Acessibilidade / Reportar erro

Por uma sociologia do segundo escalão

For a sociology of the lower ranks

RESENHA

Por uma sociologia do segundo escalão

For a sociology of the lower ranks

Marcelo Carvalho Rosa

Doutorando em Sociologia no IUPERJ

RESUMO

Esta resenha busca ressaltar a importância da mais recente publicação do sociólogo Antônio Cândido. Em "Um funcionário da Monarquia", ao contrário das opções mais usuais, Cândido não se ateve a retratar a "boa sociedade" que circundava os palácios do Rio de Janeiro, nem as senzalas que configuram seu antagônico sociológico estrutural. Ao privilegiar o processo de ascensão social pelo emprego público de Francisco Nicolau Tolentino, um funcionário de origens humildes que chegou a presidir a província do Rio de Janeiro, a obra foge dos estereótipos tradicionais que sustentam muitas das interpretações do Brasil, permitindo à sociologia contemporânea romper com seus dualismos tradicionais.

Palavras-chave: biografia, monarquia, sociologia brasileira.

ABSTRACT

This review aims at underscoring the importance of Sociologist Antonio Cândido's most recent work. In "Um funcionário da monarquia" (The monarchy's servant), differently from the most usual options, Cândido conformed to portraying neither the "good society" that circulated in Rio de Janeiro's palaces nor the slave quarters, which are the former's structural sociological antagonist. When stressing Nicolau Tolentino's process of social rise by means of public position of Francisco — he was a worker with a humble background that once was even at the presidency of Rio de Janeiro province — the work escapes traditional stereotypes that sustain many of the interpretations about Brazil, allowing contemporary sociology to break out of its traditional dualisms.

Keywords: biography, monarchy, Brazilian sociology.

Um Funcionário da Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão

CÂNDIDO, Antônio. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2002. 213 pp.

Do Brasil do século XIX muito já foi explorado. Seja pela sociologia ou mesmo pela história, temos hoje um quadro bastante denso da estrutura social vigente nas écadas posteriores à independência. Privilegiando como temas centrais o jogo político comandado pelas poderosas elites agrárias do Império e a escravidão como regime econômico e social, as ciências sociais estabeleceram uma tradição que logo foi convertida em um conjunto de rótulos para este período histórico. Familismo, patriarcalismo e estamentos, categorias forjadas para dar conta dos fenômenos sociais desse tempo, tornaram-se aos poucos elementos obrigatórios em qualquer compêndio sobre o assunto.

Fruto de um longo e arguto trabalho de pesquisa documental de mais de uma década "Um Funcionário de Monarquia: ensaio sobre o segundo escalão", a mais recente publicação de Antônio Cândido, surge para dar novo brilho a estes já desbotados bordões acadêmicos. Finalizado em 1985, o estudo foi replicado apenas em algumas cópias que circularam entre amigos do autor e familiares do personagem central da obra. Enviado por um desses amigos de Cândido à revista londrina Portuguese Studies, o trabalho foi publicado em língua inglesa em 1988. Somente agora, mais de 17 anos depois de finalizado, "Um funcionário..." ganha sua primeira edição em português pela editora Ouro sobre Azul. Uma belíssima obra que põe lado a lado o singelo texto de Antônio Cândido, suas fontes documentais e uma coleção de paisagens que retratam o Rio de Janeiro imperial.

Longe de pretender revisar nossos cânones, o consagrado sociólogo e crítico literário busca, através de um texto leve e conciso, na biografia de um funcionário do Império recuperar traços fundamentais e ainda pouco trabalhados de uma época crucial da nação brasileira.

Ao contrário das opções mais usuais, Cândido não se ateve a retratar a "boa sociedade" que circundava os palácios do Rio de Janeiro nem as senzalas que configuram seu antagônico sociológico estrutural. Seguindo um caminho, de certo modo próximo àquele desenvolvido por Franco (1983), Antônio Cândido dedicou-se aos indivíduos intermediários, ou seja, àqueles que, por circunstâncias diversas, costumeiramente não se enquadram nos estereótipos e, por isso, permitem à sociologia romper com seus dualismos tradicionais.

Um self-made man brasileiro

A biografia de Francisco Nicolau Tolentino (1810-1884) nos é apresentada por Antônio Cândido através das únicas referências que um não-membro da elite nacional poderia ter, qual seja, seus empregos públicos. Nascido no lugarejo de São Gonçalo na província do Rio de Janeiro, este filho de lavradores humildes foi criado, como era costume à época, por uma tia solteira. Sem história familiar, a primeira referência documental a sua vida é um requerimento reproduzido por Antônio Cândido no qual, aos dezesseis anos, solicita diretamente ao Imperador um lugar não remunerado, como estágio probatório à carreira regular de funcionário na Secretaria da Mesa de Consciência e Ordem.

