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Levrero idiorrítmico

Idiorrhytmical Levrero

RESUMO

Nesse ensaio busco explorar algumas ressonâncias entre a noção/o conceito de "idiorritmia", formulada por Roland Barthes em seu Como Viver Junto, e a produção tardia do autor uruguaio Mario Levrero, concentrando a atenção em particular sobre El discurso vacio e La novela luminosa. A conversação entre os dois, ainda que tangencial, reforça uma alternativa de leitura distinta da que percebo como uma padronagem interpretativa que se acomodou em torno da obra de Levrero, e permite valorizar uma certa operação de deslocamento em seu trabalho, relacionada à política do cuidado de si que a escrita de tais textos promove.

Palavras-chave
Idiorritmia; escrita de si; Barthes; Levrero

ABSTRACT

My aim in the following essay is to explore some ressonances between the notion/concept of “idiorrhythmy”, formulated by Roland Barthes in his How to Live Togetheritalic> and the late works by the Uruguayan author Mario Levrero, focussing particularly on El discurso vacioitalic> and La novela luminosa. The conversation between these two authors, though somewhat tangential, reinforces an alternative to the sort of standard reading of Levrero, and highlights a certain operation of displacement in his work, which is related to the politics of the care of the self that the writing of such texts promote.

Keywords
Idiorrhythmy; Self-writing; Barthes; Levrero

RESUMEN

Mi objetivo en el siguiente ensayo es explorar algunas ressonancias entre la noción/ concepto de "ideorritmia", formulada por Roland Barthes en su libro Cómo vivir junto, y las últimas obras del autor uruguayo Mario Levrero, centrándome particularmente en El discurso vacio y La novela luminosa. La conversación entre estos dos autores, aunque algo tangencial, refuerza una alternativa a una especie de lectura estándar de Levrero, y permite destacar una determinada operación de desplazamiento en su obra, relacionada con la política del cuidado del yo que la escritura de dichos textos promueve.

Palabras claves
Idiorritmia; escritura del yo; Barthes; Levrero

I

O movimento de abertura de Barthes em seu curso “Como viver junto” sempre me pareceu curioso. Em se tratando de Barthes, a inflexão peculiar não é de causar estranheza, mas sim desejo de saber como, na deriva que se sedimenta no curso afinal exposto e publicado, a coisa fixa seu ponto de partida em uma zona tão fora da curva quanto os monges do Monte Atos, tradições do monasticismo antigo e afins. Há algo de um legado clássico ao qual Barthes recorre, aqui e ali, mas discretamente - e aqui há certo vagar, como se essa deambulação produzisse, fosse necessariamente produzir (e, de fato, termina por produzir) seu próprio encaminhamento e “progresso”. Seja como for, o ponto, digamos, argumentativo, que continua estimulando minha curiosidade, e aqui me confere a oportunidade de dar entrada neste ensaio, é o abraço da noção de idiorritimia como pontapé inicial para explorar o “como viver junto”. Haverá o momento de alguma reflexão sobre o coletivo, sobre arranjos de convivialidade - mas vamos começar pela investigação do particular, do próprio, do idios. E lá vai Barthes, em plena aventura etimológica, concluir que “Idiorritmo, quase um pleonasmo, pois o rhythmós é, por definição, individual: interstícios, fugitividade do código, do modo como o sujeito se insere no código social (ou natural)”, e que essa definição remete às “Formas sutis do gênero de vida” (Barthes, 2013BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Cursos e seminários no College de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p.16).

Deixando de lado algumas questões de exegese barthesiana, que mesmo nesse trechinho pedem comentário (por exemplo, a ideia de que “por definição” seria suficiente para condicionar o uso, que vinda de Barthes parece cortejar nosso riso, ou a circunscrição das “formas sutis”), acredito que a noção de “idiorritmo”, tal como aí apresentada, aponta para algumas peculiaridades da produção tardia de Mario Levrero. A coabitação crítica dos dois, ao que me consta ainda não faturada, é parte do que quero sugerir aqui, considerando que esse laço, em que pese alguma anomalia, talvez seja capaz de produzir um deslocamento rentável no manuseio da produção de Levrero, que leio como autor investido na invenção de uma poética da idiorritimia, e na negação de formas canônicas de cuidado (e escrita) de si. Operando a partir de uma matriz que, na falta de palavra melhor, chamarei de “mística” - mas em uma versão muito própria e bastante laicizada -, certa fluidez, certo improviso, certo pathos típico da produção tardia de Levrero afirmam uma possibilidade de vida.

