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Batuko: alma dum povo! Vivências do batuko cabo-verdiano no período pós-independência

Batuko: a people’s soul! Cape Verdean batuko experiences in the post-independence

Resumo

Batuko, gênero músico-coreográfico de Cabo Verde – país localizado na costa ocidental africana, criado pelos africanos negros escravizados, após a independência do país em 1975 – passou por um processo de revalorização e vem sendo visto pelas batukadeiras como possibilidade de se tornar um projeto profissional. Neste artigo, viso reconstruir as múltiplas dinâmicas sociopolíticas do batuko entrecruzadas com dois momentos socio-históricos e políticos da historiografia oficial de Cabo Verde, tendo como material as narrativas e trechos de vivências das batukadeiras do coletivo de São Martinho Grande, resultantes de pesquisa etnográfica realizada em 2008. O primeiro momento se centra no período pós-colonial, após a independência de Cabo Verde em 1975. E, o segundo, no período pós-abertura política com a democratização do sistema político-partidário a partir de 1991 e, com isso, a criação de bases para a revalorização e circulação das artes musicais tidas como tradicionais. Sinalizo que as narrativas das minhas interlocutoras permitem perceber não só o efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da nação nas suas vivências do batuko, mas também os efeitos nos modos como se inscrevem como mulheres batukadeiras e almejam o projeto profissional: vir a ser artistas profissionais.

Palavras-chave
batuko ; Cabo Verde; batukadeiras de São Martinho Grande; empresarialização do batuko

Abstract

Batuko, a musical-choreographic genre from Cape Verde, a country located on the west coast of Africa, created by enslaved black Africans after the country's independence in 1975, underwent a process of revaluation and has been seen by batukadeiras as a possibility for professionalization. In this article, I aim to reconstruct the multiple sociopolitical dynamics of batuko intertwined with two socio-historical and political moments in the official historiography of Cape Verde, having as material narratives and reported experiences of batukadeiras of the collective of São Martinho Grande, which stem from an ethnographic research carried out in 2008. The first moment focuses on the post-colonial period, after independence of Cape Verde in 1975. The second one, on the period following political opening, with democratization of the political party system as of 1991, which set the bases for revaluation and circulation of traditional musical arts. The narratives of my interlocutors reveal not only the effect of hegemonic narratives that conform the national identity in their experiences of batuko, but also the effects on the ways they see themselves as batukadeiras women and aspire to become professional artists.

Keywords
batuko ; Cape Verde; batukadeiras de São Martinho Grande; of batuko

Introdução

O batuko1 1 Para mais aprofundamentos sobre Batuko, cf. Semedo (2009, 2013, 2020). foi criado em Cabo Verde2 2 Cabo Verde, país africano, composto por dez ilhas, sendo nove habitadas, encontra-se localizado a cerca de 500 km da Costa Ocidental Africana. Descoberto em 1460 pelos portugueses, o país conquista a independência em 1975. Atualmente, conta com 498.063 habitantes e, com mais homens (250.262) do que mulheres (247.801 mulheres) (INE, 2021). pelos negros em condição de escravos durante o processo de colonização e se enraizou na Ilha de Santiago. Segundo estudos históricos, em Cabo Verde, a escravidão esteve vigente até meados do século XIX e, conforme as literaturas histórica e folclorista, a convivência da prática do batuko protagonizado pelos negros escravizados com os brancos europeus e, particularmente, com a Igreja enquanto instituição reguladora das práticas dos sujeitos, não foi em nenhum momento pacífica (Gonçalves, 200614 GONÇALVES, Carlos. Kab Verd Band. Praia: Instituto Arquivo Histórico Nacional, 2006.; Nogueira, 201521 NOGUEIRA, Gláucia. Batuku de Cabo Verde: percurso histórico-musical. Praia: Edições Pedro Cardoso, 2015.). Ao invés, relações de repressão e de proibição permeavam a convivência, numa tentativa de aniquilar, apagar os traços diacríticos do coletivo colonizado e instituir as lógicas do colonialismo e do imperialismo português. Há registros da publicação de um edital no Boletim Oficial nº 13, de 31 de março de 1866, cuja finalidade visava a proibição da prática do batuko e da tabanka por serem formas de

divertimento que se opõe à civilização atual do século, altamente inconveniente e incómodo, ofensivo da boa moral, ordem e tranqüilidade publica, sendo de toda a conveniência social reprimir de uma vez para sempre aqueles, na maior parte praticado por escravos, libertos e semelhantes, tanto por que tal divertimento do povo menos civilizado, não convém que seja presenciado por pessoas honestas e de bons costumes, aos quais chamaria ao campo da imoralidade e da embriaguês; como porque incomoda os habitantes pacíficos que se querem entregar durante a noite ao repouso e sossego em suas habitações

(Cabo Verde, 18665 CABO VERDE. Boletim oficial nº 13, de 31 de março de 1866. Praia: República de Cabo Verde, 1866.).

Gênero músico-coreográfico associado a mulheres e homens de coletivos populares, o batuko caracteriza-se por um canto antifonal acompanhado por fortes e ensurdecedoras percussões numa espécie de tambor – o tchabeta – que dão pulsão ao ku torno. Ku torno consiste na dança que as mulheres/homens fazem no momento auge do batuko e, que se traduz pelo requebrar da cintura, dos quadris, das coxas, do baixo corporal. Ao fazerem a dança requebram e realçam a parte inferior do corpo feminino e, como o termo diz “dão com o torno, com a cintura”. Raramente os homens se encontram a dar ku torno e, quando tal acontece, reações de várias índoles desembocam. Se, para alguns (tanto homens quanto mulheres), há uma demarcação dos limites de territorialidade da atuação masculina no fazer batuko – eles podem participar tocando alguns instrumentos musicais (cimboa, violão) ou cantando, mas não podem dar ku torno –, para outros (homens e mulheres), é aceite o trânsito dos homens no batuko, ao ponto de, algumas batukadeiras verem o ku torno dado pelos homens como mais bonito e melhor do que o das mulheres. Em relação à configuração espacial e corporal, essa é caraterizada por mulheres e homens que se sentam em círculo ou arco com o tronco um pouco inclinado, pernas esticadas e cruzadas. A disposição na roda não se dá em função de um estatuto social no coletivo ou uma escolha individual, mas pelo tipo de sonoridade produzido: bambam ou rapicada. A fim de se obter e conservar um equilíbrio entre as sonoridades do tchabeta, da cantadeira e o compasso do ku torno, os ritmos percussivos são alternados: bam-bam, rapicada, bam-bam, rapicada, bam-bam ad infinitum (Semedo, 200928 SEMEDO, Carla. Mara sulada e dã ku torno: performance, gênero e corporeidades no coletivo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., 201327 SEMEDO, Carla. Noções estéticas na performance do Batuko: experiência etnográfica entre as batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago - Cabo Verde). In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Edições Marca Visual, 2013. p. 109-142., 2020)26 SEMEDO, Carla. As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano. Hawò, v. 1, p. 1-34, 2020..

O olhar da igreja sobre a dança ku torno3 3 A expressão é produzida dentro do léxico e da gramática do crioulo cabo-verdiano, a língua de conversação usada em Cabo Verde, cuja tradução para o português seria: dar com o torno. O ku torno remete à parte coreográfica do batuko, pois este é composto pelas partes melódica e coreográfica. e sua sensualidade, tidas como “uma obscenidade”, era visível quando do recurso ao poder simbólico do batismo: salvar almas pecaminosas para sancionar os que praticavam o batuko. O poder dessa violência simbólica perpassava todos os setores da vida social cabo-verdiana. Exemplo é o fato de a produção historiográfica cabo-verdiana sobre o batuko ser ainda bastante escassa. Paulatinamente, foram se historicizando gêneros musicais e de dança como a morna, considerada aquele mais representativo da cultura cabo-verdiana antes e pós-independência. Quando da minha pesquisa etnográfica,4 4 O artigo recupera os dados da pesquisa etnográfica, realizada no âmbito do mestrado em Antropologia Social da autora. era notória a quase inexistência de dados bibliográficos sobre batuko quando sobre morna abundavam. Segundo Tavares (2006, p. 40)30 TAVARES, Eugénio. Mornas cantigas crioulas. Luanda: Guida, 2006. “nunca se tentou explicar com profundidade as origens do batuco (…) e de outros estilos desaparecidos e ainda outros possivelmente existentes, mas desconhecidos do grande público. Toda controvérsia gira em torno da busca da origem da morna”. De realçar que, a morna tem sido, desde o início do século XX um objeto por excelência de investigação seja nos estudos5 5 Vide Tavares (2006), Mariano (1952), Lopes (1974), Martins (1989, 1990), Rodrigues e Lobo (1996). Recentemente, morna foi objeto de pesquisa antropológica (Braz, 2004), na qual a pesquisadora buscou trazer os sentidos que os gêneros musicais e de dança (morna e coladeira) adquirem nas práticas e discursos identitários cabo-verdianos, nas diversas formas de sociabilidades, particularmente na Cidade de Mindelo, Ilha de São Vicente. De frisar que, em 2019, a morna foi consagrada a Património Cultural Imaterial da Humanidade. históricos ou nos folcloristas.

Em relação aos modos de narrar o batuko, os textos do século XIX e XX se encontravam formatados pelo regime colonialista:

Em 1841, um dos primeiros textos a falar do batuque considera lascivos e voluptuosos os movimentos das dançarinas e o ímpeto das batuqueiras. Em 1964, o divertimento é denegrido como sendo praticado por servos negros que desviam instrumentos civilizados para produzirem sons discordantes

(Peixeira, 200322 PEIXEIRA, Luis. Da mestiçagem à caboverdianidade. Registros de uma sociocultura. Lisboa: Edições Colibri, 2003., p. 164, grifos acrescidos).

