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A escrita corsária de Abdellah Taïa

Abdellah Taïa's corsair writing

Resumo

Neste artigo, abordo a relação entre a transculturação em língua francesa e a dimensão heteroglóssica do discurso sobre a sexualidade nas obras Le Rouge du Tarbouche e Celui qui est digne d’être aimé de Abdellah Taïa. Focalizo a metáfora dos corsários contadores como uma alegoria metalinguística da literatura transcultural do autor. Com o aporte do termo escrita corsária, espero mostrar estratégias de um fazer narrativo que, dialogando com as obras de Jean Genet e André Gide, se indaga sobre o estatuto das falas de narradores e personagens subalternos.

Palavras-chave:
Abdellah Taïa; Literatura Marroquina; Identidade Cultural; Transculturalismo; Subalternidade

Abstract

In this article, I examine the relationship between transculturation in French and the heteroglossic dimension of the discourse on sexuality in Le Rouge du Tarbouche and Celui qui est digne d'être aimé by Abdellah Taïa. I focus on the storytelling corsair’s metaphor as a metalinguistic allegory of the author's cross-cultural literature. By coining the term corsair writing, I hope to show strategies for a narrative writing that, in dialogue with the works of Jean Genet and André Gide, questions the status of narrators and subaltern characters’ voices.

Keywords:
Abdellah Taïa; Moroccan Literature; Cultural Identity; Transculturalism; Subalternity

Résumé

Dans cet article, je propose d’aborder la relation entre la transculturation en langue française et la dimension hétéroglossique du discours sur la sexualité dans les ouvrages Le Rouge du Tarbouche et Celui qui est digne d’être aimé, d’Abdellah Taïa. Pour y parvenir la métaphore des corsaires conteurs est envisagée comme une allégorie métalinguistique de la littérature transculturelle de l’auteur. Avec l’introduction du terme d’écriture corsaire, j’espère montrer les stratégies d’une activité narrative qui, à travers un dialogue avec les œuvres de Jean Genet et d’André Gide, suscite un débat autour du statut des paroles de narrateurs et de personnages subalternes.

Mots-clés:
Abdellah Taïa; Littérature Marocaine; iIdentité culturelle; transculturalisme; subalternité

Em artigo de 1990, Novos caminhos do romance francês contemporâneoSILVA, Edson Rosa da. “Novos caminhos do romance francês contemporâneo”. Linha d’Água, n. 7, [s/l] p. 32-39, 1990. , Edson Rosa da Silva, com o arrojo teórico que lhe é peculiar, julga pertinente incluir, entre os romancistas renovadores da prosa romanesca francesa daquelas últimas décadas, o marroquino Tahar Ben Jelloun1 1 Em 1989, o pesquisador já havia escrito sobre o escritor. Cf. SILVA, Edson Rosa da. O Menino de areia: um romance árabe escrito em francês (ou os labirintos da escritura). Letras, Curitiba, v. 38, 1989, p. 157-166. , considerando sua obra

como uma das que, na década de 70 e já na de 80, transcrevem, ao lado de aspectos de uma realidade histórica - a condição feminina nos países árabes ou a condição miserável dos imigrantes na França -, a história do romance que se questiona enquanto gênero de formas e características definidas e que se quer não reflexo mas reflexão sobre as múltiplas facetas do mundo real. (SILVA, 1990SILVA, Edson Rosa da. “Novos caminhos do romance francês contemporâneo”. Linha d’Água, n. 7, [s/l] p. 32-39, 1990. , p. 37)

O olhar do ensaísta, especialista em André Malraux, importa por algumas razões: ele amplia os horizontes metodológicos dos estudos de uma literatura europeia até a perspectiva comparada pós-colonial, inscreve a literatura francesa em um âmbito eminentemente translíngue, adota o critério da enunciação em detrimento da identidade nacional para o recorte de uma esfera literária. Tal perspectiva crítica nos permitiria inverter a ordem de seus efeitos para dizer que ela, muito sutilmente, em vez de situar um escritor marroquino entre os franceses, talvez estivesse situando a própria literatura da França entre as ditas literaturas de expressão francesa, como se a condição a ser considerada fosse a da renovação das formas literárias no interior de uma língua compartilhada por escritores de diferentes nacionalidades. Se o ensaísta vê a Literatura pelo prisma de condições - “a condição feminina”, “a condição dos imigrantes” -, a condição linguística poderia ser mais uma entre elas, e não seria ontológica, seria “não reflexo mas reflexão”, para usar suas palavras. À luz da provocadora abordagem do ensaio de Edson Rosa da Silva, lanço-me na leitura de outro escritor marroquino, Abdellah Taïa, cuja obra aborda suas condições de produção e enunciação no âmbito da literatura contemporânea de língua francesa.