Em um documento datado de 1837, Cândido encontra outra referência a Tolentino já com vinte e sete anos e trabalhando como segundo escriturário da Contadoria Geral do Tesouro Nacional. Nesta época, morava com a tia e irmã na cidade do Rio de Janeiro. Tinha ainda uma filha com uma chapeleira italiana "mulher honesta e por mim teúda e manteúda" (como constava de seu testamento). Daí por diante as referências documentais multiplicam-se acompanhando sua rápida ascensão burocrática. Foi promovido a oficial maior e condecorado com a Ordem de Cristo em 1843. Em 1845, foi conduzido como inspetor interino da Alfândega do Rio de Janeiro. Este cargo, como ressalta Cândido, continuaria a ser, após a saída do funcionário Nicolau Tolentino, ocupado apenas por "políticos de primeiro plano", como o fora até então.

Na década seguinte, sua ascensão seria ainda mais espantosa. Em 1850, tornou-se contador-chefe e chegou ao penúltimo posto da carreira no serviço público. Nesta época, ele e sua nova e legítima esposa, filha de uma importante família de Barões do café, já figuravam nas colunas sociais da época. Logo a seguir, foi nomeado para a Junta de Crédito que iria amortizar a dívida do recém independente Uruguai para com o Brasil. Mudou para Montevidéu e assumiu pela primeira vez um cargo não exatamente burocrático. Esta missão de Estado, segundo Cândido, teria contribuído para que Tolentino estreitasse seus laços com as principais lideranças políticas de sua época, que muito o compensariam no futuro.

Na volta ao Brasil, três anos depois, foi nomeado Vice-presidente da Província do Rio de Janeiro, tendo, logo a seguir, assumido a Presidência no lugar do titular que se afastou para tomar assento como deputado geral. Mais uma vez, Nicolau Tolentino passou a ocupar posição que não tinha no seu histórico a presença de um não-político e, como frisa Antônio Cândido, é preciso lembrar que àquela época ser político era quase sinônimo de ser nobre.

Nas palavras do autor: "Essa ascensão quase brilhante possibilitava a Tolentino a passagem definitiva de categoria social, a instalação nas camadas mais altas, que requeria o apagamento das marcas iniciais" (p. 33). E ele assim o fez. Afastara-se da mulher italiana, encontrando uma esposa que pertencia a uma nobre família de latifundiários do Rio de Janeiro. Mesmo não tendo nascido na "boa sociedade" de seu tempo, o conselheiro Tolentino teve, através da carreira burocrática bem sucedida, a oportunidade de ingressar nos círculos mais restritos da sociedade de Corte

Ressaltando as habilidades sociais que levaram Tolentino a estar muito próximo dos "donos do poder" (p. 11), Antônio Cândido presta a devida reverência aos clássicos do pensamento social brasileiro e, ao mesmo tempo, imprime uma nova direção ao sentido desses estudos. O caráter biográfico da obra permite ao leitor compreender a dificuldade de operar, no caso brasileiro, com categorias pré-concebidas como a de "estamento", por exemplo. O razoável sucesso de um funcionário de carreira do serviço público, que certamente não era uma regra naquele momento de nossa história, contribui para a compreensão de que a sociedade imperial brasileira era mais permeável do que costumamos pensar.

Ao revelar uma certa maleabilidade da elite em aceitar "homens de sucesso", mas sem passado, Antônio Cândido aproxima-se muito da descrição de Florestan Fernandes (1976) sobre a formação do espírito burguês no Brasil. Para Cândido, "o comportamento burguês no Brasil moderno" configurou-se também "a partir do recrutamento de pessoas das camadas modestas que, à medida que iam recebendo as vantagens da ascensão, assimilavam os interesses, o ideário e o modo de viver das camadas dominantes, perdendo qualquer veleidade potencial (estruturalmente viável) de se tornarem antagônicas a elas" (p. 14).

Recuperando o argumento que se encontra presente em Florestan Fernandes (op. cit.), Antônio Cândido reforça a tese de que a "revolução burguesa" foi no Brasil um processo lento e forjado pelo contato intermitente entre a elite agrária e as camadas inferiores da época. A lenta mudança em direção ao que alguns autores insistem em chamar de moderno dava-se pela assimilação e não por um imaginário confronto de classes à européia.

Para Cândido, se a competência profissional podia granjear a estima dos líderes, ela, dialeticamente, conduzia a conflitos com a própria engrenagem do patronato, que era essencial à atuação desses líderes (p. 9). Não raro, desavenças com importantes chefes políticos trouxeram permanentes reveses à Trajetória de Tolentino.

