Acessibilidade / Reportar erro

Sarduy, prisioneiro de Saint-Germain-des-Prés1 1 A versão original deste texto apareceu em La Nación, Buenos Aires, em janeiro de 2000. Uma versão com modificações foi incluída no livro El pase del testigo (2001). É a que traduzimos para este número de Alea. Agradecemos a Edgardo Cozarinsky a gentileza de autorizar a tradução ao português e a publicação do texto em Alea. [N. do E.]

Sarduy, prisoner of Saint-Germain-des-Prés

Resumen

En este trabajo, traducido por primera vez al portugués, escrito en 1999 e incluido en el libro El pase del testigo (2001), Edgardo Cozarinsky realiza una lectura crítica de la situación de Severo Sarduy en Francia desde una perspectiva que sólo él, como testigo privilegiado de esa experiencia o incluso como confesor, puede ofrecer. El objeto de esa crítica es la “vampirización parisiense” de Sarduy, aquella que lo volvió un “prisionero” del grupo Tel Quel (con excepción de Roland Barthes) y lo obligó a “representar el papel de Sarduy”, a traicionarse. En cambio, sostiene Cozarinsky, la auténtica voz de Sarduy debe leerse precisamente en esa zona que para tantos de esos parisinos resultaba ilegible: en el mestizaje étnico y cultural sostenidos en un gesto de simultáneas audacia y liviandad que conducen a la ruina de todo origen y toda meta, a una afirmación de lo cubano y lo latinoamericano cuya complejidad pone a Sarduy en una serie que nace con Rubén Darío y pasa por José Lezama Lima.

Palavras-chave
Sarduy; Paris; Tel Quel

Abstract

In this work, for the first time translated into Portuguese, written in 1999 and included in the book The Pass of the Witness (2001), Edgardo Cozarinsky offers a critical reading of Severo Sarduy’s situation in France from a perspective that only he, as a witness privileged of that experience or even as a confessor, can offer. The target of this criticism is the “Parisian vampirization” of Sarduy, the one that made him a “prisoner” of the group Tel Quel (with the exception of Roand Barthes) and forced him to “play the part of Sarduy”, to betray himself. Instead, Cozarinsky argues, the authentic voice of Sarduy must be read precisely in that area which for so many of these Parisians was illegible: in the ethnic and cultural mestizaje sustained in a gesture of simultaneous audacity and lightness that lead to the ruin of all origin and goal, to an affirmation of the Cuban and Latin American whose complexity puts Sarduy in a series that is born with Rubén Darío and passes through José Lezama Lima.

Keywords
Sarduy; Paris; Tel Quel

Resumo

Neste trabalho, traduzido pela primeira vez ao português, escrito em 1999 e incluído no livro El pase del testigo (2001), Edgardo Cozarinsky realiza uma leitura crítica da situação de Severo Sarduy na França, desde uma perspectiva que somente ele, como testemunha privilegiada dessa experiência, inclusive como confessor, pode oferecer. O objeto dessa crítica é a “vampirização parisiense” de Sarduy, aquela que o converteu em um “prisioneiro” do grupo Tel Quel (excetuando Roland Barthes) e que o obrigou a “representar o papel de Sarduy”, a se trair. Cozarinsky postula que a autêntica voz de Sarduy deve ser lida, justamente, nessa zona que para tantos desses parisienses resultava ilegível: na mestiçagem étnica e cultural presentes em um gesto de simultânea audácia e leveza, que conduzem à ruína de toda origem e de toda meta, a uma afirmação do cubano e do latino-americano cuja complexidade situa Sarduy em uma série que nasce com Rubén Darío e passa por José Lezama Lima.