Abdelllah Taïa radicou-se na França, país em que vem publicando sua obra desde 2000, quando estreia com Mon Maroc, uma compilação de relatos autoficcionais. Em um desses, o autor relê a obra de Paul Bowles, inaugurando o que viria a tornar-se um traço de suas narrativas: a retomada de autores ocidentais com ênfase nas suas vivências da sexualidade enquanto transitavam por países africanos. Abdellah Taïa, por sua vez, destacará as condições de enunciação do discurso amoroso e sexual de seus próprios narradores e personagens, que transitam por culturas transnacionais (Suíça-França-Marrocos-Argélia-Egito-Sudão-Irã), tendo suas identidades submetidas a juízos de valor do sujeito amante e do amado, um em relação ao outro, tendo como pano de fundo a ameaça de silenciamento em relações potencialmente repetidoras da reificação colonial. Ao transitarem, deslocam-se sem cessar de seus lugares enunciativos originais, e seus posicionamentos ou silenciamentos ocorrem por meio do contato entre idiomas e variedades linguísticas em situação de diglossia e heteroglossia. Nesse contato, o inusitado do registro verbal transparece: narradores reportam, no idioma francês, as falas de personagens que não falam outra língua senão a árabe, às vezes em situação de bilinguismo com as berberes e outras nativas de etnias africanas. Essa atividade narrativa, que chamarei de transculturação linguística, tão comum a autores coloniais e pós-coloniais, já se tornou familiar ao público leitor, afeito à leitura de obras escritas em línguas que não integram o repertório das personagens. Porém, em muitas dessas obras, a transculturação idiomática não passa sem suscitar um debate sobre as complexas relações enunciativas e dialógicas que atravessam o enunciado na língua de expressão. A essa categoria pertence Abdellah Taïa, em cuja obra a escrita em língua francesa nunca é ponto pacífico. De fato, embora o autor tenha formação acadêmica em Literatura Francesa e sua obra abunde em testemunhos do desejo de construir uma obra no idioma francês, e que, nesses testemunhos, não aluda a qualquer complexo de culpa em virtude da escolha linguística, nem por isso lhe são indiferentes a problemática da transculturação linguística, o luto pela preterição da língua árabe e, sobretudo, a preocupação com a possibilidade de a expressão na língua estrangeira propiciar a construção de um projeto estético singular. Consequentemente, sua obra requer um leitor crítico, que o autor desperta do arrebatamento pelo enredo, da vigília tranquila de leitura, para o situar no ponto nevrálgico de um enunciado lido em língua francesa, mas que não cessa de abordar a heteroglossia dos discursos enunciados ou silenciados em outras línguas. Assim, a progressão narrativa, muitas vezes, é intercalada com passagens metalinguísticas, cujo propósito é enfatizar o lugar de enunciação na língua adotada por narradores e personagens, também naquelas que deixam de usar por causa de exclusão social ou preconceito linguístico. É evidenciada, igualmente, a enunciação nas interlínguas, no ato de se vivenciar, na chegada ao país estrangeiro, o descompasso enunciativo entre a língua aprendida formalmente, de forma livresca, e aquela das trocas simbólicas efetivas in loco. O narrador de L’Armée du Salut (2006TAÏA, Abdellah. L’Armée du Salut. Paris: Points, 2006. ), por exemplo, tendo suas primeiras experiências acadêmicas e eróticas na Suíça, impacta-se com uma realidade cultural que se revela “une autre réalité que celle qu’[il] avai[t] pendant des années imaginée à travers les films et les livres”2 2 Pela coerência com o escopo das análises, feitas a partir da materialidade linguística dos textos originais de Abdellah Taïa, não traduzirei os excertos de sua obra, apenas os das obras teóricas e críticas. (TAÏA, 2006TAÏA, Abdellah. L’Armée du Salut. Paris: Points, 2006. , p. 122). Portanto, a estética transcultural de Abdellah Taïa solicita uma

reflexão [que] implica pensar o transculturalismo para além da visão autonômica de língua enquanto sistema, compreendendo as múltiplas imbricações entre recursos verbais e estratégias enunciativas de naturezas diversas como uma dimensão constitutiva do discurso. (MELLO; ANDRADE, 2019MELLO, Ana Maria Lisboa de; ANDRADE, Antonio. Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras , 2019. , p. 11)

De fato, é constitutivo dessa estética assinalar que os usos linguísticos são volitivos ou impostos, e que o fato de serem um ou outro implica uma reflexão sobre as condições mesmas da possibilidade de narrar e, no caso das personagens, de tomarem a palavra ou de serem representadas num discurso em língua estrangeira que seja capaz de os contemplar enquanto sujeitos do erotismo. O romance Le Jour du Roi, de 2010TAÏA, Abdellah. Le Jour du Roi. Paris: Points , 2010., ilustra a relação entre diglossia e transculturação linguística do discurso sobre sexualidade. Nele, o narrador, que redige em francês, é empático com a personagem Hadda, mulher sudanesa, emigrada ao Marrocos e abusada sexualmente pelo patrão, opressão contra a qual ela até consegue expressar-se em árabe, porém se lhe impõe um silenciamento de outra ordem: não usar a língua da sua etnia, que nenhuma outra personagem da trama sabe falar. Assim, a cena translinguística ilustra um contato entre línguas cuja presença-ausência não consiste apenas em uma questão de domínio dos códigos e do contato entre eles, mas nas condições materiais e sociais de produção do discurso diaspórico. Desse modo, é para a tensão entre a transculturação linguística e a enunciação da personagem que o autor chama a atenção do leitor, por meio de um monólogo no qual o narrador concede o foco narrativo a Hadda, com focalização interna completa, captada em primeira pessoa:

Je dois parler. C’est ma dernière chance. Comme un petit enfant je dis par ma bouche des mots. Ils sont neufs. Je les dis en arabe : la langue qu’on m’a donnée malgré moi et qui cache les autres, celles des ancêtres encore vivants en moi. Je parle avec eux. Je les dis. Je les raconte. (TAÏA, 2010TAÏA, Abdellah. Le Jour du Roi. Paris: Points , 2010., p. 189)

Dessa maneira, o narrador, um letrado, atento ao seu papel de intelectual, alude ao silenciamento que, nas práticas textuais de transculturação, pode ocorrer no discurso dos narradores mais bem intencionados na representação de suas personagens, o que foi demonstrado por Gayatri Chakravorty Spivak no contexto indiano: “Certas variedades da elite indiana são, na melhor das hipóteses, informantes nativos para os intelectuais do Primeiro Mundo interessados na voz do Outro. Mas deve-se, não obstante, insistir que o sujeito subalterno é irremediavelmente heterogêneo” (SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010., p. 73). Então, ao resgatar a referência linguística da etnia de Hadda, o narrador é mais do que empático com a personagem: ele problematiza a concórdia do leitor com a transculturação linguística, isto é, questiona o contrato de leitura em língua francesa, introduzindo-o nos meandros heteroglóssicos do discurso. Nessa lógica, ele está longe de responder à pergunta Pode o subalterno falar?SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010., que intitula o ensaio homônimo de Gayatri Chakravorty Spivak. Antes, pelo contrário, indaga as condições mesmas de produção da sua fala, esquadrinhando o pavimento linguístico-enunciativo no qual camadas enunciativas em contato instauram relações de poder, exclusão, afirmação e alteridade.

