Resumo
A reflexão proposta toma o caso de Cabo Verde para ilustrar a hipótese de que nem mesmo nas nações africanas pós-coloniais se desmantelou o racismo colonialista do quotidiano e, sobretudo, não se conseguiu demolir a antinegritude como afeto predominante na configuração do socius pós-colonial. O texto compreende três momentos analíticos, tomando como objetos: (i) comentários de internautas leitores de um importante jornal do país a respeito de um dos traços mais racializados do carnaval cabo-verdiano; (ii) reflexões de imigrantes a respeito da relação entre cabo-verdianos e os imigrantes africanos; (iii) a história de vida de um imigrante, para descortinar nela traços de antinegritude tramando as relações dos próprios imigrantes entre si.
Palavras-chave
racialização; ontologia do negro; racismo colonialista; africanidade; discursos antinegros
Abstract
This paper takes the case of Cape Verde to illustrate the hypothesis that not even in post-colonial African nations the colonialist racism of everyday life has been dismantled, and that, above all, anti-blackness has not been dismissed as the predominant affection in the configuration of the post-colonial socius. The text comprises three analytical steps, taking as objects of reflection: (ii) comments posted by readers of an important online newspaper in the country regarding one of the most racialized features of the Cape Verdean carnival; (ii) reflections of interviewed immigrants about the relationship between Cape Verdeans and African immigrants; (iii) the life story of an immigrant to uncover in it traces of anti-blackness plotting the relations of immigrants themselves with each other.
Keywords
racialization; black ontology; colonialist racism; africanity; anti-black discourses
Introdução
Nas últimas décadas, Cabo Verde tornou-se um país que recebe um afluxo significativo de imigrantes, além de turistas. Os constrangimentos impostos pelos serviços de fronteira aos imigrantes africanos de países vizinhos1 1 Sobre este assunto, veja-se Do Canto (2020). e um cotidiano de estigmas em relação a esse tipo específico de presença africana2 2 Ver Rocha (2009). Além desse trabalho, a pesquisadora tem publicado outros textos sobre a imigração oeste-africana nesse arquipélago. têm gerado um ressurgimento de problematizações quanto às identidades pertinentes a esse arquipélago. Internamente, as fissuras identitárias entre as ilhas também parecem marcadas pelo espectro da presença denegada do negro.
Um visitante estrangeiro desavisado que passasse pela ilha de Santiago e, após, visitasse a ilha de São Vicente (as duas principais das dez ilhas do arquipélago) provavelmente não perceberia nenhuma diferença nos fenótipos das pessoas de uma ou outra ilha. Diria, provavelmente, que são todas negras com algum grau de mestiçagem. Mas é comum que pessoas em São Vicente, mesmo quando são bem escuras, ainda se pensem como fisicamente mais próximas de um imaginado polo branco e que imaginem os badius (os oriundos) da ilha de Santiago como essencialmente tão negros quanto africanos. Não é objetivo deste artigo superestimar o fenômeno para além de seu enquadramento mais comum – como afirmações identitárias e de tipo bairrista, sem consequências significativas na política nacional além das reivindicações costumeiras de regionalização e descentralização. O que nos interessa aqui são as mobilizações do idioma da antinegritude, tanto por parte de cabo-verdianos como de imigrantes, e sua surpreendente naturalização num contexto em que os traços de fenótipo não são, a olho nu, substantivamente diferentes no percurso de uma ilha como Santiago para outra como São Vicente (os dois polos dessa oposição bairrista) ou entre caboverdianos, em geral, e os imigrantes africanos de países vizinhos estigmatizados sob a genérica exodefinição de Mandjaku. Os imigrantes oriundos de países como o Senegal, Guiné-Bissau, Mali, Nigéria, e outros países da costa ocidental africana geralmente rejeitam essa categoria homogeneizadora e pejorativa que advém de Manjaco, o nome neutro de uma das muitas etnias da Guiné-Bissau, e que, no modo como se viu sobrecarregado de estigmas em Cabo Verde, revela a antinegritude no arquipélago. Moeda corrente, mandjaku se tornou o outro nome do negro (e/ou do africano) mais profundo do que a negritude aceitável nessas ilhas.
O tema deste exercício emerge no pano de fundo das discussões sobre as condições de possibilidade de uma ontologia do negro na modernidade. Este ensaio expõe a impossibilidade de se levar uma vida de negro com importância nesse arquipélago, mas também busca retirar do fundo desse desprezo – pela vida de negro – as possibilidades de um outro modo de se ser nação num continente negro.
Mas, antes de iniciarmos, impõe-se esclarecer os conceitos que mobilizamos para esta análise. Tomamos por racismo colonialista um tipo de interação quotidiana em que sujeitos que se constituem como brancos estão em posição de vantagem em relação a sujeitos definíveis como não brancos, pelo simples fato das diferenças de fenótipo, em que os traços físicos de uma emblemática origem europeia carregam pressupostos de supremacia moral e intelectual. A hipótese que atravessa este artigo é de que essa modalidade de racismo não se confunde com o sentimento de antinegritude que pressupõe uma humanidade incompleta nos corpos sobrecarregados de traços de africanidade, mesmo nas situações em que brancos não estão presentes nas interações cotidianas. Para cotejarmos essa hipótese principal, que distingue racismo de antinegritude, na primeira parte do artigo mobilizamos um corpus de textos escritos por leitores (a título de comentários de notícias) de um dos principais jornais cabo-verdianos online: o Notícias do Norte.3 3 Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/. O tratamento analítico que daremos a esse corpus instrumentaliza ferramentas da análise de discurso, da análise de conteúdo e da frame analysis. A escolha desse jornal deve-se ao próprio contexto da contraposição bairrista entre badius e sampadjudus em Cabo Verde. Na sequência, buscamos esclarecer o contexto dessa contraposição, mas já mobilizando o corpus de discursos antinegros do referido jornal. Na segunda parte do artigo, analisaremos posicionalidades de imigrantes africanos estigmatizados no arquipélago sob a categoria mandjaku, a partir de entrevistas desencadeadas pelos autores do artigo e analisadas sob a mesma metodologia com que tratamos os comentários no Notícias do Norte.
Na primeira parte do artigo, sustentamos que, na reação de uma parte da pequena-burguesia4 4 É Bourdieu (2007) quem melhor chama a atenção para a ansiedade da pequena-burguesia para impor o reconhecimento de sua importância social e cultural em demonstrações insistentes de descontentamento em relação ao sistema social que a ameaça de desclassificação. No caso da ilha de São Vicente, o sistema social ameaçante é conotado como o centralismo da capital. As tomadas de posição nas margens de um jornal online, aberto a comentários de leitores, podem ser aqui lidas como expressões de uma pequena burguesia intelectual em busca de uma improvável redistribuição de recursos para afirmação de continuidade da primazia no arquipélago da pequena burguesia colonial de Mindelo durante o colonialismo português. Chamamos aqui de julgamentos pequeno-burgueses um tipo de opinião sobre assuntos tidos como político-culturais que se pretende suficientemente abalizado e pertinente para merecer a rodada dos debates de leitores de um jornal online. Se, como sugere Bourdieu, “a probabilidade de produzir uma resposta propriamente política para uma pergunta constituída politicamente cresce à medida que se sobe na hierarquia social (e na hierarquia das rendas e dos diplomas escolares)” (Bourdieu, 2007, p. 400), no caso cabo-verdiano deve ser propriamente pequeno-burguesa a pretensão de opinião abalizada que, no ato, expressa a ausência de recursos políticos para a sua alocação nos espaços de tomada de decisões administrativas e governamentais. da cidade de Mindelo às coreografias mais “negras” do maior carnaval do arquipélago, reproduzem-se as características essenciais da dupla inseparável, a negrofilia à flor da pele, que disfarça uma negrofobia de fundo. Antes da independência nacional, em 1975, embora Praia, na ilha de Santiago, fosse a capital dessa província colonizada por Portugal, Mindelo, na ilha de São Vicente era, em meados do século XX, uma cidade mais urbanizada na esteira da constituição de seu porto como o mais importante do arquipélago. A construção do principal estabelecimento de ensino nessa ilha do norte do arquipélago, a intensa presença de navios estrangeiros e o afluxo de estudantes das demais ilhas para esta que se apresentava como a capital cultural do arquipélago favoreceram uma cultura com pretensão cosmopolita.5 5 A pretensão de cosmopolitismo da cidade é problematizada por Daun e Lorena (2017) em termos com os quais basicamente concordamos. Paradoxalmente, os mindelenses reivindicam uma tradição cosmopolita que funciona como mecanismo de fechamento e distinção cultural em relação ao resto do arquipélago e ao intenso fluxo de imigrantes africanos para o arquipélago. A descolonização, em 1975, rapidamente desfez essa geografia e o imenso crescimento da burocracia estatal pós-colonial fez com que a capital – Praia – passasse a concentrar a maior parte dos recursos do arquipélago e a abrigar a maior parte dos quadros da estrutura administrativa governamental. Mesmo que uma boa parte das posições administrativas seja ocupada por quadros com origens parentais em outras ilhas, por terem nascido ou residido há muito em Santiago, parecem, grosso modo como badius e essa centralização administrativa é denunciada por boa parte das classes médias do norte do arquipélago como uma espécie de colonização interna. O que se tem nas frequentes tomadas de posição contrárias à centralidade da capital é a manifestação de uma disposição a se fazer recuperar como vanguarda cultural do arquipélago e uma forma de obsediar os pequenos burgueses em ascensão localizados na capital. Bourdieu nos lembra que:
o ressentimento encontra-se, evidentemente, na origem das tomadas de posição reacionárias ou revolucionárias-conservadoras dos pequeno-burgueses em declínio que, preocupados em manter a ordem por toda parte, tanto na moral doméstica quanto na sociedade, investem na indignação moral contra a degradação dos costumes toda a sua revolta contra a degradação de sua posição social
(Bourdieu, 20073 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007., p. 409).