No que segue, passo por uma exposição de certos aspectos dessa poética, tentando valorizar a forma da inscrição que ela realiza como uma estratégia de deslocamento discreto com relação à percepção do “literário” - do que faz a literatura, do que fazemos com ela. Tal gesto, por sua vez, me parece uma manifestação antagônica a uma configuração “autoritária” de engajamento, subsidiária de uma escatologia precisa e dada e portanto advogada de uma teleologia do político. Há uma captura específica desse antagonismo nos textos finais de Levrero, e me ocupo aqui de tentar expor como percebo isso, e qual o dado afirmativo que encontro neles.

II

Levrero, a partir de meados da década de oitenta, momento em que produz seus “Apuntes buenaerenses” e o Diario de un canalla, começa a investir em anotações e diários como estruturantes de sua narrativa, em uma deriva que já foi descrita como a do afastamento gradual da ficção e aproximação cada vez mais intensa da autobiografia. Nesse processo, se afasta daquilo que mais chamava a atenção em sua produção narrativa anterior - uma ficção marcada por alguma medida de fantástico, ou de certa ficção científica, ou de kafkianismo - e se aproxima de estratégias narrativas que circundam, exploram e tematizam o eu. Sai o desvio do real, entra o banal, o cotidiano, e em especial as vicissitudes da identidade, e os custos de sua sustentação. É assim que Levrero segue, mais ou menos a partir do momento em que se muda para Buenos Aires, por volta de 85, até sua morte, em 2004, já tendo retornado a Montevidéu: são umas oitocentas páginas de texto publicado, uns vinte anos de anotações em diários meio erráticos. Os livros apresentam entradas que obedecem em forma à estrutura de datação e sequência, e assim atendem a certas expectativas que temos com relação ao gênero diário. Em igual medida, todavia, passam ao largo de expectativas de leitura: elisão quase total do universo da confissão ou da vida íntima compreendida enquanto mundo do segredo. O que aparece com mais proeminência, atravessando os vários projetos, é certo interesse em explorar a transformação de si mesmo por uma poética da anotação.

Essa passagem parece indicadora de uma espécie de falência da imaginação, da capacidade inventiva: um escritor abdica de imaginar e começa a anotar, substituindo em sua literatura a invenção de outros sujeitos, espaços, situações por uma espécie de contínuo investimento no registro do que lhe ocorre, e trocando o laboriosamente criado pelo meramente experimentado. Mas há uma ressonância aqui com problemas barthesianos, indicados no Preparação do Romance, uma vez que a anotação não é apenas “registro”, e seu lugar não é o da zona de passividade que habitualmente relegamos ao escrito, como resultado de uma operação do intelecto e da sensibilidade que finda em escritura. Há um empenho na escrita como propiciadora de transformação, de mudança de quem escreve. Mudança matizada, mas inclinada para um desenvolvimento que serve de ponto de fuga para toda essa produção: Levrero havia, no início dos anos oitenta, iniciado a escrita de um livro, ao qual chamaria de La novela luminosa, voltado para a narrativa de um conjunto de experiências sui generis. Qualificadas pelo autor como “luminosas”, tais experiências teriam lugar na fronteira do sobrenatural, todas marcadas por um momento em que a sensibilidade se tornou mais sutil, mais aguda: momentos marcados pelo alcance de uma percepção especial.

Desse livro ele produz alguns capítulos mas depois deles, por conta de coisas da vida (uma cirurgia, uma mudança), se descola, e ao retomar o projeto não consegue mais escrever. Essa dificuldade o move e faz emergir sua escritura diarística: suas anotações serviriam como instrumento de transformação, como a estratégia que ele desenvolve para convocar o retorno daquela sensibilidade particular, que julga perdida. A escrita do diário, seu caráter comezinho, cheio de reiterações e repetições, é a matriz na qual se forja um esquema de observação de si mesmo e cujo alvo é a transformação de si mesmo.

