater) - ele seria não só um patriarca violento, mas também ciumento, e manteria para si e tão-somente para si todas as fêmeas do bando, relegando seus filhos a um estado de subserviência. A hipótese freudiana versa sobre o ponto de virada desse estado de coisas: os filhos, ressentidos, ter-se-iam reunido e, em um conluio, teriam assassinado o pai. Mas isso não era o suficiente: também se teriam deleitado com um banquete feito da carne do pai morto. Em seguida, teriam fundado uma nova sociedade, desta vez fraternal, erigida sobre a lei capital que proíbe o assassinato. Conclui Freud: assim nasceu a cultura e, mais precisamente, a estrutura de todas as religiões. Todas elas teriam como tarefa lidar com esse crime primordial, o Urverbrechen - o assassinato do pai e o subsequente banquete canibal (FREUD, 1913 [1912-1913]/1989FREUD, S. Tótem y Tabú (1913 [1912-1913]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 13, p. 7-162), p. 143-145). Freud remata, a respeito do assassinato do pai: “O morto se tornou ainda mais forte do que fora em vida; tudo isto, tal como o seguimos vendo hoje nos destinos humanos” (FREUD, 1913 [1912-1913]/1989FREUD, S. Tótem y Tabú (1913 [1912-1913]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 13, p. 7-162), p. 145).

O assassínio do pai, assim, não é a forma mais eficaz de acabar com o seu poderio - muito pelo contrário. Ele está morto, mas sua carcaça continua a assombrar todos os homens de dentro. Todos nós, de acordo com Freud, temos de nos haver com esse crime originário, quer queiramos, quer não. E eis que a figura do universal entra em cena uma vez mais na letra freudiana. Mas que relação tem isso tudo com o afazer poético, de que vimos tratando até então? Na Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136)) encontramos a resposta.

Nesse texto, Freud tem como intuito explicar psicanaliticamente o funcionamento de massas de seres humanos e de coletividades, tais quais o exército e a igreja, por exemplo. Para fazê-lo, lança mão da hipótese apresentada em 1913. Ao retomá-la, ele afirma que “temos que inferir que a psicologia de massa é a psicologia mais antiga do ser humano; aquilo que isolamos como psicologia individual, deixando de lado todos os restos de massa, se perfilou mais tarde, pouco a pouco, e por assim dizer apenas parcialmente a partir da antiga psicologia de massa” (FREUD, 1921FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 116). Todavia, logo em seguida, ele já acrescenta: “uma reflexão imediata nos mostra o ponto em que essa asseveração requer emenda. A psicologia individual tem de ser ao menos tão antiga quanto a psicologia de massa, pois desde o começo houve duas psicologias: a dos indivíduos da massa e a do pai, chefe, condutor” (FREUD, 1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 117). Enquanto os filhos pertencentes à horda primordial e sob o jugo do pai tirano seriam como que massificados, fazendo todos parte de uma e mesma psicologia (a de massas), o pai primevo, por sua vez, teria uma psicologia como que só sua, como que completamente narcísica: “Seu eu estava pouco ligado libidinosamente, não amava a ninguém a não ser a si mesmo, e amava os outros apenas na medida em que serviam às suas necessidades” (FREUD, 1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 117). Assim, aí se postula, durante a vigência da Urhorde, a existência apartada de duas psicologias: a de massas e a individual narcísica. E ele mesmo nos indica que algo há de ter sido o ponto, a ponte a partir da qual a psicologia individual tal qual a conhecemos hoje pôde ter vindo a existir.

É no fim do livro, em um dos seus chamados Apêndices, que se indica que ponte é essa. E se trata muito precisamente do mito. Os filhos, diz-nos Freud, sentiam remorso por terem matado o pai e dele sentiam falta. “Foi talvez por essa época que a privação nostálgica moveu um indivíduo a separar-se da massa e assumir o papel do pai. Aquele que o fez foi o primeiro poeta épico, e esse progresso se consumou em sua fantasia” (FREUD, 1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 128). Ora, notemos que, para Freud, em suas primícias, o mito não está desligado da figura do poeta - e vice-versa: o primeiro poeta faz o primeiro mito, e o primeiro mito faz o primeiro poeta. E é precisamente a partir de um recurso à própria capacidade fantasmática que o primeiro poeta consegue compor seu poema mítico: foi em sua fantasia que ele criou a narrativa de que um herói, o herói épico, havia matado um monstro totêmico (o pai) e assumido o seu lugar e papel. O mito enquanto narrativa fantasística adquire aqui um papel premente:

O mito é, portanto, aquele passo com que o indivíduo sai da psicologia de massa. O primeiro mito foi, seguramente, o psicológico: o mito do herói; o mito explicativo da natureza deve ter aparecido muito depois. O poeta que deu esse passo, e assim se desgarrou da massa na fantasia, sabe porém [...] encontrar na realidade o caminho de retorno a ela. Com efeito, apresenta-se e relata a essa massa as façanhas de seu herói, inventado por ele. No fundo, esse herói não é outro além dele mesmo. Assim descende até a realidade, e eleva seus ouvintes até a fantasia. Estes então compreendem o poeta, podem identificar-se com o herói sobre a base da mesma relação nostálgica com o pai primordial. (FREUD, 1921/1989FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136), p. 129).

O ato poético do Poeta originário é, por conseguinte, a ação mediante a qual o fato, a um só tempo inesquecível e esquecido para sempre do assassinato do pai, retorna sob a veste de uma narrativa fantasmática. Citando mais uma vez Assoun: “O Relato do ‘Poeta’ alcançaria, sob uma forma fictícia, o Ato originário por onde começou a história humana segundo Freud. Contar o ato de origem - sob a cobertura da ficção - é repeti-lo” (ASSOUN, 1996ASSOUN, P L. Littérature et psychanalyse. Paris : Ellipses, 1996., p. 203). E eis uma vez mais uma verdade insuportável angariando passagem à força por meio de uma narrativa fictícia. Nessa narrativa, porém, os irmãos coligados e parricidas se transformam em um único homem, o herói. O coletivo se torna individual, e o ato fundador, de monstruoso e repugnante (causa de uma nostalgia martirizante), é alçado ao estatuto de gesto heroico e venerando. Nessa transposição do coletivo para o individual, o poeta realiza uma façanha: faz com que cada indivíduo a um só tempo se identifique com o herói e se recorde, de forma transfigurada, do ato fundador.

Ora, pode-se notar, nessa análise de 1921, quase que o exato mesmo raciocínio implicado na análise freudiana da peça de Sófocles e no parágrafo de 1911 que fizemos destacar previamente. Isso fica claro se se desmembra o esquema freudiano da criação do mito de origem em seus três tempos ou momentos, dentro dos quais estão contidas diversas transformações e operações lógicas entre os seus participantes:

1 - O Poeta se desgarra da massa e engendra, na sua fantasia, um mito. Esse mito é a elaboração, a partir da privação nostálgica que todos experimentam, do ato fundador, esquecido e inesquecível.

2 - O Poeta sobe até a fantasia, mas sabe descer até a realidade ao apresentar-se novamente à massa e relatar-lhe sua narrativa, plena de façanhas heroicas, que recém foi por ele forjada.

3 - Seu retorno à realidade está, portanto, no ato de dar aos outros sua narrativa, isto é, tem como elemento mediador a fantasia mesma. A partir desse ato duplo (o de criar uma narrativa fantasmática e o de oferecê-la aos outros), cada indivíduo particular se identifica com o herói e pode, assim, formar uma coletividade que diríamos ambígua: ele é a um só tempo um particular e faz parte de um universal.

Essa identificação só é possibilitada, entretanto, por intermédio de um delicado jogo lógico operado durante a elaboração épica e fantasística do crime primordial. No ato fundador, uma coletividade elimina um particular indesejado; no mito, o coletivo se torna individual (é um único herói, agora, quem perpetua o ato) e, por tornar-se individual, permite que cada indivíduo se identifique com ele, fundando assim uma nova coletividade. Dupla negatividade, portanto: o universal é negado através da assunção de um particular (o herói), cujo ato (que de terrível tornou-se venerável) é o elemento através do qual os sujeitos se identificam, permitindo a assunção de um novo universal (a comunidade fraternal). Um primeiro universal (a liga de irmãos assujeitados) é negado para que, em um terceiro momento (após a negação do caráter atroz do ato já cometido), possa emergir um segundo universal (a comunidade fraternal). Esse jogo complexo entre universal e particular é mais uma vez tornado possível somente pelo intermédio da fantasia, pois que, indica-nos Freud, recebendo a narrativa forjada pelo Poeta, os ouvintes se elevam até a fantasia. Ora, é nesse elevar-se mesmo que os sujeitos se identificam com o herói e se identificam entre si, formando uma coletividade fraternal.

