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A quantificação como objeto sociológico

Este número de Sociologias oferece aos seus leitores o dossiê “Quantificação, Estado e participação social: potenciais de um campo emergente”, coordenado por Alexandre de Paiva Rio Camargo, Renato Sérgio de Lima e Daniel Veloso Hirata. Apresentando as perspectivas de análise da sociologia da quantificação, sua abordagem geral realça o potencial do tema para revisitar debates teóricos e questões empíricas que atravessam diferentes áreas acadêmicas e sociais, com ênfase na violência e na segurança pública, nas relações étnico-raciais, na educação e nos movimentos sociais. O propósito da publicação é de “apresentar e fortalecer o emergente campo da sociologia da quantificação e suas perspectivas de análise no meio das ciências sociais brasileiras, em contribuições reunidas pela primeira vez em um número temático de uma revista em língua portuguesa” (Camargo; Lima; Hirata, neste dossiê). Ressalta-se, portanto, o ineditismo dessa empreitada intelectual.

Este ramo da sociologia tem sido influenciado por vários autores ao longo dos últimos quarenta anos, tendo produzido obras de referência em várias áreas do conhecimento. Camargo, Lima e Hirata (neste dossiê), de forma abreviada, destacam alguns trabalhos sobre o papel do cálculo de probabilidades e da noção de risco na formação das ciências humanas e na racionalização da vida social, sobre controvérsias públicas e a imposição da definição de situação pelos “centros de cálculo”, como nos estudos etnográficos de laboratório de Bruno Latour, e nos estudos sobre identidade, raça e etnicidade, revelando o papel dos censos e suas classificações na instituição de novas categorias de pessoas.

No marco das produções recentes no âmbito da sociologia da quantificação destaca-se, dentre outras, a contribuição de Alain Desrosières (19931 DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres. Histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 1993.; 19952 DESROSIÈRES, Alain. Classer et mesurer: les deux faces de l’argument statistique. Réseaux, v. 13, n. 71, p.11-29, 1995.; 20084 DESROSIÈRES, Alain. Statistique I. Pour une sociologie historique de la quantification. Paris: Presses des Mines, 2008.; 2014)5 DESROSIÈRES, Alain. Pouvoir et gouverner. Une analyse polítique des statistiques publiques. Paris: La Découverte, 2014., intelectual francês, estatístico e sociólogo, influenciado pelas reflexões de autores como Mauss, Durkheim, Bourdieu, Deleuze e Foucault, que se interessou pela relação entre a estatística e as ciências sociais. Nesse contexto, esse autor e outros intelectuais franceses começam a se preocupar com a gouvernance des nombres, voltando seus interesses de pesquisa para a estatística como instrumento não somente de prova, mas também de gestão e ação públicas; ou investigando como “cifras, indicadores, índices, porcentagens, taxas e médias compõem o arsenal de provas e inferências de elites técnicas e científicas, extravasando o âmbito de aplicação para o qual foram inicialmente criados para transformarem-se em categorias de percepção de múltiplos atores” (Camargo; Lima; Hirata, neste dossiê). No Brasil, Camargo, Lima e Hirata (na apresentação deste dossiê) destacam a contribuição de outros autores acadêmicos que, ao mesmo tempo, integraram ou dirigiram agências de produção de dados do país (por exemplo, o IBGE), tendo suas preocupações com a divisão do trabalho estatístico refletido nessa inserção. Mais recentemente, os estudos sobre “governamentalidade algorítimica” e a difusão do benchmarking no Estado e no serviço público também passaram a interessar cientistas sociais, inclusive no Brasil1 1 Na apresentação do dossiê pelos coordenadores – e no conjunto de artigos apresentados – pode ser encontrada uma ampla revisão dos trabalhos no campo da sociologia da quantificação. .

A sociologia da quantificação tem como foco de análise a relação entre a formalização dos instrumentos ou dos modelos estatísticos com o espaço social no qual os mesmos são produzidos, e, segundo os coordenadores deste dossiê, colocam em questão a performatividade dos números na vida pública e privada, seu uso como ferramenta de coordenação social, seus efeitos sobre a distribuição de recursos, conhecimentos e oportunidades, sua reatividade sobre as pessoas, transformando os modos como elas pensam e agem sobre si mesmas, sozinhas ou em relação com os outros. A sociologia da quantificação parece ter transformado profundamente a percepção da relação entre a estatística e a política.