Como a linha divisória entre a ilha de badius (supostamente dominante) e as demais ilhas de sampadjudus é pensada também como uma linha de cor, em que os badius seriam os mais negros e os sampadjudus quase brancos, propomos pensar, nas seções seguintes, sobre as condições de possibilidade de afetos antinegros, num país de negros.
Das reviravoltas de um blackface
Mindelo é reconhecida como a capital do carnaval cabo-verdiano. Os desfiles, com seus carros alegóricos exuberantes, irradiando algo do glamour dos desfiles do Rio de Janeiro numa situação de maior proximidade entre o público e as escolas, provocam um clima de efervescência de grande intensidade de calor humano. Aqui, gostaríamos de pontuar um dos momentos particularmente intensos desse carnaval, o desfile dos Mandingas, um dos pontos altos desse que é o maior carnaval das ruas de Cabo Verde. Nesse ponto, jovens da periferia de Mindelo, intensamente pintados de um escuro oleoso, exibem uma alegórica ferocidade das tribos africanas com flechas, lanças e barbatanas ao som dos tambores em repique. O que faz brilhar o momento é que esses jovens já pretos, pintados com um óleo e/ou restos de carvões dos carburantes de motores de carros ou de pilhas elétricas parecem mais negros ainda e agitam suas armas em direção a um público em contágio. No modo como encenam uma suposta selvageria africana, poderíamos argumentar que se trata de uma versão crioula do blackface que marca uma das formas de escárnio antinegro particularmente desenvolvido nos Estados Unidos. Pode ser o caso, mas nada justifica a pouca atenção às dimensões raciais do fenômeno, quando, de forma evidente, se performatiza uma negritude exuberante e esteticamente agressiva. As poucas etnografias do carnaval de Mindelo colocam a tônica nas relações de classe e extratos de prestígio, e no carnaval como estando em ruptura com as coincidências entre bairros e estratos sociais, como se na irreverência dos segmentos suburbanos estivesse ausente qualquer dimensão racial.6 6 A maior parte dos estudos que relacionam os mandingas e questões raciais exploram as afirmações explícitas de desidentificação dos praticantes com supostas raízes africanas (Daun; Lorena, 2017; Dias, 2016). Por outro lado, a etnografia de Neves (2018) carrega entrevistas dos brincantes que acentuam a ancestralidade africana reivindicada na forma mandinga de brincar o carnaval. O que esses enfoques deixam de fora é um questionamento sobre a dinâmica inconsciente do desejo que anima esses protagonistas e demais participantes do carnaval e espectadores.
Os mandingas se configuram como uma performance que reclama uma câmera fotográfica e exige que essa seja a de um branco, preferencialmente um turista. A hipótese, aqui, é que, ao ativar as dimensões fóbicas da negrofilia, os jovens recriam, exigem e caricaturam o olhar branco amedrontado como parte exigida e não explícita da cena. Um evento puramente espetacular, uma explosão de virilidade que não é tanto a performance do que teriam sido os mandingas, mas de como os africanos foram capturados pelo olhar branco – os mandingas de Mindelo são a performance do olho do colonizador, o que essa vista de cima teria capturado para tornar fungível. A reconstituição em carne viva do que o branco queria ver no momento da captura e da desumanização dos corpos negros disponibilizados para a escravidão abre uma brecha de indecidibilidade na temporalidade linear dos processos de emancipação negra.
Mestres de sua apresentação, os mandingas controlam e dirigem o olhar branco para o simulacro e, no gesto, denunciam o olhar colonial que cria o estereótipo. Essa performance não apenas contém a poesia do ser do negro como estado cadavérico, mas no ato reclama e sustenta o olho branco, utiliza e explora essa pulsão, a pulsão do prazer do consumo do corpo negro.
Se esse tipo de performance – como sugere Marriot (2016)14 MARRIOTT, David. Corpsing; or, The matter of black life. Cultural Critique, v. 94, p. 32-64, 2016. https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032
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, para a poesia de Césaire – pode ser tomado como uma estética da negritude, é precisamente na medida em que eclode nela algo simultaneamente fúnebre e fantástico, algo irredutivelmente mítico, um sinal de uma transcendência inevitável, mas incognoscível. Fúnebre na exata medida em que remete a ancestrais falecidos sem relíquias e sem memórias, mas sobretudo porque remete à verdade do estado cadavérico do ser do negro (Marriott, 201614 MARRIOTT, David. Corpsing; or, The matter of black life. Cultural Critique, v. 94, p. 32-64, 2016. https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032
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; Sexton, 200818 SEXTON, Jared. Amalgamation schemes: antiblackness and the critique of multiracialism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.). É como um significante surgido do nada que a negritude dos Mandingas ressuscita o que já se considera socialmente morto. Esse sinalizador se posiciona, por assim dizer, no espaço definido pelo racismo para o ser do negro. Melhor dizendo, no não ser em que o racismo faz o espectro do negro emergir como uma zona onde a vida e a morte nada significam. Essa negritude torna-se, assim, portadora de uma nova performatividade, daquela que fala por aqueles que estão no além, na petrificação da escuridão.
Tal como na definição de negritude de Césaire, a performance mandinga pode ser apreciada como o resultado de uma recusa que é também uma reanimação, dando nova vida ao socialmente morto (Marriot, 201614 MARRIOTT, David. Corpsing; or, The matter of black life. Cultural Critique, v. 94, p. 32-64, 2016. https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032
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). Numa cena que envolve uma palpável ansiedade erótica que escapa de uma masculinidade negra suburbana em exibição de si mesma como um outro, a tensão entre a distância e a vontade de afirmação de uma presença pulsante é o que traz a sensação de transcendência. Só aparentemente um ato de ridicularização do negro selvagem, a encenação parece mais um percurso por si mesmo como um outro, o devir negro de uma juventude banida numa cidade cuja elite com frequência não se pensa como negra. Esse devir selvagem se faz, portanto, uma visita improvável a dimensões reprimidas da história cabo-verdiana, o ato de frequentar o insuportável só possível àqueles que carregam forças suficientes de escuridão para uma operação arriscada de deslocamento de si em direção ao inumano.
A verdade exposta na performance é a de que o ser do negro não se dá sem essa dobra em que a pessoa se faz espectadora de si mesma, o humano frente à sua não humanidade, a emergência da escuridão como abjeção no cerne de reivindicações precárias por dignidade humana. Sem dúvida, os mandingas recriam os rituais de espetacularização da condição negra que estimularam o desejo de posse do corpo negro, consumado na escravidão, “uma força de trabalho entusiasta e insensível à dor” (Ajari, 20191 AJARI, Norman. La dignite ou la mort: éthique et politique de la race. Paris: Les empécheurs de penser en rond, 2019., p. 176). Traz-se de volta o tempo do corpo negro como o espetáculo do aquém do humano, num tipo de ato radical que excede tanto o significado quanto o julgamento (Marriott, 201614 MARRIOTT, David. Corpsing; or, The matter of black life. Cultural Critique, v. 94, p. 32-64, 2016. https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032
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).
Ao se oferecerem aos espectadores em obscena teatralidade como o percurso por uma alteridade, enquanto um si mesmo essencial, a força da representação de negritude acusa a exclusão constitutiva que fundamenta a partição moderna entre civilizados e selvagens. Se o espetáculo impregna e seduz, é porque traz a negritude como um significante surgido do nada, ressureição do socialmente morto. Essa encenação da economia libidinal do olhar europeu sobre os africanos poderia ser vista como a reconstituição dos pressupostos da maquinaria do sadismo transatlântico. A encenação remete aos modos como se engendraram as possibilidades de instrumentalização do corpo negro como corpo selvagem, substituível e fungível (Hartman, 199711 HARTMAN, Saidiya V. et al.Scenes of subjection: terror, slavery, and self-making in nineteenth-century America. Oxford: Oxford University Press, 1997.; Wilderson III, 201020 WILDERSON III, Frank B. Red, white & black. Durham: Duke University Press, 2010.).
