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Moralidade e responsabilidade em tempos sombrios

Morality and responsibility in somber times

Resumos

Este ensaio pretende discutir a questão da moralidade em tempos de crise a partir das contribuições do psicanalista inglês Donald Winnicott sobre o surgimento da preocupação-com-o-outro e da reflexão do sociólogo polonês Zygmunt Baumann sobre moralidade e responsabilidade. Concluímos com a sugestão de que nosso desafio talvez esteja exatamente no desenvolvimento de nossa capacidade de imaginação tendo como objetivo a superação da equação proposta entre proximidade-moralidade/distância-imoralidade. Talvez apenas o poder da imaginação, o poder com o qual uma pessoa consegue se imaginar no lugar da outra, possa nos dar alguma esperança, e possibilitar que, mesmo à distância, possamos nos sentir moralmente responsáveis uns pelos outros.

Moralidade; responsabilidade; proximidade; distância; imaginação


This essay aims at debating the morality issue from British psychoanalyst Donald Winnicot's point of view on the appearance of the concern for the other and Polish sociologist Zygmund Baumann's ideas on morality and responsibility. We close with the suggestion that our challenge might reside precisely in developing our imaginative capability in order to overcome the proximity-morality/distance-immorality equation. Perhaps only the power of imagination - "the power through which one person can imagine himself or herself in the other's place" - is able to give some hope and allow us to feel morally responsible for each other.

Morality; responsibility; proximity; distance; imagination


INTERFACES

Moralidade e responsabilidade em tempos sombrios

Morality and responsibility in somber times

Adriana Benedikt

Psicanalista, professora do Departamento de Comunicação da PUC/RJ

RESUMO

Este ensaio pretende discutir a questão da moralidade em tempos de crise a partir das contribuições do psicanalista inglês Donald Winnicott sobre o surgimento da preocupação-com-o-outro e da reflexão do sociólogo polonês Zygmunt Baumann sobre moralidade e responsabilidade. Concluímos com a sugestão de que nosso desafio talvez esteja exatamente no desenvolvimento de nossa capacidade de imaginação tendo como objetivo a superação da equação proposta entre proximidade-moralidade/distância-imoralidade. Talvez apenas o poder da imaginação, o poder com o qual uma pessoa consegue se imaginar no lugar da outra, possa nos dar alguma esperança, e possibilitar que, mesmo à distância, possamos nos sentir moralmente responsáveis uns pelos outros.

Palavras-chave: Moralidade, responsabilidade, proximidade, distância, imaginação.

ABSTRACT

This essay aims at debating the morality issue from British psychoanalyst Donald Winnicot's point of view on the appearance of the concern for the other and Polish sociologist Zygmund Baumann's ideas on morality and responsibility. We close with the suggestion that our challenge might reside precisely in developing our imaginative capability in order to overcome the proximity-morality/distance-immorality equation. Perhaps only the power of imagination - "the power through which one person can imagine himself or herself in the other's place" - is able to give some hope and allow us to feel morally responsible for each other.

Keywords: Morality, responsibility, proximity, distance, imagination.

Não temos nenhuma evidência de que alguém que não seja deficiente mental seja por constituição incapaz de desenvolver um senso moral(Donald Winnicott).

De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Baumann, a responsabilidade é o tijolo que constitui todo nosso comportamento moral e surge a partir de toda relação de proximidade do outro. Antes de toda e qualquer relação social, a moralidade é, antes de tudo, responsabilidade para com este próximo, condição de possibilidade para toda sociabilidade. A moralidade não é um produto da sociedade, mas algo que a sociedade manipula e direciona.