Seria talvez um caso de “literatura como performance”, ou de uma exploração das implicações pragmáticas de gestos e posturas que emergem e se fazem como parte dos afazeres que subsumimos no rótulo de “literatura”. Aqui teríamos uma instância disso, uma investida em um gesto, o de escritura, em uma prática, a da escrita cotidiana e do cotidiano, como constitutivas da “performance” da anotação em Levrero. Em sua forma mais radical, em El discurso vacio, assumiria a função de uma “autoterapia grafológica”, na qual a produção de alterações na própria caligrafia resultaria, supostamente, em mutações na própria identidade: pouco importando o conteúdo, importaria a capacidade de manter a forma da letra em uma espécie de estado de felicidade enquanto desenho de letra, potência de legibilidade. A atenção depositada na caligrafia - na dimensão mais artesanal da letra, e certamente a mais irrelevante para nosso entendimento habitual da autoria - conduziria à transformação do que se pode escrever na medida em que transforma quem escreve, em um fluxo da atenção que repousa sobre a forma na capacidade do conteúdo. Um trecho, frequentemente citado, cabe ser revisitado aqui:

28 de octubre Prosigo, tratando de desarollar temas poco interesantes, inaugurando tal vez una nueva época del aburrimiento como corriente literaria. Hoy comencé, hace dos renglones, com una letra de tamaño muy grande, la que em el segundo renglón se redujo bastante. ¿Por qué se redujo? Por que empecé a prestar atención a la forma de continuar la frase que había comenzado, queriendo evitar incoherencias. Y la conclusión es que, limitada como es, mi atención no puede ocuparse de dos cosas distintas. Aquí lo prioritario es la letra y no el estilo, de modo que las incoherencias están permitidas. Afloja la tensión, muchacho, y dedícate a tu laboriosa tarea de dibujo. No es fácil olvidarse de la necesidad de coherencia. Aunque después de todo la conherencia no es más que una compleja convención social. Sospecho que la frase anterior es una gran mentira, pero ahora no tengo el derecho de ponerme a analisar esas cosas. Otras cosas, tampoco. Debo caligrafiar. Debo permitir que mi yo se agrande por el mágico influjo de la grafología. Letra grande, yo grande. Letra chica, yo chico. Letra linda, yo lindo. (LEVRERO, 2009LEVRERO, Mario. El discurso vacío. Barcelona: Debolsillo, 2009., p.36)

Uma espécie de magia simpática, alterando o nexo imediato entre o gesto e o sujeito que o executa: Debo caligrafiar. Debo permitir que mi yo se agrande por el mágico influjo de la grafología. Letra grande, yo grande. Letra chica, yo chico. Letra linda, yo lindo. Alejandro Zambra (2013ZAMBRA, Alejandro. “Cuaderno, archivo, libro”. Revista Chilena de Literatura, n. 83, Abril 2013: 243-252) comenta esse trecho apontando que aqui não se pretende concretizar o “livro sobre nada” que ambicionava Flaubert (ou que talvez pudesse ser lido em Prosigo, tratando de desarollar temas poco interesantes, inaugurando tal vez una nueva época del aburrimiento como corriente literaria), nem clamar pelo retorno de um método surrealista de produção literária (o que talvez pudesse ser lido em las incoherencias están permitidas. [...] No es fácil olvidarse de la necesidad de coherencia. Aunque después de todo la conherencia no es más que una compleja convención social). Aqui se trata, diz Zambra, de “indagar a relação entre letra e personalidade”, de acolher a formulação - algo entre o ridículo, o implausível e o infantil e no limiar do pensamento mágico - que indica Letra grande, yo grande. Letra chica, yo chico. Letra linda, yo lindo.