Logo, nas situações translíngues das narrativas de Abdellah Taïa, o que se mostra relevante para os narradores-personagens árabes não é o domínio da língua francesa com vistas à sobrevivência na diáspora ou à expressão literária tout court, mas a elaboração de uma postura intelectual crítica ou, de modo específico, nas obras que serão tratadas neste artigo, a prática de um fazer literário que se interroga continuamente sobre seus lugares de enunciação nos textos expressos na língua do outro. Nessa perspectiva, as obras Le Rouge du Tarbouche (2004) e Celui qui est digne d’être aimé (2017TAÏA, Abdellah. Celui qui est digne d’être aimé. Paris: Seuil , 2017. ) são reveladoras de uma estética que se indaga sobre as formas de representação da experiência erótica transcultural. Antes de proceder à sua análise, discorrerei sobre o termo escrita corsária, operador crítico-analítico que acredito possa designar tal estética.

A escrita corsária

A palavra «corsário» provém do italiano, «corsaro», por sua vez derivada do latim, «cursus», que expressa os sentidos de viagem, rota e corrida. Le Rouge du TarboucheTAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche. Paris: Points , 2012., segunda obra do autor, publicada originalmente em 20043 3 A primeira edição foi publicada pela editora Séguier. A posterior, que utilizo, pela Points. e posteriormente em 2012, apresenta-se sob o signo da identidade transcultural, expresso pela imagem dos corsários. No incipit, o narrador, cujo foco narrativo são as impressões de seu primeiro retorno ao Marrocos após emigrar para a França, relativiza sua pertença identitária nativa, para, enfim, redescobrir-se como salatino: “Je suis un Slaoui: ce nom se prononce de la même façon, en arabe comme en français. Un Slaoui d’adoption seulement. Mais un vrai Slaoui dans l’âme et dans le coeur quand même” (TAÏA, 2012TAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche. Paris: Points , 2012., p. 9). A ambivalência identitária é destacada pois seus pais são originários da região de Tadla, embora ele tenha nascido em Salé. Preliminarmente, ele já se apresenta ao leitor como sujeito de um entre-lugar, o que é articulado como uma dupla ironia: ser nativo e sentir-se adotado; ter seu adjetivo gentílico pronunciado identicamente na língua nativa e na língua estrangeira de expressão - o que é próprio do sistema fonético -, mas fazer emergir da pronúncia um traço enunciativo: eis o dilema de Abdellah, que extrapola, como o narrador Omar, na passagem de Le Jour du RoiTAÏA, Abdellah. Le Jour du Roi. Paris: Points , 2010. analisada anteriormente, a dimensão sistêmica das línguas em contato. Dessa perspectiva, após rever suas origens, retrocede à Salé antiga, à época dos corsários, que atuaram na defesa do país contra os “mécreants européens qui envahissaient le monde pour le civiliser” (Ibid., p. 9). A evocação desse período da história marroquina, entre os séculos XVII e XVIII4 4 A data, informada na narrativa, confere com a do evento propriamente histórico. Os Mouriscos, expulsos da Espanha em 1609, no reinado de Filipe II, fixaram-se em diferentes cidades marroquinas. Em Salé, formaram a base da população urbana. Apenas a cinquenta léguas do Estreito de Gibraltar, instalaram seu arsenal a fim de realizar campanhas contra os cristãos (cf. MAZIANE, 2009). , evidencia algo do projeto escritural que Abdellah Taïa empreende em Le Rouge du TarboucheTAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche. Paris: Points , 2012., possibilitando ao autor extrair da atividade corsária uma alegoria de sua própria escrita. Assim, remetendo o leitor aos corsários de Salé, o autor informa-lhe que o Marrocos foi, no passado, um espaço transcultural por excelência e que os mouros salatinos foram também contadores de histórias:

Ils laissèrent surtout, bien ancrés dans la mémoire populaire, des contes incroyables, des histoires fabuleuses qui ne mourront jamais, des romans entiers dans les têtes folles des Slaouis qui se les passent d’une génération à l’autre. (Ibid., p. 9-10)

A intenção estética consiste, pois, em aclimatar o leitor à temática transcultural: é preciso imaginar os corsários narrando entre duas culturas e suas línguas, a árabe e a espanhola. O bilinguismo dos corsários seria, pois, uma inspiração contra uma possível assimilação cultural, já que o narrador redige a partir de sua imersão na cidade de Paris, onde projeta tornar-se escritor. Com efeito, essa alegoria permite reivindicar o hibridismo cultural como condição de uma escrita crítica; ela ilustra uma espécie de inscrição simbólica de uma obra literária por vir, da qual Le Rouge du TarboucheTAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche. Paris: Points , 2012. será apenas o segundo trabalho. E, em trabalhos posteriores do escritor, descobre-se que os narradores, não raro, tendem à metalinguagem, conduzindo o leitor pelos bastidores da escrita translíngue, na qual a autoficção intensifica o hibridismo identitário, convidando-o a partilhar de uma identidade em construção durante o processo de escrita. A autoficção, por seu desprendimento e ambiguidade identitários, servirá, enfim, à concepção de um projeto estético pelo prisma transcultural: o eu está livre para se inventar e se perder entre culturas.