Uma vez que transformamos este próximo em um outro distante, em um estranho, podemos substituir a responsabilidade pelo ressentimento e, deste modo, suportar, sem nos sentirmos moralmente atingidos ou imorais, a injustiça, o sofrimento e mesmo a matança generalizada, como ocorreu durante o Holocausto. Neutralização, isolamento e marginalização do judeu ao lado, vizinho, amigo, foram imprescindíveis para que o aparato industrial, burocrático e tecnológico modernos pudessem ser acionados pelo Estado nazista com relação àquele judeu distante, retirado da vida cotidiana, isolado nos campos de concentração. A moralidade, diz Baumann, não ia tão longe. Ela tende a ficar em casa e no presente.

Deste modo, estamos em face de um duplo dilema: nossa moralidade primária desenvolve-se na proximidade com relação ao outro, mas a sociedade moderno-contemporânea cada vez mais constrói maiores distâncias entre os indivíduos que a compõem. É o que a psicanálise denomina de narcisismo das pequenas diferenças, que realimenta constantemente essa distância que nos faz sentir menos responsáveis uns pelos outros. Em tempos sombrios, é sempre bom refletirmos sobre o que nos torna humanos, próximos e distantes, morais e imorais. Em tempos de crise como a atual, é imprescindível que nos perguntemos sobre quem está próximo e distante. De algum modo, a sociedade brasileira, como qualquer um de nós, elege seus próximos e seus distantes.

Este ensaio pretende discutir a questão da moralidade em tempos de crise, a partir das contribuições do psicanalista inglês Donald Winnicott sobre o surgimento da preocupação-com-o-outro e da reflexão de Zygmunt Baumann sobre moralidade e responsabilidade. Concluímos com a sugestão de que nosso desafio talvez esteja exatamente no desenvolvimento de nossa capacidade de imaginação, tendo como objetivo a superação desta equação proximidade-moralidade/distância-imoralidade . Talvez apenas o poder da imaginação, o poder com o qual uma pessoa consegue se imaginar no lugar da outra, possa dar-nos alguma esperança e possibilitar que, mesmo à distância, possamos sentir-nos moralmente responsáveis uns pelos outros.

Em Desconstructing Harry, filme de 1997, recém-lançado entre nós, Woody Allen constrói um personagem que se autodefine como alguém absolutamente incapaz de viver a realidade cotidiana e que apenas se encontra em casa no terreno da ficção. Apesar disto, trata-se de um escritor em plena crise, no auge do que ele define como bloqueio criativo. Em sua vida afetiva, Harry Block apenas consegue acumular fracassos atrás de fracassos, em sua maioria devidos à crescente defasagem entre uma sexualidade desenfreada e uma moralidade aparentemente incapaz de contê-la.

De algum modo, podemos afirmar que Harry não encontra nenhum obstáculo para satisfazer seu 'apetite sexual', relacionando-se indiscrimi-nadamente com todas as mulheres a seu alcance. E, como ele mesmo afirma, quem são as mulheres disponíveis, senão as mais próximas? Mesmo que sejam irmãs, parentes e/ou pacientes de suas mulheres 'oficiais'?

Face à ausência de regras morais capazes de regular a sustentação das relações conjugais na sociedade contemporânea, Harry Block vê-se absolutamente inseguro quanto aos valores morais mínimos necessários para viabilizar uma relação afetiva mais duradoura. Incapaz de construir uma moralidade mínima para guiar sua relação com este outro-próximo, Harry adota duas estratégias: por um lado, estabelece relações cada vez mais puntuais com prostitutas, por outro, em função de seu bloqueio criativo, adota uma alternativa à la Proust, tornando sua própria vida, a matéria-prima de sua ficção. Com isso, além de não conseguir superar sua falta de criatividade, ele acaba atraindo para si a ira de todos os personagens aparentemente 'reais' de sua vida. A revelação pública de tudo aquilo que fora experimentado de forma íntima e privada, por ele e por todos aqueles com quem convivera ao longo dos anos, torna-se alguma coisa efetivamente a mais, excessiva para todos, desencadeando uma série de situações que a todo momento vão ultrapassando o tênue limite entre o privado e o público, o individual e o coletivo, a ficção e realidade, o cômico e o trágico. É precisamente por colocar em questão estas distinções bipolares que este filme pode servir de um instrumento privilegiado para esta breve reflexão sobre as interconexões entre psicanálise e sociologia nos dias de hoje.