Mais ainda, remete aos modos como os corpos negros são enquadrados na ordem dos desejos, quando os dirigentes do país apostam na ideia de que a pobreza precisa de uma saída e que ela reside na indústria do turismo e das possibilidades de que tudo se torne vendável sob uma insustentável passagem consumista dos outrora colonizadores.7 7 Confronte-se o artigo de Anjos (2012) acerca do turismo sexual no arquipélago. Quando vidas são convertíveis em fontes de prazer e de distração para o branco, a periferia de Mindelo reencena o desastre que permanece sendo o desencontro entre europeus e africanos. Ao encenar a ontologia racial moderna no seio da qual a única relação possível entre o corpo branco e a carne negra é uma relação de uso, os Mandingas do carnaval mindelense expõem a fenda da nervura do mundo e a insuportabilidade dessa aparição é acusada pelas classes médias de Mindelo exigindo uma rápida reterritorialização. É essa reação quase branca das classes médias de Mindelo que nos propomos pensar na seção seguinte.
Sob os olhos das classes médias mindelenses
Em janeiro de 2013, internautas, leitores do jornal Notícias do Norte reagiram enfaticamente à notícia de que o então Ministro caboverdiano da cultura, Mário Lúcio Sousa, pretendia levar os Mandingas para desfilarem na capital durante um mês, o que privaria Mindelo de um de seus mais fortes atrativos carnavalescos naquele ano (“Mário Lúcio quis levar Mandingas...” 201313 MÁRIO Lúcio quis levar Mandingas de Ribeira Bote para o carnaval da Praia. Notícias do Norte, 30 jan. 2013. Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/mario-lucio-quis-levar-mandingas-de-ribeira-bote-para-o-carnaval-da-praia/
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). O evento foi explorado à exaustão por comentaristas do referido jornal, lugar de frequente expressão identitária pequeno burguesa8
8
É ainda Bourdieu quem nos lembra o quanto é pequeno-burguesa a própria relação com o jornal que se lê como “jornal de opinião”. Se seguirmos a sociologia da leitura de jornais que nos propõe Bourdieu em A distinção, seremos tentados a estender a Mindelo a hipótese de que as tomadas de posição nas margens destinadas aos comentários expressam bem a pretensão pequeno-burguesa à opinião pessoal correlacionada à “desconfiança em relação a todas as formas de delegação, sobretudo, na política” e que “inscrevem-se logicamente no sistema das disposições próprias a indivíduos, cujo passado e projeto baseiam-se na aposta da salvação individual, escorada nos dons e méritos” (Bourdieu, 2007, p. 389).
de Mindelo. Ao projetar sobre o badiu a efetividade da selvageria expressa na fantasia dos mandingas, o olhar médio de Mindelo dá um passo a mais para escapar da negritude, manipulando uma suposta distância entre mais e menos mestiços, a ilha mais e menos negra, a cultura mais e menos africana. As classes médias mindelenses projetam uma parte do arquipélago como o lado negro, sobre o qual é possível projetar a distância da inumanidade do puramente negro. Uma das formulações de sentimento antinegro no comentário a essa notícia foi quando um dos leitores escarneceu:
Ma levà mandinga pa kè??? 1 lugar simà Praia xei de mosca badiu e mandjck, inda crè nòs mandinga de fantazia? Sò se era palhiass, pa mod ès È palhiass ma mute fei, pa fazè arri algem… viva NòS SONCENT!!!!!!!!!!!!!!!!!
(comentário na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 201313 MÁRIO Lúcio quis levar Mandingas de Ribeira Bote para o carnaval da Praia. Notícias do Norte, 30 jan. 2013. Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/mario-lucio-quis-levar-mandingas-de-ribeira-bote-para-o-carnaval-da-praia/
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[Mas, por que levar os mandingas se a Praia já é um lugar de moscas, badius e mandjakus. Ainda querem levar os nossos mandingas de fantasia? Só se fosse para se fazerem de palhaços, porque eles – badius e mandjakus – são palhaços, mas muito feios para que alguém ria deles. Viva o nosso São Vicente!].
Ao franquear o espaço entre o ser e o simulacro e se projetar do lado humano da fronteira antinegra, esse olhar mindelense o faz no lugar de pessoas de cor, mas não negras. O erotismo desses jovens negros travestidos se decompõe sob esse olhar das classes médias no ácido da cisão entre o mandinga de fantasia e o mandinga real, entre a performance e a realidade. O comentário captura a ginga mandinga e a reduz a um típico blackface, supõe que os Mandingas de Mindelo são de fantasia, mas as pessoas da Praia carregam algo de próximo ao que são realmente os mandingas. Apoiando-nos nas explorações psicanalíticas afro-pessimistas (Marriott, 200015 MARRIOTT, David. On black men. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000.; Sexton, 200818 SEXTON, Jared. Amalgamation schemes: antiblackness and the critique of multiracialism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.) buscaremos reconstruir a economia libidinal em que se insere esse tipo de apreciação antinegra. Nosso apego a escrever visando o inconsciente racista não é tanto um esforço para deslocar as razões conscientes que os sujeitos manifestam para se pintarem de preto, mas um esforço para entender a multiplicidade de linguagens que reside no evento e a forma como essas linguagens estão a ser mobilizadas em relações de poder que manifestam tanto interesses e engajamentos conscientes quanto desejos inconscientes. Trata-se de pôr em jogo uma economia de descrição diferente daquela da redução dos mandingas à expressão dos interesses das classes suburbanas de Mindelo. Se nos impõe levar em conta com rigor um contexto sociopolítico permeado pela colonialidade, local e global, e o modo como esse se articula com estruturas micropolíticas e infrapessoais de constituição racial. Sem uma compreensão da materialidade do funcionamento de um inconsciente racista não se poderia entender que vários e diferentes comentaristas da mesma notícia estejam a enfatizar o paralelo entre a fantasia dos mandingas e a realidade dos badius.
Eu Pedro Brito digo assim para kem presiço de mais mandinga se ai a MUITOS.
(comentário na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 201313 MÁRIO Lúcio quis levar Mandingas de Ribeira Bote para o carnaval da Praia. Notícias do Norte, 30 jan. 2013. Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/mario-lucio-quis-levar-mandingas-de-ribeira-bote-para-o-carnaval-da-praia/
https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/ma... ).
[Eu Pedro Brito digo isso: por que precisam de mais mandingas se há muitos lá?].
E para que não haja dúvidas sobre o sentido largamente compartilhado da assertiva, vemos um mindelense a reclamar, em tons de náusea, em relação à moeda corrente do desprezo sampadjudu pelo badiu:
sinto-me envergonhado de ser mindelense, sinceramente, nós os mindelenses não keremos enxergar aquilo k somos. na minha modesta opinião o ministro quiz simplesmente mostrar a cultura mindelense a outras regiões devíamos era sentir orgulho. com toda certeza se fosse um convite para mostrar a nossa cultura aos estrangeiro num país fora a reação seria diferente. pior ainda alguns retardados a chamar o povo de santiago de mandingas, daahhh. k barbaridade!! Os santiaguenses estão nem aí pra nossas…
(comentário na notícia “Mário Lúcio quis levar Mandingas...”, 2013).
A antinegritude é aqui a estratégia de pessoas negras que, para sobreviverem a um mundo de supremacia branca, precisam se pensar como não tão negras. Desse modo, ao tempo em que fornecem cobertura para o humanismo antinegro emanado da Europa colonialista, estão compelidas a encontrar um lugar num imago humano universal que é, na verdade, um imago específico e singular – que elabora a essência da humanidade como brancura, como não negritude. Acredita-se, assim, estar no direito de se beneficiar do sistema de despojos da supremacia branca planetária pelo menos ao nível do arquipélago.
Ao oferecer “seus” mandingas “de fantasia” ao cultivo da negrofilia, as classes médias de Mindelo intermedeiam a negociação da identidade da juventude suburbana de Mindelo, expõem seu “produto” ao feitichismo e recriam a cena do voyeurismo branco como sintoma de uma autoilusão. Assim, os mandingas que podem estar a vivenciar uma afirmação das potências da negritude são capturados pelo discurso identitário bairrista e reconvertidos numa abjeta forma de blackface. É o privilégio da ilusão que as classes médias reivindicam sob a prerrogativa de que os nossos mandingas são de fantasia. Do alto de seus comentários, o olhar das classes médias mindelenses faz de sua visada uma coextensão dos olhos do império e goza da miragem negra como se esta fosse um outro de si mesmo, autocontemplando-se como os brancos negrófilos de outrora em suas varandas coloniais. Ao fazer turistas brancos pagarem pelas suas próprias fantasias de não negros, esse olhar mindelense se instala num lugar de sujeito na “obscena teatralidade do comércio de escravos”, um lugar de intermediários na cena de projeção de desejos brancos sobre corpos negros.