As diferentes formas da estatística em diversos países desde o século XIX permitem compreender como o Estado participa do processo de construção de um espaço de equivalências cognitivas elaboradas com fins práticos, para descrever as sociedades, geri-las ou transformá-las (Souza, 20176 SOUZA, Antônio P. de. A sociologia da quantificação de Alain Desrosières: novos modos de dominação, de gestão e de governança neoliberal. Trabalho apresentado no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia. Anais... Brasília, DF, 26 a 29 de julho, 2017..). Os dados estatísticos são geralmente utilizados e transportados por agentes múltiplos e a lógica do Estado consiste em forjar instrumentos para a ação pública. Esta atividade é definida como a arte de raciocinar com os números sobre objetos relativos à governabilidade. Para Desrosières (1993)3 DESROSIÈRES, Alain. Historiciser l’action publique: l’Etat, le marché et les statistiques. In: LABORIER, Pascale; TROM, Danny (coord.). Historiciser l’action publique. Paris: PUF, 2003., a lógica cognitiva e a lógica da ação pública seriam inseparáveis, tendendo a competência técnica a ser incorporada pelo Estado por intermédio de técnicos que tendem a agir como economistas.

Nesse contexto, o propósito deste dossiê é o de debater as transformações do Estado e as modalidades de participação social, do ponto de vista de sua ancoragem nos números públicos e da produtividade política da estatística, com o fim de descortinar novas possibilidades de crítica do presente e de governabilidade do futuro, demonstrando o potencial dos estudos da quantificação para a renovação dos debates teóricos e das questões empíricas que atravessam diferentes temas na área da sociologia, com ênfase na violência e na segurança pública, nas relações étnico-raciais, na educação e nos movimentos sociais. Para Camargo, Lima e Hirata, o momento singularmente difícil que o país atravessa aponta para o reforço da vocação da quantificação como uma “conversa vibrante que cruza diferentes campos, ampliando sua caixa de ferramentas para a compreensão da realidade”. A pandemia de Covid-19 que assola o mundo e de forma mais intensa ainda o nosso país, e a recente inviabilização do Censo de 2020, que arriscam “mergulhar o país no obscurantismo e na ignorância dos aspectos mais básicos de qualquer política populacional”, têm destacado o papel das formas de quantificar na gestão e na vivência das crises como experiência coletiva.

Esperamos que este dossiê contribua para fomentar o debate sociológico em um campo promissor e relevante, ainda carente de investigações e espaços de reflexão no Brasil.

Na seção Artigos, este número de Sociologias inicia com o texto de Felipe Maia, intitulado “Crise, crítica e reflexividade: problemas conceituais e teóricos na produção de diagnósticos de época”. Nele o autor discute o conceito de crise, muito utilizado em “diagnósticos de época”, à luz da bibliografia recente em sociologia, buscando ampliar o esclarecimento sobre o sentido que o conceito assume na teoria social, reconhecendo que permanece incerta sua relação com problemas funcionais e normativos, assim como sua própria utilidade para a qualificação do tempo histórico. O artigo faz uma comparação entre as abordagens de Reinhart Koselleck e Jürgen Habermas, que são mobilizadas para se pensar as possibilidades de desenvolvimento do conceito de crise. O autor argumenta que este conceito deve ser compreendido no escopo de teorias dos processos e mudanças sociais, referindo-se a momentos específicos no tempo em que se conjugam problemas normativos e funcionais, sem que isso implique um pressuposto dualista de percepção do mundo social, sob os critérios de instabilidade e estabilidade. Argumenta ainda que, embora a história dos conceitos afirme a relação entre crítica e crise, é prudente evitar a convergência entre os dois conceitos e situar a crítica como um dos modos possíveis de reflexividade em períodos de crise, o que traria vantagens para uma melhor compreensão das possibilidades da teoria crítica e da crítica social em tempos de crise.