1- Uma primeira questão refere-se a esta necessidade crescente de exposição pública da vida íntima e pessoal. De algum modo, podemos observar que cada vez mais o indivíduo torna-se o único responsável pela tarefa de construir sua individualidade de modo "livre e autônomo", contando cada vez menos com as instituições que tradicionalmente sustentavam social e politicamente essa tarefa. Na verdade, instituições como família, religião, partidos e o próprio Estado, que, outrora forneciam minimamente as bases de sustentação para a construção social das identidades, encontram-se, na atualidade, crescentemente desprovidas de qualquer legitimidade social, tornando-se, deste modo, frágeis bases de apoio para dar conta desta tarefa vital para os indivíduos: a construção de sua própria individualidade.

Uma tarefa que exige, de um lado, uma certa igualdade e/ou uniformidade, para que o indivíduo possa garantir minimamente a sua aceitação perante seus pares, e de outro lado, uma certa singularidade, uma diferença básica capaz de sustentar sua personalidade como algo único.

De acordo com a leitura feita por Bauman sobre o trabalho de Niklas Luhmann (Luhmann, 1986), a condição existencial do indivíduo moderno é de um constante deslocamento e mobilidade, decorrente da passagem da sociedade pré-moderna estratificada para uma sociedade moderna funcionalmente diferenciada. Trata-se de uma existência em que todos os indivíduos estão deslocados de forma permanente.

São estranhos em toda parte e, apesar dos seus esforços em contrário, em todos os lugares. Não há um só lugar na sociedade em que estejam realmente à vontade e que possa lhes conferir uma identidade natural. A identidade individual torna-se portanto algo a ser ainda alcançado (e presumivelmente a ser criado) pelo indivíduo envolvido (Bauman, 1999, p. 211).

O indivíduo moderno encontra-se, assim, envolto em uma tarefa hercúlea, pois, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que precisa definir uma diferença única e estável entre sua própria pessoa e o mundo social, é totalmente indispensável que este mundo mais amplo, face ao qual precisa se diferenciar, reconheça, aprove e confirme sua própria identidade pessoal. Deste modo, se, por um lado, é imprescindível constituir-se como indivíduo autônomo e diferenciado, por outro lado, esta tarefa não pode constituir-se de forma absolutamente autônoma e diferenciada, sem colocar em risco seu próprio propósito. Ou seja, construir uma identidade social supõe o cumprimento de duas tarefas simultâneas; por um lado, o desenho de uma individualidade capaz de diferenciar-se suficientemente de seus pares para obter o reconhecimento desta distinção e, por outro lado, capaz de possibilitar o fortalecimento dos laços sociais em função de sua conformidade a alguns valores sociais considerados básicos e comuns para a definição dos membros capazes de pertencer àquela comunidade.

Para Bauman, o paradoxo desta individualidade que só pode ser construída pela confirmação social é o fundamento existencial do que ele denomina de competência especializada, ou seja, um sistema composto por uma série de especialistas que, escudados em alguma ciência e/ou técnica, exercem a função de mediadores capazes de gerenciar estas exigências paradoxais. Como sabemos, ao longo dos primeiros três quartos do século XX, a teoria e a técnica psicanalíticas lograram alcançar um lugar excepcionalmente privilegiado, senão quase único, entre os bens e serviços capazes de atender a estas necessidades que eram outrora satisfeitas pelas relações amorosas, ainda segundo a análise de Luhmann, interpretada por Bauman.

2- Uma segunda questão refere-se à individualidade hoje. Se, como aponta Richard Sennett, o declínio do homem público, produziu um indivíduo extremamente sequioso de seu mundo interior, devotado a dedicar-se por longos períodos ao seu autoconhecimento, recorrendo, para este objetivo, aos profissionais competentes legitimados pela sociedade contemporânea, notadamente os psicanalistas, atualmente o que se observa é uma profunda transformação no próprio modo de exercício psicanalítico, tanto por parte dos profissionais como dos próprios 'clientes'.