Que cena contempla esse olhar fortemente conformado pelos estigmas da antinegritude? O que esse olhar percebe é a negritude não como vida, mas como uma morte social a ser rejeitada. É certo que, para os jovens dançarinos, essa mesma morte é agora abraçada e realizada de forma diferente do que o cruel riso das classes médias. Isso significa que não há racismo necessariamente na performance, pois o racismo não é estritamente uma questão de significado, mas de desempenho (Marriott, 200015 MARRIOTT, David. On black men. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000.) – nesse caso, do desempenho de quem compara os mandingas e as pessoas “da Praia” cheia de moscas, gente feia e africanos.
Mesmo que a performance mandinga seja distinta da cruel política da blackface, o modo como é capturada pelo olhar das classes médias de Mindelo traz à tona a verdade do estado cadáverico do ser do negro. Esse olhar se posiciona onde o racismo fundamenta o ser do negro como uma zona morta em que a vida e a morte negra nada significam. O que os mandingas desenvolvem nas ruas é uma poética da negritude que encontra sua mais acabada decifração nos códigos dos coveiros da negritude, nessas classes médias que lutam para abandonar a pele como uma cobra envelhecida. O que o olhar mediano de Mindelo capta é o negro como o cômico, o feio, o contagioso, o vergonhoso, simbolizado belamente pelos mandingas. Nesse encontro com o negro pobre, feio, cômico, o olhar mediano é a risada racista que articula uma cumplicidade de sobrevivente com o riso de um homem branco imaginário. A vergonha significa aqui a revelação explosiva da cumplicidade com o racismo do qual, nós negros, não podemos escapar nem suportar a não ser ao custo da covardia. A promessa de um imago humano universal convida as pessoas que podem se apresentar como sendo de cor, mas não negras, a abraçarem um lugar quase branco num mundo rachado por hierarquias raciais.
O problema é que esse olhar mindelense não está errado. Pessoas racialmente negras não podem estar vivas na coetaneidade do devir branco do mundo moderno, porque experimentam o traço de raça no humanismo subjacente a esse progresso que as desloca constantemente à condição de artefatos pré-humanos. Nossa leitura pode até trazer à tona os afetos negativos que se abateram sobre o comentarista em seu riso racista imaginariamente compartilhado numa roda branca, mas não há como escapar do cômico e do feio, a alienação que segue o rastro de qualquer evocação pública do negro.
É por isso que o desejo da supremacia branca subjacente a esse desespero por se apresentar como pessoas de cor, mas não negras, membros plenos da comunidade humana e que reforça a exclusão constitutiva das pessoas que não podem escapar das insígnias da negritude não atinge, no arquipélago, apenas os mindelenses. Esse reforço da exclusão por participação júnior no empreendimento da supremacia racial branca é vivenciado também na partição entre cabo-verdianos e mandjakus na ilha de Santiago.
Antinegritude na ilha mais negra
Voltemo-nos agora para a figura da imigrante residente naquela que poderia, segundo a geografia cabo-verdiana das nuances raciais, ser tida como a mais negra das ilhas do arquipélago. Encravada no meio da ilha supostamente mais negra do arquipélago, é em Assomada que encontramos Amina, uma enfermeira guineense, assediada pelos serviços de imigração, pelo racismo da professora da filha e embrenhada no trabalho desqualificado de vendedora de rua de alimentos prontos. Amina julga a situação de “sem papel” como geralmente frágil. Tem dificuldades para lidar com a burocracia dos serviços de fronteira, percebe que ela é feita para dificultar. “Pedem-nos todos os papéis do mundo, nós os procuramos e trazemos, mas não nos dão a residência à mesma”. Sente-se insegura, não são comuns as rusgas aos estrangeiros, mas ela sabe que corre o risco de ser deportada. “Na terra dos outros, para teres estabilidade tens de ter documento. Tu estando na terra de alguém sem documento, terás estabilidade?” As dificuldades na legalização são feitas de modo a produzir um efeito de interiorização da descartabilidade. Amina percebe o fato de já estar em Cabo Verde há mais de cinco anos, tendo filhos que nasceram no país, como uma injustiça. “Não concordo com isso. Ainda mais, eles pedem papéis, procuras todos eles e levas, mesmo assim não te dão”.
Na literatura sobre a imigração em Cabo Verde, já está dado que as pessoas provenientes dos países da Comunidade Econômica dos Estados da África ocidental (CEDEAO) têm lidado com um grande constrangimento relacionado à sua situação legal. Supõe-se que essas dificuldades têm a ver com a situação mais geral da imigração sob a globalização tardia do capital (Furtado, 201210 FURTADO, Clementina. As migrações da África Ocidental em Cabo Verde: atitudes e representações. 2012. Tese (Doutorado em Ciências Sociais e Políticas) – Universidade de Cabo Verde, Praia, 2012., 20169 FURTADO, Clementina. Mobilidade na CEDEAO. As condições de entrada e de regularização dos cidadãos comunitários em Cabo Verde. In: ÉVORA, I. (org.). Diáspora cabo-verdiana: temas em debate. Lisboa: CEsA/ISEG, 2016. p. 106-128.; Do Canto, 20207 DO CANTO, Paulino. Mobilidades, Fronteiras e Integração Regional: livre circulação de pessoas na CEDEAO? O caso de Cabo Verde. 2020. Dissertação (Mestrado em Integração Regional Africana) – Universidade de Cabo Verde, Praia, 2020., 20216 DO CANTO, Paulino. As fronteiras insulares no contexto da mobilidade/migrações internacionais: o caso de Cabo Verde (África). Alamedas, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 76–97, 2021. DOI: 10.48075/ra.v9i1.26896. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/view/26896. Acesso em: 7 nov. 2021.
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). Gostaríamos de acrescentar a essa explicação o modo de funcionamento da antinegritude, que envolve o fenômeno quando os migrantes são africanos em Cabo Verde. Como o direito internacional está conformado de modo a assegurar a hegemonia euro-americana, os dispositivos regionais africanos de controle de fluxos migratórios funcionam como arremedos dos dispositivos europeus de rejeição à figura do migrante de terceiro mundo. No caso cabo-verdiano, essa lógica da importação dos modelos ocidentais de controle dos fluxos migratórios assume cada vez mais a forma caricatural de uma rejeição branca ao imigrante negro. A dimensão racial das políticas de contenção das migrações permanece implícita quando são os africanos subsaarianos os mais constrangidos nas fronteiras e nos processos de legalização em Cabo Verde. As elites cabo-verdianas permanecem pensando o arquipélago nas mediações de poder norte-sul, buscando tirar partido da situação de apartheid global, posicionando-se ele próprio como uma fortaleza para si e como parte da muralha que deve estancar o afluxo de negros pobres aos países afluentes.
Amina vive em Cabo Verde há quase seis anos e permanece sem documento, embora tenha tentado legalizar-se por duas vezes. Nascida em Bissau, veio para estar com o marido que já é imigrante no país há uma década. O esposo de Amina é professor de Educação Física numa escola secundária e, segundo ela diz, “trava guerra com ele todos os dias a propósito dessa opção por Cabo Verde”. Amina é enfermeira de formação e exerceu essa profissão na cidade de Bissau durante 11 anos no Centro de Saúde de Cuntum-Madina até ser iludida pelo marido que lhe asseverou que teria trabalho garantido como enfermeira quando viesse para Cabo Verde. Mesmo sabendo que ele se opunha a ela sair de casa e trabalhar fora já enquanto em Bissau, Amina arriscou quando os seus pais, um carpinteiro e uma bidera9 9 Nome dado às mulheres comerciantes “informais” na Guiné-Bissau e que segue com elas, também, na imigração. naturais da região de Biombo, ambos sem instrução formal, da etnia Papel e residentes em Bissau, a convenceram de que essa era a decisão mais acertada; afinal, o lugar da mulher é junto do marido e dos filhos.
Quando Amina destaca sua incompreensão perante o sistema de regularização dos imigrantes, ela critica o fato de suas crianças, mesmo quando nascidas em Cabo Verde, não serem reconhecidas automaticamente como nacionais nativos. No seu entendimento, esse passo seria o mais óbvio em vez de serem tratados juridicamente como os seus pais e terem de atingir a maioridade para submeter o seu pedido à nacionalidade cabo-verdiana. Fica evidente que o direito internacional em que se baseiam tais exigências de papéis não é mais do que um instrumento da luta constante por supremacia branca planetária (Ajari, 20191 AJARI, Norman. La dignite ou la mort: éthique et politique de la race. Paris: Les empécheurs de penser en rond, 2019.).
