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Dialogismo, ensino de física e sociedade: do currículo à prática pedagógica

Dialogism, physics teaching and society: from curriculum to pedagogical practice

Resumos

A visão reducionista, implícita no ensino tradicional de Física - o mundo reduzido a partículas -, repercute e embasa uma percepção reducionista da sociedade, como simples soma de indivíduos. Desse modo, podemos entender o significado social e político do currículo e de que forma a escola e as práticas educativas interferem na sociedade. Neste trabalho, faremos a crítica ao atual modelo hegemônico de Ensino de Física e, em particular, ao reducionismo mecanicista, com base em uma compreensão histórica e dialética da relação do simples com o complexo, como o ponto de partida para o conhecimento inter e transdisciplinar; e discutiremos o ensino baseado no dialogismo e na consequente democracia real em sala de aula como caminho para sua conscientização e emancipação dos alunos e do professor. Partiremos da teoria Dialógica de Bakhtin para repensar o ensino de Física, do currículo à prática pedagógica.

Ensino de Física; Dialogismo; Cidadania; Mikhail Bakhtin


The reductionist view, implicit in the usual curriculum - that the world can be reduced to particles - reinforces a simplified conception of society as a mere sum of individuals. In this way, curricula acquire political meaning and interfere with society. New approaches including changes in curricula result in a more profound understanding of the dialectical connection between simple and complex systems as a starting point to inter- and trans-disciplinary views of physical sciences and society. Bakhtin's theory of dialogism implies new pedagogical and more democratic practices involving student participation in a dialogical construction of knowledge as way to building their political consciousness. According to our results we must change both curricula contents, by including the study of emergent proprieties in complex systems and by taking account of historical perspectives, and pedagogical practices in order to form good students, professionals and citizens able to play a significant role in a democratic society.

Physics teaching; Dialogism; Citizenship; Mikhail Bakhtin


Dialogismo, ensino de física e sociedade: do currículo à prática pedagógica* * Com o apoio do CNPq.

Dialogism, physics teaching and society: from curriculum to pedagogical practice

Giselle Faur de Castro CatarinoI; Glória Regina Pessôa Campello QueirozII; Roberto Moreira Xavier de AraújoIII

IEscola de Educação, Ciências, Letras, Artes e Humanidades, Universidade do Grande Rio (Unigranrio), Programa de Pós-Graduação em Educação, UFF. Rua Casimiro de Abreu, n. 540, ap. 201, Pilares, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20750-070, Brasil. <gisellefaur@gmail.com>

IIInstituto de Física, Departamento de Física Aplicada e Termodinâmica, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

IIICentro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

A visão reducionista, implícita no ensino tradicional de Física – o mundo reduzido a partículas –, repercute e embasa uma percepção reducionista da sociedade, como simples soma de indivíduos. Desse modo, podemos entender o significado social e político do currículo e de que forma a escola e as práticas educativas interferem na sociedade. Neste trabalho, faremos a crítica ao atual modelo hegemônico de Ensino de Física e, em particular, ao reducionismo mecanicista, com base em uma compreensão histórica e dialética da relação do simples com o complexo, como o ponto de partida para o conhecimento inter e transdisciplinar; e discutiremos o ensino baseado no dialogismo e na consequente democracia real em sala de aula como caminho para sua conscientização e emancipação dos alunos e do professor. Partiremos da teoria Dialógica de Bakhtin para repensar o ensino de Física, do currículo à prática pedagógica.

Palavras-chave: Ensino de Física. Dialogismo. Cidadania. Mikhail Bakhtin.

ABSTRACT

The reductionist view, implicit in the usual curriculum – that the world can be reduced to particles – reinforces a simplified conception of society as a mere sum of individuals. In this way, curricula acquire political meaning and interfere with society. New approaches including changes in curricula result in a more profound understanding of the dialectical connection between simple and complex systems as a starting point to inter- and trans-disciplinary views of physical sciences and society. Bakhtin's theory of dialogism implies new pedagogical and more democratic practices involving student participation in a dialogical construction of knowledge as way to building their political consciousness. According to our results we must change both curricula contents, by including the study of emergent proprieties in complex systems and by taking account of historical perspectives, and pedagogical practices in order to form good students, professionals and citizens able to play a significant role in a democratic society.

Key-words: Physics teaching. Dialogism. Citizenship. Mikhail Bakhtin.

O currículo e a educação científica: do mecanicismo aos sistemas complexos

Diante do atual panorama do Ensino de Física – essencialmente baseado no mecanicismo filosófico – e de suas implicações para a sociedade, pensamos ser importante e necessário discutir que caminhos podemos pensar e traçar para oferecer, aos professores e aos alunos, abordagens que favoreçam a compreensão das consequências filosóficas, políticas e pedagógicas das práticas educativas e das suas interferências na sociedade em que vivemos. Antes, é claro, surge a necessidade de examinar criticamente o modelo hegemônico de ensino e aprendizagem, e suas consequências na vida em sociedade.