Segundo registros da história oficial, o batuko teria existido noutras ilhas, mas, com o decorrer do tempo e em função da sua não reatualização nas práticas quotidianas, teria se extinguido, permanecendo unicamente na Ilha de Santiago. Junto com o batuko, outras práticas musicais “vibrantes e sensuais – de origem africana” (Peixeira, 200322 PEIXEIRA, Luis. Da mestiçagem à caboverdianidade. Registros de uma sociocultura. Lisboa: Edições Colibri, 2003., p. 69) tais como Finaçon, Funaná, Coladeira teriam, igualmente, permanecido na Ilha de Santiago. Nas outras ilhas, mais a norte do arquipélago, em decorrência da presença menos intensa dos negros africanos escravizados, outras práticas musicais mais europeizadas teriam se afirmado: entre as quais, Morna “dolente e nostálgica, ao som do violino, do violão e do cavaquinho (...)” (Peixeira, 200322 PEIXEIRA, Luis. Da mestiçagem à caboverdianidade. Registros de uma sociocultura. Lisboa: Edições Colibri, 2003., p. 69).

A pesquisa etnográfica6 6 Esse estudo sobre as redefinições das noções de gênero no coletivo de batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde) visou, a partir de suas trajetórias pessoais/profissionais, etnografar as performances das corporeidades femininas no batuko e no ku torno, bem como analisar as narrativas musicais do coletivo. A etnografia apresentada ancorou-se no argumento de que nessas performances emergem formas diferenciadas de se pensar os corpos femininos e masculinos e as relações de gênero, em direção a uma possível subversão das relações de poder entre homens e mulheres. Igualmente, a etnografia discorreu sobre como os modos estéticos do fazer batuko e tchabeta permitem pensar os sentidos múltiplos dados ao batuko na relação entre as corporeidades de gênero e a realização do projeto individual de ser batukadeira profissional. Dentre os coletivos de batuko existentes na Ilha de Santiago, escolhi o das batukadeiras de São Martinho Grande, inicialmente pelas razões que levaram com que, de certa forma, não fizesse parte de uma lista de agremiações dessa natureza feita pelo então Instituto de Promoção Cultural: por ser na altura um coletivo ainda muito novo, recém-criado em inícios de 2007 e pouco conhecido no mercado de Showbizz dos coletivos de batuko. de embasamento a este artigo foi realizada no primeiro semestre de 2008, com o coletivo “Batukadeiras de São Martinho Grande”.7 7 São Martinho Grande, espaço rural, situa-se na Ilha de Santiago, na região Sul, a aproximadamente 10 km da Praia, capital do país e faz parte do município de Ribeira Grande. Conforme os dados do Censo 2000 (INE) São Martinho Grande tinha na altura uma população aproximada de 689 habitantes, sendo que a proporção de homens e mulheres é a mesma, oscilando em cerca de 1 a 2% para os homens. Do total de 689 habitantes, 492 pertencem a famílias chefiadas por homens e 197 por mulheres, sendo que para ambas, o tamanho médio do agregado familiar oscila entre 5,1 e 5,3 indivíduos. Ainda que São Martinho Grande tenha uma população jovem, a maioria dos habitantes na altura tinha a escolaridade baixa (escola primária) implicando, com isso, que as atividades econômicas realizadas fossem atividades informais como: mecânico, pedreiro, peixeira, prestadores de serviços gastronômicos, artesanato, criação animal (suína e avícola). O coletivo, constituído na altura por dezesseis mulheres e dois coordenadores, começou a dar mostras de existência em meados de 2006, mas só viria a se constituir enquanto um grupo coeso em 2007, com a vinculação à associação da comunidade: a Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande (ADSMG). Faziam parte do grupo: Claudia (35 anos), Lúcia (30 anos), Nair (30 anos), Marta (35 anos), Neta (42 anos), Laurinda (40 anos), Laura (15 anos), Isabel (22 anos), Elsa (13 anos), Vany (13 anos), Lúcia (29 anos), Ana (40 anos), Nany (29 anos), Marina (28 anos), Solange (30 anos), Mana (62 anos) e Fátima (63 anos). No coletivo de São Martinho Grande, normalmente as adolescentes davam ku torno e as mulheres mais maduras faziam percussão, tchabeta, pois a percussão, por exigir maior desenvoltura corporal, era reservada exclusivamente às mais maduras. E, na ausência das adolescentes, seja na animação do ensaio seja nos shows, qualquer uma poderia dar ku torno, uma vez que, todas sabiam e poderiam fazê-lo a qualquer instante que fosse necessário, conforme me esclareceram.

A primeira atuação do coletivo foi em 2006, e foi nesse evento que Marcos, o então Presidente da ADSMG,8 8 A Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande, associação comunitária, foi criada em meados dos anos 2000, visando dinamizar o desenvolvimento local, buscando parceiros nacionais e internacionais além de possibilidade uma maior visibilidade à comunidade local. teve o “conhecimento das potencialidades” e das integrantes do coletivo e resolveu convidá-las a se integrarem na Associação local de São Martinho Grande, permitindo mais visibilidade e maior circulação do coletivo nos espaços e eventos musicais. Foi somente após esse firmamento de laços com a associação local, que o coletivo se constituiu enquanto um grupo coeso e articulado. Depois desse evento, participaram noutros, num dos quais viriam a conhecer Octávio, que veio a constituir-se empresário e coordenador do coletivo, buscando convites e negociando as formas e modos de pagamento financeiro. Tanto Marcos como Otávio residiam nos arredores da Cidade da Praia, tinham escolaridade superior (Marcos, bacharelado, e Otávio, licenciatura), além de situações socioeconômicas e posição social acima da média das batukadeiras. Essas tinham nível escolar muito baixo, sendo que algumas não eram alfabetizadas, o que as condicionava a atividades econômicas remuneradas de peixeiras, venda ambulante de frango, domésticas, faxineiras e vendas informais ambulantes, além de serem, na maioria, as únicas responsáveis pela manutenção e sobrevivência do agregado familiar, o qual variava de 3 a 5 filhos por mulher. Assim sendo, essa disparidade entre as condições socioeconômicas e de escolaridade perpassava as narrativas das batukadeiras, Marcos e Otávio e as situações de tensão eminentes resultantes dos acordos estabelecidos tacitamente em relação aos papéis de cada um.

Nu bai Somada um 18, mas kantu nu tchiga Otávio fla ké pa subi na palco só 13 e, só 13 ki dadu dinhero e kés ki ka dadu nada, fica chateadu. Dipos el bem flanu ma ki é scodji kés ké odjaba na kel spetacul na Várzea. Nakel dia ki nu fazi runion, tcheu de nós papia de kel cusa li, de ma nu sta ta fazi batuko a toa, sem dadu nada! Ami um ka ta concorda, pamodi nu sta ta prendi, inda falta tcheu pa nu fica bom e dipos anos nu mesti djudadu pa nu conhedu. Si crê nu ka ta dadu dinhero, é um manera de otus guentis ba ta conchenu9 9 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Fomos 18 para Assomada, mas Otávio disse que só 13 iam subir no palco e depois só essas 13 que receberam remuneração e as outras ficaram com raiva por não terem subido, nem recebido nada. Ele depois veio a explicar que escolheu as que tinha visto no espetáculo na Várzea. Naquele dia que fizemos reunião, muitas colocaram esta questão de não estar recebendo nada e que por isso não iam continuar mais. Eu não concordo, pois estamos aprendendo ainda nos falta muito para ficarmos bons e depois nós precisamos de apoio para aparecer e as pessoas irem nos conhecendo. Por isso mesmo não tendo dinheiro temos de fazer, é uma forma de outras pessoas nos irem conhecendo”. . (Ana).

Otávio sta djudanu tcheu, é ta djudanu na fazi tchabeta. El é bom e é midjor pa nós si é ka larganu. Kantu nu bai Somada dá confuson e Otávio fla mé sta sai de grupo, ma Solange fla mé ka ta sai, pamodi sé pé sai, kenha ki sta incomodadu ki ta sai. Ma nu ta rocha li mé. Si Marina ka acha sabi é só pé sai!10 10 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Otávio tem nos ajudado muito, ele nos dá muitas dicas e formas de melhorarmos tchabeta. Ele é muito bom e é bom que ele não nos largue. Tivemos um problema com a ida para Assomada, pois fomos todas e Otávio só pediu 13 que eram as que ele tinha visto no show que participamos na Várzea. As que não subiram ao palco e não receberam gratificação, cerca de 5 ou 6 pessoas, ficaram chateadas e uma saiu. Fizemos reunião, Otávio disse então que ia sair e Solange disse que não, que ele não ia sair, que saísse então outras pessoas. Assim, Marina saiu”. (Neta).

