Resumo:
Este artigo trata dos conceitos de sujeito e falasser de acordo as perspectivas do ensino lacaniano. Buscou-se discutir as proposições cartesianas sobre o ser e as cisões do Eu presentes na obra freudiana, assim como o caráter evanescente do sujeito, como exposto por Lacan. Desenvolveu-se o problema do gozo, desde o viés estruturalista que pressupõe um corpo mortificado até a sua concepção enquanto substância do corpo vivo. O apontamento para um gozo anterior à linguagem tem consequências teóricas e clínicas, tornando necessário revisitar tanto o dualismo cartesiano quanto o inconsciente freudiano.
Palavras-chave:
sujeito; falasser; gozo
Abstract:
This article deals with the concepts of subject and parlêtre according to the perspectives of Lacanian teaching. We tried to discuss the Cartesian propositions about being and the splits of the Self present in Freud’s work, as well as the evanescent feature of the subject, as stated by Lacan. We have developed the jouissance question from the structuralist bias that presupposes a mortified body to its conception as a substance of the living body. The indication of a jouissance prior to language has theoretical and clinical consequences, making it necessary to revisit both Cartesian dualism and Freudian unconscious.
Keywords:
subject; parlêtre; jouissance
Introdução
De que sujeito se trata em psicanálise? Esta questão serve de bússola ao esforço de percorrer o caminho de uma elaboração conceitual que parte da tradição filosófica - sobretudo o pensamento cartesiano -, seguindo em direção a uma abordagem detalhada sobre a noção de sujeito, na tentativa de elevá-la ao estatuto de um conceito no corpo teórico psicanalítico. Para isso, faz-se necessário dar atenção às proposições feitas por Descartes ao longo de suas Meditações Metafísicas (1641/2015) que se julgou relevantes para a concepção do homem moderno, tendo em vista que possibilitaram a emergência de uma ciência comprometida com o uso da razão para alcançar a verdade, rompendo com a tradição de crença no sagrado. Por conseguinte, conforme Lacan (1964/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11)), é Descartes quem inaugura o sujeito no mundo com seu Cogito, que, posteriormente, sofrerá as consequências da invenção freudiana do inconsciente, tendo em vista que o sujeito da consciência será deslocado do centro de referência. Portanto, pode-se dizer que o sujeito da psicanálise é tributário do cartesiano. Percebe-se ainda que, tanto em Descartes como em Freud, há uma certeza de um não saber, quer seja pela dúvida, quer seja pela ausência de um pensamento na consciência.
Segundo Fink (1998FINK, B. O sujeito lacaniano. Rio de Janeiro: Zahar , 1998.), o sujeito em questão na psicanálise não corresponde ao sujeito da filosofia analítica, pensante e consciente, uma vez que este seria relativo à instância egóica, muito mais imaginário, idealizado; um objeto identificatório. Se, de um lado, Descartes estabelece um método capaz de alcançar a verdade do ser cuja existência está garantida por Deus, do outro, observa-se que o sujeito em questão para a psicanálise é sempre impreciso, evanescente. Dessa forma, à primeira vista, haveria de se concordar com Lacan, quando ele afirma que “dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo” (LACAN, 1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 869-892., p. 873). Porém, apesar desta evidente divergência, é prudente acompanhá-lo em sua elaboração de que esta correlação se sustenta, uma vez observado que o sujeito da ciência efetua o rechaço a todo saber a priori que tenha pretensões de ser elevado ao estatuto de verdade. Vieira (2001VIEIRA, M. A. A ética da paixão. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.) acompanha a posição lacaniana e afirma que, a partir da invenção do inconsciente, não se trata de desprezar o Cogito cartesiano, mas sim de considerar que é preciso seguir o passo dado por Freud e ultrapassar os limites da concepção dualista. Também não caberia preencher os furos da tese racionalista, esforçando-se por definir no que consiste a junção entre corpo e alma, mas de conceitualizar as questões geradas pelas manifestações do inconsciente, embora o pensamento freudiano pareça ter dado uma resposta a este problema ao propor a pulsão
[...] como um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, como representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo que alcançam a alma, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal. (FREUD, 1915/2017FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Belo Horizonte: Autêntica , 2017., p. 23-25).
Nesta altura, já se encontra em evidência uma questão que será incansavelmente abordada como um impasse por Lacan: a articulação entre significante e gozo. De início, tem-se a definição de significante: “aquilo que representa o sujeito para outro significante” (LACAN, 1960/1998LACAN, J. Comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" (1954). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 893-902., p. 833) - o que também já aponta o próprio sujeito como sempre situado entre dois significantes. No entanto, o conceito de gozo passará por algumas transformações ao longo do ensino lacaniano, culminando em uma concepção caracterizada pela não-relação. Segundo Miller, “o conceito de não-relação merece ser posto diante do conceito de estrutura” (MILLER, 2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000., p. 102), ou seja, a partir desse momento, indicado como o sexto paradigma do gozo, Lacan se lança no movimento de reformulação, impondo questões à primazia do estruturalismo em seu ensino. Assim, acabou se tornando premente a inauguração da noção de falasser para dar conta das consequências advindas desse esforço, uma vez que, entre desejo e gozo, o sujeito do significante não seria suficiente.