Na visão de Mészáros (2005), a educação tornou-se instrumento que fornece os conhecimentos e a mão de obra necessária à maquinaria produtiva do sistema capitalista, além de transmitir "um quadro de valores que legitima os interesses dominantes" (MÉSZÁROS, 2005, p. 15). Assim, ao invés de instrumento para a emancipação, a educação é mecanismo de perpetuação e reprodução do sistema vigente.

A partir dessa premissa, dois temas inter-relacionados precisam ser examinados: o currículo e a prática docente. Nossa proposta se iniciará aqui com a tentativa de buscar no currículo, por meio de uma análise epistemológica e histórica, subsídios para entender em que medida o ensino hegemônico de Física reflete tal visão.

Ao analisar o currículo de Física de Ensino Médio, não podemos deixar de notar a forte presença do paradigma newtoniano, favorecendo uma visão mecanicista do mundo em que vivemos. Tal visão retrata a Física desde a estabilização do paradigma newtoniano até o início do século XX.

Como se sabe, a vertente mecanicista, desde o século XVII, tem sido dominante para o entendimento não só da natureza, mas, também, da sociedade e das organizações. O racionalismo mecanicista marcou o pensamento científico e concebeu uma realidade objetiva, delineada a partir de leis físicas e matemáticas. Como aponta Tôrres (2005), as leis de Newton tornaram legítimo o mecanicismo e validaram suas implicações: linearidade, monocausalidade, determinismo, reducionismo e imediatismo.

A revolução científica do início do século XX, gerada pela mecânica estatística, pela mecânica quântica e pela relatividade, levou o paradigma newtoniano a entrar em crise. Entretanto, pelo menos na maioria dos currículos de Física de nível médio, a mecânica de Newton – ensinada a partir do estudo de partículas pontuais – continua a ser a base sobre a qual se constrói a Física.

Hoje, com os desdobramentos dessa revolução científica, avanços teóricos e os conhecidos progressos tecnológicos nos permitem ver um novo mundo, um mundo de sistemas complexos, regido por leis próprias, não redutíveis de maneira trivial às leis da mecânica. A propósito, Bachelard (1934 apud ARAÚJO, 1993) nos ensina que, na própria Física Atômica, o complexo reina e a noção de organismo se insinua. Por exemplo, "pode-se dizer que um átomo que possua vários elétrons é, sob certo aspecto, mais simples que um átomo que só possua um, a totalidade sendo mais orgânica numa organização mais complexa" (BACHELARD, 1934, p. 149 apud ARAÚJO, 1993, p. 107), e, mais adiante:

Chega-se à conseqüência paradoxal de que o caráter hidrogenóide deverá ser estudado inicialmente sobre um elemento que não é o hidrogênio para ser bem compreendido no caso do próprio hidrogênio; em síntese, pode-se concluir que não se pode descrever adequadamente o simples a não ser após um estudo aprofundado do complexo. (BACHELARD, 1934, p. 152 apud ARAÚJO, 1993, p. 107)

Araújo (1993, p. 107) explica que "é nos átomos complexos e na presença de campos externos, quando todas as degenerescências estão quebradas, que se pode vislumbrar o significado dos números quânticos e, então, compreender o átomo de Hidrogênio no Universo vazio."

Vemos assim que a complexidade deste mundo gera novas formas de pensar as relações entre simples e complexo e construir o conhecimento. Como afirma Casanova (2006), o impacto da nova Revolução Científica altera, de forma profunda, o trabalho intelectual das humanidades, das ciências, das técnicas e das artes, obrigando a redeterminar "uma nova cultura geral e novas formas de cultura especializadas com interseções e campos limitados, que rompem com as fronteiras tradicionais do sistema educativo e da pesquisa científica e humanística, assim como do pensar e do fazer na arte e na política" (CASANOVA, 2006, p. 9).

É a partir da constatação de que estamos imersos nesse novo mundo, complexo, que vamos analisar o currículo. Com efeito, o descompasso entre as modernas concepções de complexidade – consagradas desde o momento em que Ilya Prigogine ganhou o Prêmio Nobel de Química em 1977 – e o currículo hegemônico de base mecanicista é a primeira discrepância que chama a atenção quando se pensa no ensino de Física. Essa hipótese sobre o caráter hegemônico do modelo mecanicista parece plausível e é endossada por pesquisadores da área de ensino de Física (QUEIROZ; ARAÚJO, 2005). Este ponto exige novas pesquisas.

Ensino de Física: a situação atual

O ensino de Física se concretiza no currículo e na prática docente, nossos objetos de estudo. É possível indicar dois modos de iniciar nossa discussão sobre currículo. Um deles seria partir do currículo escolar, que é organizado em saberes de acordo com disciplinas isoladas. O outro seria discutir o currículo específico de Física, visando entender que discurso sobre a ciência e o mundo ele apresenta, explícita ou implicitamente. Vamos dar ênfase à segunda abordagem.