As narrativas de Ana e Neta reatualizam as tensões internas existentes e como essas iam sendo negociadas pelos intervenientes – as batukadeiras e os mediadores externos, Otávio e Marcos – no intuito de maximizar suas potencialidades em nome de um projeto individual que se tornava também coletivo: o de ser artista. Um projeto individual, por ser algo construído e performatizado pelos sujeitos conforme suas potencialidades de agenciamento, e que, também, possuía um amparo sociocultural que permitia um compartilhamento, já que o fazer batuko no presente (diferente do que foi anos trás) era construído no imaginário social na altura como possibilidade de entrada no mundo artístico, de circular nos espaços (nacionais e/ou internacionais) de cenas musicais. Assim, mais que o simples fazer batuko no instante aqui e agora, havia posições pragmáticas de constituírem-se artistas em um presente futuro. Igualmente, as narrativas são elucidativas da forma como elas lidavam com as tensões internas e do olhar delas sobre as figuras de Marcos e Otávio como mediadores políticos nesse espaço de produção comercial de música, no qual elas não tinham agenciamento, mas, através dos dois, tencionam ter uma posição. Por outro lado, revelam a presença de polifonias e discursos díspares internamente. Se algumas batukadeiras ansiavam por um retorno imediato do capital pela prática realizada, outras o adiavam para um futuro a longo prazo, buscando e criando garantias de permanência no espaço artístico.

Em relação à escolha dos integrantes do coletivo, conforme Solange quando do recrutamento, tal fora divulgado na comunidade. Se no início fora Fátima quem estimulara a criação de um grupo articulado, gradativamente todo o processo centrou-se em Solange e nos sujeitos que transitavam em suas redes sociais direta ou indiretamente. Dentre as batukadeiras, Solange era a única que saía da sua casa e se dirigia à casa das outras para relembrá-las do ensaio. Quando eu perguntava a uma ou outra batukadeira se haveria ensaio, mostrando-se incertas, elas me orientavam a confirmar com Solange. A liderança desta consolidava-se não só em função da legitimidade que as outras batukadeiras lhe conferiam, mas principalmente por ser a única que fazia a mediação política com os coordenadores e mediadores intelectualizados: Otávio e Marcos. Solange, na mediação política com o meio externo, com o então Presidente da ADSMG (Marcos), com o mediador Otávio e com as redes informais envolvendo sujeitos vinculados aos municípios e às associações. Fátima, por sua liderança decorrente do seu saber fazer do batuko, da sua experiência nos momentos áureos do batuko nos anos 80-90 e por ela ser vista como guardiã da memória local do fazer batuko.

Destarte, neste artigo viso reconstruir as múltiplas dinâmicas sociopolíticas do batuko entrecruzadas com dois momentos socio-históricos e políticos da historiografia oficial de Cabo Verde, tendo como material as narrativas e trechos de vivências das batukadeiras do coletivo de São Martinho Grande, resultantes da pesquisa etnográfica realizada em 2008. O primeiro momento se centra no período pós-colonial, após a independência de Cabo Verde em 1975. O segundo, no período pós-abertura política com a democratização do sistema político-partidário a partir de 1991 e, com isso, a criação de bases para a revalorização e circulação das artes musicais tidas como tradicionais. Sinalizo que as narrativas de minhas interlocutoras permitem perceber não só o efeito das narrativas hegemônicas de conformação da identidade da nação nas suas vivências do batuko, mas também os efeitos nos modos como se inscrevem enquanto mulheres batukadeiras e almejam o projeto profissional: vir a ser artista profissional.

Batuko nos anos oitenta

Se, durante a colonização, o batuko e a tabanka foram bastante reprimidos pelas ações do governo colonialista português, na tentativa de aniquilar as práticas populares african(as)izadas, com a independência de Cabo Verde, outras vivências do batuko e da tabanka foram sendo criadas (Furtado, 200811 FURTADO, Carmem. Conquistando o espaço público: a música enquanto vector da identidade nacional em Cabo Verde. In: ASSEMBLEIA GERAL “GOVERNAR O ESPAÇO PÚBLICO AFRICANO”, 12, 2008, Dakar. Anais [...]. Dakar: CODESRIA, 2008.). O momento de revalorização do batuko e da tabanka, ambas reprimidas no período colonial, tinha iniciado em concomitante com o processo de luta por libertação de Cabo Verde, a partir dos anos 1960, com a intervenção do então Partido Africano para Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC), partido de índole socialista. O ideário de Amílcar Cabral,11 11 Uma das personalidades políticas de referência da história colonial e dos movimentos de luta por libertação das então colônias portuguesas – Cabo Verde e Guiné Bissau – e um dos fundadores do Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Nos anos oitenta, a fusão Guiné-Bissau e Cabo Verde se rompe, e cria-se o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV). figura central no engajamento político pela independência de Cabo Verde e Guiné-Bissau, enfatiza o papel central da cultura como uma arma de resistência e a “luta de libertação como um ato de cultura”, de construção da Identidade Nacional Cabo-Verdiana e Guineense (Furtado, 198712 FURTADO, Claúdio. Génese e reprodução da classe dirigente em Cabo Verde. Praia: ILCD, 1987.).

A nossa resistência cultural consiste no seguinte: enquanto liquidamos a cultura colonial e os aspectos negativos da nossa própria cultura, no nosso espírito, no nosso meio, temos que criar uma cultura nova, baseada nas nossas tradições

(Cabral, s/d apud Cruz, 20017 CRUZ, Eutrópio. A música e a resistência cultural. C(k)ultura: Revista de Estudos Cabo-verdianos, p. 187-199, set. 2001., p. 191).

Quer no período colonial (ainda que sob jugo da repressão portuguesa), quer no pós-independência, o batuko materializava-se num ritual realizado nas celebrações de nascimento, de batismo e, sobremaneira, nas de casamento: nas três noites anteriores e no dia oficial, concomitante com a realização das atividades dos preparativos, “brincava-se o batuko” – exclamava a Mana. E, a despeito das tentativas de repressão e de apagamento, o batuko foi se constituindo como ação de resistência, de luta para a manutenção da cultura. Cultura essa tida menos como reificadora das desigualdades sociais e homogeneizadora de coletivos sociais e mais como possibilidade de os coletivos se constituírem enquanto tais e produzirem identidades socioculturais na relação com o colonialista. Assim, se nesse período se percebe tentativas de repúdio e apagamento do batuko enquanto traço diacrítico da identidade cabo-verdiana, sua prática resiste e, com a independência de Cabo Verde, em 1975, é reatualizada no quotidiano dos sujeitos como um dos elementos de construção da identidade e da nação cabo-verdiana, no contexto global do ingresso de Cabo Verde na modernidade.

Desse modo, a centralidade da cultura estava, a todo instante, sendo enfatizada nas estratégias do PAICV e nas suas bases populares, nos vários movimentos sociais que foram tendo lugar, enquanto objeto geopolítico de construção da identidade da nação de Cabo Verde, em concomitante com a identidade jurídico-territorial adquirida com a independência. A música, sendo um dos elementos diacríticos da cultura cabo-verdiana, foi ganhando espaço, seja durante a luta por libertação, como elemento de resistência e forma de fortalecer as estratégias de luta contra o colonialismo, seja após a independência como uma das práticas culturais de constituir o Estado-nação. Por conseguinte, multiplicavam-se ações políticas direcionadas ao povo, atividades socioculturais visando disseminar e consolidar a ideologia do partido, acopladas ao discurso de valorização das práticas culturais e populares de matriz africana reprimidas durante o período colonial, particularmente, o batuko e a tabanka. Buscando o fortalecimento e materialização do ideário de Amílcar Cabral, tanto na construção da identidade nacional e da nação cabo-verdiana quanto na criação do Estado enquanto entidade jurídico-política (Furtado, 198712 FURTADO, Claúdio. Génese e reprodução da classe dirigente em Cabo Verde. Praia: ILCD, 1987.), procedeu-se à realização de concursos musicais, atividades recreativas e festivais musicais.

Nesse período, foram realizados concursos de batuko, na Ilha de Santiago, a fim de se eleger os melhores coletivos desse gênero musical. A organização dos concursos produzia dinâmicas no batuko, pois, na época, perpassava a ideia de que ter um coletivo de batuko articulado e organizado era condição para realizar tal prática. Como sinalizam Nogueira (2001)21 NOGUEIRA, Gláucia. Batuku de Cabo Verde: percurso histórico-musical. Praia: Edições Pedro Cardoso, 2015. e Furtado (2008)11 FURTADO, Carmem. Conquistando o espaço público: a música enquanto vector da identidade nacional em Cabo Verde. In: ASSEMBLEIA GERAL “GOVERNAR O ESPAÇO PÚBLICO AFRICANO”, 12, 2008, Dakar. Anais [...]. Dakar: CODESRIA, 2008., o momento pós-independência foi marcado, do ponto de vista musical, por uma intensa dinâmica e revalorização sociocultural, particularmente na vivência do batuko e do funaná. Sendo que, no caso do batuko, é perceptível uma dinâmica nas temáticas musicais e na tentativa de constituir coletivos musicais

por temas fortemente datados e politizados e (...) por um certo número de conjuntos, novas composições e a entrada sistemática nos saraus de números constituídos (…) numa tentativa de revalorização e elevação cultural

(Nogueira, 200121 NOGUEIRA, Gláucia. Batuku de Cabo Verde: percurso histórico-musical. Praia: Edições Pedro Cardoso, 2015., p. 175).