Posto isto, julga-se proveitoso lançar luz sobre as concepções de sujeito nas obras cartesiana, freudiana e lacaniana, a fim de indicar suas delimitações, suas correlações e suas antinomias. Parte-se da ponderação de que o conceito de sujeito, no âmbito da clínica psicanalítica, é consideravelmente fundamental desde a compreensão diagnóstica do caso que se apresenta até a questão da condução do tratamento. Depois, admite-se a relevância que a investigação conceitual pode significar às diversas áreas do saber para as quais a noção de sujeito desperte algum interesse.
1 Descartes, o Cogito e o sujeito da ciência
Descartes (1641/2015DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.) propõe uma teoria do conhecimento na intenção de fornecer às ciências um alicerce consistente para a busca do verdadeiro; seu esforço tem uma finalidade fundacionista. Para isso, estabeleceu como método a dúvida sistemática a fim de se abster de concepções pré-estabelecidas e pôs em xeque a veracidade de um saber construído pela via dos sentidos. Assim, pode-se afirmar que o pensamento cartesiano é paradigmático, na medida em que se compromete a desmantelar todo conhecimento em que não é observado o método proposto e então reerguer a edificação do saber pelo viés ontológico do racionalismo moderno. A dúvida hiperbólica aparece já na Meditação Primeira, capítulo em que também surge o tema dos sonhos, do qual lança mão em defesa do método ao argumentar que a crença de que é possível conhecer o mundo pelos sentidos é problemática, haja vista que não seria suficiente para distinguir o sono da vigília. Por outro lado, a verdade da natureza estaria conservada mesmo nos sonhos, já que as imagens oníricas seriam semelhantes àquilo que é real e verdadeiro, seguindo o teste da razão. O filósofo ainda traz a hipótese de um certo “gênio maligno” hábil em enganá-lo quanto a tudo, mas incapaz de privá-lo da dúvida: “e se, por esse meio, não está em meu poder alcançar o conhecimento de alguma verdade, pelo menos está em meu poder suspender meu juízo” (DESCARTES, 1641/2015DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015., p. 50). Além disso, na hipótese de ser tomado como objeto do enganador, Descartes conclui que ele próprio é algo existente.
É então que surge, na Meditação Segunda, uma proposição que se assume como verdadeira no momento de sua formulação como pensamento ou de sua enunciação: “Eu sou, eu existo”. Este axioma, o Cogito, conduzirá à segunda certeza: que o eu existe e não é outro senão uma coisa que pensa, isto é, “que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (DESCARTES, 1641/2015DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015., p. 57). Observa-se que não é só da evidência da existência do eu que se trata nesta Meditação, mas também da existência de mente e corpo, o próprio dualismo cartesiano. Ora, se há duas substâncias de naturezas diferentes, quais são suas respectivas qualidades? Dos atributos considerados por Descartes, ocorreu-lhe que o pensamento a ele pertencia, mas, quanto a outros, havia dúvidas, inconsistências. Neste contexto, apresenta o exemplo do pedaço de cera de abelha e, submetendo-o ao efeito do fogo, altera suas qualidades, porém não considera que aquilo é outra coisa senão a mesma cera de abelha, tal é a imprecisão da natureza dos corpos. Chega-se, então, à terceira verdade presente no subtítulo do capítulo: o espírito humano é mais fácil de conhecer do que o corpo.
Na Meditação Terceira, o filósofo francês questiona a totalidade de seus conhecimentos. Segundo Winograd (1998WINOGRAD, M. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998.), embora o Cogito garanta a verdade da existência do eu, tem seu limite na exterioridade: é necessário que algo assegure a origem das ideias, pois, aquele que pensa não é autor das ideias, o que faz remeter a causa destas a outra existência. Além disso, a ideia conteria algo da realidade, de modo que, para que se tenha a ideia de infinito, é necessário que exista um ser desta natureza. Eis que aparece a figura de Deus como “a causa de um ser finito que pensa o infinito. [...] Se o Cogito aparece como condição de conhecimento de todo ser - incluindo o Divino -, inversamente, Deus é a condição do ser do Cogito e de todas as suas ideias” (WINOGRAD, 1998WINOGRAD, M. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998., p. 28).
Resolvida a questão da existência de Deus, resta solucionar o problema da origem do erro e do nada. Para Descartes, o eu estaria situado entre o ser soberano e o não-ser, o nada, logo se tem que, não podendo jamais ser ele próprio o Divino, resta-lhe apenas ou o lugar de hiato ou o lugar do vazio. Depois, o erro seria uma privação, ou seja, a falta de algo inerente ao ser. Havendo a privação do entendimento, decorre disto o mau uso do livre arbítrio, isto é, a vontade atua unicamente por sua liberdade, tendo por consequência um falso juízo - o fazer sem pensar. Na Meditação Quarta, o racionalista conclui que Deus não é a causa do erro, e à medida em que se observa o hábito de se fazer bom uso da razão, seria possível alcançar o conhecimento verdadeiro.