Como vimos, o paradigma newtoniano constitui a alma do ensino de Física. Nele o mundo é visto como um conjunto de partículas em interação, formando corpos que também interagem. Para exemplificar, podemos pensar a base da mecânica como partículas em movimento, sempre isoladas, destituídas de atrito, viscosidade, resistências. Como disse Laplace (1990, p. 326 apud SILVEIRA, 1993, p. 138), em sua obra sobre probabilidades:

Devemos considerar o estado presente do universo como efeito dos seus estados passados e como causa dos que se vão seguir. Suponha-se uma inteligência que pudesse conhecer todas as forças pelas quais a natureza é animada e o estado em um instante de todos os objetos - uma inteligência suficientemente grande que pudesse submeter todos esses dados à análise -, ela englobaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também dos menores átomos: nada lhe seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria presente ante os seus olhos.

Tal ponto de vista é insustentável – sabe-se hoje à luz da teoria da informação – porque um computador que pudesse armazenar os dados sobre a posição e a velocidade de todas as partículas do universo teria de, na verdade, utilizar, pelo menos, toda a matéria contida no universo. É evidente a impossibilidade de tal projeto.

Além disso, outro ponto nos obriga a abandonar o Laplacismo: é o fato, conhecido hoje pela teoria do caos, de que mudanças infinitesimais na configuração inicial de sistemas físicos podem gerar trajetórias completamente diferentes. Essa ideia foi inclusive antecipada por Henri Poincaré (1990, p. 307 apud SILVEIRA, 1993, p. 146):

Se conhecêssemos perfeitamente as leis da natureza e a situação do universo no instante inicial, estaríamos aptos a predizer a situação do mesmo universo em um instante subseqüente. Mas mesmo quando as leis da natureza não são um segredo para nós, podemos conhecer a situação inicial apenas aproximadamente. Se tal nos permitisse prever a situação subseqüente com o mesmo grau de aproximação, isto seria tudo o que desejaríamos e diríamos que o fenômeno foi previsto, que ele é regido por leis. Mas não é sempre assim; pode acontecer que pequenas diferenças na situação inicial produzam grandes diferenças nos fenômenos finais; um erro antecedente pode produzir um erro enorme depois. A predição se torna impossível e temos um fenômeno fortuito.

Descartado o Laplacismo, o que fica como base filosófica da visão mecânica do mundo é o cartesianismo. Com efeito, para Descartes (2007), o todo é explicado pelo estudo das partes. Para resolver um problema, é preciso dividi-lo em partes: "dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las" (DESCARTES, 2007, p. 34). Ou seja, o complexo é a mera superposição de partes simples.

Essa posição filosófica sobre o mundo da natureza encontra uma correspondência na visão da sociedade como um conjunto de indivíduos. Insinua-se, assim, no ensino de Física, um traço político: este mundo natural, composto de partículas, espelha uma sociedade individualista, como esta em que vivemos, cujas raízes ideológicas se apoiam no neoliberalismo, contribuindo para: "o individualismo como valor moral, o empreendedorismo e a competitividade" (MARTINS, 2009, p. 367).

Percebe-se que a sala de aula, na visão tradicional, é também vista como um conjunto de alunos isolados, eventualmente em competição uns com os outros. O aluno não é visto como um ser social e nem pode adquirir consciência social. É claro que a isso corresponde a forma tradicional de transmissão de conteúdo, com suas aulas verticais – do professor para o aluno – puramente expositivas, sua disciplina em sala, seus exames e reprovações, que espelham uma visão de mundo de hierarquias naturais e imutáveis. Aqui é preciso deixar claro o seguinte: o currículo tradicional vai sempre veicular uma visão mecanicista do mundo – e suas implicações políticas e sociais – quaisquer que sejam as práticas em sala de aula. O método tradicional nasce com este currículo e a ele se associa de modo absolutamente natural. Preservar o currículo tradicional e sua visão reducionista, e tentar implementar mudanças pedagógicas pontuais, em outras palavras, mudar a forma mantendo o conteúdo, terá pouco efeito no resultado final: o atual currículo é e sempre será um empecilho para a construção da cidadania, ou seja, para a preparação de indivíduos capazes de participar criticamente de uma sociedade democrática por meio da garantia de seus direitos e do compromisso de seus deveres.

Temos, então, três dimensões a serem pensadas e aprofundadas: filosófica, pedagógica e política. Nosso objetivo será, ao analisarmos o ensino de Física predominante hoje, contrapor as concepções traçadas até aqui com uma nova visão dessas dimensões: a filosófica – a crítica ao reducionismo mecanicista e uma compreensão dialética da relação do simples com o complexo como o ponto de partida para o conhecimento inter e transdisciplinar; a política – o vínculo entre o reducionismo mecanicista e a vida social baseada no individualismo; a pedagógica – ensino baseado no dialogismo e a consequente democracia em sala de aula com participação dos alunos como caminho para sua conscientização1 1 Em Freire (1996, p. 54, grifo nosso), conscientização é "exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica [...] é natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado." e emancipação.