As narrativas de Fátima e de Mana – as únicas batukadeiras anciãs do coletivo e que nele ocupam um lugar central por conta da experiência nos modos de fazer batuko do período antes da independência, sendo acionadas quando duma apresentação pública conforme os moldes ditos “tradicionais do fazer batuko12 12 Para mais desdobramentos, vide Semedo (2009, 2013). – remetem a momentos que traduziam formas diferenciadas de vivenciar o batuko. Fátima, de 63 anos, na altura responsável pela feitura das narrativas musicais do coletivo, rememora, um pouco nostálgica, que na sua infância batuko era diversão, mas que aos poucos foi se enfraquecendo, pois as pessoas que praticavam batuko foram limitando o espaço de atuação, circunscrito unicamente a momentos de festa, de casamentos e não noutros momentos do quotidiano. Mais do que os outros, as festividades de casamento perfaziam espaços de sociabilidade por excelência, nos quais o batuko era performatizado e aparecia como elemento central de natureza lúdica e ritualística. A batukadeira Mana, de 62 anos, responsável também pela feitura das narrativas musicais bem como da harmonização dos ritmos percussivos do coletivo, sinaliza que nos três dias anteriores à cerimônia de casamento, os familiares, a vizinhança e a comunidade realizavam os preparativos permeados pelo batuko, por ser socialmente aceite e esperado que no casamento houvesse batuko, como narra:

nu tinha ki fazeba cumida, cochi midjo pa fazeba kés cumidas de casamento e, pa nu ka durmi e pa nu sta cu afinco na trabadjo, tudu noti nu ta brinka batuko ti manchi, na kés 3 dias antis de casamento e na dia di casamento, nu ta brinka batuko també.13 13 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Como tínhamos que preparar a refeição, pilar o milho para fazer pratos tradicionais do casamento, para não dormirmos e estarmos sempre prontas para as tarefas, durante a noite brincávamos batuko até o amanhecer, durante 3 dias seguidos, até o dia mesmo do casamento”.

Outro aspecto é a proveniência social do coletivo que fazia batuko, ou de quem lhe tinha como elemento fundante da construção do seu quotidiano. Se, no período colonial, batuko aparecia associado aos negros africanos na condição de escravos, com a independência e com a descolonização, a estrutura social da sociedade cabo-verdiana mudou, fazendo com que outros coletivos sociais ganhassem presença. Com o investimento na educação, as classes sociais acrescentaram à dimensão econômica, a dimensão educacional (o nível de instrução), fazendo com que a “conformação das elites cabo-verdianas” (Anjos, 20061 ANJOS, José Carlos dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.) se constituísse acoplada a esse referencial que se traduzia também em estilos de vida, em formas de sociabilidades e, particularmente, em estilos e gêneros musicais. Assim, batuko foi se constituindo como parte do quotidiano das classes populares, dos coletivos sociais de baixa renda e de baixa escolaridade, ou seja, do “povo”, diferente da morna (em especial) que foi conquistando outros espaços sociais, os quais lhe auferiam outra posição e, por conseguinte, um elemento de distinção social.

As relações de poder e de distinções sociais nas artes de fazer dos gêneros musicais são resultantes do imaginário social de que, por um lado, batuko é um legado dos negros africanos escravizados e, por outro, a morna reencontra-se no fado português. Cada gênero se associava a um legado do evento colonial – o colonizado e o colonialista –, construindo e reificando lógicas dominantes e violência simbólica: África e Europa.

Como nos mostram Fernandes (2002)10 FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós) colonial. Florianópolis: EDUFSC, 2002. e Anjos (2006)1 ANJOS, José Carlos dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006., o debate sobre a construção da identidade nacional em Cabo Verde foi sendo construído num alicerce em que a África, o continente africano, era “diluída”, era renegada ao ponto de se afirmar a identidade racial como resultado da identidade da nação e do Estado: “ser cabo-verdiano e não ser africano”, ao mesmo tempo em que se projetava eventualmente uma aproximação Cabo Verde – Europa.

Do lúdico ao showbiz

Volvidas décadas, após a abertura político-partidária em 1991, o lugar da música e das artes dentro no discurso político-governamental ganhou outras dinâmicas. Com a assunção do partido Movimento Para a Democracia (MPD) ao poder, a cultura adquiriu outras ressignificações, já não enquanto objeto geopolítico de construção da identidade nacional, mas na edificação da identidade nacional direcionada ao âmbito exterior e internacional. Ou seja, ainda que a cultura continuasse sendo objeto geopolítico, o foco, o público-alvo e as estratégias subjacentes tornaram-se doutra natureza. Uma das estratégias visava a abertura de Cabo Verde para o mundo, para o exterior, diferentemente do período pós-independência, cuja estratégia central era a construção e a consolidação da nação e do Estado (Costa, 20016 COSTA, Daniel. O semipresidencialismo em Cabo Verde (1991-2000). Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.).

Para a abertura ao exterior, definiu-se um conjunto de estratégias, nas quais havia uma aproximação com a Europa em simultâneo com um afastamento da África. Assim, novos horizontes foram se abrindo. Se, durante o período pós-independência, Cabo Verde e Guiné-Bissau mantiveram a mesma bandeira e hino nacional, após a abertura política, em 1991, foram introduzidas mudanças estruturais no país, as quais mudaram a história e as narrativas mnemônicas da população cabo-verdiana. Foram introduzidas, igualmente, reformas no sistema educacional e manuais escolares com pouquíssima alusão ao legado africano e à luta contra o colonialismo. Tais mudanças criaram e vieram a sedimentar as condições para o apagamento paulatino da história colonial e escravocrata de Cabo Verde e de todo legado africano no imaginário sociocultural cabo-verdiano, e para um retorno à Europa como a herança mais próxima da história de Cabo Verde (Costa, 20016 COSTA, Daniel. O semipresidencialismo em Cabo Verde (1991-2000). Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.).

Na bandeira e no hino nacional adotados no período pós-independência havia uma estratégia política de enfatizar as cores (vermelho, verde, amarelo e preto) e temáticas da “África Mãe”, do legado africano, da história vivida de repressão e da luta por libertação. Diferentemente, na bandeira e no hino pós abertura política, que permanecem até hoje, outros desdobramentos tiveram lugar. A liberdade associada à abertura político-partidária tornou-se “palavra de ordem” (silenciando os efeitos socio-históricos da colonização) e a nova bandeira exibe cores e estrelas que se assemelham à bandeira da União Europeia. Se, durante o governo do PAICV, de 1975 a 1990, havia um discurso para revalorização da cultura cabo-verdiana, para a aproximação da África a Cabo Verde, com a virada dos anos noventa, todos os governos que vieram nos períodos políticos posteriores têm definido metas e relações políticas, nas quais a África vai se distanciando gradativamente e a Europa fica mais próxima a Cabo Verde (Costa, 20016 COSTA, Daniel. O semipresidencialismo em Cabo Verde (1991-2000). Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001.).

Novos horizontes foram se desenhando para a cultura cabo-verdiana e para o batuko. Inicialmente, em relação aos anos oitenta e noventa, as narrativas de Fátima e Mana remetem para um momento no qual havia indícios de uma “potencial espetacularização” do batuko, nas várias sessões de concursos populares, com diversos coletivos de batuko organizados a concorrer para o título, tendo em conta a performance, a habilidade da cantadeira e das dançarinas do ku torno. Teve início um processo de modernização das relações no campo da cultura, trazendo com isso novas dinâmicas no batuko: o show, a produção musical em CD/DVD.

Por toda Ilha de Santiago, nos vários bairros, coletivos de batuko articulados foram criados para entrar nesse mundo de produção musical que, a priori, parecia garantir melhoria de condições de vida às mulheres que faziam batuko, pois havia possibilidade de realização de um projeto individual que vinha ganhando força: o ser artista, o vir a se tornar artista por meio do batuko. Em concomitante, houve a emergência do empresário ou coordenador do coletivo de batuko, que permitiria o trânsito das mulheres batukadeiras no mundo de criação e produção musical. A figura do empresário e do coordenador torna-se central nessa mediação e encontro político-musical, sendo o coordenador, na maioria, senão em todos os coletivos, um homem com nível de instrução (muito) superior ao das batukadeiras.

O exemplo etnográfico do coletivo de São Martinho Grande constituía uma realidade vivenciada por vários coletivos de batuko, uns com mais agenciamento e alguma circulação no mundo de produção musical, outros com menos agenciamento, vivenciando situações de tensão em função das artes de fazer do batuko, na expectativa da concretização imediata do projeto de vir a ser artista. Percebe-se que as possibilidades dos coletivos de batuko para a realização desse projeto, de vir a tornar-se artistas, estavam articuladas às estratégias definidas para a maximização do projeto. Contudo, a mensuração passava por vários graus: desde fazer shows na comunidade, em nível regional, circular pela Ilha de Santiago, em seguida para um grau nacional – participação em festivais musicais noutras ilhas do arquipélago. Sendo, o pico desse projeto, a circulação internacional com participação em shows realizados noutros países. De realçar que, nesse caminho gradativo, estaria a produção de CD/DVD, trazendo maior visibilidade e a consolidação do coletivo.

Isso ficou visível no campo, nas várias vezes em que Fátima, Neta, Mara, Mana narraram, com felicidade e entusiasmo, o momento áureo do coletivo: as viagens que fizeram para outra ilha do país. Por conta da participação nos concursos de batuko, circularam por vários bairros (urbanos e rurais) da ilha de Santiago, pois não tinham meios financeiros para custear viagens pelas outras ilhas, em função do seu nível socioeconômico e do baixo rendimento auferido pelas atividades econômicas realizadas – a circulação dependia de patrocínio conseguido pelo empresário.