Palavras-chave
Sarduy; Paris; Tel Quel

Há livros que é impossível de ler sem recordar que são o último de seu autor. Cocuyo, de Severo Sarduy, por exemplo. Em espanhol cubano, cocuyo² 2 “Cocuyo”, “cocuyo ciego” e “tuco-tuco” são algumas das variações populares correntes em Cuba, bem como em outros países da América Central, para insetos emissores de luz, pertencentes a diferentes famílias e que, portanto, se equivalem enquanto sinônimos apenas no uso popular. No português, algo da mesma ordem acontece com as definições do vaga-lume, do pirilampo e, ainda, do uauá, nomenclatura de reminiscência tupi que sugere algo como “pisca-pisca”. [N. do T.] é um vaga-lume, e essa luz frágil, efêmera, luxo e gratuidade da criação, me parece uma metáfora da literatura de Sarduy, bem como de seu autor.

A imensa tristeza do menino cabeçudo que sobrevive a humorísticas, grotescas, atrozes, pseudomíticas provas de iniciação, sem que essas ordálias lhe permitam ingressar na maturidade, permanece no leitor como uma ferida silenciosa. Apagadas as luzes do “grande cabaré do mundo”, extintas as aparências pitorescas e variadas que compõem seu simulacro, devolvidas a esse vazio central, única realidade que, ao mesmo tempo, disfarçam e delatam, Cocuyo invoca pela última vez a noção de barroco que Sarduy teorizou e praticou, porém já não em tom festivo.

As efêmeras seduções do sexo e o misticismo, do cabaré e do monastério, sinalizam menos um conflito que um ponto possível de um encontro utópico: a interseção do barroco e do budismo. O horror vacui talvez tenha sido a intuição primeira de Sarduy: um vazio central que, putti de gesso e profusas guirlandas, incensos de cores e divindades maquiadas, revelam, por seu mero excesso, nosso assombrado reconhecimento. Ali onde outros se deleitavam em assinalar um orgasmo na Santa Teresa de Bernini, Sarduy reconhecia nesse êxtase a árdua disciplina de contemplação de uma mandala.

Entre Colibrí, “monstro cabeçudo”, e seu parente Cocuyo, Sarduy tinha passado dos ouropéis virtuais do show ao barro e aos excrementos excessivamente físicos de um delta aluvionário. Uma imagem patética do marginal, triunfante enquanto se pode prolongar a ilusão do espetáculo, vencido quando se chega a seu fim, quando se apagam os projetores, se desenrolam as cortinas, e, velozes, invisíveis maquinistas deixam vazio o cenário.

Severo Sarduy morreu em Paris a 8 de junho de 1993. A implacável deusa da moda permitiu que, poucos anos mais tarde, seus livros estivessem ausentes das livrarias francesas, seu nome quase esquecido pelo jornalismo cultural de seu país de asilo. Em Cuba, sua pátria, De onde son los cantantes apareceu timidamente em 1995, após décadas de silêncio e ocasional vilipêndio para seu autor. Graças à indispensável coleção Archivos, financiada pela Unesco, embora independente de sua política, uma edição crítica de suas obras completas veio à luz no romper do ano 2000.

Em Paris, especiosos elogios e prescindíveis reconhecimentos haviam arrastado Sarduy a representar o papel de Sarduy. Sua desgraça foi acreditar que havia encontrado sua voz na submissão a uma ventriloquia alheia. Por meio do mais próprio e valioso que o havia levado de Cuba a Saint-Germain-des-Prés, da mestiçagem étnica e cultural celebrada deliciosamente, de uma prática zombeteira embora artisticamente muito elaborada do que ele ainda não sabia que Bakhtin havia chamado polifonia e carnavalização, outras vozes se fizeram ouvir. Sarduy começou a transmitir, cada vez menos parodicamente, toda uma ideologia que durante uns anos esteve associada, sem humor, com pedantismo, à revista Tel Quel.