Assim, buscamos criticar a prática que gera a infinita reprodução dessa sociedade e de suas mazelas sustentadas/apoiadas no individualismo exacerbado, delineando, desse modo, o ponto de partida para possíveis práticas contra-hegemônicas. Para isso, cabe notar que Bourdieu (1992) construiu uma teoria acerca do funcionamento do sistema escolar e concluiu que a escola, "longe de reduzir as desigualdades sociais, contribui para reproduzi-las" (BONNEWITZ 2005, p. 113). Em 'A Reprodução', Bourdieu (1992) aponta ainda que a seleção das disciplinas e a escolha dos conteúdos disciplinares acontecem a partir das relações de força entre grupos sociais, ou seja, a cultura escolar não é neutra. Em entrevista a Menga Lüdke, Bourdieu trata de elucidar a questão:

Não há nenhuma contradição, nem teórica nem política, no fato de dizer que o sistema escolar contribui (é esta a palavra importante) para reproduzir a estrutura social, e o fato de tentar transformá-lo para neutralizar alguns de seus efeitos. Digo exatamente que contribui, em parte que varia segundo os momentos, segundo as sociedades. (LÜDKE, 1991, p. 4 apud PEREIRA, 1997, p. 39-40)

Essa importante observação nos conduz à necessidade de discutirmos novas formas de ensino.

Ensino de Física contra-hegemônico e projeto político-pedagógico emancipatório

Freire (1996, p. 98) aponta que a educação é uma forma de intervenção no mundo que implica a reprodução da ideologia dominante, mas, se imbuída de uma visão crítica, contribui também para o seu desmascaramento. Segundo o próprio autor: "nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante" (grifos do autor). Tal contradição é inerente à dialética do processo educacional.

Dessa maneira, vamos partir da ideia de que uma prática contra-hegemônica deve intervir no mundo com o objetivo de 'desmascarar' a ideologia dominante (FREIRE, 1996) e lutar pela redução das desigualdades sociais (BOURDIEU, 1992).

Pode ser útil trazer à tona o problema da qualidade da educação. Moreira e Kramer (2007, p. 1046) incluem, em uma concepção renovada de qualidade, a "crença tanto em uma escola reformulada e ampliada, quanto em uma ordem social menos desigual e excludente", entendendo que o conceito em questão é historicamente produzido e exige uma análise processual, dinâmica.

Não perdendo de vista a relação entre macro e micro, para Moreira e Kramer (2007, p. 1046): "a promoção de uma educação de qualidade depende de mudanças profundas na sociedade, nos sistemas educacionais e na escola". Assim, para alcançar esse objetivo, visando também à superação de obstáculos para a vida, torna-se essencial pensar e refletir acerca do currículo e das práticas pedagógicas de uma educação científica/humanista que aumente as possibilidades de consciência crítica e de ação social transformadora (GIROUX, 1999).

Analisando nossas perspectivas de um ensino de Física reconstruído a partir de suas bases, diante da complexidade do mundo, vamos considerar três âmbitos formativos que, para nós, são indispensáveis: formação para a cidadania, formação que vise ao enriquecimento cultural e formação que permita construir meios para o trabalho. É claro que esses três âmbitos não estão isolados uns dos outros, pelo contrário, somente em sua inter-relação é que se efetiva e se concretiza o processo educativo. Vale ressaltar ainda que cooperação e espírito coletivo devem se tornar objetivos concretos, em lugar de competição e individualismo, no interior de um projeto político-pedagógico emancipatório, no qual o ensino de Ciências – em particular, de Física – tem um papel central, especialmente no que diz respeito à desconstrução do reducionismo mecanicista e de suas consequências ideológicas.

Entendendo a formação para cidadania, cultura e trabalho como parte do processo contínuo de construção do conhecimento, é imperativo discutir o papel da dimensão dialógica no ensino. Com efeito, como veremos, é a partir do dialogismo que se constitui o sujeito dentro da sociedade, sujeito que só existe na presença de elementos históricos, sociais e outros, que fazem parte de um contexto complexo interativo (BAKHTIN, 2000). Chegamos, assim, a um ponto essencial desta discussão: o dialogismo como base do processo de construção do sujeito e do conhecimento e, portanto, ponto nodal do ensino de Física contra-hegemônico e de um projeto político-pedagógico emancipatório.

Dialogismo

Para entender o diálogo como base dos estudos de Bakhtin, precisamos inicialmente entender a significação deste conceito para o autor. A palavra diálogo possui muitos significados sociais, sendo uma conversa de personagens o mais comum. Para Bakhtin (1959 apud FARACO, 2009), o que importa não é o diálogo em si, mas, sim, o que ocorre nele, ou seja, "o complexo de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali" (FARACO, 2009, p. 61). Ou seja, o diálogo é um evento de interação sociocultural, de consciência socioideológica, atravessado por forças sociais. Para o pensador russo, o fenômeno dialógico perpassa todas as relações e manifestações da vida humana, tudo que tem sentido e valor. Dessa maneira, as relações dialógicas são relações de sentido que vão além de um evento face a face, mas integram todos os aspectos que permeiam a interação verbal e não verbal.

Para compreender o pensamento de Bakhtin, que permitiu o desenvolvimento de muitos conceitos hoje tão estudados, nós analisaremos o princípio dialógico, base de ideias importantes em sua obra, como a pluralidade, o caráter aberto e inacabado do pensamento, a oposição a uma única verdade, e a importância das antinomias na evolução do pensamento. Tais ideias são essenciais para a atividade docente e para o processo de ensino-aprendizagem. Examinemos, rapidamente, estes pontos.