Destarte, o batuko ia sendo apropriado enquanto prática musical que garantisse ou pudesse abrir caminho de entrada no mundo artístico, no showbiz por meio da produção do CD/DVD, abrindo outros campos de possibilidades no que concerne à melhoria das condições socioeconômicas das batukadeiras. Um batuko que até os anos noventa se restringia ao espaço presencial passou, a partir dos anos 2000, a circular pelos espaços físicos como realidade audiovisual e virtual. Para assistir ou escutar um show já não seria necessário um deslocamento físico e social dos sujeitos, dado que o mundo audiovisual e digital lhes permitia outras formas de acessibilidade e visibilidade do batuko. Ao mesmo tempo, permitia aos cabo-verdianos da diáspora (EUA, Europa e África) fazer circular em formatos digitais o que, em matéria de produção musical, tem sido feito em Cabo Verde e na diáspora cabo-verdiana.14 14 Para além da produção de CD/DVD’s, vários coletivos de batuko nacionais têm sites, nos quais divulgam os grupos, shows, discografias, fotos. Por outro lado, redes sociais tornaram-se recursos midiáticos de divulgação das práticas musicais e de danças cabo-verdianas para o público não cabo-verdiano, para os cabo-verdianos residentes no país e para a diáspora. Em simultâneo, essa modernidade (circulação de CD/DVD de outros coletivos) permitia aos sujeitos (re)pensar sua performance, no sentido de torná-la mais eficiente e mais elaborada. Em vários momentos do campo, presenciei algumas batukadeiras a colocarem DVD de outros coletivos de batuko e darem ku torno, justificando fazê-lo devido à necessidade de treinar o corpo para dar ku torno, de fabricar o corpo, a fim de desenvolver performances corporais e corpos artistas. Em outros momentos, por meio dos registros audiovisuais, comparavam as performances corporais, o estar no palco de cada coletivo, o dar ku torno, o vestuário, fazendo, assim, emergir noções estéticas múltiplas que conformavam o fazer do ku torno e do batuko, para além de certa moralidade sobre o que devia ou não ser trazido como temática das letras de músicas: “o que deve ser ou não cantado”.15 15 Para mais desdobramentos sobre essa questão, vide Semedo (2020).

Como propõe Geertz (1999)13 GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999., toda forma artística se encontra inscrita dentro de um sistema cultural que lhe permite tornar-se um idioma, contendo significados, não se reduzindo a uma mera performance de autoria individual. Por conseguinte, o batuko vai sendo construído pelas minhas interlocutoras como um espaço povoado por experiências e modos de vida, atravessado e costurado em múltiplas temporalidades e espacialidades. Como nos sinaliza Gonçalves (2006)14 GONÇALVES, Carlos. Kab Verd Band. Praia: Instituto Arquivo Histórico Nacional, 2006., quando o batuko vai se tornando uma manifestação de palco e não mais unicamente um momento lúdico no espaço domiciliar, desenha-se um caminho que depois viria a ser denominado pelos estudiosos da música “a estilização do batuko” ou “batuko em orquestra”.

Actualmente com o trabalho de recriação através dos instrumentos eletrónicos (…) o batuko passou a constituir um novo género no panorama musical cabo-verdiano. Este novo género, ‘batuko em orquestra’, desenvolveu-se sobretudo devido às composições do jovem Orlando Pantera, popularizadas pela nova geração de cantoras, como Mayra Andrade e Lura. Devido ao sucesso deste novo género (batuko em orquestra), neste ano de 2004 em que finalizamos este trabalho, registra-se um renascimento do ‘batuko tradicional’, com a criação de muitos grupos e gravação de disco.

(Gonçalves, 200614 GONÇALVES, Carlos. Kab Verd Band. Praia: Instituto Arquivo Histórico Nacional, 2006., p. 27)

“Quando faço batuko, fico alegre, feliz”16 16 Originalmente no crioulo cabo-verdiano: “Oras ki u’fazi batuko, u’ta fika sabi, filiz”. : das sociabilidades e agenciamentos femininos

São Martinho Grande, 13 de janeiro de 2008.

Estavam sentadas em roda, prontas para fazer tchabeta. Como, antes da Lara chegar, eu estava no círculo vendo as batukadeiras fazendo batuko, Lara olhou pra mim e, enquanto ia tirando os sapatos, disse-me se as batukadeiras não me tinham ensinado que para fazer tchabeta tem que ser descalça. Cruzou e esticou as pernas, colocando tchabeta entre as coxas. Outras imitaram-na e tiraram os sapatos. Lara justificou dizendo que tem que ser ‘terra-terra’, como manda a tradição santiaguense. Instantes depois, Claudia, Lúcia, Isabel e Dina chegaram juntas com outras moças que não eram do coletivo, as quais ficaram assistindo junto comigo. Lara pediu a uma adolescente que fosse buscar um licor para elas beberem. Esta trouxe uma garrafa de cinco litros com licor pela metade e copinhos descartáveis. Dina foi colocando nos copinhos e distribuindo pra todo mundo, mas teve uma hora, Solange reclamou que não tinha recebido ainda, Dina pediu desculpas e lhe passou um copinho. Solange fez um jeito de quem não iria aceitar, mas no fim sempre aceitou. [Já tinha reparado que em outros momentos, a bebida alcoólica era um fator presente nas batukadeiras, no mundo artístico cabo-verdiano em geral. E, nesse caso, nas mulheres é um elemento importante para elas se concentrarem, ganharem o impulso para fazer batuko, lembrei que Claudia me dissera que pra fazer batuko tem que se ter brio]. Minutos depois, Fátima chegou gritando com os braços levantados e dando ku torno, desencadeando nas que estavam fazendo tchabeta, um frenesi e gritando junto com ela. Todas faziam tchabeta com uma intensidade máxima e o som do bater das mãos ficou alto, muito bom de se ouvir. Enquanto iam fazendo tchabeta, iam bebericando o licor. O círculo de terreru começava com Ana, Solange, Lara, Isabel, Nair, Claudia, Lúcia, Nany e Fátima. Quando Fátima chegara, depois de ter parado de dar ku torno, ela ficou de pé, entre Isabel e Lara, com o casaco amarrado na cintura, cantando e batendo as palmas das mãos, já que ela não tinha tchabeta (dera à Lúcia). Lara começou a cantar uma cantiga delas e fizeram tchabeta, mas não deram ku torno. Em seguida, Lara cantou uma cantiga que cantam no coletivo dela em Portugal. Nisto, Solange entra no círculo, e amarrando sulada na cintura começa a dar ku torno, foi uma intensidade de sons, ela requebrava as ancas, com fortes flexões dos joelhos e mantinha as mãos pra cima, a cadera requebrava intensamente. Depois que pararam batuko, ela parou e sentou alegando que tinha cansado. O pano que ela usou era da Nany. Seguidamente, Lara levantou e pegou sulada na Solange, amarrou na cintura e entrando no círculo, começa dar ku torno ao som da voz da Claudia e ao som da tchabeta. Intensificaram batuko, ku torno, com gritos. Lara vibrou intensamente a cadera, as ancas, os quadris... Passou o pano à Isabel que passou à Claudia que levantou e deu ku torno. Cada uma tem um jeito particular de dar ku torno, ora com as mãos levantadas, ora em cima da cabeça, cada uma com um jeito diferente de requebrar a cadera, de dar ku torno. Antes da Claudia entrar na roda, uma adolescente pegou no pano e amarrando na cintura deu ku torno. Ela não era do coletivo, veio junto com Lara. Ela tinha um jeito diferente de dar ku torno. (...) Já no fim do ensaio, Lara ficou falando para as outras batukadeiras como no coletivo em Portugal no qual ela era integrante, também tinham o problema de não ensaiarem antecipadamente. Que iam ensaiando no caminho para os shows e iam aprendendo. Ela termina dizendo que ainda bem que elas tinham boa cabeça e aprendiam rápido, pois no dia a dia todo mundo estava nos seus afazeres.

A pesquisa etnográfica com o coletivo de São Martinho Grande sinaliza como o batuko perfaz um espaço de sociabilidade feminina, quer enquanto um espaço lúdico, de poder criar linhas de possibilidade de viver, em meio da dureza e das precariedades de chefiar uma prole na ausência da figura parental, permeadas de alegrias, afetos. Igualmente, o ato de criação das narrativas constitui um momento de escuta e partilha de vivências, acoplado às trajetórias individuais e quotidianas. Tanto Lara quanto Nany, a partir da forma como demarcavam o espaço do batuko do dia a dia, mostram como jogam com as condições sociais a partir da possibilidade de o batuko oferecer um momento de diversão e, por conta disso, permitir-lhes outras possibilidades de viver e existir.

Na dia-a-dia é trabadjo, kasa. Oras ki nu ta fazi batuko, nu ta fica juntu ta konvive, é um manera de prubremas pa fora! É sabi, nu ta divirti! Kada kenha ta tra musika ki ta papia de sé dia-a-dia, ta ba ta desabafa!17 17 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “O dia a dia é só trabalho e casa. Quando fazemos batuko, ficamos reunidas no convívio e é um desabafo! É divertido! Cada qual a partir das letras vai falando do seu dia a dia e desabafando!”.

(Lara).

A narrativa de Lara sinaliza como o batuko, entremeado pelo almejar do projeto de profissionalização, conservava ainda modos de sociabilidades, pois, permeando o batuko, a performance corporal do ku torno e as narrativas musicais, havia modos de viver e de existir que povoavam o quotidiano das batukadeiras, dos seus coletivos de pares e daqueles que faziam parte de suas redes de sociabilidades. Essa gramática ancorava-se nos modos cabo-verdianos, no que conforma as práticas, as interações sociais, em nível macro, no espaço cabo-verdiano, e em nível local, no espaço de São Martinho Grande. Segundo minhas interlocutoras, ainda era construído como uma forma de estar no mundo cabo-verdiano e na cena artística, resultante das narrativas musicais, das habilidades coreográficas e das gramáticas morais e afetivas que povoavam esse mundo músico-coreográfico. Corpos dançantes, sujeitos criando narrativas de falar do seu mundo e, que nesse processo se constroem enquanto corpos femininos: mulheres cabo-verdianas e da comunidade de São Martinho Grande, definem estratégias de um vir a ser, também, batukadeira e kutornadeira profissional.