Adiciona-se a este ponto o fato de as origens vincularem-se às fantasias dominantes da “raça” e da territorialidade (Kilomba, 201912 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019., p. 117), na medida em que o imigrante é atravessado por uma construção e narrativas em torno do pertencimento, questionando-se sua posição dentro do território nacional, e provocando uma incompatibilidade entre si e a nação, a nacionalidade ou cultura nacional (Kilomba, 201912 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.). Amina, sobre essa matéria, apreende uma relação desigual em jogo no seio das interações com os cabo-verdianos, mas constata que em nenhum lugar do mundo os imigrantes conseguem estar em pé de igualdade com os “fidju di terra”,10 10 Filho da terra. isto é, com os nacionais nativos. Tomada por si só, essa declaração angustiada de Amina nos interpelaria aos dilemas éticos mais gerais da emigração. Mas, se articulada a outros momentos de sofrimento sob sua posicionalidade de mulher negra, somos mergulhados num plano mais assombroso de desterro: o plano da própria humanidade. É da seguinte forma que reportou a situação que mais a marcou em Cabo Verde e que envolveu uma das filhas, nascida no arquipélago: “A filha mais velha é boa aluna, muito dedicada, então, a professora dizia aos seus colegas como é que eles deixavam uma mandjaka vir superar-lhes? A razão por que cabo-verdianos precisam ter melhor desempenho fica soterrada sob a malha de estigmas que tece o significado de mandjakus, no arquipélago. Amina não se conteve e, em que pese os conselhos em contrário do esposo, foi à escola. “Fui dizer à professora para não chamar a minha filha de mandjaka, que ela é humana tanto quanto os seus colegas e que se estes não têm cabeça para aprender a matéria e ela sim, que ela é ela”. Na concepção da professora, os cabo-verdianos têm o dever, o compromisso de serem os melhores alunos do que uma mandjaka e, supostamente, isso é uma condição inerente ao ser autenticamente cabo-verdiano. No mínimo, é o que a professora espera deles. Depois de algum tempo em Cabo Verde, Amina sabe que a filha confrontada está inserida no cerne de um antagonismo estrutural entre a condição de mandjaka e a condição de humana. Quando uma mulher negra precisa reivindicar a condição humana da filha, ela se sabe posicionada no ponto em que a negrura desliza em direção à inumanidade. Foi dizer à professora para não a chamar de mandjaka, que ela é humana – essa oposição entre humanidade e a condição de mandjaka não é inocente. Quando chama a atenção da professora para o fato de que sua filha é humana, ela exibe angustiada um alçapão sob os pés, a negrura como nervura do mundo, o ponto relativo que qualquer corpo negro pode ocupar e que é o do deslizamento para o absoluto, o aquém do humano.
Em sua reclamação deslocada, Amina nos lembra a condição mais fundamental da mulher negra num mundo antinegro: a de portadora de um natimorto, de alguém cuja condição de humano se dissolve no próprio gesto da demanda de verificação. Não se trata aqui da parábola da luta por reconhecimento. Antes da demanda “reconheça minha filha como humana”, subjaz a interrogação fundamental “o que preciso fazer para que minhas crias sejam tomadas como humanas se não basta criá-las para serem melhores alunas?”. Quando alguém precisa dizer o que deveria ser óbvio, redundante e banal, “minha filha é humana”, o que fica implícito é que se trata de uma humanidade sob verificação, o que não deixa de ser a constatação da inumanidade da trama de relações em que o ser se oferece como negridão.
Sigamos a percepção aguda da migrante submetida a essa inumanidade fundamental. Amina percebe a discriminação a que é submetida como sendo efetivamente racial e contrasta a situação com a de uma conterrânea sua, tida “por cabo-verdiana, porque tem cor”. A essa migrante, que tem um fenótipo mais próximo do tido como mais comum em Cabo Verde, diz Amina que nunca a tomam por guineense. E acrescenta: “Eu vejo outros cabo-verdianos mais pretos do que nós, mas não falam que são mandjakus. Mas, a nós eles chamam. Eu também não gosto disso; considero que é uma discriminação mesmo.” Em princípio, é a diferença de fenótipo que define quem são os mandjakus ou não. Mas, apenas em princípio. É a evitação da possibilidade do contágio que demarca a fronteira na cor da pele. Mas, numa nação de negros, fronteiras na cor da pele não deixam de ceder espaços para incongruência entre o fenótipo e a escuridão esperada. É contra essa inconsistência que Amina esbraveja: “cabo-verdianos mais pretos do que nós”, não são tidos como mandjakus e a conterrânea guineense que é tão mulata quanto a maioria dos cabo-verdianos também não é designada. Se o cabo-verdiano tão escuro quanto um mandjaku não é mandjaku é porque o estigma atinge uma qualidade moral sob a cor da pele; então, essa imoralidade contagiante ganha uma geografia, são os africanos da costa. Mas, nem todos os africanos da costa, não os de fenótipo e comportamentos tidos como suficientemente próximos dos cabo-verdianos num plano de embranquecimento. A negrura do mandjaku é, na verdade, apenas a máscara. O dedo negrófobo aponta para a máscara e crê que existe algo para além da máscara que é da ordem do espírito, mais propriamente de uma degeneração espiritual. O que é designado como mandjaku nada é senão a escuridão de que a cabo-verdianidade deve se desembaraçar no plano do ser e não apenas do aparecer. Aquela feiura sintomática de uma sub-humanidade no plano espiritual é o espectro, o lado obscuro da cabo-verdianidade. A existência desse ponto de deslizamento absoluto para a zona de morte social é o que as encenações de não negros, num cotidiano pós-colonial, tentam encobrir nas supostas pequenas intrigas de humanos.
Questionada sobre o que significa ter cor, Amina refere que eles, os mandjakus, são africanos, pretos, e que os cabo-verdianos têm cor por serem misturados. No gesto, Amina aceita a racialização da diferença assente na cor da pele, desde que esse sistema de classificação se estenda a outros sistemas de diferenças que ela podia reconhecer na sua Guiné. Existem várias raças na Guiné-Bissau – sugere – Papéis, Balantas, Fulas, enquanto em Cabo Verde só existem duas raças, badius e sampadjudus, que só se distinguem pela língua e pelo que uns dizem dos outros. A aspiração cabo-verdiana de autodesnegrificação por sobre-enegrecimento dos vizinhos é, assim, deslocada sob os olhos da migrante. Ao reenquadrar o sistema de classificação étnica da Guiné como sendo da mesma ordem do sistema cabo-verdiano que diferencia badius de sampadjudus, mandjakus de cabo-verdianos, Amina traz a raça para a vida das pequenas diferenças que podem ser gozadas sem hierarquizações. Ao tempo, o olho da migrante acusa a ignorância cabo-verdiana: “a grande questão – para ela – é que os cabo-verdianos não sabem disso, ou seja, ficaram congelados no tempo”.
É notável que Amina não se veja numa linha de aprendizagem e não se abrigue sob fluidos discursos cabo-verdianos da miscigenação. Em lugar de abraçar a argumentação que caminha em direção à contraposição frontal à disciplina de raça, Amina radicaliza o devaneio racial numa linha de fuga que multiplica as possibilidades da afirmação da diferença. Às noções consagradas de pureza racial, Amina não opõe uma identidade multirracial que poderia ter sido reivindicada por sua ascendência multiétnica. A migrante, de alguma forma, sabe que o discurso da identidade multirracial cabo-verdiana intensifica a negrofobia na medida em que intensifica o entendimento biológico de raça. Sair da cilada é para a migrante mais racialismo e não menos como se poderia esperar. Amina despeja raça por toda a parte em que diferenças fazem pensar em povos e assim neutraliza o espectro da fixação do negro como a única raça por excelência, por sua contraposição fundamental ao branco. É assim que Amina localiza os cabo-verdianos, oferece-lhes uma imagem – racistas antinegros – e lhes propõe, generosamente, uma miragem – um mundo panrracializado.