A empresa anti-individualista, anti-humanista, antiliterária de Tel Quel não deixou vítimas no campo de batalha intelectual parisiense; sinal, talvez, de que, no fundo, ninguém nunca a levou a sério demais. Na segunda metade dos anos setenta, sobre as ruínas da aventura teórica parisiense, começou a reeditar-se, por exemplo, Jane Austen, Arthur Schnitzler; logo mais, Edith Wharton, Leo Perutz, Mario Praz. Foi como se uma janela se abrisse subitamente num quarto asfixiado por fumaça e vapores por longo tempo ali encarcerados. Não é casualidade que o retorno à literatura, numa França em que a capacidade de ficção, debilitada, ameaçava com o esgotamento, se desse, em grande parte, por meio da reaparição de autores traduzidos muito antes e há tempos esgotados, refugos de catálogos editoriais, praticamente esquecidos por um público que, no entanto, não se resignava à “produtividade textual”.

(Hoje, os promotores de Tel Quel, desde muito tempo têm se “reciclado” - um vocábulo proveniente da economia de consumo parece o único apto a evocá-los -, na grafomania com aspirações a best-seller, na psicanálise silvestre, na conferência televisiva, no zapping cultural.)

Pode-se entender a vampirização parisiense do talento de Sarduy como um avatar (modesto, mundano) da lenda fáustica: um “provinciano” ascende à feira de vaidades da “capital” em troca de sua alma... Porém, esses faustos não eram senão falaciosos espelhismos. Sarduy nunca foi realmente um “queridinho” na bolsa de valores literários parisienses. Observado com um sorriso divertido por seus amigos franceses mais próximos, em seus trinta anos de Saint-Germain-des-Prés, rendeu um aditamento pitoresco para uma série de pequenas disputas intelectuais que só apaixonava os nativos. Obrigado por necessidades financeiras a aceitar a langue de bois do meio em que atuava, comentava a algum amigo hispano-americano, só em privado, o ridículo que não deixava de encontrar na publicitada viagem à China, em meio ao genocídio cambojano, de uma multicolorida bande des quatre: Barthes, Sollers, Kristeva e François Wahl (sobrinho do filósofo Jean Wahl e assessor da Éditions du Seuil).

Sarduy terminou encontrando em Paris censuras menos letais, embora tão rígidas como em Cuba, cujos sons, cores e sabores tanto lhe faltavam. Em mais de uma ocasião, ao comprovar que lhe era materialmente impossível sobreviver em Paris acaso se divorciasse do establishment que o havia adotado, fantasiou com a ideia de voltar à ilha, confiando na proteção de uma irmã: funcionária importante, talvez pudesse obter-lhe algum emprego, mesmo modesto, mas que o salvasse da alternância de ostracismos e chicanas que, por exemplo, amargaram os últimos anos de Virgilio Piñera.

A morte precoce liberou Sarduy da cumplicidade tóxica em que ele acreditou ver seu triunfo. Seus livros permanecem; não contaminados, confirmando-o como um escritor de outro nível, de outra qualidade, diferente daqueles vizinhos ocasionais. Sua originalidade era autêntica demais como para acatar uma coreografia de eterna adaptação a um mercado intelectual, não por limitado menos influente.

A graça, a espontaneidade com que Sarduy propunha insólitas alianças entre as letras, a música popular, a linguística e a digressão sexual, muito antes nas conversas do que na escrita, era algo inimitável para seu primeiro público envolvido. Apenas Roland Barthes podia, a partir de outro registro, intuir exatamente a natureza de seu gênio. Para os demais fiéis de Saint-Germain-des-Prés, esse cubano autêntico foi convertendo-se em um cubano di maneira, diversão de intelectuais que, nele, festejavam a exibição dessa mesma heterodoxia lúdica que em Cuba o teria levado ao trabalho forçado em um campo da UMAP. Em Sarduy, essa seita parisiense só pôde ver um reflexo exótico que a confirmava em sua existência metropolitana. Seus correligionários foram incapazes de reconhecer nele um escritor de verdade, cuja obra relegava suas próprias gesticulações a uma prateleira mais baixa.