Oia, oia, ó mós ami ma mi djan pari 3 filho cu bo

Bu ka dan nada, bu ka registra, ma bu ta torna bem pa fazi 4

Ó mós pó destrançam di pé, pamodi gosi un cré fazé nha vida.18 18 “Ó rapaz, já tive três filhos contigo / Não me ajudaste no sustento das crianças, não as registraste e agora estás voltando de novo com ideia de fazer 4. / Ó rapaz, saí do meu caminho, porque agora quero fazer minha vida”.

A narrativa musical “Oia, oia” retrata a situação de várias famílias em Cabo Verde, onde não só não temos a família nuclear como o modelo de família, com a figura do pai, a relação pai/filhos é bastante diluída na relação mãe/filhos. O modelo de família cabo-verdiana seria, em algum momento, marcado por famílias reconstruídas e famílias monoparentais, chefiadas por mulheres e nas quais não existe a assumpção da paternidade dos pais/homens. Reiterando, se, na sociedade cabo-verdiana, as relações de gênero traduzem relações de poder desiguais entre homens e mulheres, em que estas acabam por serem colocadas numa posição de subordinadas, essa letra sublinha como as mulheres lidam com a situação e definem agenciamentos para se contrapor à lógica masculina e poder repensar as relações de gênero. O não registro das crianças e a não assumpção da paternidade é recorrente em Cabo Verde, particularmente em algumas das famílias das batukadeiras do grupo de São Martinho Grande, cujos filhos não tinham forma alguma de sustento paterno, sendo que, a maioria dos filhos das batukadeiras não vivia com os pais biológicos, mas com padrastos ou somente com a mãe, criando relações parentais unilaterais mãe e os filhos.

O batuko, para essas mulheres, aparece como um espaço de partilha de experiências e de desconstrução de acepções socioculturais sobre os homens, a figura masculina. No trecho da letra “Ó rapaz, saí do meu caminho, porque agora quero fazer minha vida”, nota-se um posicionamento da mulher em assumir sua vida, em comandá-la, o que passa pelo deslocamento dessas corporeidades – não mais uma relação entre sujeito e objeto, mas um deslocamento em que a mulher se pensa e se constrói em e na relação que estabelece com o homem enquanto sujeito (Strathern, 200629 STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006.) e, na criação desta existência como mulher, ela se produz dissociada do homem.

Destarte, na linha do que Isabel Rodrigues (2007)23 RODRIGUES, Isabel P.B. As mães e os seus filhos dentro da plasticidade parental: reconsiderando o patriarcado na teoria e prática. In: ÈVORA, Iolanda; GRASSI, Marzia (org.) Gênero e Migrações cabo-verdianas. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), 2007. p. 123-146. propõe discutir sobre as relações de gênero em Cabo Verde, é relevante que se tenha em vista as fragilidades do modelo patriarcal. Já não se pode continuar a pensar em modelos nucleares de famílias e em corporeidades femininas e masculinas construídas em cima de um discurso androcêntrico e patriarcal. Isso porque, essas parentalidades são construídas em contextos característicos em que o pai patriarcal é ausente e a mulher redefine-se como o alicerce da família. Assim sendo, há um conjunto de estratégias que essas mulheres adotam para dar resposta às situações, as quais se traduzem num agenciamento feminino, ao se construírem como gestoras na chefia da família. Há um deslocamento da condição dessas mulheres, de mulheres-objeto nessa conjuntura sociocultural, à condição de mulheres-sujeito que inventam formas de se contrapor a uma estrutura que visa mantê-las num espaço de invisibilidade. Como Strathern (2006)29 STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006. chama atenção, projetar a estrutura ocidental de relações a fim de buscar as “teias de significados” (Geertz, 198913 GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.) nas práticas sociais de uma realidade não ocidental, traduzir-se-ia num erro epistemológico. Isso porque, apreender a forma como as corporeidades feminina e masculina são construídas na “relação dialética prática e estrutura” (Sahlins, 200825 SAHLINS, Marshall. Metáforas históricas e realidades míticas: estrutura nos primórdios da história do reino das ilhas Sandwich. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2008.) implicaria analisar a conjuntura da realidade, a forma como essa realidade se explica em si e por si, ao invés de como um olhar de fora a explicaria.

A transmissão dos modos de fazer o batuko constitui também um desses espaços de sociabilidade feminina, pois o fazer do batuko tem toda uma forma estética e um conjunto de saberes quotidianos que estruturam as formas músico-coreográficas, as quais são apreendidas oralmente e por mimetismo numa interação intrageracional (coletivos de pares) e intergeracional (mãe, tia, avó e os descendentes).

Un ka ta lembra modi um ba ta prendi. Mamaã ta fazeba e un ta fazeba juntu kual. Tinha também uns minis ki nu ta brincaba juntu, nu ta fazeba batuko e nu ta ba ta prendeba cu cumpanhero. Má é sima um sta flau li, ninguém ka ta inchinau. Kada kenha ta ba ta prendi del pa el, modi ki outu guentis ta fazeba. Nhá dos fidjos fêmeas és sabi fazi, má é ka mi ki inchinás nau, és ta odja ami ou kés otus minis ta fazi

(Ana).19 19 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Não me lembro bem como fui aprendendo. Minha mãe fazia e eu fazia com ela. Também quando brincava com outras crianças, fazíamos batuko e nós íamos aprendendo uma com a outra. Mas ninguém te ensina mesmo. Tu vais aprendendo, vendo as pessoas fazerem. As minhas duas filhas sabem fazer, mas eu nem lhes ensinei, elas vão vendo as outras batukadeiras fazerem”.

A narrativa da Ana enfatiza tanto a dimensão lúdica do batuko como o fato de a aprendizagem ser situada numa determinada conjuntura, no sentido de que as crianças que “brincam batuko” eram provenientes de famílias nas quais o batuko era tido como uma prática constitutiva das corporeidades feminina e masculina. Por conseguinte, batuko, enquanto um espaço lúdico e de estar juntas, constrói esse momento de partilha como um espaço de mulheres, no qual elas se constroem como sujeitos femininos, permitindo tensionar o lugar das mulheres cabo-verdianas, como nos é ilustrado na seguinte narrativa musical em crioulo cabo-verdiano.

Ami casadu 15 ano ku nha maridu

Nha maridu nha pensa na largam só pamodi é dado cotovelada

Hoji dja bu bai, dja bu matam, dja bu largam/dexam

Ó nha maridu, amor de nha vida

Ó nha maridu, segurança dentu casa

Ó nha maridu, controle de mi cu bó,

Hoji dja bu bai, dja bu matam, dja bu dexam.20 20 Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Eu, casada 15 anos com meu marido / Meu marido está pensando me abandonar, / porque uma mulher está sustentando ele. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me abandonaste. / Ó Meu marido, amor da minha vida, Ó Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me abandonaste”.

A narrativa musical retrata uma situação quotidiana das relações de gênero, a questão de dar cotovelada, expressão que pode ser traduzida como equivalente a sustentar financeiramente uma pessoa num envolvimento sexual e afetivo. A expressão, dar cotovelada, apareceu no início de 2000, tendo sido paulatinamente apropriada por outras formas musicais cabo-verdianas, em simultâneo com uma apropriação dos sujeitos sociais nas suas dinâmicas quotidianas, nas suas interações e nas suas falas corriqueiras e jocosas. A situação de dar cotovelada perpassa, ou melhor, é reapropriada como instrumento de poder e de construção das corporeidades (masculinas e femininas) por ambos os gêneros. Contudo, por estar de certa forma desestabilizando algumas chaves morais, particularmente a questão da prostituição, feminina e masculina, é uma prática que suscita alguma polêmica.

Contudo, o que a narrativa musical sinaliza é menos a questão da suposta prostituição desencadeada por essa possível relação mediada pela potência do dinheiro e mais como o fato de a companheira ter sido trocada por outra desencadeou uma crise e um repensar de corporeidades dos sujeitos masculino e feminino. Quando ela fala: “Ó Meu marido, amor da minha vida, Ó Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me abandonaste”, usar a expressão “meu marido”, por ser socialmente bem-vista na sociedade cabo-verdiana, tornava-se fator de distinção e era ostentado pelos sujeitos mulheres nas interações sociais que iam estabelecendo com as outras. Diferentemente, a narrativa musical está acionando outras formas sociais de se pensar a relação de gênero, a construção das corporeidades nas quais o homem, o marido, é visto como suporte da relação conjugal e, como a separação conjugal trouxe uma situação de morte social da mulher por ter perdido o elemento de distinção, remetida para o lugar de ter sido trocada.

Lendo as narrativas musicais nessa chave, percebe-se como batuko e ku torno são criados pelas batukadeiras como possibilidades de construção do corpo feminino, cuja construção tem como contexto sociocultural cabo-verdiano/santiaguense e local acoplado às gramáticas e às economias afetivas e morais. Igualmente, a materialização da condição de coletivo, a articulação do coletivo à Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande marcaria outra vivência e experiência com o batuko, pois a possibilidade de o coletivo ser convidado a participar nos shows permitiria maior circulação nos espaços musicais e o projeto de vir a se tornar artista profissional do batuko ganharia mais potência. Assim, um olhar folclorista, a busca da manutenção da tradição dos modos do fazer batuko, perderia de vista que a compreensão dos modos modernos e atuais do fazer batuko só pode ser alcançada dentro das novas configurações que foram se projetando às manifestações culturais cabo-verdianas e em função das várias dinâmicas sociais que se foram fazendo em cima do batuko, visando sua entrada no mundo do showbizz. Isso porque permitem apreender a condição de Fátima enquanto guardiã da memória do fazer batuko e de Solange como mediadora política com os outros espaços possíveis e potenciais à circulação de batukadeiras e kutornadeiras, percebendo como as dinâmicas sociais associadas a dinâmicas advindas da economia das artes criativas devam ser vistas como produtos e produtoras de um momento específico e, relacionadas e relacionáveis nos múltiplos momentos da trajetória das minhas interlocutoras.