Descartes, em sua Meditação Quinta, debruça-se sobre a essência das coisas materiais a partir das ideias que tem a respeito e conclui que tanto as conhece distintamente quanto percebe que já estavam em seu espírito, caracterizando tais ideias como inatas. Levanta ainda a questão da existência e da essência: “embora, talvez, não tenham nenhuma existência fora de meu pensamento, [...] elas têm suas naturezas verdadeiras e imutáveis” (DESCARTES, 1641/2015, p. 90). De acordo com Winograd (1998WINOGRAD, M. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998.), seu pensamento postula que as verdades matemáticas dão conta da essência das coisas, porém, quanto à existência, cabe ao eu pensante alcançar em sua experiência, reconhecendo a si mesmo como unido ao seu corpo. É justamente sobre as coisas materiais e o dualismo corpo e mente que Descartes irá tratar na sexta e última Meditação. Nesta altura, o homem é reinvestido de suas qualidades, suspensas ao longo da Meditação Primeira. No entanto, não se trata de ir dos sentidos em direção ao pensamento, uma vez que disso decorreria uma série de imprecisões e falsos juízos, mas sim de fazer o caminho inverso para então comprovar a existência dos corpos: sendo o espírito dotado apenas de uma faculdade passiva do sentir, a faculdade ativa deve existir em outra substância, o corpo. Com a separação entre corpo e mente, tem-se que “o principal resultado da análise cartesiana é a dissociação entre a percepção da existência e o conhecimento da essência” (WINOGRAD, 1998WINOGRAD, M. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998., p. 31).
Descartes designou o eu como ponto de referência, posto que, dotado de um método, seria suficiente para conhecer a natureza; a representação define a ontologia cartesiana do sujeito da ciência. Entretanto, ao propor a existência de um pensamento inconsciente, que escapa à representação, Freud conduzirá a uma hesitação da posição central do homem, causando uma ferida narcísica na Humanidade ao propor que o eu não é senhor em sua própria casa.
2 Freud, as cisões do Eu e a demarcação da estrutura
Para Assoun (1996ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.), a construção do sujeito freudiano passa por três tempos de elaboração da teoria psicanalítica. Nas primeiras elaborações da teoria da libido, persevera a ideia da determinação inconsciente do recalcamento de objeto, sem espaço para a subjetividade. Adiante, desde os textos metapsicológicos, o caráter subjetivo passa a ser elaborado por Freud até chegar aos termos da afirmação e negação como marcadores da separação da noção de sujeito e de objeto, baseado na noção de pulsão de morte. Portanto, os conceitos freudianos de representação, inconsciente e pulsão colocam o pensamento cartesiano em xeque, já que não seria possível reduzir o sujeito a substâncias dissociáveis. É ainda mais tarde que a noção de sujeito será levada a outro patamar, com a consideração da cisão do Eu (Ichspaltung).
É importante acompanhar Freud quando ele indica que o Eu não existe desde sempre, que precisa ser desenvolvido a partir de certa organização libidinal que precede a relação objetal, isto é, o narcisismo, esse “originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam” (FREUD, 1914/2010FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). São Paulo: Cia das Letras, 2010. (Obras Completas, 12, p. 13-50), p. 17). Ora, tal inauguração tem como consequência a separação entre Eu e objeto, que será extensamente discutida no texto sobre a pulsão. No narcisismo, o Sujeito (Eu) [Subjekt (Ich)] está para o prazer, assim como o Objeto (mundo externo) [Objekt (Außenwelt)] está para o desprazer. Porém, a partir do momento em que o Eu toma para si os objetos tidos como prazerosos e rechaça aqueles que não o são, passa a ser um Eu-prazer purificado, sustentado pelo princípio de prazer. Constata-se que se concebe uma qualidade no Eu ou em um objeto, cuja verificação torna evidentes suas distinções, separando-os. Neste ponto inicial de diferenciação, há uma afirmação [Bejahung] e expulsão [Austossung] primordiais. A primeira, por seu caráter representativo, terá efeitos de simbolização, tornando possível a verificação de existência de um objeto; a segunda refere-se ao irrepresentável. O resultado dessas transformações é um Eu dividido: “o Eu extraiu de si uma parte, que projeta no mundo externo e sente como hostil” (FREUD, 1915/2017FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Belo Horizonte: Autêntica , 2017., p. 55).
Já em sua segunda tópica, reafirma que não existe, de início, o contraste entre subjetivo e objetivo e que isso só se dará em outro tempo com o advento da função do juízo (ASSOUN, 1996ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.). Ao discorrer sobre a negação [Verneinung], Freud retoma a oposição Sujeito-Objeto e as transformações no Eu relativas à sua interação com o mundo externo e difere juízo de atribuição e juízo de existência, dois tempos da Bejahung, aproximando o primeiro ao princípio de prazer e correlato à constituição do Eu e o segundo, ao princípio de realidade, destacando que a perda de objeto seria condição necessária para a prova de realidade, uma vez que o principal objetivo desta “não é, portanto, o de encontrar na percepção real um objeto correspondente ao representado, mas sim o de reencontrá-lo, de se convencer de que ele ainda está presente” (FREUD, 1925/2016FREUD, S. A negação (1925). In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica , 2016, p. 305-314., p. 308). Convém pontuar que, no recalcamento, parte da realidade relativa ao processo também é perdida e substituída pelo que se entende por fantasia, com a qual o neurótico reorganiza sua relação com o desejo e lhe atribui significado singular. É na fantasia que se empreende a relação com o objeto perdido que se deseja reencontrar.