Com os corsários, sem dúvida, aprende-se a aptidão para a perda labiríntica do eu, que deseja “dépasser l’horizon, atteindre la ligne bleue de l’Océan, annuler les frontrières, s’offrir nu au soleil et à ses rayons dorés (...), se perdre dans les labyrinthes invisibles (...), entrer dans le rêve éternel, dans les nuages du septième ciel” (Ibid., p. 10). O corsário, como sabemos, pode pilhar do outro o que lhe pertence. Proponho, a partir de uma analogia textual, que o narrador autoficcional apropria-se dos recursos do escritor, que se rende, cedendo-lhe a vida, a expressão e a(s) língua(s). Essa estratégia enunciativa constitui-se em uma pirataria autobiográfica, na qual um narrador, ao mesmo tempo fictício e referencial, pilha a vida do autor, que ele biografa e escamoteia. Essa pirataria autotextual constrói-se no interior da própria obra, praticando a autoderrisão, a autopilhagem da identidade e do estilo, o que pode ser entendido com Jacques Derrida: “la différance nous tient en rapport avec ce dont nous méconnaissons nécessairement qu’il excède l’alternative de la présence et de l’absence”5 5 “A différance vincula-nos a algo que, inevitavelmente, não sabemos que vai além da alternativa da presença e da ausência”. (DERRIDA, 1980DERRIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1980., p. 21). A escrita autoficional, derridianamente, libera o eu do compromisso de coincidir com a própria presença, e com a da própria obra: é como se o autor autoficcional prescindisse do princípio da identidade e devotasse seu fazer literário à différance, numa uma espécie de “jeu où qui perd gagne et où l’on gagne et perd à tous les coups”6 6 “(...) jogo no qual quem perde ganha e no qual se ganha e se perde sempre”. (Ibid., p. 21). Por conseguinte, a escrita corsária parte de sua autodesconstrução para desconstruir a língua do outro e a sua literatura.

Por isso, a alegoria dos corsários desautoriza qualquer leitura de Abdellah Taïa como um corsário ufanista defensor da nacionalidade de seu país. De fato, os corsários de Salé, os Hornacheros, em sua permanência na cidade espanhola de Hornachos, “contrairement à certains morisques, (...) avaient préservé la foi musulmane et faisaient usage de la langue arabe”7 7 “(...) ao contrário de alguns mouros, eles haviam preservado a fé muçulmana e faziam uso da língua árabe”. (MAZIANEMAZIANE, Leila. « Salé au XVIIe siècle, terre d’asile morisque sur le littoral Atlantique marocain ». Cahiers de la Méditerranée, n. 79, 2009, p. 359-372., op. cit., p. 361). A resistência cultural, em Le Rouge du Tabouche, é semelhante: não é uma defesa cultural contra o outro, mas com o outro, que constitui o discurso. É feito, então, um retorno crítico, sem nostalgia, a um elemento arcaico das literaturas árabes: a narrativa oral, mas a que se constitui pela heterogeneidade. Assim, os piratas contadores de Abdellah Taïa contribuíram para a formação de um repertório de topoi interculturais e diaspóricos: “Ils laissèrent derrière eux des bâtards, des prisonniers, des blondes à jamais captives, des scripteurs unijambistes, des trésors cachés dans le Haut Atlas, des orphelins et des veuves” (TAÏA, op. cit., p. 9). Um desses topoi é apropriado por Abdellah Taïa: a construção de personagens cujas vivências poderiam ser a de agentes históricos triviais, os bastardos (“bâtards”) da Literatura e da História, os que são preteridos, nas historiografias positivistas e progressistas, por sujeitos mais notáveis. Os corsários, em sua bastardia constitutiva, viveram seus amores com as “loiras capturadas” dos invasores europeus, com as quais tiveram filhos abandonados, o que, aliás, vai contra os preceitos marroquinos teocráticos. Destarte, intensifica-se a identificação de Abdellah com os corsários contadores, pois eles teriam agido tanto como marginais do amor quanto como contadores dos amores subalternos e transgressivos. Por esse motivo, a alegoria metalinguística executa outro ato de pirataria; ela encena um gesto narrativo de apropriação, vasculhando os “trésors cachés” dos corsários para os tornar matéria narrada e forma inspiradora. O autor, enfim, retoma traços da tradição oral para os estilizar na literatura escrita, segundo uma estética que procede ao resgate da história nacional, sem, contudo, sucumbir ao projeto da Nação.