Clark e Holquist (1998, p. 30) apontam que toda a obra de Bakhtin se apresenta sob o signo da pluralidade:

Além do mais, trabalhos diferentes de sua lavra falam linguagens ideológicas diferentes: alguns estão na tradição neokantiana, outros empregam o vocabulário marxista e outros, ainda, recorrem a impecável 'stalinês'. Em um nível mais fundamental, Bakhtins diferentes surgem nos próprios textos.

Além disso, as ideias de Bakhtin apresentam a natureza de um pensamento aberto, já que ele atribui maior importância ao 'não-finalizado' e ao 'vir-a-ser', descartando um caráter conclusivo em toda sua obra. Como aponta Faraco (1993, p. 192), as próprias palavras de Bakhtin revelam um autor que:

[...] trabalha seus temas com a clara consciência de um inacabamento de sua expressão, e com um certo descompromisso com a precisão terminológica, o que indica talvez, uma preocupação menor com o nominar e o classificar e maior com o desvendar e o compreender as complexas realidades que toma como objeto.

Clark e Holquist (1998) também ressaltam que Bakhtin não se insere na consagrada tradição de lutadores pela verdade dentre a intelligentsia russa, devido às suas relações 'fleumáticas e flexíveis' com o mundo oficial e à oposição fundamental à noção de uma 'única verdade'. Como a noção de verdade para Bakhtin é produto de um processo de interação dialógica que acontece entre as pessoas de maneira coletiva e não está no interior de uma única pessoa, o dialogismo tem como característica principal "conceber a unidade do mundo nas múltiplas vozes que participam do diálogo da vida" (SOUZA, 2001, p. 104).

Essa concepção da verdade (que permite a compreensão do papel de muitas vozes no pensamento de Bakhtin e que requer uma forma de pensar incontestavelmente dialógica) destaca o papel desempenhado pelo dialogismo enquanto alicerce de toda a obra desse pensador.

Na essência de suas ideias percebe-se, também, a existência como uma atividade incessante, uma enorme energia, que está constantemente no processo de ser produzida pelo choque das antinomias e pelas próprias forças por ela impulsionadas.

Todas essas características marcaram, de maneira profunda, as ideias que Bakhtin nos deixou. Além disso, esses aspectos destacados aqui são claramente importantes para a ideia central deste trabalho – o dialogismo. A pluralidade permite o diálogo entre diversas áreas de conhecimento e diversas visões de mundo; o caráter aberto valoriza a constante possibilidade de transformação e mudança; a não-existência de uma única verdade permite o embate nas relações dialógicas a partir de vários pontos de vista; e o choque de opostos possibilita, como mostra Marková (2006) – a partir das oposições, colisões e disputas, todas orientadas por tensão – diversas interpretações, fazendo, assim, emergir a novidade.

Dialogismo e o ensino de Física

As discussões feitas até aqui nos levam a refletir de que maneira podemos pensar, dialogicamente, um processo de ensino e aprendizagem que gere novas formas não somente de construção e produção de conhecimento, mas, também, de relação com a sociedade e com o mundo complexo no qual vivemos. Para isso, vamos relembrar alguns conceitos bakhtinianos necessários para fundamentar nossa visão de ensino e de sociedade.

O enunciado2 2 "Cada enunciado é um elo da corrente muito complexa de outros enunciados" (BAKHTIN, 2000, p. 291). , unidade de comunicação verbal e significação, é um conceito relacionado com a alternância dos sujeitos falantes em uma situação de interação: após o fim do enunciado do locutor, outro sujeito inicia sua enunciação. Dessa maneira, os enunciados de um professor devem ser finalizados a fim de que seus alunos se tornem também locutores e exponham suas vozes acerca dos conceitos trabalhados em determinada aula. Sem a alternância desses sujeitos falantes, a interação verbal não acontece. Além disso, a alternância de protagonismo acarreta que todos, democraticamente, tenham o direito de expressar suas concepções e a possibilidade de construir, através de um debate coletivo, seu conhecimento.

Segundo Silva (2006), Bakhtin aponta ainda que, para que uma interação seja estabelecida, as pessoas precisam conhecer os signos que envolvem o processo dialógico, entendendo signo como o resultado de um "consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação" (BAKHTIN, 2006, p. 45). Como aponta o próprio Bakhtin, compreender um signo consiste em "aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos" (BAKHTIN, 2006, p. 34). Para exemplificar, Silva (2006, p. 6-7) utiliza a palavra força:

Para a Física, entendemos o sentido do termo como o resultado da interação entre corpos, que produz deformação, variação de velocidade ou equilíbrio, enquanto seu sentido no cotidiano designa a possibilidade de operar, de mover-se, além de estar associada também a palavras como poder, energia, vigor e até valentia. Torna-se necessário, então, que estejamos atentos aos diferentes sentidos dos mesmos eventos apresentados numa obra científica ou num romance, pois no processo de decodificação não basta reconhecer a forma utilizada do signo, mas compreendê-lo num contexto concreto e preciso, compreendendo seu sentido numa enunciação particular.