A psicanálise deixou de ser a instância privilegiada para lidar com as questões vinculadas à subjetividade e ao tratamento desta intimidade supostamente interiorizada e privada, passando a dividir esta tarefa com outras práticas legitimamente reconhecidas pela sociedade contemporânea.

Não se trata mais de eleger o psicanalista como aquele único ser capaz de dar conta da esfera íntima e pessoal, por sua especialização e conhecimento da teoria e da técnica psicanalíticas, por sua vez eleita como a mais competente para tratar de tais assuntos.

A questão não é mais a do autoconhecimento, da revelação dos desejos mais profundos do sujeito, ocultos no interior de uma interioridade íntima, mas a do reconhecimento pelo outro de que temos uma subjetividade, uma diferença que apenas pode fazer-se perceptível ao se expor, ao se expressar e, mais do que tudo, exteriorizar-se.

Não se trata mais da questão da criação ou da auto-invenção, mas trata-se de um modo específico de constituição das subjetividades, que passa, na prática, pelo reconhecimento do outro. Um outro que não é mais aquele outrinho das relações familiares e próximas, ou aquele Grande Outro das leis simbólicas, que podia ser projetado na figura do psicanalista, mas sim deste outro tão fragmentado e diluído, que apenas pode constituir-se nos moldes das próprias relações produzidas na e pela mídia. Cada vez mais é preciso sermos reconhecidos pelos meios de comunicação de massa, reconhecimento este que, por sua vez, faz-se através de um modo bastante peculiar, o modo do consumo. É somente ao nos revelarmos capazes de consumir não apenas os bens e produtos, mas basicamente os padrões de comportamento, opiniões e atitudes veiculados pelos meios de comunicação de massa, que podemos ser reconhecidos como um outro, diferente ou igual - já não importa tanto, pois tanto a diferença como a igualdade já se encontram filtradas pelos próprios meios de comunicação -, pela mídia. Ou seja, por um público. Nas sociedades das imagens ou nas sociedades de consumo, é aquilo que consumimos que produz tanto a diferença quanto a igualdade. Deste modo, Harry nada mais faz do que atuar o que podemos chamar de modo contemporâneo de construção das subjetividades: quanto mais externalizável e publicizável for o que outrora era tido como íntimo, privado e pessoal, mais reconhecimento se obtém, e é apenas este tipo de reconhecimento que pode conferir-nos uma sensação mínima de identidade, íntima e fugidia, como qualquer outro produto da mídia, em uma sociedade das imagens e de consumo.

3 Uma terceira questão refere-se aos tênues limites entre ficção e realidade nos dias de hoje. Quando Harry se diz um incapacitado para a vida real, e todos rimos, nosso riso nervoso apenas denota um reconhecimento público da difícil tarefa de viver em nossas sociedades contemporâneas. Viver é, antes de mais nada, um grande risco.

Ou melhor, viver na realidade é o grande risco, pois nosso mundo, hoje, apenas nos oferece imagens e bens de consumo efêmeros. O que dizer de tudo aquilo que conferia solidez ao mundo de nossos antepassados? O que dizer da possibilidade de termos confiança na vida e uns nos outros, em um mundo no qual a incerteza e a imprevisibilidade são a base de tudo? Mais do que isso, o que dizer das relações construídas entre os homens, em um mundo dominado por um mercado cada vez mais flexível, móvel e globalizado? Como construir uma ética humana possível, uma moralidade que possa escapar ao impasse proximidade/ responsabilidade-distância/ ausência de preocupação moral, abordada acima?

De acordo com as idéias do filósofo suíço Emmanuel Lévinas, retomadas por Zygmunt Bauman, nosso mundo moral se constrói inicialmente a partir da relação entre-dois, entre eu-e-outro.