Essa inversão no fluxo de causalidade implica em provocação para a crítica. Não estamos acostumados a contemplar a possibilidade de uma escrita de si que almeje menos a fixação do sujeito do qual ela se origina e mais sua transformação pela operação de escrita que a constitui. Nosso encaminhamento hermenêutico padrão tende a supor uma entidade prévia, origem e causa do que se dá a ver no texto; e, quando examinamos as poéticas dos gêneros (auto)biográficos, estamos nos remetendo ao espaço de artifício e invenção que dá conta da rota entre a suposta vida subjacente ao texto e o que é narrado, tentando entender como é narrado, e especulando sobre escolhas, opções do artífice/autor na manipulação de seus recursos. Em Levrero, estamos diante de algo que participa do domínio da escrita de si, mas que ao mesmo tempo dirige nosso pensamento para um destino que, embora sempre um pouco insinuado na reflexão, ainda parece inusitado: é a sugestão de que o ato de escrever muda quem escreve. Aqui, talvez fosse o caso de pôr em xeque o entendimento que supõe um espaço prévio de flutuações do espírito em que se maneja a ideia-mãe que apenas irá se plasmar no escrito. Dar conta do escrito, parece dizer Levrero, é fazer um negócio consigo mesmo, e se conduzir a outro lugar.

III

Considerando que aí se manifesta certa política do conhecimento da literatura - ou, pelo menos, dessa literatura -, aparece o gesto de anotar como problema epistemológico, estético, ético. Há uma consideração sobre a produção de arte especificada nesse projeto que se realiza em nossa leitura dessas anotações, dessas entradas de um diário que quer abdicar de dizer, quer acolher o pouco interessante, quer abrir mão mesmo da coerência: tudo em benefício de uma reforma moral. A anotação - forma miúda e esquecida, quase sempre privada - ganha o centro do palco aqui: essas narrativas evocam a possibilidade de um entendimento em que processo e produto não são alijados um do outro. Isso é o que reza certa tradição, que nos forma inclinando nossos procedimentos de produção do saber a apagar a própria historicidade, elidir as pegadas que indicam a passagem e a rota cumprida que resulta, sempre de maneira pro tempore, no que se apresenta, em um produto. Aqui, processo é produto: Letra linda, yo lindo.

Ao divulgar esse trabalho pela descrição e análise, subjaz um ímpeto de disseminação, um desejo de que algum interesse apareça na audiência, e que esse interesse se traduza em frequentação, comunicação, conversação e discussão. Isso é meio o feijão com arroz do que fazemos em crítica, e é de tal forma trivial, que raramente aludimos ao trabalho de propaganda e comércio de ideias, um dos resultados da investigação literária profissionalizada. Você é capturado por uma invenção, que mobiliza seu interesse: nela investe tempo e atenção, e isso em algum momento se volta à tentativa de incrementar o fluxo de interesse em torno do que lhe mobilizou. Nesse envolvimento, a obra ao mesmo tempo continua e se transforma: as leituras engendram efeitos no campo, o caudal interpretativo se avoluma (ou eventualmente deixa de se avolumar, e se dissipa).

Aludo a isso, à contribuição da crítica nessa descrição sem qualquer sofisticação, justamente porque a outra coisa que me interessa comentar a respeito de Levrero é uma evocação desse processo ocorrendo em torno de sua produção, caracterizado, como qualquer outro dessa natureza, pela reiteração de certas saliências de leitura que vão trafegando de crítico a crítico.

Isso combina com certo modo vetusto de conduzir a crítica, talvez alojado de maneira mais flagrante nos momentos em que caberia dizer algo sobre o “modo de ler” que escapasse à nossa lógica costumeira de construção do argumento em estudos literários, nos quais via de regra a crítica se justifica enquanto pedagogia, e se faz dizendo o que a obra diz. O que fiz, até agora, foi basicamente isso: contextualizar, resumir, apontar um sentido que a operação de escrita em que estou envolvido quer valorizar. Mas o que não para de me chamar a atenção na construção de um comentário sobre a produção de Levrero é que, seguindo ao que parece uma instrução do próprio autor - lembrando a citação de El discurso vacio: Prosigo, tratando de desarollar temas poco interesantes, inaugurando tal vez una nueva época del aburrimiento como corriente literaria -, certa crítica1 1 “Certa crítica” é assumidamente vago, e assim deve ser, sob pena de transformar esse ensaio em um recenseamento de recepção. O que quero dizer aqui é que vejo essa manifestação sedimentada, em vários graus de espessura, em ensaios coligidos por De Rosso (2013) e Bartalini (2016), e que tomarei Laddaga como metonímia desse protocolo meio generalizado de leitura que reitera “Lemos, mas não há nada a ler”, “Lê-se, mas é chato” ou, como indico com mais precisão adiante, “Interessa porque não pode nos interessar”. parece presa de uma lógica que, para confirmar o interesse da obra, precisa reafirmar sua capacidade reduzida de ser interessante enquanto experiência de leitura.