Ainda sobre a Verneinung, percebe-se que tem estatuto de estrutural, posto que negar seria atribuir a marca do recalcamento no nível intelectual; o pensamento é tributário da negação. Aliás, os exemplos clínicos expostos no texto freudiano demonstram que a Verneinung é a ilustração de como o Eu reconhece o inconsciente: negando-o. Em “não foi isso que eu pensei”, Freud percebe que, por trás do sujeito do enunciado, há um sujeito da enunciação que só pode falar através do primeiro. Assim, caberia à análise, pela via da interpretação, reconduzir a verdade ao seu lugar. Segundo Jean Hyppolite, com a Verneinung o que está em jogo é “apresentar seu ser à maneira de sê-lo: é realmente disso que se trata nessa Aufhebung do recalque que não é uma aceitação do recalcado [mas antes em sua acepção hegeliana de] negar, suprimir e conservar, e, no fundo, suspender” (LACAN, 1954/1998LACAN, J. Comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" (1954). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 893-902., p. 895).
Que quer dizer apresentar seu ser à maneira de sê-lo? A questão gira em torno de uma dissimetria entre o Eu e o sujeito do inconsciente. Apesar de Freud apresentar, em sua obra, a correspondência Eu-sujeito [Subjekt-Ich], também apresenta uma série de cisões, em diferentes momentos teóricos, que acontecem no interior dessa díade. Sabe-se que o Eu é uma parte do Isso diferenciada pela interferência do externo; que o Eu dá origem ao Supereu; que há uma parcela certamente inconsciente do Eu; que é tanto sujeito quanto objeto etc. Será apenas nos anos 30 que o austríaco apontará para os efeitos determinantes da fenda no Eu [Einriss im Ich], “a qual nunca será curada, mas crescerá com o passar do tempo. Suas reações contrárias ao conflito [entre exigências pulsionais e realidade] permanecerão como o cerne de uma cisão do Eu [Ichspaltung]” (FREUD, 1938/2016FREUD, S. A cisão do Eu no processo de defesa (1938). In: FREUD, S. Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 199-204., p. 202). Além de evidenciar que a unidade do Eu é constantemente sujeita a falhas, esta cisão apresenta todo um valor constituinte que só se revelará posteriormente. O resultado é um eu (self) imaginário, que nega a outra parte dessa cisão do Eu, o inconsciente, e vice-versa: o discurso do inconsciente aparece como negando o discurso do eu, como um não-dizer que aponta para algo daquele que fala, para uma ambivalência na enunciação (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano. Rio de Janeiro: Zahar , 1998.).
3 Lacan, o sujeito do inconsciente e sua verdade
Se é possível extrair da pena freudiana uma noção de sujeito, não é graças à disposição do autor para elaborá-la. Embora não tenha desenvolvido uma ontologia propriamente dita, Freud deixou algumas coordenadas para traçar o caminho de uma possível abordagem do ser pela via psicanalítica: “o indivíduo tem de fato uma dupla existência, como fim em si mesmo e como elo de uma corrente, à qual serve contra - ou, de todo modo, sem - a sua vontade” (FREUD, 1914/2010FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). São Paulo: Cia das Letras, 2010. (Obras Completas, 12, p. 13-50), p. 20). Poderíamos pensar, em sua concepção mais genuína, o ser como aquilo que é e o elo citado por Freud como sujeito indeterminado que desponta em uma cadeia significante. Baseado nisso, Lacan (1964/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11)) indicará a fenda do inconsciente como pré-ontológica, uma vez que não se trata de ser ou não-ser, mas de algo ainda não-realizado. E qual seria o lugar da realização do sujeito do inconsciente? A resposta está na advertência freudiana: Wo Es war, soll Ich werden. Lá onde isso era - onde isso pensa -, devo Eu advir. Fica exposto que não se trata do eu da consciência, mas do Eu-sujeito-do-inconsciente. Retornando a Hyppolite sobre a Verneinung, observa-se que se toma por objeto a manifestação desse “ser” que só se apresenta mediante o funcionamento do inconsciente. É a ratificação da diferença entre o eu da consciência e o Eu-sujeito. Portanto, o “eu” só poderia ser tomado como sujeito do enunciado, enquanto tentativa de representar o sujeito da enunciação, como se o “eu” falasse em nome deste, mas a revelação da verdade só acontece no momento em que se apresenta a falha que os distingue (ASSOUN, 1996ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.). Neste sentido, levando em conta que as formações do inconsciente só expõem o sujeito em sua condição de devir, ele não poderia estar restrito ao registro ontológico, já que o inconsciente é anterior à realização do ser; também não se resumiria unicamente no registro ôntico, uma vez que é indeterminado; o sujeito não é outra coisa senão ético, posto que sua realização é da ordem do ato (LACAN, 1964/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11)).
Lacan (1957/1998LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 496-533.) aponta que o sujeito é efeito de linguagem, marcado pela ação do significante que preexiste à sua existência e engendra a significação de seu lugar na realidade. Sendo assim, é preciso marcar sua relação com o Outro, lugar simbólico por excelência. Esta alteridade é que assegura a existência do sujeito, que o causa mediante sua função de corte, instaurando o lugar de uma falta e de uma falha, barrando-o e lançando-o à condição de uma metáfora, além de torná-lo desejante pela via metonímica. Que o sujeito lacaniano seja uma metáfora implica em indicar seu imediato desaparecimento após se presentificar em ato. Escamoteando seu lugar, outro significante o representará. E dizer que o seu desejo seja de ordem metonímica é indicar o movimento que põe ao sujeito a possibilidade de se realizar. É pelo deslizamento metonímico, de um significante a outro, que é possível alguma representação do sujeito - enquanto sua metáfora -, considerando-se a indeterminação do seu lugar e seu caráter evanescente.