A Paris de Sarduy teve por centro o anacrônico Café de Flore. O lugar já não era um café literário quando entra para a sua mitologia pessoal. A prestigiosa decoração dos anos 1940, em cujo interior os escritores tinham buscado um pouco de calor nos tempos de ocupação e racionamento, havia sido convertida durante o pós-guerra no centro de uma boemia internacional, porém intrinsecamente literária, cultural. A fins dos anos 1960 já havia sido entregue a uma fauna duvidosa de publicitários, modelos, gigolôs e outros aspirantes a esses quinze minutos de fama que um profeta nova-iorquino previa para todo o mundo em um futuro que é hoje. Severo, melhor que ninguém, ia descrever esse submundo em um texto de El Cristo de la rue Jacob. Que o tédio crônico de Roland Barthes tenha escolhido esse café para parada quase cotidiana não é inexplicável: em seu afã classificatório (Sade, Fourier, Loyola) e sistematizador (Fragments d’un dicours amoureux), o professor talvez espiasse com essa peregrinação sua visceral timidez ante o imaginário.

(Depois de Valéry, acredito que não houve em idioma francês um pensamento literário tão fino como o de Barthes, uma capacidade tão admirável para libar, abeille savante, marxismo, estruturalismo, semiologia, e logo produzir algo sempre diferente, nunca prisioneiro dessas severas grades. Sua coqueteria amistosa, habilmente fugidiça, com os mais jovens e irremediavelmente subalternos redatores de Tel Quel, é uma das facetas dessa estratégia. Em tempos em que a revista, coqueluche de alguns intelectuais parisienses e provincianos transatlânticos, oferendava nos altares da semiótica e do leninismo, e citava a poesia de Mao-tse-Tung, Barthes já “estava em outra coisa”: lieder, Werther, descobrir os sentimentos.)

Assim como Guillermo Cabrera Infante reinventou sua Havana perdida como a luz de uma vela apagada, Sarduy fez para si seu próprio país portátil com a Cuba que propôs em De donde son los cantantes. Para medir a coragem implícita nesse livro, é preciso recordar que, na primeira década da revolução, Cuba, abençoada pela visita de tantos convidados bem-pensantes, procurava aniquilar a mesma rica tradição de mestiçagem cultural que o livro de Sarduy celebrava. O marxismo-leninismo, introduzido como disciplina científica, acreditava possuir a chave indiscutível para o futuro, o “sentido da História”; considerava, portanto, resíduos de superstição, marcas de “atraso”, particularismos retrógrados, rastros de incultura, fermentos reacionários, as múltiplas manifestações de religiosidade animista africana que na ilha haviam se fundido ao catolicismo, ou a presença chinesa na música ou na cozinha. Em nome da “construção do socialismo”, se combatia o mais autêntico e próprio de uma cultura.

Nesse livro, Sarduy celebra uma Cuba mestiça, impura, entregue ao dispêndio do imaginário, ao gozo da criação. De onde son los cantantes apareceu na França mais ou menos simultaneamente com o ensaio, publicado na revista Critique, em que Kristeva apresentava ao leitor não russo a obra de Mikhail Bakhtin. Esse ensaio seminal marcaria durante mais de duas décadas não apenas os professores eslavos, mas, também, um sem-número de críticos, assim como escritores que, como os leitores mais próximos da autora, extirpavam essas intuições críticas do contexto soviético em que adquiriam um corte transgressor. Lido à luz de Bakhtin, o romance de Sarduy parecia cumprir com os requisitos do polifônico e carnavalesco. Mas o texto cubano, embora resultasse apetecível para a teoria literária, era simplesmente irrecuperável para a ideologia do poder. Permaneceu, previsivelmente, impublicável em Cuba até dois anos depois da morte do autor e quatro após a dissolução da União Soviética, quando um poder exausto já começava a claudicar na ilha.