É precisamente neste espaço de proximidade que nossa responsabilidade para com esse outro próximo surge e é constantemente realimentada. O berço da ética reside, assim, nesta relação inicial, ainda despida de toda sociabilidade maior. Poderíamos aproximar as idéias de Lévinas às do psicanalista inglês Donald Winnicott, que também constrói sua teoria sobre o nascimento da ética humana a partir da relação dual entre a mãe-e-seu-bebê. Para Winnicott, a fonte de nossa capacidade de nos preocuparmos com relação ao outro reside na relação primária entre a mãe e a criança.

Partindo do mito de origem construído por Freud para explicar a ansiedade e a culpa - a experiência da criança pequena que necessita aprender a lidar com seus "impulsos biologicamente determinados" de amor e ódio em um meio-ambiente familiar e vivendo uma situação triangular, isto é, a relação mãe-pai-bebê, Winnicott recua no tempo, situando a possibilidade de um desenvolvimento moral 'espontâneo' - simultaneamente natural-e-cultural - na relação dual entre a mãe e o bebê. É no interior dessa relação que podemos observar o surgimento da capacidade de preocupar-se com relação a esse outro que cuida, protege e nutre, ou seja, em cada lactente e criança podemos observar como o sentimento moral "se desenvolve de modo cru de algo semelhante ao relacionamento de um ser humano reverenciado, um que pode compreender e perdoar [supostamente a mãe suficientemente boa] " e outro, o bebê, que é cuidado, alimentado, compreendido e perdoado em seus sentimentos ambivalentes de amor-e-ódio (Winnicott, 1983, p. 22, grifos nossos ).

Face aos conflitos entre os sentimentos de amor e ódio nutridos pela criança com relação, inicialmente, à mãe e, apenas posteriormente, em relação ao pai - sentimentos que não necessariamente precisam reduzir-se aos desejos incestuosos e edipianos -, Winnicott descreve o sentimento de culpa como a capacidade de tolerância e contenção do conflito inerente à "vida normal".

Nesta perspectiva, a culpa, para Winnicott, expressaria a capacidade de nos preocuparmos com o outro, sendo um elemento positivo e constitutivo de um desenvolvimento moral 'espontâneo' - 'espontaneidade' apenas passível de ocorrer em um ambiente suficientemente bom. Um ambiente que já envolve o natural e o cultural pois, no pensamento winnicottiano, não há possibilidade de opormos natureza e cultura, indivíduo e sociedade, precisamente porque só há indivíduo em relação com o meio-ambiente.

Este, composto pela relação suficientemente boa que a mãe estabelece com o bebê, constitui-se já enrodilhado no caldo da cultura e da sociedade.

A partir deste solo comum entre os pensamentos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e o psicanalista inglês Donald Winnicott sobre o surgimento do sentimento moral, gostaríamos de tecer algumas reflexões acerca da moralidade possível em nossa atualidade. De algum modo, em ambos os pensadores, coloca-se a questão das possibilidades de que esta relação moral, nascida da reunião de dois, possa sobreviver à intrusão de um terceiro, ou seja, do mundo social propriamente dito. Como preservar a moralidade nascida da proximidade, em um mundo no qual o grande desafio é o desenvolvimento de uma responsabilidade moral, não apenas com relação ao outro próximo, mas, fundamentalmente, com relação a este outro distante, sem rosto?

Como traçar metas mínimas com relação à moralidade possível hoje, em um mundo no qual observamos uma defasagem cada vez mais surpreendente entre o absurdo crescimento das conseqüências de qualquer ação dos homens e a ausência de uma expansão semelhante da capacidade moral humana?