Aqui, impõe-se um breve retorno ao debate sobre a nacionalidade e a possibilidade da sua expressão em língua francesa. Abdellatif Laâbi, intelectual marroquino emblemático do pós-independência, afirmou ser o colonialismo “une greffe à travers laquelle on recherchait l’annhilation de l’autre, l’assimilation de son corps au grand corps prétendu universel”8 8 “(...) um enxerto com o qual procurava-se nulificar o outro, assimilar seu corpo ao grande corpo pretensamente universal”. (LAÂBI, 1967LAÂBI, Abdellatif. « Réalités et dilemmes de la culture nationale ». Souffles, n. 6. Rabat: 1967, p. 31, 1967., p. 31). Portanto, fez-se necessário constatar a perenidade da epistemologia ocidental: “Les intellectuels marocains voulaient remettre en cause les sciences humaines coloniales dirigées par les savants coloniaux qui ont sondé le maghrébin à son insu”9 9 “Os intelectuais marroquinos queriam questionar as ciências humanas coloniais orientadas por pesquisadores colonialistas que estudaram o magrebino à sua revelia”. (MOUZOUNI, 1987MOUZOUNI, Lahcen. Le Roman marocain de langue française. Paris: Publisud, 1987., p. 11). Por outro lado, o conceito de escritura propiciou lidar com a dialética da colonização e “saisir chaque dans sa profonde originalité”10 10 “(...) considerar cada escritor em sua profunda originalidade”. (Ibid., p. 29). Sob essa premissa, escritores como Abdelkebir Khatibi, Tahar Ben Jelloun e o próprio Abdellatif Laâbi, representantes do colapso das grandes narrativas coloniais, ressignificaram a expressão em língua francesa, concebendo-a não como “un instrument véhiculaire, mais bien au contraire comme le lieu même de la création”11 11 “(...) um instrumento veicular, mas, ao contrário, como o próprio lugar da criação”. (Ibid., p. 29). Albert Memmi, por sua vez, levanta a polêmica do imaginário nacional: “faudrait-il traiter de la même manière la plupart des Maghrébins, malgré leur solidarité affirmée avec les leurs, le contenu manifeste de leurs œuvres, leur imaginaire si authentiquement africain... même s’il s’exprime en français”12 12 “(...) seria necessário tratar da mesma forma a maioria dos magrebinos, apesar de sua solidariedade afirmada com o seus, o conteúdo manifesto de suas obras, seu imaginário tão autenticamente africano... mesmo que ele seja expresso em francês”. (MEMMI, 1985MEMMI, Albert. Écrivains francophones du Maghreb. Paris: Seghers, 1985., p.13). A partir desse questionamento, o crítico define os escritores magrebinos, e a si mesmo entre eles, com o seguinte epíteto: “nous, écrivains de double culture”13 13 “(...) nós, escritores de dupla cultura”. (Ibid., p. 13). Fouad Laroui (2009LAROUI, Fouad. « La littérature marocaine d’expression française. Point de vue d’un écrivain ». Horizons Maghrébins - Le droit à la mémoire, n. 60, 2009. p. 98-112.), por seu turno, escritor da geração de 1980, quando desponta a questão do pós-moderno, enriquece o debate sobre as classificações das expressões em língua estrangeira da literatura marroquina, apresentando como argumentos a emergência das escritas minoritárias, como a feminina, e o uso crescente de outras línguas por escritores marroquinos (o próprio Fouad Laroui redige seus poemas em língua holandesa, reservando a francesa para a prosa romanesca). O autor defende um olhar que transcenda até mesmo a noção de literaturas marroquinas em língua estrangeira, e trate, mais coerentemente, de práticas literárias exigentes de categorias, para sua abordagem crítico-teórica, que vão além dos critérios de nacionalidade e da língua estrangeira adotada. A propósito, Ottmar Ette aponta o termo francofonia como uma armadilha classificatória, pois ela “ainda exibe um espaço literário monocêntrico”, mencionando o fato de editoras parisienses ainda serem ambicionadas pelos escritores de expressão francesa (ETTE, 2019ETTE, Ottmar. “As literaturas do mundo: condições transculturais e desafios polilógicos de um conceito prospectivo”. In: MELLO, Ana Maria Lisboa de; ANDRADE, Antonio. Translinguismo e poéticas do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019, p. 21-40. , p. 32).

A língua francesa como espaço de criação receptivo a imaginários heteróclitos transnacionais, sem a pretensão um imaginário essencialista, será, pois, uma prática textual desengajada na identificação a ideais monológicos: a Língua, a Literatura, o Sujeito, a Nação. O Marrocos pré-colonial já era um espaço narrativo transcultural em toda sua plenitude, visto que “a noção de que somente as cidades multiculturais do Primeiro Mundo são diasporizadas é uma fantasia que só pode ser sustentada por aqueles que nunca viveram nos espaços hibridizados de uma cidade ‘colonial’ do Terceiro Mundo” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da Diáspora. Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. , p. 114). Portanto, as condições de produção da escrita corsária de Abdellah Taïa são as mesmas das narrativas contadas e legadas pelos corsários de Salé: condições de heterogeneidade enunciativa em um contexto sistêmico translíngue.

Arabizando a língua de Jean Genet

O narrador de Le Rouge du TarboucheTAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche. Paris: Points , 2012. rememora, no episódio De Jenih à Genet, um momento de admiração pela língua francesa, que ele compreendia mal, e a descoberta da existência do escritor Jean Genet. Na ocasião, ele acompanhou sua mãe à cidade de Larache, em visita a uma prima, Malika, cujo filho mais velho era Ali e que a mãe incumbiu de conduzir a passeio Abdellah até o túmulo de Jenih, pronúncia arabizada da mulher para o sobrenome Genet. Ali “venait d’entrer à l’université pour étudier les lettres françaises, il était beau comme un dieu berbère” (TAÏA, op. cit., p. 49), e possuía uma proficiência linguística invejada pelo narrador: “Ali et son français qui faisait accroître mon admiration pour lui” (Ibid., p. 51). Abdellah, adolescente descobrindo a sexualidade, mal sabia que estava a um passo de descobrir, por meio de Ali, a vida e a obra de Genet, que ele acreditava ser um santo, conforme lhe havia dito Malika, que também não sabia tratar-se do escritor francês. Chegando ao cemitério onde se encontrava o túmulo, Ali revela a Abdellah a verdadeira identidade de Jean Genet, diz-lhe que este havia amado “les Marocains et surtout un, Mohamed Al-Katrini” (Ibid., p. 53), cujo corpo ali estava sepultado e ao lado do qual o amante francês fizera questão de também repousar. Então, Abdellah faz a seguinte pergunta a seu cicerone: “Jenih était donc amoureux d’Al-Katrani?” (Ibid., p. 53), por meio da qual, de modo substitutivo e implícito, indaga a si mesmo sobre o desejo que estava sentindo por Ali:

Ali: 19 ans. Moi: 13 ans. Ali et moi dans les rues vides de Larache - c’était l’heure sacrée pour les Marocains du déjeuner. Ali et moi seuls. Ali et moi sur un chemin mythique rempli de baraka. Ali qui me surveille, qui fait attention à moi, qui met son bras sur mon épaule. Ali pour moi. (Ibid., p. 51)

Logo, a aprendizagem transcultural extrapola a correção linguística, pois é a dicção do desejo que prevalecerá:

À l’inverse de sa mère, il ne disait pas Jenih mais Genet: je ne comprenais rien à rien. “C’est un saint chrétien?”, lui ai-je demandé. Il me répondit: “Non, non, c’est un écrivain français très important et très célèbre dans le monde entier... Il ne s’appelle pas Jenih comme dit ma mère, mais Genet, Jean Genet. Dis-le!” Je massacrai le nom de ce grand écrivain qui m’était complètement inconnu, Ali riait de ma prononciation. Et cela ne me vexait pas du tout : j’étais ravi de le voir heureux, ravi de voir et d’entendre son sourire. (Ibid., p. 52)

Dos inúmeros elementos acima expostos, destaco alguns que considero ilustrativos da relação intrínseca entre transculturação linguística e enunciação heterogênea na obra de Abdellah Taïa. O primeiro deles é a mitologia criada em torno da imagem de Genet, considerado um santo por Malika e Abdellah, e à qual o narrador associa a ideia de ambivalência cultural: “Une tombe musulmane dans un cimetière chrétien! Une tombe entre deux mondes, entre deux surfaces, entre deux pays. Une tombe émouvante qui aurait pu être celle d’un saint musulman et marocain (...)” (Ibid., p. 53). Essa dupla valência cultural atribuída a Jean Genet revela o quanto as identidades possuem de heterogêneo e ficcional no âmbito dos imaginários transculturais. O segundo elemento, por sua vez, diz respeito à diglossia, na qual o domínio da língua francesa é fator de distinção social na sociedade marroquina. Porém, ao mesmo tempo, recupera-se a dicção de Malika, “sa manière d’arabiser” (Ibid., p. 56) o sobrenome de Genet, por meio de permutas fonéticas. A passagem do significante Genet a Jenih explica-se pelo fato de não existir, no sistema vocálico da língua árabe, a vogal -e, tendo sido preservado apenas um deles na transliteração da pronúncia de Malika. E a consoante -t foi trocada por -h, cuja grafia simboliza o fonema [h] levemente aspirado, tão frequente no final de muitas palavras árabes. Além disso, a adição da letra -h cria uma semelhança gráfica entre os dois nomes: Abdellah-Jenih. Já o terceiro elemento é a utilização do substantivo “lettres” como metonímia de literatura, que remete a uma concepção canônica das belles-lettres francesas. No entanto, é desentronizando o cânone, recriando a língua do outro, que o narrador, anos depois, quando já havia planejado “apprendre à mieux connaître le français et la littérature française” (Ibid., p. 57), continuará a identificar-se com a dicção de Malika: “J’ai fini par comprendre toute l’histoire de Jenih. Je sais à présent bien écrire et bien prononcer son nom, même si au fond je reste fidèle à Malika et à sa manière d’arabiser et de s’approprier cet écrivain (...)” (Ibid., p. 56). O quarto elemento concerne à descoberta da sexualidade do narrador quando adolescente. Assim, o homoerotismo comparece na narrativa como uma questão enunciativa propriamente dita, ou seja, é como se o narrador adulto, no ato de enunciação de quem realiza e reafirma o projeto de tornar-se escritor de língua francesa, se perguntasse quais seriam as possibilidades de falar a língua do seu desejo dialogando com a obra de Jean Genet, submetendo-a a uma “mythologie personnelle”, ou seja, a uma outra enunciação:

À l’université la vie de Jean Genet me réservait encore une grande surprise. Abdallah le funambule! L’ami, l’amant, le fils, le compagnon, le disciple tendre et délicat... Voilà un garçon, découvert dans les livres, qui est entré immédiatement dans ma mythologie personnelle, dans mon coeur. Lui aussi, depuis 1964, vit dans l’autre monde, mais son histoire d’ici-bas est encore incomplète. Un jour je l’écrirai. (Ibid., p. 57)

Chegamos, então, ao último elemento: a referência à obra Le Funambule, de Jean Genet, dedicada a um amante marroquino, Abdallah, com quem o narrador de Le Rouge du Tarbouche se identifica não apenas em razão da homonímia, mas da posição de amante representado, o que não escreve. É como se a sua versão da história, a de um homem que amou e não simplesmente foi amado, estivesse para ser contada. De todo modo, invocando a presença árabe na obra do escritor francês - que, como sabemos, foi um crítico da França colonialista -, cultivando e recriando o seu idioma, identificando-se com a dimensão homoerótica e intercultural de sua obra, é que Abdellah Taïa fará que sua atividade de transculturação literária proponha uma leitura crítica do discurso erótico de Genet. É a isso que, por outro prisma, Ralph Heyndels aludiu ao conceber o relato De Jenih à Genet como uma “allégorie enfin du refuge offert à ceux qui sont rejetés dans l’ombre et la honte, les homossexuels. Ce n’est plus le tout jeune garçon de 13 ans qui parle, c’est l’auteur du Rouge du Tarbouche, l’écrivain qui, en quelque sorte, vient de naître sous nos yeux (...)”14 14 “(...) alegoria, portanto, do refúgio oferecido aos que são lançados à sombra e à vergonha, os homossexuais. Não é o rapazinho de 13 anos quem fala, é o autor de Le Rouge du Tarbouche, escritor que, de alguma forma, acabou de nascer diante de nós”. (HEYNDELS, 2009HEYNDELS, Ralph. « Entremêlements narratifs sur la tombe de Jean Genet, Abdellah Taïa et Rachid O. » In: BERTAUD, Madeleine (Org.). La Littérature française au croisement des cultures. Travaux de littérature. Genève: Droz, 2009. p. 473-481., p. 475). Enfim, o narrador, que, no início de Le Rouge du Tarbouche, interessou-se pelos “bastardos” dos narradores corsários, aqui se apropria da história não contada de Abdallah, resgatado como um bastardo legado pelo escritor Jean Genet, este corsário arabizante da literatura francesa.