A antinegritude entre guineenses em Cabo Verde
Poder-se-ia até aqui pensar que uma antinegritude tão ostensiva numa nação em que a quase totalidade das pessoas nativas são negras é uma excepcionalidade cabo-verdiana. Mas, bem-vistas as coisas, neste mundo antinegro, não seria de se estranhar se, na extensão da pesquisa, ainda pudéssemos encontrar a negrofobia estruturando relações mesmo entre migrantes. Mas, ainda é uma antinegritude mestiça funcionando na relação intracomunidade de guineenses. Oni veio para Cabo Verde corria o ano de 1987, quando tinha 18 anos e acabara de complementar o secundário. Sendo oriundo da classe média de Bissau, justifica sua migração por motivos mais políticos do que econômicos. A chegada de Nino Vieira ao poder e a possibilidade de vir a ser convocado para o serviço militar são apresentadas como razões explícitas para a emigração: “Com o nível de escolaridade que eu tinha, se eu fosse para a tropa, ele me mandaria para Cuba ou outros países com os quais ele tinha ligação para fazer a academia militar; ele me colocaria ao seu lado”. A declaração de Oni carrega como pressuposto tácito a aquiescência geral de que o governo do presidente Nino Vieira foi de uma tirania e desgoverno insuportáveis. Ao expor as razões de uma recusa que antecipa o convite, Oni subentende um conjunto de razões suficientes para que indivíduos decentes prefiram fugir do país a se deixar enlamear na negra corrupção. O cálculo político é moralmente irrepreensível, em que pesem os prováveis ônus psicológicos e econômicos da opção por emigrar para Cabo Verde nas circunstâncias pessoais em que se encontrava. Mas, seu “raciocínio” libidinal se manifesta no modo como deixa implícita a articulação entre o governo mestiço de Luís Cabral e uma infância feliz numa família a ser pensada como essencialmente mestiça. O contraste entre uma infância mestiça e a subida ao poder de um ícone negro do afundamento dos governos guineenses numa negridão inaceitável, particularmente para a camada mestiça guineense, fica implícito, em outros termos, no modo como Oni ressalta a ascendência cabo-verdiana em detrimento do fato de que a ascendência materna “é nativa de lá, da etnia Papel. A minha mãe era boa mesmo a falar esse dialeto. Com os seus patrícios só falava aquelas coisas e nós nada entendíamos”. Os laços fortes com a cabo-verdianidade saem ressaltados no contraste quase explicitamente carregado da má vontade com relação à língua Papel falada pela mãe. Na sequência, Oni engata a associação entre uma infância feliz e um governo do mestiço Luís Cabral de modo a erguer uma barricada sobrecarregada de imagens entre um e outro governo como se fossem épocas definitivamente diferentes. “Eu passei uma infância bonita, feliz mesmo. Bissau era bonita, mesmo bonita. Naquele tempo, antes do golpe de estado, no tempo de Luís Cabral tínhamos tudo, tinha parque infantil. Eu conheci (…) mas, quando o Nino Vieira deu aquele golpe...”. A memória da infância e adolescência de Oni está emocionalmente carregada das típicas fobias antinegras das comunidades de emigrantes cabo-verdianas nos países africanos. Nesse caso, o golpe de estado protagonizado pelo presidente Nino é o catalisador dessas fobias. Nesse imaginário, as continuidades que a história poderia tecer em largas pinceladas entre o governo Luís Cabral e o governo Nino Vieira estão completamente apagadas. “Eu nunca tinha visto um cenário mais bonito na minha vida. Naquele tempo, eu não daria uma outra cidade mais bonita do que Bissau, era limpa, apaziguada. Mas, agora é quase um tumulto, as estradas esburacadas.” (Oni, 09/2020, Cutelo – Assomada).
A vida de Oni e a importância que atribui ao nome, à ascendência familiar e laços de parentesco cabo-verdianos que impactam sobre o seu corpo geram uma distinção entre si e os seus patrícios. A família de Oni, católica, residia logo à entrada da cidade de Bissau, no local que ficou conhecido como Chapa de Bissau. A primeira profissão do seu pai foi de alfaiate, mas cedo abandonou e passou a trabalhar com um despachante oficial português. Quando eclodiu a independência da Guiné-Bissau, em 1974, e os portugueses foram obrigados a deixar o país, seu pai passou a trabalhar numa empresa de pescas que tinha sido constituída como sociedade mista – União Soviética e Guiné-Bissau –, a Estrela do Mar. Na qualidade de diretor comercial, o pai de Oni permaneceu até a reforma. Já sua mãe, doméstica, nunca chegou a frequentar uma escola, o que muito lamentava. Dos dez irmãos de Oni todos fizeram formação superior e/ou técnica, à exceção do caçula.
Em Cabo Verde, apesar de guineense, Oni afirma que nunca se sentiu discriminado e que, nessa matéria, ao partir recebeu um conselho do seu pai que carregou para a vida: o de respeitar desde o bebê ao homem de bengala e que seria retribuído. Junto com isso, pensa que, talvez, a não discriminação seja o reflexo do seu nome, um nome familiarizado com os dos cabo-verdianos, da sua cor, um bocado clara em vez de muito escura, que muitas pessoas manifestam surpresa ao descobrirem que é guineense e que isso só acontece quando o veem a falar com outro guineense. Porém, afirma que já presenciou outros colegas a serem discriminados e que isso obviamente o afetou. Entende que, se a título pessoal conhece a morabeza cabo-verdiana, já ao nível coletivo a comunidade Bissau-guineense enfrenta discriminação que pode ser considerada racial. Quando as rusgas eram frequentes, raramente era parado, porque se pensava que era cabo-verdiano. Vangloria-se, Oni: “eu tinha o cabelo grande, punk, os guineenses têm o cabelo crespo, [era] rapazinho bazofinho. Eles não me cansavam não”. (Oni, 09/2020, Cutelo - Assomada).
Na apreciação de um compatriota guineense, acentua-se como esses trajetos do mulato permitem a Oni escapar parcialmente às rusgas xenófobas. A respeito de Oni, seu compatriota e amigo, Noles, declara: “hoje por mais que lhe queiras chamar de mandjaku, sentes receio mesmo de chamá-lo assim. Mas, por quê? Por causa do nível social que ele apresenta no país”. Do mestiço se pode dizer isso que Noles, o inescapável mandjaku, explana como quem manuseia com precisão essa interioridade sebosa que é o fato da negritude sob a pretensão de mestiçagem: “Mas, dentro de ti, sabes que ele é mandjaku (...), na verdade, deves chamá-lo porque ele é mesmo. Tu não chamas, porque ele está num nível social que não deves mexer com ele nesse ponto (Noles, 09/2020, Lavadura Assomada).
Oni sabe que para franquear a passagem que lhe permite mobilizar a máscara de mestiço precisa se distanciar dos conterrâneos nos comportamentos e na geografia. É essa distância que Noles parece acusar como hipocrisia, exterioridade insustentável, uma máscara. O corpo mestiço é o palco de uma luta ansiosa contra as subsistentes imagens de negro, um nervo exposto que é a própria máscara da negridão, o negrume exposto como a máscara de mestiço. É por isso que Oni precisa trabalhar incisivamente a distância como contraste: “eu não convivo com eles, não convivo muito com os guineenses. Até muitos deles se queixam bastante, dizendo que eu sou fino, que não me relaciono com eles”. Essa distância retocada não é o resultado de um trabalho recente, Oni sabe da profundidade temporal desse processo de civilização dos costumes: “uma coisa que quando eu estava a vir, também pus na minha cabeça é que, ao sair de um país, digamos, mais atrasado para ir para outro mais adiantado, eu não continuaria a viver com pessoas atrasadas. Tenho que conviver com aquele que é meu semelhante ou superior a mim”.
Sim, performar a mestiçagem requer o que Elias (1994)8 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. chamou de processo psicogenético de lapidação de uma personalidade agressiva em direção ao sujeito cortês, o correlato do enobrecimento de uma sociedade que sai da barbárie em direção à civilização. Poderíamos, na sequência desse raciocínio, sentir-nos convidados a pensar o mestiço como a emergência enlameada do seio da negrura, o entretempo, a aceitação do convite superior, o difícil caminho em direção à civilização. Perto de Oni, ouçamos Norbert Elias, aquele do processo civilizador, falando-nos dos guerrilheiros etíopes tentando rechaçar a investida colonizadora dos italianos. Aqui também se sustenta o contraste entre povos superiores, inferiores e semelhantes:
O padrão de agressividade, seu tom e intensidade, não é hoje exatamente uniforme entre as diferentes nações do Ocidente. Mas essas diferenças, que de perto às vezes parecem muito grandes, desaparecem se a agressividade das nações “civilizadas” for comparada com a de sociedades em um diferente estágio do controle de emoções. Comparada com a fúria dos guerreiros abissínios – reconhecidamente impotentes contra o aparato técnico do exército civilizado – ou com a ferocidade das tribos à época das Grandes Migrações, a agressividade mesmo das nações mais belicosas do mundo civilizado parece bem pequena (Elias, 19948 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994., p. 190).