Em um mundo no qual assistimos à derrota gradual de todas as crenças que sustentavam o chamado projeto moderno - em poucas palavras, o esforço de produzir a ordem em detrimento de tudo o que não pode ser previamente definido ou planejado, eliminando todo e qualquer traço de ambivalência - entre elas, a crença na universalidade do homem e no governo da razão esclarecida como substituto de toda e qualquer orientação moral, não podemos simplesmente nos negarmos a ensaiar nossos primeiros passos no cumprimento desta tarefa moral, simplesmente por constatarmos sua enormidade e complexidade.

Como pensar uma moralidade mínima, já que perdemos todas as ilusões na possibilidade de construirmos valores morais universais, válidos para todos os tempos e lugares? Uma moralidade que, apesar de não ser universal, tampouco se traduza na simples adequação a regras burocráticas, em uma sociedade cada vez mais de risco. Ou ainda, que possa preservar a equação entre segurança-e-liberdade, típica do projeto civilizatório moderno, sem colocar em risco nem as demandas individuais de singularidade, nem tampouco as condições que asseguram uma qualidade de vida, não apenas para a espécie humana, mas também para as outras espécies que co-habitam nosso planeta.

Independente de quaisquer questões ligadas à possibilidade ou impossibilidade das relações amorosas ou de amizade no mundo de hoje, como pensar na construção de uma ética das relações humanas capaz de conferir maior dignidade e sustentação a algumas idéias que podem interessar-nos preservar, a despeito da falência das instituições - família, tradição, política, social, etc. - que as veicularam em sua origem?

Como estar em casa em um mundo de párias, turistas e vagabundos?

Neste mundo real, talvez nossa única opção seja mesmo o poder da imaginação, ou seja, o poder que cada um de nós possui de nos colocarmos no lugar do outro, de sentirmos suas dores como se fossem nossas, de rirmos de nossas próprias dores como se fossem de outrem ou de olharmos para as pequenas tragédias que nos abatem como se tivessem ocorrido há muitos anos atrás. Como propõe o escritor israelense Amós Oz, o único remédio contra o fanatismo é a possibilidade de desenvolvermos cada vez mais a tolerância. Além do poder da imaginação, talvez, apenas o poder do riso possa contribuir ativamente para a construção de um mundo moralmente mais tolerante. Nas palavras de Oz,

o humor é um grande redentor - alguém capaz de rir de si mesmo deixa de ser um fanático. O bom humor, afinal, contém relativismo, e o relativismo talvez seja capaz, até certo ponto e em alguns casos, de nos ensinar a superar nossa loucura (Amós Oz, carta a Kenzaburo Oe, publicada no jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 10 de janeiro de 1999).

É o que também parece dizer-nos nosso Harry Block/ Woody Allen. Nada como o mundo da ficção, para nos possibilitar o exercício da imaginação, da tolerância e da capacidade de olharmos com humor para nós próprios e aqueles que nos rodeiam, próximos e/ou distantes.

Se 6 milhões de judeus morreram no Holocausto, isto não confere a ninguém nenhuma garantia ética, seja como vítima, seja como carrasco. Os records estão aí para serem quebrados, alerta-nos Harry Block. Nada nos garante que, se não formos atentos, não poderemos enquanto humanidade repetir os mesmos erros e até superarmos nossos próprios records de desumanidade e amoralidade.

De algum modo, o mundo da ficção nos permite exercitar o poder da imaginação sem necessariamente termos que arcar com as conseqüências de nossos atos. E, nesse sentido, talvez, possa cumprir um papel fundamental na construção de uma moralidade possível nos dias de hoje. Nele talvez possamos discutir e preservar minimamente alguns dos valores humanos que consideramos desejáveis e necessários para a preservação de relações mais dignas e solidárias entre os homens.