De igual modo, Fátima aparecia como guardiã da memória da comunidade que registrava as práticas tradicionais do fazer batuko e tinha legitimidade no grupo. Porém, essa legitimidade existia em meio a tensões entre as formas tradicionais de se fazer batuko, de Fátima, e as formas modernas das outras batukadeiras, em relação à forma de fazer do batuko no grupo: o quando, como, onde e por que fazer. Em parte, as tensões eram causadas por fatores geracionais, já que Fátima, por ser a mais velha do grupo e por fazer parte do antigo grupo trazia, nas suas práticas e narrativas, formas do batuko particulares e diferenciadas das outras que não passaram pela mesma experiência e vivência do fazer batuko. Assim sendo, eram retratos temporais de um passado vivido que produziam e eram produzidos pelo imaginário social local.

Outrossim, em função das (re)apropriações do batuko, dois discursos emergem, na medida em que o mediador intelectualizado (o coordenador e empresário) defendia a necessidade de retorno ao fazer batuko genuíno, espontâneo, de que todo trabalho dele junto ao coletivo era nesse sentido. As noções de moderno e de tradicional apareciam no discurso e na prática do coordenador, mediador externo, não como polos opostos, mas enquanto realidades que coexistem e se (re)constroem nessa relação dialética. De realçar que o batuko realmente só pôde circular nos vários espaços sociais, entre vários coletivos sociais, especialmente em função da mudança de configuração. Um batuko antes produzido e experienciado nas e em função de performances num espaço físico determinado, com a nova configuração tecnológica, sujeitos diversos em diversos espaços poderiam experienciá-lo ao mesmo tempo, por meio de DVD e CD. Da mesma forma, os coletivos (re)apropriam e (re)atualizam as artes de fazer batuko e dar ku torno, por meio e nessas performances audiovisuais de outros coletivos de batuko. Assim, as performances que seriam tidas como tradicionais são construídas na relação e coexistência com a modernidade e, essa, em simultâneo, constitui-se como tal, na relação com os modos tradicionais de fazer batuko.

Entendo que, por meio da e na performance do batuko, das letras de música, do ku torno, as mulheres batukadeiras (re)definem esse espaço como possibilitando a desconstrução das noções de gênero, de ser mulher e homem cabo-verdiana/o. E, pensar gênero enquanto corpos marcados por certa ambiguidade não me possibilita analisar o campo e objeto de pesquisa. Em campo, fui me apercebendo de que as mulheres batukadeiras não constroem suas corporeidades como estando a criar identidades com marcador de gênero escorregadias, que a todo instante fazem emergir formas múltiplas de ser e ter esses corpos generizados. Ao invés, por meio dos vários momentos performáticos, elas questionam as estruturas sociais que as fabricam, a fim de mostrar, não que os corpos são ambíguos, mas que aquilo que os constrói não está explicado ou espelhado unicamente nas e pelas relações sociais. Por outro lado, as performances são perpassadas não só por reflexões sobre essas normas, como também pelas tentativas de subversões das relações de gênero e deslocamentos das fronteiras nas relações de poder entre homens e mulheres, por meio do desejo. Ou seja, mulheres como sujeitos e homens enquanto sujeitos-objetos, sendo que aquelas performatizam subversões das relações de poder e deslocamento do foco do poder.21 21 Para mais desdobramentos sobre as gramáticas eróticas do batuko, vide Semedo (2020).

Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escândalo com a intrusão repentina, a intervenção não antecipada, de um “objeto feminino” que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posição masculina. A dependência radical do sujeito masculino diante do “outro” feminino expôs repentinamente o caráter ilusório de sua autonomia.

(Butler, 20083 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008., p. 7-8).

Strathern (2007)29 STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006., ao argumentar pela necessidade de se analisar a dimensão experiencial dos sujeitos, de ser homem e ser mulher, por meio das incorporações dos discursos nas vivências cotidianas daqueles, abre espaço para pensar gênero como performance, como uma atuação de discursos incorporados (Butler, 20044 BUTLER, Judith. Performative acts and gender constitution: an essay in phenomenology and feminist theory. In: BIAL, Henry. The performance studies reader. Londres: Routledge, 2004.; Morris, 199520 MORRIS, Rosalind C. All made up: performance theory and the new Antropology of sex and gender. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 567-592, 1995. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.003031
https://doi.org/10.1146/annurev.an.24.10...
). Daí a ênfase nas práticas sociais, na ação performática do sujeito e, de certa forma, em pensar os sujeitos como (re)definindo “estratégias”, “artes de fazer” (De Certeau, 20038 DE CERTEAU, Michel. A invenção do quotidiano: artes de fazer. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. Tomo I.) e, fazendo emergir “performatividades” (Butler, 20044 BUTLER, Judith. Performative acts and gender constitution: an essay in phenomenology and feminist theory. In: BIAL, Henry. The performance studies reader. Londres: Routledge, 2004.; Morris, 199520 MORRIS, Rosalind C. All made up: performance theory and the new Antropology of sex and gender. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 567-592, 1995. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.003031
https://doi.org/10.1146/annurev.an.24.10...
).

Desta feita, o posicionamento epistemológico no qual esta pesquisa sobre mulheres batukadeiras se aloca é o de percebê-las como criando estratégias quotidianas nos contextos micro das suas vivências (De Certeau, 20038 DE CERTEAU, Michel. A invenção do quotidiano: artes de fazer. 9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003. Tomo I.) para se contrapor, tensionar ou se posicionar em face dos discursos socioculturais cabo-verdianos hegemônicos que visam as reservar num espaço de invisibilidade e silenciamento. Assim sendo, é relevante que desvincule da perspectiva ocidental de pensar as estruturas das relações sociais de gênero e, aperceba que no meu campo, as práticas das mulheres batukadeiras têm suas contingências e, suas performatividades (Butler, 20044 BUTLER, Judith. Performative acts and gender constitution: an essay in phenomenology and feminist theory. In: BIAL, Henry. The performance studies reader. Londres: Routledge, 2004.; Morris, 199520 MORRIS, Rosalind C. All made up: performance theory and the new Antropology of sex and gender. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 567-592, 1995. http://dx.doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.003031
https://doi.org/10.1146/annurev.an.24.10...
).