Um dos embates mais destacados por Cândido ocorreu quando, depois de um ano de afastamento, Tolentino foi novamente conduzido a Presidência da Província do Rio de Janeiro. Por ter neutralizado as disputas políticas, sua gestão anterior fora marcada por um certo clima ameno. Seu segundo mandato, no entanto, foi marcado pela tentativa de estabelecer um polêmico plano de racionalização do serviço público, cuja base era a implantação de um regime meritocrático de ingresso e ascensão nesta carreira. Antônio Cândido faz questão de lembrar que aquela era uma "sociedade de favor", e as medidas propostas por Tolentino mexiam consideravelmente na própria noção do que se pensava como serviço público: um meio legítimo de as elites agrárias e senhoriais espraiarem seus domínios para o Estado em formação (Franco, 1983).

O espírito, por assim dizer, liberal das propostas de Tolentino não vinha, na obra de Cândido, de uma inspiração iluminista ou americanista, como no caso de Rebouças, estudado por Carvalho (1998). O desprendimento que permitia a Tolentino elaborar um plano de racionalização do serviço público através de um incipiente princípio de meritocracia era produto de sua própria posição social. Uma posição que, por definição, encarnava as ambigüidades de sua época. Ao mesmo tempo em que foi socialmente constrangido a se tornar um "homem de bem", ou seja, aceito pela nobiliarquia, ele, provavelmente, não compartilhava do sistema de crenças que imperava naquele grupo. Suas reconhecidas habilidades administrativas contrastavam com o desconforto em lidar com as armadilhas do familismo que regia o jogo político. Contratempos administrativos que, para um homem bem nascido, poderiam ser facilmente superados, apelando-se para seus méritos de origem, ganhavam para Tolentino uma feição muito mais complexa e, às vezes, aterradora.

Ao chegar à presidência da mais importante província do Império, as ambigüidades da posição social de Tolentino revelaram-se intransponíveis. No auge do conflito com a assembléia provincial, que rejeitara peremptoriamente sua intenção racionalizadora, ele foi acusado em plenário de ser um "obscuro funcionário" que num ato "considerado petulância intolerável" queria "executar o que estadistas poderosos não tinham conseguido" (p. 68).

Como as linhas de Antônio Cândido nos revelam, Tolentino corrompeu os limites da tolerância dos nobres em relação aos comuns e pagou por isso com o cargo do qual foi obrigado a se afastar "voluntariamente". Para seu lugar, como num recado revelador, nomeou-se "um homem 'bem nascido', bacharel por São Paulo, fazendeiro rico, deputado geral, casado num dos clãs mais poderosos da província" (p. 86).

Depois de deixar a presidência, Tolentino, apesar de suas desventuras, ainda mantinha alguns dos amigos e admiradores do tempo de Montevidéu e, por meio dessas influências retornou ao controle da corrupta alfândega da cidade do Rio de Janeiro. Neste cargo permaneceu menos de um ano, sendo demitido pelo Imperador, depois de uma grave contenda pública com uma das figuras mais importantes daquele período.

Sua demissão decorrera da publicação nos jornais de uma carta, na qual Tolentino, defendendo-se de um ataque de um Senador do Império, acusou-o de "miserável", rompendo, assim, com uma cadeia de procedimentos próprios da nobre etiqueta da época. Para a imprudência de Nicolau Tolentino a única explicação encontrada por Cândido "é uma espécie de pânico interior, seguido de explosão, no homem que, tendo conquistado dificilmente a respeitabilidade burguesa, guardava no íntimo a insegurança das origens sociais humildes" (p. 100).

Eis então o traço social definitivo que distinguia o protoburguês Tolentino, de seus nobres contendores: a insegurança. Para um nobre, as funções públicas eram penduricalhos que intermediavam suas carreiras políticas. Perdendo a contenda para Tolentino, o Senador poderia ter sua reputação pública um pouco abalada, sem, no entanto, destituí-lo da segura condição política e familiar que o pusera naquele posto. Já para um homem comum, a acusação de improbidade seria um ataque mortal à sua honra e a seus pouco méritos.

Já nos momentos finais da obra, Antônio Cândido frisa que "morto, um homem desses acaba rapidamente, porque funcionou num escalão secundário, que não dá ingresso à História". De certa forma, podemos dizer que o ocaso social destes homens em seu tempo reflete-se na pouca atenção que lhes é dedicada pelas investigações voltadas à compreensão desse momento, seja como gênese, seja como período intermédio da sociedade brasileira e dos muitos enigmas que ainda a rondam. Gostaria humildemente por isso de completar essa afirmação, lembrando que, até a publicação de "Um funcionário da Monarquia", o escalão secundário também não fornecia acesso aos tratados sociológicos sobre a formação do Brasil. Trata-se, portanto, de um exemplar a ser saudado pela sua qualidade analítica e narrativa e, principalmente, pela retomada de um legado, iniciado por Florestan Fernandes (op. cit.) que revela, através de uma sociologia objetiva, pontos obscuros da tênue e sempre contínua mudança social no Brasil.

Referências

CARVALHO, M. A. R. de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1976.

FRANCO, M. S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2004
  • Data do Fascículo
    2003
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revsoc@ufrgs.br