Destacarei apenas um momento de um notável e agudo comentário, que é quando Reinaldo Laddaga (2013LADDAGA, Reinaldo. “Un autor visita su casa. Sobre La novela luminosa de Mario Levrero”. In: DE ROSSO, Ezequiel (Org). La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero . Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2013., p.233) resume La novela luminosa (LEVRERO, 2005LEVRERO, Mario. La novela luminosa. Montevideo: Alfaguara, 2005.) dizendo “Esto nos queda, si es que sustuvimos nuestra lectura. Y esto, Levrero sabe, no es fácil.” Como assim, “não é fácil”? O drama crítico manifesto nessa afirmação de Laddaga parece ser que, para mostrar como Levrero é interessante (no sentido da pegada surpreendente que se constata nesses seus projetos finais, que levados a sério nutrem reflexão e estimulam produção crítica), é preciso reafirmar que o que ele escreveu não é interessante (no sentido de ser uma experiência de leitura tediosa, repetitiva, “sosa”).

Compreende-se: de maneira vulgar, dizemos que, no que tange ao romance, cortejamos a peripécia, ambicionamos incidentes. Atenuada a oferta da peripécia, a leitura tende a sugerir o tédio como estado necessário do leitor, e uma formulação como a que Barthes indica com relação ao Robinson Crusoé seria excepcional: “Quando os acontecimentos ocorrem na existência solitária de Robinson em sua ilha […], isso perturba meu prazer de leitor, isso me aborrece” (BARTHES, 2013BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Cursos e seminários no College de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p.164). Na sequência, aparece o que mais interessa, como ponto de contato ou ressonância entre a idiorritmia aludida por Barthes e o que julgo realizado por Levrero: “Fantasiar o Viver-Junto como cotidiano: recusar, rejeitar, vomitar o acontecimento. O acontecimento é o inimigo do Viver-Junto” (p.164-5).

Pois o que o romance (“novela”) de Levrero nos oferece à guisa de incidentes são operações à primeira vista demasiado corriqueiras e ordinárias para merecer literatura, merecer romance. Um velho, lubrico e obsessivo, recebe uma bolsa que lhe permite abdicar de certos trabalhos e se dedicar prioritariamente à escrita de um romance. Seu cotidiano, que lemos, é marcado por horários anômalos (vai dormir às quatro, cinco da manhã, acorda uma, duas da tarde), pelo uso principalmente lúdico do computador, pela observação de um conjunto de pombas que se aloja no telhado da casa adjacente ao prédio onde vive. Há outras coisas, e sua presença na crítica vai variar a depender do grau de microscopia utilizado ou do argumento almejado: a história de amor com Chl pouco me ocupará aqui, mas está lá, e é tão radical quanto a meticulosa descrição de um fantasma (ou, melhor dizendo, da experiência de vislumbrar o que Levrero supõe ser um fantasma), que também está lá. Há ainda o lembrete de que aqui, como no caso de El discurso vacio, se escreve para alcançar um objetivo de transformação de quem escreve. Neste caso, o problema seria convocar um estado de espírito afim àquele que propiciou a redação de alguns capítulos de um livro, redigidos muito tempo antes, chamado La novela luminosa e, instalada a vibração específica que caracteriza aquela sensibilidade anterior, recuperar a escrita do livro, concluí-la. Esse problema já está, com matiz ligeiramente distinto, no livro anterior: reconstruir, escrevendo, a condição - material, moral, disposicional, sensível - de escritura que foi perdida. Dito de outra maneira: ser a pessoa capaz de escrever aquilo que escrevia antes. Algo ingênuo: acaso se entra duas vezes no mesmo rio? Que espécie de recuperação Levrero pode almejar alcançar? O que é, afinal, esse escrever para conseguir escrever?