A compreensão de diferentes sentidos para um mesmo termo passa pela noção de gênero do discurso. Segundo Machado (2005), os gêneros, na teoria do dialogismo, estão inseridos na cultura e se manifestam como uma 'memória criativa': para cada esfera de atividade humana, as especificidades envolvidas levam ao emprego de um conjunto típico de enunciados, denominado de gênero do discurso. Na Física, tal noção se mostra pertinente uma vez que vários termos, utilizados cotidianamente, assumem significados diferentes e bem definidos, gerando obstáculos para os alunos no que diz respeito à linguagem.

A perspectiva adotada neste trabalho, a dialógica, enfatiza a alternância do protagonismo no processo educativo, uma vez que cada aluno assume papel de protagonista e tem sua voz3 3 Um enunciado se expressa sob um ponto de vista (uma voz), não havendo enunciado neutro, que não expresse uma visão de mundo. valorizada na construção do conhecimento que, em última instância, resulta do embate coletivo. Podemos, então, entender como o caráter aberto e inacabado do pensamento tem papel central na aprendizagem, gerando a oposição a uma única verdade, ou seja, a construção real do conhecimento significativo necessita de interação, conflito, inacabamento, mudança. Além disso, os debates gerados, em sala de aula ou fora dela, pela possibilidade de questionamento e interrogação dos alunos, permitem a evolução do pensamento e a explicitação da complexidade que permeia nosso mundo e as representações que criamos para explicá-lo.

Nesse sentido, a valorização das concepções alternativas, trazidas pelos alunos, ligada à visão construtivista do ensino, vai ao encontro da postura dialógica, apontada, neste trabalho, como centro do processo educativo. Tal valorização indica a necessidade de se trazer, para o espaço de aprendizagem, a história de vida dos alunos e o contexto sócio-econômico no qual estão imersos. É importante notar que as ideias de Bakhtin (2000, 2006) nos levam a compreender que o contexto sócio-histórico-cultural não pode ser isolado da vida escolar do educando. Brait (2006, p. 22-23) aponta que o pensamento bakhtiniano propõe a ideia:

[...] de observar a linguagem não apenas no que ela tem de sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso, na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condição de sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens.

A partir dessas considerações acerca da importância do contexto social, econômico e histórico, vale a pena ressaltar a fragmentação do ensino hegemônico de Física e a distância de seus conteúdos curriculares da realidade histórica e filosófica na qual a Ciência evoluiu até os dias de hoje. É inegável a necessidade de se refletir sobre um ensino que possibilite a visão da natureza e da Ciência em sua totalidade. Como indica Japiassu (1981 apud ASSIS, 2001), a história das ciências pode mostrar que as pesquisas e as descobertas estão vinculadas a uma concepção de mundo historicamente determinada.

Este aspecto nos remete ao conceito de Cronotopo em Bakhtin (1978 apud AMORIM, 2006), que aponta que dois enunciados podem estar distantes um do outro tanto no tempo como no espaço, e, quando confrontados em relação ao seu sentido, podem revelar uma relação dialógica. Isto se aplica a enunciados de um diálogo real e no âmbito mais amplo do discurso de ideias criadas em tempo e em espaços distintos. Nesse sentido, é estimulante que o aluno também confronte suas ideias com a evolução dos conceitos na História da Ciência, de modo a estabelecer, dialogicamente, relações de sentido. O saber é constituído no diálogo, não só no protagonismo, mas no embate para se chegar ao conhecimento.

Por fim, não podemos deixar de enfatizar que a linguagem está na base dos processos de ensino e aprendizagem. As palavras valorizadas e utilizadas nos currículos, nos planejamentos escolares e pelos docentes revelam também que concepções acerca do conhecimento e da sociedade estão na base dos objetivos declarados da Educação e do Ensino de Física, influenciando e interferindo na visão dos alunos. São essas palavras e concepções que, em última instância, vão constituir o foco de atenção dos professores e alunos, interferindo nas práticas pedagógicas, afetando o diálogo e tendo um papel essencial na elaboração, pelos alunos, de sua visão do mundo. Este é um ponto que merece mais pesquisas, mas, desde já, pode-se apontar a importância política e filosófica dos currículos e textos afins.

Caminhos para se (re)pensar o ensino de Física

Vamos exemplificar, como alternativa à base mecanicista do ensino de Física, uma proposta curricular nas escolas de Nível Médio do Estado de Minas Gerais. Tal proposta reorganiza os conteúdos de modo a enfatizar o papel central do conceito de energia, não só na Física, mas na Ciência em geral. Desse modo, é possível chegar, naturalmente, à inter e transdisciplinaridade (JAPIASSU, 2006).

Este contato com a inter e transdisciplinaridade é um aspecto importantíssimo de uma nova visão de ensino. Segundo a equipe organizadora,

[...] a proposta procura valorizar fenômenos do cotidiano, a tecnologia, os conhecimentos produzidos pela Física contemporânea e a relação da Física com as outras disciplinas. Essa nova proposta apresenta novos objetivos para o ensino de Física, considerando que o ensino tradicional parece concebido apenas como etapa preparatória para os alunos que irão prosseguir com o estudo da Física no ensino superior.