Em suma, com Lacan (1957/1998LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 496-533., p. 509-510), aprende-se que é de “palavra em palavra” que se toma “uma palavra por outra” - metonímia e metáfora, respectivamente. Sendo o sujeito da ordem da metáfora, é sempre de uma substituição entre dois significantes de que se trata, uma troca na qual o substituto conserva a presença do primeiro, ainda que este saia de cena, recalcado. É o eterno movimento do seu desejo, servindo-lhe de suporte, que permite a realização do sujeito. Logo que se faz presente, seu próximo movimento é ausentar-se, daí que corresponde a um furo representado por um significante (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano. Rio de Janeiro: Zahar , 1998.). Portanto, as formações do inconsciente são as notícias que se tem da realização do sujeito e Freud pôde bem interpretá-los como os modos pelos quais se revelará a própria verdade. A respeito desta última, não se trata da verdade factual, de uma relação entre eventos, mas de uma verdade ficcional, que rompe com os limites de verdadeiro e falso, pois, ainda que seja mentirosa, conserva autêntico seu estatuto verídico. É por ter mais afinidade com um modelo de estrutura do que com uma descrição que o mito e seu caráter de ficção têm lugar eminente: a verdade como verificação de conhecimento, em uma acepção positivista, não tem potência na ciência freudiana.
Segundo Iannini (2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica , 2012.), Lacan se propõe a analisar o inconsciente como um discurso da verdade, seja como um discurso que a revela na produção de sentido, seja como um discurso produzido a partir da verdade. Mais adiante em seu ensino, conserva-se a ideia de que a verdade importa menos enquanto domínio de um discurso que enquanto sua condição. Para Balmès (apudIANNINI, 2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica , 2012.), tal proposição aproxima o psicanalista francês de uma abordagem heideggeriana da verdade, na qual tanto se toma a verdade como desvelamento, quanto se empreende o trabalho de identificar os processos de expressão ou dissimulação da verdade no ato da fala.
Entretanto, embora Lacan dialogue com Heidegger no que se refere à manifestação da verdade, conserva-se naquele uma posição mais freudiana e hegeliana, em que se prioriza a dialética entre verdade e saber em vez da verdade enquanto desvelar do ser (IANNINI, 2012IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte: Autêntica , 2012.). Quanto a isso, Assoun esclarece a posição de Freud diante da proton pseudos sobre a cena primitiva: “sim, o sujeito disse a verdade, mas ele próprio está capturado no impasse de sua verdade e de seu não-sabido” (ASSOUN, 1996ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1996., p. 260, grifos do autor). Nesse rastro, Lacan assinala “a divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade” (LACAN, 1966/1998, p. 870); um saber falho, jamais capaz de tomar a verdade em sua totalidade, já que esta não é objeto, mas processo, ato de enunciação. A Spaltung do sujeito é sempre evidenciada quando da disjunção entre a enunciação e o enunciado. Logo, em psicanálise, fala-se em identificação, mas não em identidade, porque o seu sujeito nunca é, não se equivale ao que se diz sobre o Eu enquanto apreensão imaginária totalizada, completa, mas está, antes, retratada em sua indeterminação, na iminência de vir a ser.
4 Da libido aos paradigmas do gozo antes do Seminário 20
Recapitulando, aquilo que se considera relativo ao Subjekt freudiano está envolto em termos libidinais, econômicos. Ora, que destino deu Lacan à pulsão? Segundo Miller (2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000.), nas primeiras fases de seu ensino, Lacan se demora a elaborar a questão da decifração do inconsciente e da satisfação decorrente de liberação de sentido experimentada na relação entre sujeito e Outro. Haveria ainda a satisfação relativa às pulsões, à catexia libidinal que foi reconduzida ao imaginário, sendo este aquilo que não procede da lógica do significante. Nessa altura da elaboração lacaniana, tem-se, de um lado, o significante e do outro, uma satisfação imaginária: o gozo. Tal distinção se alinha àquela que se faz entre o sujeito do inconsciente e o eu, tendo em vista que o primeiro diz respeito à dimensão do significante e o segundo, à matriz imaginária.
Em seguida, Lacan amplia o domínio do significante sobre a libido, empreendendo uma significantização do gozo que seria “equivalente ao significado de uma cadeia significante inconsciente, cujo vocabulário seria constituído pela pulsão. É o que Lacan chamou de desejo” (MILLER, 2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000., p. 90). Submetido ao simbólico, o gozo é mortificado. Destaca-se a importância do objeto a, concebido como resto da operação subjetiva que, com sua função basculante entre desejo e angústia, ainda conserva algo de vivo do gozo, haja vista que se trata do inapreensível pelo encadeamento simbólico (LACAN, 1963/2005LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005. (O seminário, 10)).