Abandonando a língua de André Gide

Celui qui est digne d’être aimé, romance epistolar publicado em 2017TAÏA, Abdellah. Celui qui est digne d’être aimé. Paris: Seuil , 2017. , tem Ahmed como remetente ou destinatário das cartas. Seu conteúdo é a vivência da homossexualidade no Marrocos, assim como o resquício do colonialismo nas relações amorosas interculturais. A terceira é uma carta de abandono, que ele escreve a Emmanuel ainda enquanto está ao seu lado, na cama do casal:

Cher Emmanuel, ma décision est prise. Cette nuit, dans le lit à côté de toi, j’ai vu clair. Je sais maintenant ce que je dois faire. Je sors de toi et je sors de cette langue que je ne supporte plus. Je ne veux plus parler français. J’arrête de fréquenter cette langue. Je ne l’aime plus. Elle non plus ne m’aime plus. J’ai 30 ans. Je te connais depuis treize ans. Et là, maintenant, je n’en veux plus. Je ne veux plus vivre dans ton ombre. Je ne veux plus être guidé par toi, faire les choses selon toi. Être bien comme il faut : un Parisien comme les Parisiens, pas trop arabe pour toi et pour ton monde, pas trop musulman, pas trop de là-bas. (TAÏA, 2017TAÏA, Abdellah. Celui qui est digne d’être aimé. Paris: Seuil , 2017. , p. 81)

O fator desencadeante da ruptura é uma crise de ciúmes: Emmanuel começa a orientar a pesquisa de Kamal, outro estudante árabe, que, segundo Ahmed, acabaria por lhe tomar o lugar de companheiro. Emmanuel havia articulado a ida de Ahmed de Salé para Paris, manteve-o financeiramente, incentivou seu ingresso na carreira acadêmica. Mas Ahmed não se poupa, reconhecendo-se como um arrivista: “J’étais dans la stratégie. Tu dois captiver cet homme (...)” (Ibid., p 94). Na verdade, o que foi o estopim da crise trouxe à tona uma consciência da assimetria excludente entre os dois: “Rien à la base n’aurait pu nous rapprocher, nous réunir, nous mettre l’un en face de l’autre” (Ibid., p.86). A diferença identitária, em vez de ser dialógica, descambou para a anulação da alteridade, da qual Ahmed se assume partícipe: “Comment fait-on pour devenir à ce point-là aveugle, donner tout de soi à l’autre et à sa culture dominante?” (Ibid., p. 99). A carta deixa claro que ele havia começado, paulatinamente, a identificar na postura de Emmanuel um resíduo inconsciente do civilizador, do realizador de uma ação civilizatória sobre o outro, que chegou a iniciar uma pesquisa sobre “les expressions de la folie en terre d’Islam” (Ibid., p. 94). Impunha seu saber e sua língua, a ponto de haver pedido a Ahmed que adotasse o apelido de Midou, pois seu nome em árabe era-lhe de difícil articulação, estigmatizando também a pronúncia do companheiro: “Tu m’as corrigé tout de suite: ‘Mon français n’est pas bon’...” (Ibid., p. 94 - grifo do autor). A assimilação cultural, imposta pelo amante francês e aceita pelo marroquino, levou à perda de sua língua materna, o que ele lastima: “À 30 ans, je ne parle même plus l’arabe comme avant” (Ibid, p. 93).

Assim, Ahmed inicia uma crítica ao passado, intensificada no ritmo da redação da carta, que o leva a fazer uma analogia entre aquela relação amorosa e uma dominação política: “Avec le temps, j’ai fini par comprendre que j’étais non seulement un assisté mais également un colonisé” (Ibid., p. 101). Ironicamente, ele desnuda o companheiro de seu pretenso humanismo: “Tu n’es ni un raciste ni un conservateur, tu votes toujours à gauche et tu ne caches rien aux impôts. Pourtant, tu n’as eu aucun scrupule à reproduire sur moi, dans mon corps, dans mon coeur, tout ce que la France refuse de voir: du néocolonialisme” (Ibid., p. 104), neocolonianismo com o qual Ahmed reconhece ter sido conivente, pois se lembra de, no passado, ter apresentado uma comunicação na Universidade de Rabat sobre as experiências literárias e sexuais dos escritores Oscar Wilde e André Gide na Argélia. Com o distanciamento do passado, Ahmed critica sua “identification mystique, littéraire et sexuelle” com o escritor francês (Ibid., p. 118). E ele ressente-se, ainda, de um “oubli impardonnable”: não ter dado destaque para o “garçon arabe offert” por Wilde a Gide e que “devrait être le véritable héros” da história (Ibid., p 118). É o caráter libertário da obra homoerótica de André Gide, defensor de ideias igualitárias, que está em questão, pois contrasta com a objetificação do menino árabe, desconsiderado como sujeito. A revisão crítica do arabismo sexual do escritor europeu denuncia seu colonialismo, não sua obra, e tampouco promove uma demonização a priori do francês enquanto língua de expressão: “Au fond, je n’ai rien contre le français. J’ai en revanche de la haine pour le français tel qu’on l’a construit entre nous” (Ibid., p. 106).