Na medida em que, citando uma vez mais Assoun, “o ‘ganho’ fundamental da Obra - a escrever aqui com uma maiúscula, pois que se trata da Epopeia, e não de um simples ‘romance’ - é de tornar possível, na representação e sob a cobertura da ficção escrita, a repetição do Ato primeiro - como verbo (poético)” (ASSOUN, 1996ASSOUN, P L. Littérature et psychanalyse. Paris : Ellipses, 1996., p. 204), podem-se extrair algumas conclusões lógicas dessa análise freudiana do Ato primeiro do primeiro Poeta. Elas concernem ao estatuto epistemológico da fantasia (e da poesia) para a teorização freudiana e dizem respeito à posição que ocupa o que se poderia chamar o ato poético dentro dessa teorização.

A primeira conclusão que se pode tirar é a de que o “mito científico” freudiano revela o seu sentido après-coup, por meio da análise de 1921, quase marginal, do ato poético envolvido na confecção do mito. Como indicou Green, “a construção freudiana não se contenta em invocar repetitivamente o Édipo, suas variantes, seus precursores e seus herdeiros (o supereu), mas chega - fato estranho - a ter de criar um mito fundador [...]. Dito de outra forma, ela é levada a mistificar, por sua vez” (GREEN, 1980/1992, p. 166). Essa criação mitológica da parte de Freud, que importância tem ela para a própria estruturação epistêmica de sua teoria? É o ato de fantasiar que revela então um valor insuspeito: podemos, por exemplo, notar como o próprio Freud, ao fabricar o seu “mito científico” do assassinato originário, compõe uma narrativa particular cujo intuito, teórico, é atingir um ponto universal do destino humano. Assim, nesse ponto específico da teorização freudiana, a fantasia parece ocupar um lugar central, pois que o próprio Freud acaba por fazer o mesmo que o primeiro Poeta: sobe até a fantasia, forja uma narrativa imaginária onde explica passo a passo as primícias da civilização humana e de suas instituições e a doa ao seu público. Ao intentar traçar a origem primal da civilização, Freud também expôs, ao seu modo, a origem do mito - e o fez forjando um mito a si próprio e à psicanálise.

Ora, o lugar em que assoma a descrição freudiana da fabricação do primeiro mito nos parece ser fundamental e, poder-se-ia dizer, até mesmo sintomático: ela não é apresentada senão nos apêndices do livro de 1921, como se não fosse completamente compatível com o restante do texto. Quase como excedente (à maneira, percebe-se, do parágrafo de 1911 sobre a arte). Deve-se, quem sabe, ler a tese básica sobre a homogeneidade de um grupo humano, apresentada em 1921, também après-coup, tendo como chave de leitura esses extratos dos seus apêndices. Não nos parece equivocado dizer que toda a análise freudiana da identificação (tendo como base a projeção do ideal do eu dos indivíduos num líder), como mecanismo básico da coerência de um grupo, poderia ser repensada e reinterpretada a partir dos elementos dados nos apêndices. Afinal, é possível que haja essa identificação sem que essa narrativa mítica (e poética, na sua origem, não nos esqueçamos) já esteja presente e lhe seja subjacente?

Isso tudo nos faz apenas reafirmar a posição dúbia que a poesia (e a arte em geral) ocupa dentro do discurso freudiano. Pois a conclusão que se tira dos trechos de 1921 por nós sublinhados não é pouco estonteante: o que Freud parece aí nos dizer é, não que todos podem ser poetas, mas sim que um Poeta nos fundou e que, por fim e desde as origens, um mito nos habita enquanto seres sociais.