Na sequência, Valesca Daiana Both Ames e Marilis Lemos de Almeida, em “Indígenas e ensino superior: as experiências universitárias dos estudantes Kaingang na UFRGS”, discutem a política de ações afirmativas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que, segundo as autoras, mesmo representando um momento enriquecedor, tanto para os estudantes quanto para a própria instituição, tem trazido muitos desafios. O artigo analisa as experiências universitárias de alguns estudantes Kaingang na UFRGS – etnia que representa 85% dos alunos indígenas ingressantes na instituição. Mais especificamente, examina como esses alunos acompanharam os conteúdos de seus cursos de graduação e como se relacionaram com colegas não indígenas e com professores. Os resultados mostram as dificuldades no uso, reprodução e apropriação dos conhecimentos acadêmicos enfrentadas pelos indígenas na tarefa de se tornarem estudantes universitários, bem como o tipo e a qualidade das relações estabelecidas com colegas e professores. As autoras concluem que o processo de aprendizagem do ofício de estudante é mais árduo e lento para os estudantes indígenas, tendo em vista suas baixas expectativas de ingresso no ensino superior, devido a sua formação escolar precária, à falta de diálogo intercultural na universidade e às situações preconceituosas e discriminatórias vivenciadas no interior da Universidade.

“Stuart Hall: Marx, Gramsci y la cuestión de la crisis”, de autoria de Jorge Daniel Vásquez, é o terceiro artigo desta seção. O objetivo aqui é delinear duas perspectivas para a análise do neoliberalismo a partir do pensamento de Stuart Hall. Nesse sentido, o autor reconstrói a aproximação de Hall com o pensamento de Marx e Gramsci, assim como sua análise da crise da sociedade britânica como fenômeno cultural, social e político em suas obras Policing the crisis (1978) e The hard road to renewal (1988). Este artigo busca complexificar a leitura tanto do “momento althusseriano” como o da “mirada gramsciana” de Hall para compreender os principais dilemas teóricos dos anos de 1970-80. O autor do artigo também destaca o lugar do racismo e da produção de sentido comum como pilares da análise da crise de hegemonia.

Léo Peixoto Rodrigues e Everton Garcia da Costa tecem algumas reflexões, a partir de uma abordagem sociológica, acerca do impacto da pandemia de Covid-19 sobre o funcionamento dos sistemas e subsistemas sociais. Para dar conta desta proposta em “Impacto da pandemia de Covid-19 ao sistema social e seus subsistemas: reflexões a partir da teoria social de Niklas Luhmann”, os autores se ancoram nos pressupostos teórico-epistemológicos da teoria social desenvolvida pelo sociólogo alemão, principal expoente do pensamento sistêmico nas ciências sociais, defendendo o argumento de que a pandemia do novo coronavírus causa uma perturbação sistêmica que impacta profundamente o funcionamento de toda a sociedade global, bem como, por meio de seus sistemas e subsistemas sociais, impõe uma série de desafios à reprodução da vida social.

No último artigo desta seção, intitulado “Evidências da anomalia e atipicidade da Política de Ciência e Tecnologia nos discursos de gestores de agências de inovação”, Ana Carolina Spatti, Milena Pavan Serafim e Renato Peixoto Dagnino discutem como a comunidade de pesquisa, que abrange profissionais dedicados ao ensino, pesquisa e/ou fomento e planejamento da Ciência e Tecnologia (C&T), com participação hegemônica na conformação da Política de Ciência, Tecnologia (PCT) brasileira, fazem valer seu modelo cognitivo no processo decisório dessa política. Os autores concluem que a PCT é caracterizada e condicionada por duas dinâmicas: a anomalia genérica e a atipicidade periférica, a primeira sendo evidenciada pela crença dos dirigentes no benefício infinito da tecnociência, de sua neutralidade e do seu determinismo, e a segunda ressaltada pela convicção na emulação da PCT dos países de capitalismo avançado, dos quais os gestores internalizam critérios de qualidade e relevância para a conformação de suas agendas de C&T. Essa racionalidade vai sendo reproduzida, de maneira ampliada e em escala institucional, na forma de percepções deslocalizadas da produção científica e tecnológica.