Tradicionalmente, os conteúdos são tratados de forma excessivamente abstrata e distante da realidade do aluno, baseando-se na mera transmissão de informações. Com isso, não se tem dado a devida atenção ao papel que a imaginação, a criatividade e a crítica cumprem na produção do conhecimento científico. (MINAS GERAIS, 2007, p. 13)

A centralidade do conceito de energia na proposta curricular mineira permite, com base nas críticas elaboradas ao longo deste trabalho, perceber que é possível se utilizar da riqueza dos conceitos físicos para se chegar a um novo entendimento do mundo complexo, que não pode ser contido em fronteiras disciplinares rígidas, como física, química, biologia etc. , exigindo, necessariamente, uma abordagem inter e transdisciplinar que ultrapasse a concepção do mundo como um conjunto de propriedades simples e isoladas, e conduza, naturalmente, ao conceito de propriedades emergentes, com frequência invocado por críticos do reducionismo mecanicista (BASTOS FILHO; MASSONI, 2011a, 2011b; HOFFMANN, 2007; SCHWEBER, 1993).

Outro caminho importante para se chegar a um Ensino de Física crítico, contra-hegemônico, que favoreça os estudos inter e transdisciplinares, é a análise da evolução histórica dos conceitos físicos: a História da Ciência refuta o positivismo e o reducionismo. Com efeito, na visão tradicional positivista, a evolução dos conceitos físicos é linear e cumulativa ao longo da história. Entretanto, o exame detalhado da história de qualquer conceito físico importante energia, espaço, tempo, massa, força etc. revela a enorme dificuldade e riqueza dessas construções conceituais. Basta ver o exemplo do Movimento Browniano: F. W. von Gleichen, em 1767, foi o primeiro a observar o movimento aparentemente aleatório de grãos de pólen em suspensão, considerando-o, inicialmente, um fenômeno biológico. Mais tarde, Robert Brown fez seu primeiro estudo sistemático, inclusive com pólen de plantas mortas há mais de um século, chegando à conclusão de que observara o "fato muito inesperado de aparente vitalidade retida por essas 'moléculas' muito depois da morte da planta" (BROWN, 1828 apud HELLER; BHATNAGAR, 1962, p. 270, tradução nossa). Numerosos trabalhos experimentais e teóricos foram realizados ao longo do século XIX. Significativamente, Heller e Bhatnagar (1962, p. 270, grifo nosso, tradução nossa) afirmam: "Eliminando um bom número de explicações oferecidas nesse meio tempo, esses resultados provaram conclusivamente que o Movimento Browniano não era devido a convecções térmicas nem a forças capilares." Até que se chegasse a uma compreensão desse fenômeno, foi preciso bem mais de um século de trabalho e a intervenção de ninguém menos que Albert Einstein. Note-se que as pesquisas continuaram ao longo século XX. Uma breve história deste problema pode ser encontrada na Encyclopaedia Britannica (1962).

A complicada história de vários conceitos físicos básicos espaço, massa, força , ilustrada nos livros de Max Jammer (2010, 2011a, 2011b), revela, claramente, que a visão linear e cumulativa do progresso da ciência, que ignora os efeitos e as características dos sistemas complexos, se associando, assim, ao reducionismo mecanicista, é totalmente equivocada. Em outras palavras, o caráter a-histórico do positivismo é a raiz filosófica do modelo pedagógico e curricular tradicional do ensino de Física.

Podemos dizer, então, que é preciso (re)pensar o ensino de Física a partir de modificações na essência do currículo antigo: o reducionismo mecanicista, que não contempla a complexidade nem a evolução histórica dos conceitos, dificultando ou mesmo inviabilizando os estudos inter e transdisciplinares essenciais para uma visão crítica da natureza e do mundo.

Exemplos claros de áreas que poderiam constituir pontos de apoio de novos currículos inter e transdisciplinares seriam: Ecologia, Meio Ambiente, Estudos de Solo e Clima, catástrofes naturais (Tsunamis, Vulcões) etc., que envolvem, no mínimo, o que hoje se divide em Física, Química, Biologia e Geografia, para não falar em temas propriamente históricos, como o das relações entre Ciência, Arte e Religião e outros aspectos da cultura.

Considerações finais

Nosso objetivo, neste trabalho, foi discutir de que maneira o atual modelo hegemônico de ensino de Física – do currículo à prática pedagógica – influencia a construção de visões filosóficas que implicam certas concepções de vida política e de organização social: a maneira de ensinar atomismo (descontextualizado e totalmente isolado) é uma forma indireta de ensinar o individualismo, ou seja, a partir de uma visão da Natureza redutível a um mero conjunto de partículas, chega-se a uma visão de Sociedade como uma simples soma de indivíduos, um resultado de consequências políticas significativas. Esse traço político da visão tradicional do ensino de Física é normalmente ignorado, mesmo pelos críticos do atual modelo de ensino. É interessante assinalar que o vínculo entre a visão reducionista (da Physis) e a concepção individualista (da Polis), embora sutil, já aparece de forma implícita na antiguidade clássica. Com efeito, Reale e Antiseri (1990, p. 104) comentam que:

[...] a lógica de Antístenes, portanto, revela-se um tanto redutiva. Segundo o nosso filósofo, não existe uma definição das coisas simples: nós as conhecemos com a percepção e as descrevemos através de analogias. No que se refere às coisas complexas, a sua definição outra coisa não é do que a descrição dos elementos simples de que são constituídas.

e, mais adiante: "para ele, o sábio não deve viver segundo as leis da cidade, mas sim 'segundo a lei da virtude' [...] Por fim, Antístenes modificou a mensagem socrática em sentido antipolítico e individualista" (REALE; ANTISERI, 1990, p. 104-105).