(Talvez um dos signos mais patéticos do destino da revolução cubana seja que, uma vez derrubado o império que a matinha em vida, como um agonizante sob perfusão, seu líder, quase senil, tenha aberto a ilha ao turismo, ao Papa, à prostituição, obtendo assim uma caricatura - que não renuncia aos signos exteriores da retórica marxista - daquilo que, segundo a propaganda do governo oficial, havia sido Cuba antes de sua conquista do poder.)

Toda a obra de Sarduy põe na cena da linguagem uma série, aparentemente indefinida, talvez inumerável, de metamorfoses que simultaneamente dão por abolido todo ponto de origem e toda a possibilidade de meta final, movimento que pareceria ter sido iniciado muito antes da primeira frase de Gestos, seu primeiro livro, e propaga-se além do crepúsculo de Cocuyo.

De Cobra, Emir Rodríguez Monegal escreveu que “o romance mesmo provê os elementos básicos de sua exegese”; de De donde son los cantantes, Julio Ortega propôs que é uma “crítica da literatura em si mesma”. Isso é pertinente para a obra inteira de Sarduy, autocrítica por meio de seu exercício integral da paródia, paródica em sua incorporação de nomes e vocábulos provenientes da um espaço cultural. Seus ensaios - Escrito sobre un cuerpo e Barroco - aportam, como se fosse necessário, o elenco de fontes, referências e ressonâncias (literárias, plásticas, filosóficas) dentro do qual seus livros de ficção deveriam ser lidos, apreciados, analisados. Um volume de 1976³ 3 Severo Sarduy, compilado por Julián Ríos. Madri: Espiral/Fundamentos. [N. do A.] permite comprovar até que ponto a crítica hispano-americana se aventurou no estudo da obra de Sarduy. Além de alguns textos franceses e norte-americanos de circunstâncias, sobretudo valiosos como signos de reconhecimento em outros âmbitos linguísticos, ali se põe em ação toda ideia e prática que comovia e renovava o trabalho crítico da época.

Encontro nesse livro, invocados com pertinência, por exemplo, o impacto que a Índia de Octavio Paz, espaço místico-linguístico, teve em Sarduy, com profundas marcas evidentes a partir de Cobra (Emir Rodríguez Monegal); os vínculos e discrepâncias entre a noção de barroco de Sarduy e o “neobarroco” de Lezama Lima e Carpentier, assim como o contexto (Saussure, Lévi-Strauss, Derrida e, claro, Paz) de sua literatura (Roberto González Echevarría); ainda, uma inesperada exploração da possível intertextualidade Borges-Sarduy (Suzanne Jill Levine). Seria injusto concluir que Sarduy escrevia para seus exegetas, para um leitor universitário, estudioso de literatura ou teoria literária. Sobretudo até Cobra, o humor, o deboche de si mesmo e a incansável invenção verbal de seus livros não têm nada em comum com, digamos, as performances aplicadas, pontilhadas, dos colaboradores de Tel Quel, que pareciam promover a obra de Sarduy talvez com a esperança de apropriar-se de um pouco de sua audácia e leveza.

O eco múltiplo que, até Cobra, tiveram os primeiros livros de Sarduy na comunidade acadêmica foi se extinguindo a partir de Maitreya. O budismo, mais amplamente o misticismo hindu, toda a reserva de êxtase e metáforas estruturadas por Paz em ensaios e poemas nos anos precedentes, detém menos sugestões e revelações no romance-mandala de Sarduy. O cabaré e as travestis foram perdendo sua capacidade de divertir e parodiar as teorias em voga. Em Colibri, o leitor assiste a uma representação “à maneira de” Sarduy, bem cuidada, respeitosa, porém pouco provida das centelhas inventivas, da sedução, do assombro, do descobrimento que segue suscitando De donde son los cantantes. Como as formas e cores constantemente variadas de um caleidoscópio, o jogo verbal transcreve certa fadiga, uma suspeita de sistematização, uma insidiosa monotonia.