Para Harry, um artista, um escritor que vive em terras nova-iorquinas, em plena Manhattan, a grande saída é a ficção que ele mesmo produz. No século do cinema e da televisão, na sociedade das imagens onde, na metáfora de Jean Baudrillard, não existe mais o espaço da ilusão, fundamental para qualquer distinção entre mundo imagético e mundo da realidade, vivemos todos imersos em uma hiper-realidade capaz de minar qualquer possibilidade criativa. Nessa sociedade, até a ficção artística é um bem a ser consumido, e o consumimos desbragadamente como qualquer outra droga, com o intuito de buscar um prazer imediato, quando qualquer outro de maior duração tornou-se inviável. Deste modo, a desconstrução de Harry, o seu desnudamento, humilhação, descida aos infernos e mesmo sua prisão, tornam-se elementos fundamentais para que ele possa finalmente voltar a criar e a escrever.

Através de sua desconstrução, de sua humilhação e principalmente de sua descida aos infernos, Harry alcança a liberação do mundo real, não pelo perdão que ele concede ao próprio pai ou pela bênção que concede ao amigo Larry - que o trai ao seduzir sua namorada -, mas pelo reconhecimento e aprovação de seus próprios personagens de ficção: ao reunir todos os personagens de sua obra - seja de vida, seja de arte - em um ato de comemoração e de reconhecimento de si mesmo.

Neste momento, vida e arte se misturam, os personagens de ficção somam-se às figuras de sua vida real, em um ato de celebração, não apenas de seu criador - o escritor de ficção, Harry Block - mas, fundamentalmente, do próprio fazer artístico, que, no caso específico, reúne, de forma excepcional, imaginação, tolerância, antifanatismo, relativismo, e, humor!!!

O reconhecimento que, finalmente, libera e desconstrói Harry, possibilitando-lhe retornar à sua vida criativa, é o reconhecimento que seus próprios personagens lhe oferecem. Personagens nos quais vida e arte se confundem e que, no final, concedem-lhe o tão ansiado perdão, pronunciado de forma mais veemente através de uma estudante de sua obra, que lhe diz que, por detrás de sua aparente tragédia e tristeza, oculta-se um humor e uma alegria sempre presentes, capazes de fazer com que, se Harry, na vida real, apenas é capaz de magoar aqueles com quem se relaciona - suas mulheres, parentes, os judeus -, no mundo da ficção, torna-se capaz de fornecer-lhes um bem precioso, a graça de dar gargalhadas, de rir de outrem e de si mesmos.

Desconstruir Harry é, deste modo, um processo de expiação que acaba revelando que, por detrás de toda angústia e de toda tragédia do homem contemporâneo, são nossos risos que levaremos conosco. Como nos diz um outro personagem seu, em Crimes and misdemeanours [1989], o cômico é a capacidade de rirmos da tragédia um tempo depois, capacidade esta apenas sustentada pelo poder da imaginação, o único capaz de nos fazer, mesmo em face desta hiper-realidade, buscar construir um mundo melhor mesmo que, inicialmente, apenas no mundo da ficção. E se pudermos, pelo menos, dar boas gargalhadas, talvez possamos também exercer ativamente nosso poder de imaginação, colocando-nos no lugar uns dos outros, mesmo distantes, mesmo sem rostos.

Lembrando-nos de Dostoiévski, outro grande artista que colocou a questão da moralidade no centro de sua obra ficcional, quem sabe possamos sentir-nos moralmente comprometidos com este outro distante, pois, se Deus não existe, tudo nos é possível, desde o ato mais vil até o ato mais nobre. Se Deus não existe, apenas nós, humanos, podemos responsabilizar-nos por nossos semelhantes e dessemelhantes, próximos e distantes, pois, em suma, somos todos responsáveis por todos, por todos os homens perante todos, e eu mais que os outros.

  • ALMEIDA, Mendes de, ISABEL, Maria. Notas sobre a desconstrução sociológica da ilusão psíquica. In: Psicanalítica.- Revista da SPRJ, vol. I, número 1, 1998.
  • BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. RJ: Jorge Zahar Editora, 1998.
  • __________. Modernidade e holocausto RJ: Jorge Zahar Editora, 1998.
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  • LUHMANN, Niklas. Love as passion: the codification of intimacy. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1986.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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