Mesmo quando uma força militar do ocidente está em uma guerra de colonização, seu padrão de agressividade é incomparável à ferocidade de povos atrasados no processo de civilização. Porque o teor da bestialidade não reside na força da mortandade imposta, nem na injustiça da causa levada à guerra, mas no excesso expresso no fenótipo, na fúria ameaçadora da impossibilidade de um rosto humano. Seguindo Norbert Elias, a fúria hoje é negra assim como já foi bárbara na Europa Medieval. O processo civilizatório demanda o exercício de pacificação colonizadora como humanização pela violência de um Estado centralizador. A cultura europeia em constante desenvolvimento é o protótipo para a realização das culturas dos africanos no futuro; a cultura negra é o antítipo, sempre no limiar, nunca efetivamente no interior, se a palavra cultura for tomada em seu sentido nobre, em lugar do banal catálogo de diferenças humanas, mas como um padrão de civilidade – nessa sociologia que já foi chamada de processual. A existência da incivilidade (negridão) é pré-condição para a cultura, já agora entendida como desenvolvimento de si, autoapropriação reflexiva. Quando, como no caso dos mandingas, a cultura negra é afirmada como negridão, é como um simulacro, ela deve eclodir no como teria sido a incivilidade. A negritude só pode ser cultura quando pode se reportar ao tempo em que era pura incivilidade, a cultura negra de hoje é apenas a celebração da não-cultura de ontem. Ou, como no caso de Oni, a cultura negra é o olhar lançado de longe sobre outros, sobre o que se poderia ter sido se se tivesse permanecido na negridão da praça, o lugar onde o mestiço teria se perdido enquanto ser em estágio superior. É assim que Oni se expressa: “Tenho que conviver com aquele que é meu semelhante ou superior a mim. E eu vou perder tempo com os guineenses que se sentam (…) em grupinhos, como por exemplo em Lisboa, no Rossio, na Praça da Figueira”. Não é nossa intenção contestar o bom senso subjacente à opção pela família em lugar do sentar-se na praça falando da vida das pessoas. Pode ser que seja moralmente incontestável a exclamação de Oni: “Então, vou perder tempo sentando e discutindo coisas banais? Eu tenho uma família para cuidar. Eles reclamam muito, reclamam muito disso”.
Ainda assim, gostaríamos de ressaltar a economia libidinal subjacente à forma como a praça dos compatriotas guineenses fica sobrecarregada, nesse extrato de entrevista, com a associação a pessoas atrasadas enquanto os cabo-verdianos, genericamente, são alocados como pessoas superiores, com quem se deve prioritariamente conviver numa migração de um país “atrasado” para outro “adiantado”. A oposição entre superiores e atrasados exibe aqui parte das respostas afetivas que pressagiam o corpo negro como possibilidade de contaminação. Instâncias pré-subjetivas carregadas de intensidades fóbicas antinegras se desnudam sob a hierarquização de pessoas em atrasadas, semelhantes e superiores. Expõe-se, desse modo, a estrutura de uma psique negra que emerge em violência estrutural contra si mesmo. Entre o id e o ego se interpõe um olhar branco que odeia o imago negro e esse é o lugar de um esforço para se identificar enquanto mestiço. O mestiço, enquanto convocado pelo mundo da supremacia branca a se pensar como não negro sabe que precisa destruir o imago negro em si e em seu entorno. Os demais eixos de contraposições, rua – casa, trabalho – não trabalho, são subservientes à oposição central entre povos superiores e inferiores. O mestiço viaja para o país superior para conviver com pessoas superiores.
Mas, nada pode impedir que a estrutura desse mundo superior, essencialmente antinegro, faça o mestiço retornar ao estado cadavérico, ao ser do incivilizado, ao negro em um mundo antinegro. Num contexto de tensão a propósito da solicitação da nacionalidade, nos cinco anos após o seu estabelecimento no país, o desconforto que Oni sentiu por ser comparado a um compatriota que tinha cometido fraude e fora preso carrega a tragédia do mestiço, como o negro portador de um inconsciente antinegro. Acuado por uma funcionária dos serviços de fronteira, numa associação indevida com o acusado, Oni se esforçou bastante para se dissociar da identidade de mandjaku: “Eu contei-lhe tudo, contei-lhe todo o percurso das minhas gentes, da minha família; eu disse-lhe: “inclusive, veja o meu nome. O meu nome não é igual ao do rapaz; veja”. O rapaz chama-se J. não sei o quê, aqueles nomes da Guiné, lá do interior da África”. Diante da insistência da funcionária, Oni explode: “sabe de uma coisa? Fique com a sua nacionalidade, não quero!” (Oni, 09/2020, Cutelo – Assomada). Detenhamo-nos demoradamente no esforço de Oni para se desembaraçar da etiqueta de mandjaku quando acuado pelos serviços fronteiriços e no modo como se faz cúmplice do encarceramento de seus compatriotas no estigma. Fica, nesse esforço, exposta a gramática do sofrimento mestiço, seu núcleo central alicerçado na negrofobia, a ansiedade para não ser confundido, a exigência de reconhecimento como não sendo apenas mais um. Se, como sugere Wilderson III (2011, p. 30)19 WILDERSON III, Frank B. The vengeance of vertigo: Aphasia and abjection in the political trials of black insurgents. InTensions, v. 5, p. 1-41, 2011., o self negro está permanentemente em um estado de guerra, um self dividido ou, melhor, uma justaposição de ódio projetado em direção a um imago negro e de amor por um ideal branco, o apelo do mundo lusófono para a mestiçagem como crioulitude é um acirramento que fende inclusive as condições de possibilidade de uma comunidade psíquica. A intrusão do imago negro como um objeto fóbico não apenas fende a precária unidade psíquica, mas também desestabiliza continuamente as possibilidades de alianças a partir da experimentação do sofrimento negro em condições similares. Vê-se aqui que, enquanto negro, Oni não se pode representar a si, mesmo para si, como um sujeito político de boa-fé, como um sujeito de reparação. A ontologia política negra é excluída no inconsciente assim como tende a ser excluída nos serviços de fronteira. A negridão é o que se deve deixar em casa, no fundo dos nossos impulsos libidinais mais subversivos.
Conclusão
Buscamos exemplificar a tese de que a independência nacional de países africanos pode ter desmantelado em grande parte o racismo colonialista no quotidiano enquanto a figura do colonizador se tornou longínqua, exígua e fugidia, mas a antinegritude permaneceu viscosa impregnando as relações sociais nos regimes pós-coloniais de predação intensiva dos segmentos mais empobrecidos e vulneráveis. Tomamos como caso ilustrativo a antinegritude em Cabo Verde, na pós-colônia, a persistência das rivalidades entre badius e sampadjudus e entre cabo-verdianos e mandjakus. Buscamos explorar o modo como as estratégias estéticas dos performers de classes populares da cidade do Mindelo, ao escaparem de alguma forma a esse desejo negrófobo, desencadeiam reações pequeno-burguesas que destilam uma antinegritude flagrante. Debruçamo-nos sobre o fascínio exercido sobre classes médias pós-coloniais por cenas de primitivismo africano. Ao expor sua negrofobia e a autoapresentação mandinga como simulacro, as classes médias buscam enquadrar a rebeldia suburbana como simulacro. O que talvez os mandingas acabem encenando é o tempo do desencontro e a invenção do espectro do negro como bestial. A recriação da imagem do primitivo desarticula o presente, que é jogado de forma brutal sobre um passado sem ancestrais reivindicáveis. É das imagens de um primitivismo que não se reivindica como ancestralidade, que se busca extrair uma riqueza reprodutiva capaz de entrar nos circuitos transnacionais daquele capital que se produz na convergência de um consumidor voyeurista e um produtor que não dispõe senão do próprio corpo como objeto de manipulação e mercantilização. Se a cena parece nos deslocar para o antes da escravidão, a materialidade dos circuitos de transação das imagens dos mandingas parece reproduzir bem aquele passado que não passa, aquele tráfico de corpos negros para consumos brancos que não para de acontecer de novo e de novo.
Ao desvelar o voyerismo da câmera fotográfica do turista branco, os mandingas presenteiam o turista com o retorno do reprimido empacotado sob o formato adequado ao consumo neoliberal da diversidade cultural. Ao se exporem, assim, os jovens da periferia de Mindelo devolvem ao branco a máscara, o desejo branco pelo selvagem, como peça fundamental do processo de constituição da brancura. Desejamos apresentar também o como o movimento migratório de africanos para Cabo Verde refaz o espectro do navio negreiro. Vimos que não se faz necessária a presença de brancos no arquipélago para que a antinegritude funcione a todo o vapor, embora não se esteja a sair do mesmo ponto cardinal desde a nascença desse lugar como espaço habitável. Se tomarmos o caso cabo-verdiano como o de um navio negreiro que encalhou antes de chegar ao destino, talvez as múltiplas cenas contempladas neste artigo não sejam senão projeções espectrais da condição do negro num mundo antinegro.