  • 1
    Para mais aprofundamentos sobre Batuko, cf. Semedo (200928 SEMEDO, Carla. Mara sulada e dã ku torno: performance, gênero e corporeidades no coletivo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., 201327 SEMEDO, Carla. Noções estéticas na performance do Batuko: experiência etnográfica entre as batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago - Cabo Verde). In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Edições Marca Visual, 2013. p. 109-142., 2020)26 SEMEDO, Carla. As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano. Hawò, v. 1, p. 1-34, 2020..
  • 2
    Cabo Verde, país africano, composto por dez ilhas, sendo nove habitadas, encontra-se localizado a cerca de 500 km da Costa Ocidental Africana. Descoberto em 1460 pelos portugueses, o país conquista a independência em 1975. Atualmente, conta com 498.063 habitantes e, com mais homens (250.262) do que mulheres (247.801 mulheres) (INE, 202115 INE – INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. V Recenseamento geral da população e habitação (RGPH – 2021) - Resultados preliminares. Praia, 6 de agosto, 2021. Praia, CV: INE. 2021.).
  • 3
    A expressão é produzida dentro do léxico e da gramática do crioulo cabo-verdiano, a língua de conversação usada em Cabo Verde, cuja tradução para o português seria: dar com o torno. O ku torno remete à parte coreográfica do batuko, pois este é composto pelas partes melódica e coreográfica.
  • 4
    O artigo recupera os dados da pesquisa etnográfica, realizada no âmbito do mestrado em Antropologia Social da autora.
  • 5
    Vide Tavares (2006)30 TAVARES, Eugénio. Mornas cantigas crioulas. Luanda: Guida, 2006., Mariano (1952)17 MARIANO, Gabriel. A morna expressão da alma de um povo. Cabo Verde: Boletim de propaganda e informação, v. III, n. 30, p. 18-20, 1952., Lopes (1974)16 LOPES, José. A palavra morna. Cabo Verde: Boletim de propaganda e informação, v. V, n. 53, p. 27-28, 1974., Martins (198919 MARTINS, Vasco. A música tradicional cabo-verdiana I: a morna. Praia: ICLD, 1989., 1990)18 MARTINS, Vasco. Ensaio musicológico sobre a morna – forma musical cabo-verdiana. Praia: ICLD, 1990., Rodrigues e Lobo (1996)24 RODRIGUES, Moacyr; LOBO, Isabel. A morna na literatura tradicional: fonte para o estudo histórico-literário e a sua repercussão na sociedade. Praia: ICLD, 1996.. Recentemente, morna foi objeto de pesquisa antropológica (Braz, 20042 BRAZ, Juliana. Mornas e coladeiras de Cabo Verde: versões musicais duma nação. 2004. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2004.), na qual a pesquisadora buscou trazer os sentidos que os gêneros musicais e de dança (morna e coladeira) adquirem nas práticas e discursos identitários cabo-verdianos, nas diversas formas de sociabilidades, particularmente na Cidade de Mindelo, Ilha de São Vicente. De frisar que, em 2019, a morna foi consagrada a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
  • 6
    Esse estudo sobre as redefinições das noções de gênero no coletivo de batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde) visou, a partir de suas trajetórias pessoais/profissionais, etnografar as performances das corporeidades femininas no batuko e no ku torno, bem como analisar as narrativas musicais do coletivo. A etnografia apresentada ancorou-se no argumento de que nessas performances emergem formas diferenciadas de se pensar os corpos femininos e masculinos e as relações de gênero, em direção a uma possível subversão das relações de poder entre homens e mulheres. Igualmente, a etnografia discorreu sobre como os modos estéticos do fazer batuko e tchabeta permitem pensar os sentidos múltiplos dados ao batuko na relação entre as corporeidades de gênero e a realização do projeto individual de ser batukadeira profissional. Dentre os coletivos de batuko existentes na Ilha de Santiago, escolhi o das batukadeiras de São Martinho Grande, inicialmente pelas razões que levaram com que, de certa forma, não fizesse parte de uma lista de agremiações dessa natureza feita pelo então Instituto de Promoção Cultural: por ser na altura um coletivo ainda muito novo, recém-criado em inícios de 2007 e pouco conhecido no mercado de Showbizz dos coletivos de batuko.
  • 7
    São Martinho Grande, espaço rural, situa-se na Ilha de Santiago, na região Sul, a aproximadamente 10 km da Praia, capital do país e faz parte do município de Ribeira Grande. Conforme os dados do Censo 2000 (INE) São Martinho Grande tinha na altura uma população aproximada de 689 habitantes, sendo que a proporção de homens e mulheres é a mesma, oscilando em cerca de 1 a 2% para os homens. Do total de 689 habitantes, 492 pertencem a famílias chefiadas por homens e 197 por mulheres, sendo que para ambas, o tamanho médio do agregado familiar oscila entre 5,1 e 5,3 indivíduos. Ainda que São Martinho Grande tenha uma população jovem, a maioria dos habitantes na altura tinha a escolaridade baixa (escola primária) implicando, com isso, que as atividades econômicas realizadas fossem atividades informais como: mecânico, pedreiro, peixeira, prestadores de serviços gastronômicos, artesanato, criação animal (suína e avícola).
  • 8
    A Associação para o Desenvolvimento de São Martinho Grande, associação comunitária, foi criada em meados dos anos 2000, visando dinamizar o desenvolvimento local, buscando parceiros nacionais e internacionais além de possibilidade uma maior visibilidade à comunidade local.
  • 9
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Fomos 18 para Assomada, mas Otávio disse que só 13 iam subir no palco e depois só essas 13 que receberam remuneração e as outras ficaram com raiva por não terem subido, nem recebido nada. Ele depois veio a explicar que escolheu as que tinha visto no espetáculo na Várzea. Naquele dia que fizemos reunião, muitas colocaram esta questão de não estar recebendo nada e que por isso não iam continuar mais. Eu não concordo, pois estamos aprendendo ainda nos falta muito para ficarmos bons e depois nós precisamos de apoio para aparecer e as pessoas irem nos conhecendo. Por isso mesmo não tendo dinheiro temos de fazer, é uma forma de outras pessoas nos irem conhecendo”.
  • 10
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Otávio tem nos ajudado muito, ele nos dá muitas dicas e formas de melhorarmos tchabeta. Ele é muito bom e é bom que ele não nos largue. Tivemos um problema com a ida para Assomada, pois fomos todas e Otávio só pediu 13 que eram as que ele tinha visto no show que participamos na Várzea. As que não subiram ao palco e não receberam gratificação, cerca de 5 ou 6 pessoas, ficaram chateadas e uma saiu. Fizemos reunião, Otávio disse então que ia sair e Solange disse que não, que ele não ia sair, que saísse então outras pessoas. Assim, Marina saiu”.
  • 11
    Uma das personalidades políticas de referência da história colonial e dos movimentos de luta por libertação das então colônias portuguesas – Cabo Verde e Guiné Bissau – e um dos fundadores do Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Nos anos oitenta, a fusão Guiné-Bissau e Cabo Verde se rompe, e cria-se o Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV).
  • 12
    Para mais desdobramentos, vide Semedo (200928 SEMEDO, Carla. Mara sulada e dã ku torno: performance, gênero e corporeidades no coletivo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009., 2013)27 SEMEDO, Carla. Noções estéticas na performance do Batuko: experiência etnográfica entre as batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago - Cabo Verde). In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Edições Marca Visual, 2013. p. 109-142..
  • 13
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Como tínhamos que preparar a refeição, pilar o milho para fazer pratos tradicionais do casamento, para não dormirmos e estarmos sempre prontas para as tarefas, durante a noite brincávamos batuko até o amanhecer, durante 3 dias seguidos, até o dia mesmo do casamento”.
  • 14
    Para além da produção de CD/DVD’s, vários coletivos de batuko nacionais têm sites, nos quais divulgam os grupos, shows, discografias, fotos. Por outro lado, redes sociais tornaram-se recursos midiáticos de divulgação das práticas musicais e de danças cabo-verdianas para o público não cabo-verdiano, para os cabo-verdianos residentes no país e para a diáspora.
  • 15
    Para mais desdobramentos sobre essa questão, vide Semedo (2020)26 SEMEDO, Carla. As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano. Hawò, v. 1, p. 1-34, 2020..
  • 16
    Originalmente no crioulo cabo-verdiano: “Oras ki u’fazi batuko, u’ta fika sabi, filiz”.
  • 17
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “O dia a dia é só trabalho e casa. Quando fazemos batuko, ficamos reunidas no convívio e é um desabafo! É divertido! Cada qual a partir das letras vai falando do seu dia a dia e desabafando!”.
  • 18
    “Ó rapaz, já tive três filhos contigo / Não me ajudaste no sustento das crianças, não as registraste e agora estás voltando de novo com ideia de fazer 4. / Ó rapaz, saí do meu caminho, porque agora quero fazer minha vida”.
  • 19
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Não me lembro bem como fui aprendendo. Minha mãe fazia e eu fazia com ela. Também quando brincava com outras crianças, fazíamos batuko e nós íamos aprendendo uma com a outra. Mas ninguém te ensina mesmo. Tu vais aprendendo, vendo as pessoas fazerem. As minhas duas filhas sabem fazer, mas eu nem lhes ensinei, elas vão vendo as outras batukadeiras fazerem”.
  • 20
    Tradução do crioulo cabo-verdiano: “Eu, casada 15 anos com meu marido / Meu marido está pensando me abandonar, / porque uma mulher está sustentando ele. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me abandonaste. / Ó Meu marido, amor da minha vida, Ó Meu marido, segurança da minha casa. / Ó Meu marido, nossa cumplicidade. / Hoje foste embora, me deixaste morta, já me abandonaste”.
  • 21
    Para mais desdobramentos sobre as gramáticas eróticas do batuko, vide Semedo (2020)26 SEMEDO, Carla. As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano. Hawò, v. 1, p. 1-34, 2020..

Referências

  • 1
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  • 2
    BRAZ, Juliana. Mornas e coladeiras de Cabo Verde: versões musicais duma nação. 2004. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2004.
  • 3
    BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
  • 4
    BUTLER, Judith. Performative acts and gender constitution: an essay in phenomenology and feminist theory. In: BIAL, Henry. The performance studies reader Londres: Routledge, 2004.
  • 5
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  • 6
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  • 7
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  • 8
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    ÉVORA, Iolanda; GRASSI, Marzia (org). Gênero e migrações cabo-verdianas Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2007. p. 23-61.
  • 10
    FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós) colonial. Florianópolis: EDUFSC, 2002.
  • 11
    FURTADO, Carmem. Conquistando o espaço público: a música enquanto vector da identidade nacional em Cabo Verde. In: ASSEMBLEIA GERAL “GOVERNAR O ESPAÇO PÚBLICO AFRICANO”, 12, 2008, Dakar. Anais [...]. Dakar: CODESRIA, 2008.
  • 12
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  • 13
    GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
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    INE – INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. V Recenseamento geral da população e habitação (RGPH – 2021) - Resultados preliminares. Praia, 6 de agosto, 2021. Praia, CV: INE. 2021.
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  • 17
    MARIANO, Gabriel. A morna expressão da alma de um povo. Cabo Verde: Boletim de propaganda e informação, v. III, n. 30, p. 18-20, 1952.
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    » https://doi.org/10.1146/annurev.an.24.100195.003031
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    RODRIGUES, Moacyr; LOBO, Isabel. A morna na literatura tradicional: fonte para o estudo histórico-literário e a sua repercussão na sociedade. Praia: ICLD, 1996.
  • 25
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  • 26
    SEMEDO, Carla. As gramáticas eróticas do Batuko cabo-verdiano. Hawò, v. 1, p. 1-34, 2020.
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    SEMEDO, Carla. Noções estéticas na performance do Batuko: experiência etnográfica entre as batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago - Cabo Verde). In: LUCAS, Maria Elizabeth (org.). Mixagens em campo: etnomusicologia, performance e diversidade musical. Porto Alegre: Edições Marca Visual, 2013. p. 109-142.
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    SEMEDO, Carla. Mara sulada e dã ku torno: performance, gênero e corporeidades no coletivo de Batukadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago). 2009. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
  • 29
    STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva Campinas: Editora Unicamp, 2006.
  • 30
    TAVARES, Eugénio. Mornas cantigas crioulas Luanda: Guida, 2006.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Dez 2021
  • Aceito
    25 Abr 2022
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