Observa-se que, embora tenha desenvolvido o corpo teórico da psicanálise a partir da demarcação dos registros simbólico e imaginário, Lacan só consegue se aproximar de uma solução à questão da satisfação pulsional freudiana ao conceber um real que corresponde não à realidade, mas à ordem do impossível, ao qual colocar-se-ão os outros dois registros por oposição. Assim, é com a noção de das Ding como coisa apartada da cadeia significante e precedente ao mecanismo do recalque - ou ainda, um vazio aquém do significante - que Lacan localizará o gozo como real, mítico e absoluto. Em resumo: “a satisfação, a verdadeira, a pulsional, a Befriedigung não se encontra nem no imaginário, nem no simbólico, que ela está fora do que é simbolizado, que ela é da ordem do real” (MILLER, 2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000., p. 91).
Se até aqui a disjunção radical entre significante e gozo se mostrou um coeficiente constante, doravante Lacan (1964/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11)) promoverá uma articulação entre os dois termos pela via da dialética da alienação-separação. Na alienação, um significante representará o sujeito para outro significante, mediante uma escolha forçada: o preço para ser situado no mundo e na linguagem é pago com uma libra de carne; entra-se no campo do Outro sob a condição de perder uma parte de si. É o impasse lacaniano de se estar entre “a bolsa ou a vida”, cujo valor se encerra no fato de só se poder escolher a vida, uma vez que, se escolhendo a bolsa, não se tem a vida nem a bolsa, consequentemente. Já na separação, há franqueamento ao gozo a partir do preenchimento da libido nas zonas erógenas como resposta à carência significante. Em outras palavras, em contraponto à mortificação do corpo pelo significante na operação da alienação, o objeto a vem restituir o que de vivo foi perdido. Portanto, o campo lacaniano não só concebe a materialidade do significante na letra, mas também assinala que “há uma substância de gozo e é aqui que se mantém a diferença entre o objeto e o significante” (MILLER, 2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000., p. 95).
Já no Seminário sobre o avesso da psicanálise, Lacan desenvolve os seus quatro discursos - do mestre, da histérica, universitário e do analista - fazendo circular o par de significantes (S1-S2), o sujeito ($) e o objeto a. A partir daí, não só ratifica que há relação entre saber e gozo, como também indica que o gozo perturba o significante, subvertendo seu funcionamento e fazendo-o figurar como aparelho de gozo, o que implica em dizer que a repetição significante é repetição de gozo, que o movimento metonímico da cadeia significante comporta um tanto de gozo mortificado, portanto perdido, mas também se veicula o suplemento desta perda, identificado como o objeto a em sua função de mais-de-gozar; daí que o “significante representa o gozo para um outro significante” (MILLER, 2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000., p. 96). Mais adiante, por ocasião da abordagem da noção de falasser, o conceito de gozo será retomado.
5 Descartes, Freud e Lacan: as (in)definições do sujeito
É fato que Lacan, no primeiro terço de seu ensino, prioriza o simbólico e situa tudo que lhe é oposto como empecilho: o que é da ordem do imaginário resiste a qualquer elaboração simbólica. Nesse momento, o corpo pulsional é um problema para a lógica do significante que vinha sendo sustentada. Isto posto, parece ser interessante a aproximação do movimento lacaniano de separar significante e gozo com o que Descartes (1641/2015DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.) faz em sua Meditação Primeira, quando estabelece que os sentidos do corpo enganam e, portanto, são uma barreira ao conhecimento do verdadeiro: não existe um saber encarnado sobre a verdade. Ao excluir as qualidades sensíveis, o Cogito por excelência é um puro pensamento. No entanto, sabe-se que, na última Meditação, o racionalista restitui tais qualidades que havia subtraído, ultrapassando a asserção elementar do Cogito, fazendo deste um sujeito do enunciado, racional, qualificado que corresponde ao eu, sede do imaginário (VIEIRA, 2001VIEIRA, M. A. A ética da paixão. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.).
A partir daí, Lacan (1966/1998LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 869-892.) não o acompanha. Ele se detém no ponto de um pensamento sem qualidades e é enfático ao considerar a posição do sujeito em relação com a ciência em seu sentido absoluto, enquanto discurso: o sujeito da psicanálise é produzido pela ciência moderna, tecnicista; é o sujeito produzido graças à herança cartesiana. Assim, se o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência sustentado pelo Cogito, é porque existe um puro pensamento fora da consciência que não permite uma equivalência entre saber e verdade, entre enunciado e enunciação. É neste sentido que o sujeito é dividido, como bem esclarece Vieira com a ilustração de que
[...] há um animal racional dividido entre razão e emoção. Ele queixa-se desta divisão, mas é incapaz de tocar suas bases, ponto zero de seu ser, sendo assim incapaz de articular suas paixões a partir de outro enquadre. Este é o homem que procura a análise e que muitas vezes sai dela transformado. (VIEIRA, 2001VIEIRA, M. A. A ética da paixão. Rio de Janeiro: Zahar , 2001., p. 35).