Com efeito, a carta de Ahmed é um acerto de contas com o outro e, sobretudo, consigo mesmo. A ressignificação de posturas demonstra que as relações intersubjetivas e a crítica literária do presente podem reescrever o passado colonial. Os sentidos das obras e os imaginários veiculados por elas - como o sensualismo árabe e a estetização do corpo do subalterno em André Gide - são móveis, nunca estanques no tempo e no espaço. Ahmed reconsidera sua identificação a uma língua, a um país, a uma literatura, a uma visão do amor e da sexualidade, e o faz durante o processo de escrita, num ato presente de enunciação contínuo, expresso pela noção de continuidade da ação verbal no presente: “Je t’écris”. Esse ato repousa no paradoxo enunciativo e na saída simbólica de se permitir escrever na língua do outro e obrigar-se a abandoná-la, num gesto único: “Je t’écris et j’ose enfin passer à l’acte: sortir d’une langue qui me colonise (...)” (Ibid., p. 107). “Abandonar” a língua do outro não propicia reencontrar incólume a sua: essas parecem ser as condições mesmas da enunciação translíngue e da escrita corsária de Abdellah Taïa.

Referências:

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  • HEYNDELS, Ralph. « Entremêlements narratifs sur la tombe de Jean Genet, Abdellah Taïa et Rachid O. » In: BERTAUD, Madeleine (Org.). La Littérature française au croisement des cultures. Travaux de littérature Genève: Droz, 2009. p. 473-481.
  • HEYNDELS, Ralph; ZIDOUH, Amine (Org.). Autour d’Abdellah Taïa: poétique et politique du désir engagé Paris: Passages, 2020.
  • HALL, Stuart. Da Diáspora Org. Liv Sovik; Trad. Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
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  • LAROUI, Fouad. « La littérature marocaine d’expression française. Point de vue d’un écrivain ». Horizons Maghrébins - Le droit à la mémoire, n. 60, 2009. p. 98-112.
  • LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
  • MAZIANE, Leila. « Salé au XVIIe siècle, terre d’asile morisque sur le littoral Atlantique marocain ». Cahiers de la Méditerranée, n. 79, 2009, p. 359-372.
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  • TAÏA, Abdellah. L’Armée du Salut Paris: Points, 2006.
  • TAÏA, Abdellah. Celui qui est digne d’être aimé Paris: Seuil , 2017.
  • TAÏA, Abdellah. Le Jour du Roi Paris: Points , 2010.
  • TAÏA, Abdellah. Le Rouge du Tarbouche Paris: Points , 2012.
  • 1
    Em 1989, o pesquisador já havia escrito sobre o escritor. Cf. SILVA, Edson Rosa da. O Menino de areia: um romance árabe escrito em francês (ou os labirintos da escritura). Letras, Curitiba, v. 38, 1989, p. 157-166.
  • 2
    Pela coerência com o escopo das análises, feitas a partir da materialidade linguística dos textos originais de Abdellah Taïa, não traduzirei os excertos de sua obra, apenas os das obras teóricas e críticas.
  • 3
    A primeira edição foi publicada pela editora Séguier. A posterior, que utilizo, pela Points.
  • 4
    A data, informada na narrativa, confere com a do evento propriamente histórico. Os Mouriscos, expulsos da Espanha em 1609, no reinado de Filipe II, fixaram-se em diferentes cidades marroquinas. Em Salé, formaram a base da população urbana. Apenas a cinquenta léguas do Estreito de Gibraltar, instalaram seu arsenal a fim de realizar campanhas contra os cristãos (cf. MAZIANE, 2009MAZIANE, Leila. « Salé au XVIIe siècle, terre d’asile morisque sur le littoral Atlantique marocain ». Cahiers de la Méditerranée, n. 79, 2009, p. 359-372.).
  • 5
    “A différance vincula-nos a algo que, inevitavelmente, não sabemos que vai além da alternativa da presença e da ausência”.
  • 6
    “(...) jogo no qual quem perde ganha e no qual se ganha e se perde sempre”.
  • 7
    “(...) ao contrário de alguns mouros, eles haviam preservado a fé muçulmana e faziam uso da língua árabe”.
  • 8
    “(...) um enxerto com o qual procurava-se nulificar o outro, assimilar seu corpo ao grande corpo pretensamente universal”.
  • 9
    “Os intelectuais marroquinos queriam questionar as ciências humanas coloniais orientadas por pesquisadores colonialistas que estudaram o magrebino à sua revelia”.
  • 10
    “(...) considerar cada escritor em sua profunda originalidade”.
  • 11
    “(...) um instrumento veicular, mas, ao contrário, como o próprio lugar da criação”.
  • 12
    “(...) seria necessário tratar da mesma forma a maioria dos magrebinos, apesar de sua solidariedade afirmada com o seus, o conteúdo manifesto de suas obras, seu imaginário tão autenticamente africano... mesmo que ele seja expresso em francês”.
  • 13
    “(...) nós, escritores de dupla cultura”.
  • 14
    “(...) alegoria, portanto, do refúgio oferecido aos que são lançados à sombra e à vergonha, os homossexuais. Não é o rapazinho de 13 anos quem fala, é o autor de Le Rouge du Tarbouche, escritor que, de alguma forma, acabou de nascer diante de nós”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2021
  • Aceito
    19 Mar 2021
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