IV

Para finalizar, apontemos apenas aquilo que talvez seja um ponto de encontro bastante fértil entre a escrita literária e a teorização analítica. A psicanálise, relembremos, não é una, mas trina: seu método não é somente terapêutico e investigativo, mas visa sempre à construção da sua teoria. Ou seja, ela vai, sempre, do particular dos sujeitos analisados rumo à universalidade dos conceitos. Nesse sentido, “a tarefa da psicanálise é paradoxal”7 7 “A tarefa da psicanálise é paradoxal: ela se esforça na prática psicanalítica por captar o máximo possível a singularidade de um dado analisando, e, no entanto, o resultado de suas pesquisas e a teoria que dela decorre visam a definir os traços mais gerais que determinam a subjetividade humana” (GREEN, 1981/1992, p. 146). , para dizer com André Green (1981GREEN, A. Œdipe, Freud et nous (1981). In: GREEN, A. La déliaison. Paris: Les Belles Lettres , 1992, p. 69-146 /1992, p. 146). É paradoxal porque, como muito se repete, “cada caso é um caso”8 8 A esse respeito, chegou mesmo Lacan, por exemplo, a dizer em 1952: “Como Freud sempre sublinhou, cada caso deve ser estudado em sua particularidade, exatamente como se nós ignorássemos tudo da teoria” (LACAN, 1952/1965, p. 20). , mas os conceitos de pulsão, repressão, transferência e fantasia não fazem muito caso do tom de voz e das vestimentas dos indivíduos analisados. Do ponto de vista epistemológico, eles são universais e hão de ser válidos enquanto tais.

Essa tarefa, portanto, não é nada simples. Se do particular da clínica é necessário que se chegue ao universal do conceito, antes disso há uma espécie de transição, que é nada menos do que o relato clínico. Nesse relato, há um uso bem delicado e refinado da pessoa do paciente, da sua história, dos seus atos, dos seus sonhos, feito de modo a que ele se torne um vero personagem de uma trama narrativa muito específica. Passagem, portanto, de pessoa para personagem. Ora, é bem possível, pois, que nessa escritura clínica o personagem principal venha a adquirir o mesmo estatuto lógico-ontológico do herói do poema épico e de Édipo na peça sofocliana. Dora, o pequeno Hans, o Homem dos Lobos não são meros particulares, não são meros sujeitos cujas desventuras não nos concernem: eles são entidades narrativas, seus desejos e suas estruturações subjetivas nos tocam a todos; eles são únicos, mas encarnam dramas universais. Isso só é possibilitado, assim nos parece, graças a uma técnica narrativa, uma escritura própria à teorização freudiana. Assim, não é somente “imprescindível que a ciência [...] se ocupe das mesmas matérias com que a elaboração poética deleita os homens há milênios” (FREUD, 1910/1989FREUD, S. Sobre un tipo particular de elección de objeto en el hombre (Contribuciones a la psicología del amor, I) (1910). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 11, p. 159-168), p. 159), mas que ela tenha a mesma atitude perante a técnica literária. Nós defendemos que, além de compartilhar o objeto de estudo, é possível que psicanálise e literatura compartilhem do mesmo método. Compreender como e em que medida isso ocorre seria analisar não só o Freud analista e o Freud teórico, mas também o Freud escritor. E isso não seria trabalho somente para psicanalistas, mas também para literatos, filósofos, artistas.