Não tenho respostas, em particular porque quero me concentrar em algo que, creio, nega certa imposição da ideia de que é simples e necessariamente tedioso o que se lê. Trata-se de um artifício de dobra da narrativa que me chama a atenção, e que me faz querer ponderar mais, salvo engano ponto cego da crítica ao romance que já frequentei. Como mencionei, um tema em La novela luminosa é a observação continuada feita pelo narrador de um conjunto de pombas que habitam um telhado próximo a seu apartamento: de tal maneira o tema da pomba é presente no romance que em seu epílogo são registrados os destinos das pombas, e as capas das edições de Mondadori e Alfaguara, não à toa, ostentam pombas. Há exploração, apalpada brevemente por Kamenszain (2016KAMENSZAIN, Tamara. Una intimidad inofensiva. Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2016.) mas ainda por ser feita mais detalhadamente, da relação com os animais nesses livros tardios de Levrero. Há o camundongo e o pardalzinho personagens de Diário de un canalla, o cachorro Pongo e suas aventuras em El discurso vacio, e as pombas de La novela luminosa, às quais Levrero atribui relações familiares (uma delas morre, e seu cadáver continua no telhado, em gradual decomposição: Levrero trata uma das pombas remanescentes de “A Viúva”), sobre as quais especula e com as quais de alguma maneira convive. Em um dado momento, após muitas observações das pombas, se dá conta de que

Esta presencia de pájaros caídos se fue transformando en el tema principal de lo que estaba escribiendo, caso una crónica minuto a minuto de los acontecimientos que se producían en el fondo de mi casa. Entendí que essa epifanía de pájaros tenía un carácter simbólico; lo cierto es que a veces la realidade objetiva se hace presente com un fuerte carácter simbólico. Y entendí que de algún modo había provocado esos sucesos por el hecho de haberme puesto a escribir. (LEVRERO, 2005LEVRERO, Mario. La novela luminosa. Montevideo: Alfaguara, 2005., p. 197)

Se antes, em El discurso vacio, o propósito era o de escrever de tal maneira a provocar uma mutação pessoal, aqui acontece a inversão da ordem causal. Permanece a potência transformadora da escritura, mas agora é o mundo das pombas, o universo exterior que se desloca por força e obra da escrita: de algún modo había provocado esos sucesos por el hecho de haberme puesto a escribir.

Como qualificar isso? Absurdo, que deve ser descartado, ou algo razoável, que deve ser examinado, e em alguma medida posto à prova? Essas produções de Levrero reiteram um entendimento do universo que o transforma em algo acolhedor ao sutil: acolhedor a ponto de permitir que essa matéria que resumimos chamando de “mundo”, quase sempre tomada como hostil, cega, infensa ao sensível, seja transformada pela atenção e pela escrita. Ao desestabilizar um pouco a solidez atribuída por nós ao significante “mundo”, ao considerar que isso tenha alguma ordem de plausibilidade, mesmo que interna a um mundo semificcional, Levrero avança em uma metafísica que de certa forma recupera uma matriz de misticismo hippie, uma sugestão de revolução interior com impacto exterior.

Acabei de escrever o trecho acima e faço uma pausa, por acreditar ser necessário redescrever o já dito, ou matizá-lo, para em primeiro lugar afastar o discurso um pouco de sua aparente breguice, e na sequência descolar o que ambiciono comunicar desse evangelho aparentemente imortal que sugere que a literatura torna as pessoas melhores. Nada mais longe daqui, creio: não quero dizer que o livro me tornou melhor, que tendo lido La novela luminosa me tornei, eu, uma pessoa “luminosa”, boa, sã (que “a literatura me salvou”). Há uma forma que me parece ainda pior: a que sugere que devem ler o livro pois assim se tornarão também melhores - o que quereria dizer algo como “mais parecidos comigo”, “mais próximos de minha visão de mundo e de minha sensibilidade”. O que queria dizer é que, de maneira paralela à mudança de mundo que Levrero atribuiu à escrita, indicando que a certa altura sua investida torna patente que lo cierto es que a veces la realidade objetiva se hace presente com un fuerte carácter simbólico, a leitura desses textos engendrou uma convivência particular que me deslocou.