Na seção Interfaces, Sílvia Maria Agatti Lüdorf, em “A caminhada como prática de resistência: uma análise a partir da visão sociológica de David Le Breton”, analisa como a caminhada, uma das práticas corporais mais elementares, pode ser considerada uma prática de resistência, a partir da visão sociológica de Le Breton. Com base em fontes documentais e entrevistas com o autor, foram desenvolvidos dois eixos de análise: o primeiro explora a caminhada como forma de resistência a determinados aspectos da sociedade contemporânea, que privilegiam a velocidade, o efêmero e o caráter utilitário das relações e emoções; no segundo, a caminhada emerge como uma forma satisfatória de desaparecer de si, diante da resistência à imperiosa necessidade de lidar com diferentes identidades imposta pela sociedade. Segundo a autora deste artigo, estudar a caminhada nessa perspectiva pode colaborar para o repensar das lógicas presentes em torno das práticas corporais e – por que não? – presentes em nosso enraizamento social. Portanto, refletir sobre aspectos sociológicos fundamentais ligados a “ser corpo” é mais que pertinente quando valores associados ao ritmo vertiginoso de nossa existência estão sendo colocados em xeque.

Na sequência, na seção Resenhas, este número de Sociologias traz o texto de Pedro Frizo e Wagner Nascimento sobre a obra de Hartmut Rosa “Aceleração: a transformação das estruturas temporais na modernidade” (Editora Unesp, 2019). Centrado na revisitação da modernidade a partir de uma perspectiva temporal, Hartmut Rosa sustenta o conceito de aceleração social como aspecto fundante do projeto moderno. Explorando diferentes variáveis causais para o conceito da aceleração social, a resenha examina as transformações das instituições morais, valorativas e políticas ocorridas ao longo do desenvolvimento histórico da modernidade como episódios induzidos pela obsolescência. Sendo esta um produto de campos de ação crescentemente cambiantes e acelerados, o autor da obra mobiliza esse conceito para fundamentar inédita proposta de diferenciação entre a modernidade e a modernidade tardia como momentos históricos calcados em diferentes níveis de compressão espaço-temporal, estabilidade institucional e temporalização de projetos individuais e coletivos de futuro.

Na segunda resenha, Vinicius Madureira Maia apresenta e discute os dois últimos volumes de “Teoria dos sistemas na prática, de Niklas Luhmann, publicados pela Editora Vozes em 2019 e 2020. A trilogia foi editada a partir da seleção e tradução de nove estudos — igualmente distribuídos em cada edição — de um conjunto de vinte e seis trabalhos publicados por Luhmann ao longo, sobretudo, das décadas de 1980 e 1990. Voltados à análise detida de conceitos clássicos da tradição sociológica, os textos reunidos revelam a percepção epistemológica luhmanniana de que transformações das estruturas sociais — no caso, a transição da sociedade estamental do Antigo Regime para a sociedade moderna, sob a perspectiva de um primado da diferenciação funcional dos sistemas sociais — acarretam necessariamente transformações das estruturas semânticas. Em tese, tais implicações reclamam das ciências sociais uma teoria unificada e condizente com a sociedade moderna, acautelada contra a imposição de pregressas convenções conceituais.

Tenham todos uma boa leitura.
O Editor

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    Na apresentação do dossiê pelos coordenadores – e no conjunto de artigos apresentados – pode ser encontrada uma ampla revisão dos trabalhos no campo da sociologia da quantificação.

Referências

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    DESROSIÈRES, Alain. La politique des grands nombres Histoire de la raison statistique. Paris: La Découverte, 1993.
  • 2
    DESROSIÈRES, Alain. Classer et mesurer: les deux faces de l’argument statistique. Réseaux, v. 13, n. 71, p.11-29, 1995.
  • 3
    DESROSIÈRES, Alain. Historiciser l’action publique: l’Etat, le marché et les statistiques. In: LABORIER, Pascale; TROM, Danny (coord.). Historiciser l’action publique Paris: PUF, 2003.
  • 4
    DESROSIÈRES, Alain. Statistique I Pour une sociologie historique de la quantification. Paris: Presses des Mines, 2008.
  • 5
    DESROSIÈRES, Alain. Pouvoir et gouverner Une analyse polítique des statistiques publiques. Paris: La Découverte, 2014.
  • 6
    SOUZA, Antônio P. de. A sociologia da quantificação de Alain Desrosières: novos modos de dominação, de gestão e de governança neoliberal. Trabalho apresentado no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia. Anais.. Brasília, DF, 26 a 29 de julho, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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