REFERÊNCIAS

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  • FREUD, S. El delirio y los sueños en la “Gradiva” de W. Jensen (1907 [1906]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 9, p. 7-79)
  • FREUD, S. El malestar en la cultura (1930 [1929]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 21, p. 65-140)
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  • FREUD, S. Formulaciones sobre los dos principios del acaecer psíquico (1911). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 12, p. 223-231)
  • FREUD, S. La interpretación de los sueños (1900). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 4 e 5, p. 1-608)
  • FREUD, S. Psicología de las masas y análisis del yo (1921)., 1989. (Obras completas, 18, p. 67-136)
  • FREUD, S. Sobre un tipo particular de elección de objeto en el hombre (Contribuciones a la psicología del amor, I) (1910). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 11, p. 159-168)
  • FREUD, S. Tótem y Tabú (1913 [1912-1913]). Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1989. (Obras completas, 13, p. 7-162)
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  • GREEN, A. Œdipe, Freud et nous (1981). In: GREEN, A. La déliaison Paris: Les Belles Lettres , 1992, p. 69-146
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  • SORIA, A. A. S. Interpretação, sentido e jogo: um estudo sobre a concepção de fantasia (Phantasie) em Sigmund Freud. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010.
  • 1
    Todas as citações de Freud são oriundas da edição Amorrortu (Buenos Aires). Todas elas serão traduzidas por nós, assim como citações de outros autores em língua estrangeira.
  • 2
    O termo usado por Freud em sua carta a Thomas Mann é Taten, plural de Tat (“ato”, “ação”, “feito”), derivado do verbo tun, que significa “fazer”. Não se trata, pois, do “ato” entendido como conceito psicanalítico (como na “passagem ao ato” ou no “acting-out”); para essa gama de sentidos, Freud emprega o verbo agieren (como em Repetir, recordar e elaborar e no caso Dora). Neste nosso artigo, queremos explorar a criação artística como um “fazer”, uma “feitura”, um ato (Tat) muito específico, que não deve ser confundido com o ato da passagem ao ato, que, em vez de criador, é mormente pensado como desintegrador e desconstrutivo.
  • 3
    Passaremos por todo este parágrafo (de Freud) no decorrer dos próximos três parágrafos. Todas as citações serão dele retiradas. A citação e sua paginação virão no fim, quando terminarmos de citá-lo. Em todas as subsequentes citações deste artigo, os grifos serão dos autores.
  • 4
    Atentemos ao fato de que Freud, ao descrever a arte e o artista de um modo geral, acaba por se referir mais especificamente aos escritores e à literatura. Isso nos dá fundamento para, baseando-nos nesse parágrafo, passar nossa análise para a posição do escritor e da literatura (ou poesia) dentro da obra de Freud.
  • 5
    Essa posição dúbia da arte na teoria freudiana já foi atestada por outros comentadores. Pierre Bayard, por exemplo, diz o seguinte: “[...] toda a obra de Freud é habitada pela celebração de sua dívida para com os escritores que, dotados de uma presciência misteriosa dos fenômenos psíquicos, seriam os verdadeiros inspiradores de sua teoria”; apesar disso, “a proclamação dessa dívida [...] não é feita sem alguma ambiguidade” (BAYARD, 2004, p. 23). Trata-se, aqui como no caso genérico do artista, da possessão “imperfeita”, por assim dizer, de um conhecimento a respeito dos processos psíquicos inconscientes; o artista saberia fatos ou verdades psíquicas, sem saber, porém, que os sabe: ao mesmo tempo em que “é julgada portadora de um conhecimento incomparável”, à literatura é atribuído “um lugar secundário, pois que ela não é capaz de entregar sem mediação um conhecimento que não lhe pertence verdadeiramente. Assim, o escritor se parece com um mensageiro que transportaria letras cujo conteúdo ele ignora” (BAYARD, 2004, p. 25). Tudo isso culminaria na atitude que Freud demonstra num artigo de 1910: por estarem atados ao objetivo de dar prazer estético, os “poetas” não podem figurar a “realidade tal qual” ela é. “Assim, torna-se imprescindível que a ciência, com mãos mais toscas e um menor ganho de prazer, se ocupe das mesmas matérias com que a elaboração poética deleita os homens há milênios” (FREUD, 1910/1989, p. 159).
  • 6
    “Percebe-se o alcance do ‘invariante estrutural’: o texto literário diria a mesma coisa que o mito, mas dando, ao leitor, acesso ao conteúdo (inconsciente) do mito à sua revelia, ou mesmo a uma dupla revelia - do autor e do leitor” (ASSOUN, 1996, p. 144).
  • 7
    “A tarefa da psicanálise é paradoxal: ela se esforça na prática psicanalítica por captar o máximo possível a singularidade de um dado analisando, e, no entanto, o resultado de suas pesquisas e a teoria que dela decorre visam a definir os traços mais gerais que determinam a subjetividade humana” (GREEN, 1981/1992, p. 146).
  • 8
    A esse respeito, chegou mesmo Lacan, por exemplo, a dizer em 1952: “Como Freud sempre sublinhou, cada caso deve ser estudado em sua particularidade, exatamente como se nós ignorássemos tudo da teoria” (LACAN, 1952LACAN, J. Le mythe individuel du névrosé (1952). Paris: Editions du Seuil, 1965./1965, p. 20).
  • Este artigo só foi possível em virtude do financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processo nº 2019/08501-5). Agradeço também às orientações sempre benfazejas de Janaina Namba, sem cujos comentários este artigo não viria à luz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2020
  • Aceito
    10 Jan 2023
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