Logo se percebe que não há correspondência com o sujeito do conhecimento, quando se considera este como oriundo da concepção de uma unidade imaginária cuja verdade poderia ser acessada a partir de um movimento de purificação da alma, que resultaria em uma equivalência entre o corpo e o pensamento, portanto ilusório (LACAN, 1960/1998LACAN, J. Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 807-842.). Na transição do medievo para a era moderna, o sujeito da ciência substitui o sujeito do conhecimento, na medida em que promove o esvaziamento de saber e deriva de seu método da dúvida hiperbólica uma determinação de certeza. O ponto de convergência entre Descartes e Freud reside no reconhecimento de que há um saber anterior ao que se mostra como representação consciente.
No entanto, a perspectiva freudiana se orienta pela certeza de um pensamento que não está circunscrito na consciência, mas está lá onde não existe nem mesmo uma unidade do eu, enquanto a pena cartesiana se reporta às ideias inatas, que podem ser tomadas ou não pelo pensamento consciente e subsistem de forma independente no ser, como se pode observar na Meditação Quinta: “Quando começo a descobri-las, não me parece que aprenda nada de novo, mas, ao contrário, que me lembro do que já sabia anteriormente, ou seja, de que percebo coisas que já estavam em meu espírito, embora ainda não tivesse voltado meu pensamento para elas” (DESCARTES, 1641/2015, p. 89). Para o racionalista francês, o ser seria livre para pensar ou não essas ideias inatas, que, por sua vez, representariam a marca do divino, de um Criador perfeito, todo-poderoso. Com Lacan, conclui-se que essa concepção cartesiana de um Deus que não engana, situado no lugar do Outro absoluto, como garantia da verdade, não se sustenta, tendo em vista que também o Outro passa a figurar como barrado, decorrente do fato de que algo resta como impossível de assimilar: o objeto a corresponde à parte do ser que não se deixa mortificar pela ação do significante (LACAN, 1962-1963/2005). Assim, não há para o sujeito nenhuma garantia de um saber que dê conta de sua existência, seja mediante demanda ao Outro, seja pelo acesso às ideias inatas por meio do pensamento racional.
Quanto a isso, se Descartes sustenta que o ser se deduz do pensar - “eu sou, eu existo” -, caracterizando-o como o ser da consciência dotado de consistência imaginária, Lacan, acompanhando a reflexão de Freud que implica na separação entre a matriz imaginária e o que está fora da consciência, situa o ser fora do pensamento e subverte a formulação cartesiana do cogito ergo sum mediante o reconhecimento de uma divisão entre o ser e o pensar, que se verifica no desdobramento do Cogito em duas asserções: “‘Eu sou onde não penso’ e ‘Eu penso onde não sou’” (FINK, 1998FINK, B. O sujeito lacaniano. Rio de Janeiro: Zahar , 1998., p. 172, grifos do autor). Dessa maneira, fica evidente que ou não se é, ou não se pensa, já que a presença do sujeito só é possível mediante o inconsciente que necessariamente resulta na privação do ser relativo ao eu self, imaginário. É a própria expressão da divisão do sujeito, a Ichspaltung freudiana em sua radicalidade.
Ainda a propósito do pensamento, faz-se oportuno retomar um comentário de Descartes que condiz com o caráter efêmero do sujeito do inconsciente: “eu sou, eu existo: isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, durante o tempo em que penso; pois talvez pudesse ocorrer, se eu cessasse de pensar, que cessasse ao mesmo tempo de ser ou de existir” (DESCARTES, 1641/2015DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015., p. 56). Disto, é possível depreender que a presença do sujeito está compreendida no tempo de duração de um sonho, ato falho, chiste, e é imediatamente sucedida por sua afânise, evidência da alienação no Outro. Vieira resume esta construção ao concluir que “este puro pensamento sem corpo, que não tem existência a não ser na duração de sua enunciação, é o mesmo que o sujeito da psicanálise” (VIEIRA, 2001VIEIRA, M. A. A ética da paixão. Rio de Janeiro: Zahar , 2001., p. 39). Porém, é necessário fazer aqui uma ressalva, haja vista que Descartes articula ser e pensar, enquanto Lacan promove uma cisão entre os dois termos. Pode-se estabelecer o paralelo entre o pensar cartesiano com a irrupção do sujeito mediante as formações do inconsciente, mas isso ainda não resulta na realização de seu ser, que só pode se efetuar pela assunção da responsabilidade do sujeito. O “Wo es war, soll Ich werden” freudiano, portanto, corresponde ao ato de assumir a própria divisão para então dar conta de superá-la, de tal maneira que a realização do sujeito requer que se tome o desejo como sua realidade, que se torne responsável por ele, que ocorra a retificação subjetiva a que uma análise visa conduzir.
6 Falasser: UOM tem um corpo
Até aqui, contemplou-se o inconsciente freudiano tal como intencionado pela leitura lacaniana: estruturado como linguagem, dotado de um corpo cuja materialidade é simbólica. Ainda estava em voga a suposição de que o isso quer dizer algo para alguém, considerando a produção de sentido por meio da cadeia significante e a relação do sujeito com o Outro marcada por um endereçamento e um reconhecimento. No entanto, Lacan inaugura outra versão em seu vigésimo Seminário ao afirmar que “o inconsciente, é que o ser, falando, goze e, acrescento, não queira saber de mais nada. Acrescento que isto quer dizer - não saber de coisa alguma” (LACAN, 1972-1973/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11), p. 113, grifos do autor). Esta novidade provoca uma torção em seu ensino, na qual se constata em definitivo que toda a estrutura simbólica não é mesmo capaz de dar conta do corpo vivo e, consequentemente, seus correlatos - sujeito, Outro, fala, linguagem etc. - têm sua consistência questionada.