Em seus últimos anos, Sarduy entendeu que havia sido traído. Pior: que havia se deixado trair, ou que havia traído a si mesmo. Não podemos imaginar como teria sido sua vida se não houvesse deixado Cuba tão jovem. Um interminável ocaso, como o de Piñera, escamoteado da vida pública até em suas pompas fúnebres? Uma autoexpulsão barulhenta, combativa, como a de Arenas? Sua passagem pela vida literária francesa é uma fonte rica em mal-entendidos e equívocos. (Na Buenos Aires frívola e amnésica, que visitou em 1968, seria dito dele que havia colocado maracas na Tel Quel: “vaste programme” ou “misérable miracle”, segundo o clássico a se preferir...) Afortunadamente, para a sua obra, ele nunca se deslumbrou com o chamado boom latino-americano, recusou as dimensões adiposas requeridas pelo best-seller e cinzelou uma prosa fora de moda, como conceito e exercício, para a qual, além de Lezama Lima, Darío aparece como a única referência possível.

A fins dos anos 1980, em momentos de falência no mercado ideológico parisiense, Sarduy se viu obrigado a abandonar a Éditions du Seuil, em que acreditava ter “feito carreira”, e de repente só era visto como o supérfluo protegido de um pequeno mandarim recém-aposentado do ofício. Acolhido por Gallimard, a mais tradicional editora francesa, procurou malfadadamente ressuscitar uma coleção outrora prestigiosa: “La Croix du Sud”, criada por Roger Caillois. A insegurança relativa à situação profissional, certos erros de critério, levaram-no a exagerar na prudência. Vivia cada gesto de docilidade frente ao meio como uma humilhação que só podia aliviar com a escrita. Tudo isso irradia Cocuyo: esses outros sobre quem, ao final, vomita o menino retardado da ficção, remedando os medíocres, essas nulidades de quem o escritor dependia para sua subsistência, que lhe impunham alianças ideológicas e mundanas. Em certo sentido, o lixão final de seu último romance é o que Paris tinha passado a significar para o desolado ocaso da vida de Sarduy.

Quis escrever sobre Severo Sarduy em primeira pessoa. Não pretendo abordar o mistério da fortuna torvelinesca de seu prestígio literário com os instrumentos da crítica. Esta pode revelar em seu espelho côncavo mais ressonâncias e convergências entre a obra e seu tempo do que as que são visíveis para uma perspectiva profana; entretanto, essa imagem, não necessariamente deformada, mas, sim, perfeita (no sentido de totalidade, conclusa), me parece, antes, o reflexo de um alter ego de Sarduy. Com o tempo, esse reflexo será a única esfinge do escritor, e talvez seja justo que assim reste, mas antes que essa persona definitiva se cristalize, concentração de tantos fluidos palpitantes em uma superfície firme, quisera eu deixar uma pista de outro Sarduy, aquele que em Paris só podia dizer em castelhano, como uma confidência, algo muito distinto do que dizia, publicamente, em francês.

Tradução de Davidson Diniz

  • 1
    A versão original deste texto apareceu em La Nación, Buenos Aires, em janeiro de 2000. Uma versão com modificações foi incluída no livro El pase del testigo (2001). É a que traduzimos para este número de Alea. Agradecemos a Edgardo Cozarinsky a gentileza de autorizar a tradução ao português e a publicação do texto em Alea. [N. do E.]
  • 2
    “Cocuyo”, “cocuyo ciego” e “tuco-tuco” são algumas das variações populares correntes em Cuba, bem como em outros países da América Central, para insetos emissores de luz, pertencentes a diferentes famílias e que, portanto, se equivalem enquanto sinônimos apenas no uso popular. No português, algo da mesma ordem acontece com as definições do vaga-lume, do pirilampo e, ainda, do uauá, nomenclatura de reminiscência tupi que sugere algo como “pisca-pisca”. [N. do T.]
  • 3
    Severo Sarduy, compilado por Julián Ríos. Madri: Espiral/Fundamentos. [N. do A.]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2016
  • Aceito
    03 Dez 2016
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com