Note-se que esse comportamento individualista na antiguidade clássica era considerado como essencialmente antissocial, uma vez que os indivíduos eram vistos como membros de clãs, gens, família, por fim, como cidadãos membros da pólis. Hoje, a situação é muito diferente: o individualismo exacerbado se associa ao consumismo, ao desrespeito pelo outro e, por consequência, à violência, inclusive na escola. Como pano de fundo de tudo isso, está a concepção neoliberal de vida política e socioeconômica.

Buscamos, a partir de tais reflexões, entender de que modo a teoria do dialogismo de Mikhail Bakhtin pode articular uma crítica ao modelo hegemônico e servir como ponto de partida para uma visão crítica da Natureza e da Sociedade.

A base da teoria de Bakhtin é entender que o dialogismo, além do necessário protagonismo do aluno em sala de aula, exige o embate dialógico entre aluno-aluno, aluno-professor, para se chegar ao conhecimento, percebido como um resultado coletivo.

É importante notar que não é só a mudança na forma – a prática pedagógica – que vai permitir alcançar os grandes objetivos da educação, em particular contribuir para formar cidadãos. O conteúdo, debatido em sala de aula, que reflete o currículo, tem papel essencial na construção da cidadania; vimos isso quando apontamos a dimensão política do ensino. Chega-se ao conteúdo principalmente pela 'voz' do professor. O professor, apoiado no currículo, instiga, provoca e permite que o debate se instaure e prospere em sala de aula.

Percebemos agora que há, pelo menos, duas maneiras de trabalhar o conteúdo de modo a evitar o reducionismo: a primeira seria pela inter e transdisciplinaridade – em uma abordagem que podemos chamar de sincrônica – de modo a criticar e entender o significado, a importância e as limitações do reducionismo, pelo estudo de sistemas complexos (por exemplo, em Ecologia e Meio Ambiente) que exibam propriedades emergentes; a segunda seria examinar a História da Ciência (como a do Movimento Browniano já mencionada) que mostre que a ideia de uma evolução linear e simples dos conceitos físicos – cara ao positivismo e ligada ao reducionismo na medida em que supõe um continuum teórico dos sistemas simples aos complexos – é, essencialmente, falsa. É importante frisar que essas duas abordagens, a sincrônica e a diacrônica, se articulam de maneira natural com as perspectivas dialógicas. Com efeito, a complexidade – sistêmica (resultante da presença de muitos corpos) ou histórica (resultante da construção do conhecimento no tempo) (BASTOS, 2009; CHASSOT, 2008; PIAGET; GARCIA, 2011) – se revela espontânea e, necessariamente, no interior dos debates dialógicos. A pedagogia bakhtiniana se revela como uma das formas mais adequadas de fazer frente aos aspectos negativos dos currículos tradicionais discutidos neste artigo. Em síntese, não é apenas a essência do currículo que precisa ser repensada. É preciso relacionar forma e conteúdo e vislumbrar que o modo como o processo de ensino-aprendizagem é desenvolvido em sala de aula influi de modo determinante nos resultados da educação. É isso que as análises bakhtinianas permitem.

Podemos concluir que a postura dialógica em sala de aula valoriza aspectos que permitem transformar alunos isolados em futuros cidadãos que busquem a cooperação, o respeito mútuo e compreendam que o conhecimento é necessariamente complexo e inacabado. Esperamos ainda que outras propostas sejam pensadas, objetivando mudanças na atual vida em sociedade que preza a competitividade, isolamento, lucratividade.

O estudo e as análises empreendidas neste trabalho revelam as relações entre os currículos, sua forma escolar e outras formas – sociais, políticas etc. – que geraram e geram transformações, resistências, crises e superações. Dada a importância da Ciência e da Tecnologia na nossa sociedade, só alcançaremos profundas mudanças quando o ensino de Ciências for radicalmente integrado à construção da cidadania com novos currículos e novas perspectivas.

Artigo recebido em 24/05/12.

Aceito em 27/11/12.

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  • *
    Com o apoio do CNPq.
  • 1
    Em Freire (1996, p. 54, grifo nosso), conscientização é "exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica [...] é
    natural ao ser que, inacabado, se sabe inacabado."
  • 2
    "Cada enunciado é um elo da corrente muito complexa de outros enunciados" (BAKHTIN, 2000, p. 291).
  • 3
    Um enunciado se expressa sob um ponto de vista (uma voz), não havendo enunciado neutro, que não expresse uma visão de mundo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      24 Maio 2012
    • Aceito
      27 Nov 2012
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