De acordo com Miller, a fala, a linguagem e a letra constituem um ternário que será substituído por outro, composto pelos neologismos apparola, lalíngua e lituraterra, concernente à noção de aparelho e sua “finalidade de gozo, que se sobrepõe à dita finalidade de conhecimento da realidade” (MILLER, 1998MILLER, J.-A. O monólogo da apparola. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 23, p. 68-76, 1998., p. 75) em oposição àquele que se refere à estrutura simbólica, portanto, passível de decifração. A comunicação perde sua relevância: a linguagem não é mais do que aquilo que se tenta apreender de lalíngua enquanto experiência de gozo e se a fala tinha função de empreender o diálogo, a apparola consiste em sua apropriação pela pulsão que não tem vocação nenhuma para isso, mas se determina a gozar em um monólogo. Por fim, em vez de isso quer dizer, isso quer gozar.
Convém indagar, então: do que o sujeito goza? Lacan responde que se trata da “substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo” (LACAN, 1972-1973/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11), p. 29). Ora, mas como poderia o sujeito gozar do corpo vivo se, por definição, o sujeito tem seu corpo mortificado pelo significante? Será preciso forjar outro conceito que permita a conjugação do sujeito com o gozo de seu corpo, sem prescindir de sua condição de falta-a-ser que opera a divisão entre o corpo e o ser, só podendo abordar o corpo pelo estatuto do ter. O falasser, portanto, é sujeito do inconsciente mais seu corpo, uma vez que, se o sujeito pode gozar de um corpo vivo, é porque ele o tem (LACAN, 1975/2003LACAN, J. Joyce, o sinthoma (1975). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003, p. 560-566.). O falasser é o que dá conta do paradoxo entre a falta-a-ser resultante da operação significante e o ser falante que goza do corpo vivo. Logo, percebe-se que o Outro simbólico e seu corpo morto não é mais condição de gozo e passa a ser uma alteridade sexual que também goza de um corpo vivo. Por possuir um corpo sexuado é que se torna possível a parceria sintomática entre o falasser e o Outro, sintomática porque o corpo deste corresponde a um meio pelo qual aquele pode gozar de seu próprio corpo (MILLER, 2015MILLER, J.-A. O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar . 2015,).
Com a substituição do binômio sujeito/Outro por falasser/parceiro-sintoma, verifica-se que o inconsciente lacaniano sobrevém ao freudiano. Se antes se poderia expressar o inconsciente sob a fórmula S1-S2, Lacan promove uma ruptura nessa articulação, reduzindo a S1. Lacan (1972-1973/2008LACAN, J. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 20)) caracteriza o Um como significante da diferença, que prescinde de uma cadeia e encarna lalíngua: é a inserção da linguagem como aparelho de gozo. Miller (2000MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000.) assinala que este contraponto à estrutura é feito a partir do paradigma do gozo enquanto não-relação, pela constatação de que o gozo é fato anterior ao sujeito efeito de linguagem. Assim, o gozo é separado do Outro para ser gozo do Um. Nisto consiste que a relação sexual não existe, haja vista que “gozar tem esta propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que goza de parte do corpo do Outro” (LACAN, 1972-1973/2008LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 11), p. 30).
Por fim, pode-se afirmar que Lacan faz ainda uma última subversão do Cogito cartesiano, uma vez que o falasser não conta com a garantia de um Deus, tampouco responde a um princípio dualista: sua única substância é o gozo, o qual ele só pode experimentar sozinho.
Referências
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- DESCARTES, R. Meditações Metafísicas (1641). São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.
- FINK, B. O sujeito lacaniano Rio de Janeiro: Zahar , 1998.
- FREUD, S. A cisão do Eu no processo de defesa (1938). In: FREUD, S. Compêndio de psicanálise e outros escritos inacabados Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 199-204.
- FREUD, S. A negação (1925). In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão Belo Horizonte: Autêntica , 2016, p. 305-314.
- FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Belo Horizonte: Autêntica , 2017.
- FREUD, S. Introdução ao narcisismo (1914). São Paulo: Cia das Letras, 2010. (Obras Completas, 12, p. 13-50)
- IANNINI, G. Estilo e verdade em Jacques Lacan Belo Horizonte: Autêntica , 2012.
- LACAN, J. A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar , 2005. (O seminário, 10)
- LACAN, J. A ciência e a verdade (1966). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 869-892.
- LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 496-533.
- LACAN, J. Comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" (1954). In: LACAN, J. Escritos Rio de Janeiro: Zahar , 1998, p. 893-902.
- LACAN, J. Joyce, o sinthoma (1975). In: LACAN, J. Outros escritos Rio de Janeiro: Zahar , 2003, p. 560-566.
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- MILLER, J.-A. O monólogo da apparola. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 23, p. 68-76, 1998.
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- MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 26/27, p. 87-105, 2000.
- VIEIRA, M. A. A ética da paixão Rio de Janeiro: Zahar , 2001.
- WINOGRAD, M. Genealogia do sujeito freudiano. Porto Alegre: Artmed, 1998.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
29 Nov 2021 -
Aceito
13 Out 2023