Assim, malgrado a suposta falência do projeto tantas vezes declarada por Levrero em seus livros, dou aqui testemunho de uma ordem, modesta, de sucesso. Se o narrador não se transformou o suficiente a ponto de recuperar o acesso à versão específica de disponibilidade existencial que ele chama de “luminosa”, algo dessa perseguição se depositou em mim - não como solução ou resposta, mas como continuidade do problema da construção de uma disponibilidade moral particular, ou de uma forma específica da atenção, que é forjada em ressonância a uma prática de escrita de muito baixo teor de protagonismo na cultura, bastante débil enquanto argumento, quase delirante em suas hipóteses de fundo a respeito de fluxos causais.

O que “prega”, essa alternativa? Uma forma discretíssima de inscrição e exposição, uma estetização do cotidiano privada de qualquer espetacularidade, uma vez que fruto de uma investida consistente da atenção no mínimo. Talvez uma forma da idiorritmia como conquista e preâmbulo para o “viver junto”, a negação do modo autoritário, capturado por Barthes (2013BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Cursos e seminários no College de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p.19) na mãe que arrasta o filho e que ele configura como “a disritmia, a heterorritmia”. A ordem dramática e política que me parece seguidamente reencenada nesse trecho final da produção de Levrero funciona, como diz Laddaga (2013LADDAGA, Reinaldo. “Un autor visita su casa. Sobre La novela luminosa de Mario Levrero”. In: DE ROSSO, Ezequiel (Org). La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero . Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2013., p.235), tal qual “la luminosidad difusa que impregna un ámbito frágil y entreaberto”.

Referências bibliográficas

  • BARTALINI, Carolina (Org.). Escribir Levrero: Intervenciones sobre Jorge Mario Varlotta Levrero y su literatura Saenz Peña: EDUNTREF, 2016.
  • BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. Cursos e seminários no College de France, 1976-1977 São Paulo: Martins Fontes, 2013.
  • DE ROSSO, Ezequiel (Org.). La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013.
  • KAMENSZAIN, Tamara. Una intimidad inofensiva Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2016.
  • LADDAGA, Reinaldo. “Un autor visita su casa. Sobre La novela luminosa de Mario Levrero”. In: DE ROSSO, Ezequiel (Org). La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero . Buenos Aires: Eterna Cadencia , 2013.
  • LEVRERO, Mario. La novela luminosa Montevideo: Alfaguara, 2005.
  • LEVRERO, Mario. El discurso vacío Barcelona: Debolsillo, 2009.
  • ZAMBRA, Alejandro. “Cuaderno, archivo, libro”. Revista Chilena de Literatura, n. 83, Abril 2013: 243-252
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    “Certa crítica” é assumidamente vago, e assim deve ser, sob pena de transformar esse ensaio em um recenseamento de recepção. O que quero dizer aqui é que vejo essa manifestação sedimentada, em vários graus de espessura, em ensaios coligidos por De Rosso (2013)DE ROSSO, Ezequiel (Org.). La máquina de pensar em Mario: Ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013. e Bartalini (2016)BARTALINI, Carolina (Org.). Escribir Levrero: Intervenciones sobre Jorge Mario Varlotta Levrero y su literatura. Saenz Peña: EDUNTREF, 2016., e que tomarei Laddaga como metonímia desse protocolo meio generalizado de leitura que reitera “Lemos, mas não há nada a ler”, “Lê-se, mas é chato” ou, como indico com mais precisão adiante, “Interessa porque não pode nos interessar”.
  • Antonio Marcos Pereira fez o doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Minas Gerais e é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal da Bahia. E-mail: antoniomarcospereira@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2017
  • Aceito
    30 Nov 2017
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