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Sobre este assunto, veja-se Do Canto (2020)7 DO CANTO, Paulino. Mobilidades, Fronteiras e Integração Regional: livre circulação de pessoas na CEDEAO? O caso de Cabo Verde. 2020. Dissertação (Mestrado em Integração Regional Africana) – Universidade de Cabo Verde, Praia, 2020..
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Ver Rocha (2009)17 ROCHA, Eufémia V. Mandjakus são todos os africanos, todas as gentes pretas que vêm de África: xenofobia e racismo em Cabo Verde. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade de Cabo Verde.. Além desse trabalho, a pesquisadora tem publicado outros textos sobre a imigração oeste-africana nesse arquipélago.
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Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/.
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É Bourdieu (2007)3 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. quem melhor chama a atenção para a ansiedade da pequena-burguesia para impor o reconhecimento de sua importância social e cultural em demonstrações insistentes de descontentamento em relação ao sistema social que a ameaça de desclassificação. No caso da ilha de São Vicente, o sistema social ameaçante é conotado como o centralismo da capital. As tomadas de posição nas margens de um jornal online, aberto a comentários de leitores, podem ser aqui lidas como expressões de uma pequena burguesia intelectual em busca de uma improvável redistribuição de recursos para afirmação de continuidade da primazia no arquipélago da pequena burguesia colonial de Mindelo durante o colonialismo português. Chamamos aqui de julgamentos pequeno-burgueses um tipo de opinião sobre assuntos tidos como político-culturais que se pretende suficientemente abalizado e pertinente para merecer a rodada dos debates de leitores de um jornal online. Se, como sugere Bourdieu, “a probabilidade de produzir uma resposta propriamente política para uma pergunta constituída politicamente cresce à medida que se sobe na hierarquia social (e na hierarquia das rendas e dos diplomas escolares)” (Bourdieu, 20073 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007., p. 400), no caso cabo-verdiano deve ser propriamente pequeno-burguesa a pretensão de opinião abalizada que, no ato, expressa a ausência de recursos políticos para a sua alocação nos espaços de tomada de decisões administrativas e governamentais.
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A pretensão de cosmopolitismo da cidade é problematizada por Daun e Lorena (2017)4 DAUN E LORENA, Maria. Classe, memória e identidade em Cabo Verde: uma etnografia do carnaval de São Vicente. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Lisboa, 2012. em termos com os quais basicamente concordamos. Paradoxalmente, os mindelenses reivindicam uma tradição cosmopolita que funciona como mecanismo de fechamento e distinção cultural em relação ao resto do arquipélago e ao intenso fluxo de imigrantes africanos para o arquipélago.
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A maior parte dos estudos que relacionam os mandingas e questões raciais exploram as afirmações explícitas de desidentificação dos praticantes com supostas raízes africanas (Daun; Lorena, 20174 DAUN E LORENA, Maria. Classe, memória e identidade em Cabo Verde: uma etnografia do carnaval de São Vicente. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Lisboa, 2012.; Dias, 20165 DIAS, Juliana B. O carnaval do Mindelo, Cabo Verde: reflexões sobre a festa e a cidade. PragMATIZES-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, v. 6, n. 11, p. 95-108, 2016. https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v0i11.10435
https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v0i... ). Por outro lado, a etnografia de Neves (2018)16 NEVES, Maria dos A. Artes, tradições e educação em Cabo Verde. Mandingas do Mindelo: estórias da história. 2018. Dissertação ( Mestrado em Educação Artística) – Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Viana do Castelo, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11960/2062.
http://hdl.handle.net/20.500.11960/2062... carrega entrevistas dos brincantes que acentuam a ancestralidade africana reivindicada na forma mandinga de brincar o carnaval. -
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Confronte-se o artigo de Anjos (2012)2 ANJOS, José Carlos dos. A eclosão do turismo sexual em Cabo Verde. In: AS CIÊNCIAS SOCIAIS EM CABO VERDE: QUEM SOMOS E PARA ONDEVAMOS?, 2012, Praia. Anais [...]. Praia: Universidade de Cabo Verde, 2012. Disponível em:http://hdl.handle.net/10961/1244.
http://hdl.handle.net/10961/1244... acerca do turismo sexual no arquipélago. -
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É ainda Bourdieu quem nos lembra o quanto é pequeno-burguesa a própria relação com o jornal que se lê como “jornal de opinião”. Se seguirmos a sociologia da leitura de jornais que nos propõe Bourdieu em A distinção, seremos tentados a estender a Mindelo a hipótese de que as tomadas de posição nas margens destinadas aos comentários expressam bem a pretensão pequeno-burguesa à opinião pessoal correlacionada à “desconfiança em relação a todas as formas de delegação, sobretudo, na política” e que “inscrevem-se logicamente no sistema das disposições próprias a indivíduos, cujo passado e projeto baseiam-se na aposta da salvação individual, escorada nos dons e méritos” (Bourdieu, 20073 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007., p. 389).
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Nome dado às mulheres comerciantes “informais” na Guiné-Bissau e que segue com elas, também, na imigração.
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Filho da terra.
Referências
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1AJARI, Norman. La dignite ou la mort: éthique et politique de la race. Paris: Les empécheurs de penser en rond, 2019.
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2ANJOS, José Carlos dos. A eclosão do turismo sexual em Cabo Verde In: AS CIÊNCIAS SOCIAIS EM CABO VERDE: QUEM SOMOS E PARA ONDEVAMOS?, 2012, Praia. Anais [...]. Praia: Universidade de Cabo Verde, 2012. Disponível em:http://hdl.handle.net/10961/1244
» http://hdl.handle.net/10961/1244 -
3BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento São Paulo: Edusp, 2007.
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4DAUN E LORENA, Maria. Classe, memória e identidade em Cabo Verde: uma etnografia do carnaval de São Vicente. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Lisboa, 2012.
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5DIAS, Juliana B. O carnaval do Mindelo, Cabo Verde: reflexões sobre a festa e a cidade. PragMATIZES-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura, v. 6, n. 11, p. 95-108, 2016. https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v0i11.10435
» https://doi.org/10.22409/pragmatizes.v0i11.10435 -
6DO CANTO, Paulino. As fronteiras insulares no contexto da mobilidade/migrações internacionais: o caso de Cabo Verde (África). Alamedas, [S. l.], v. 9, n. 1, p. 76–97, 2021. DOI: 10.48075/ra.v9i1.26896. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/view/26896 Acesso em: 7 nov. 2021.
» https://doi.org/10.48075/ra.v9i1.26896» https://e-revista.unioeste.br/index.php/alamedas/article/view/26896 -
7DO CANTO, Paulino. Mobilidades, Fronteiras e Integração Regional: livre circulação de pessoas na CEDEAO? O caso de Cabo Verde 2020. Dissertação (Mestrado em Integração Regional Africana) – Universidade de Cabo Verde, Praia, 2020.
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8ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
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9FURTADO, Clementina. Mobilidade na CEDEAO. As condições de entrada e de regularização dos cidadãos comunitários em Cabo Verde. In: ÉVORA, I. (org.). Diáspora cabo-verdiana: temas em debate. Lisboa: CEsA/ISEG, 2016. p. 106-128.
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10FURTADO, Clementina. As migrações da África Ocidental em Cabo Verde: atitudes e representações. 2012. Tese (Doutorado em Ciências Sociais e Políticas) – Universidade de Cabo Verde, Praia, 2012.
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11HARTMAN, Saidiya V. et al.Scenes of subjection: terror, slavery, and self-making in nineteenth-century America. Oxford: Oxford University Press, 1997.
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12KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.
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13MÁRIO Lúcio quis levar Mandingas de Ribeira Bote para o carnaval da Praia. Notícias do Norte, 30 jan. 2013. Disponível em: https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/mario-lucio-quis-levar-mandingas-de-ribeira-bote-para-o-carnaval-da-praia/
» https://noticiasdonorte.publ.cv/10466/mario-lucio-quis-levar-mandingas-de-ribeira-bote-para-o-carnaval-da-praia/ -
14MARRIOTT, David. Corpsing; or, The matter of black life. Cultural Critique, v. 94, p. 32-64, 2016. https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032
» https://doi.org/10.5749/culturalcritique.94.2016.0032 -
15MARRIOTT, David. On black men Edinburgh: Edinburgh University Press, 2000.
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16NEVES, Maria dos A. Artes, tradições e educação em Cabo Verde Mandingas do Mindelo: estórias da história. 2018. Dissertação ( Mestrado em Educação Artística) – Instituto Politécnico de Viana do Castelo, Viana do Castelo, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11960/2062
» http://hdl.handle.net/20.500.11960/2062 -
17ROCHA, Eufémia V. Mandjakus são todos os africanos, todas as gentes pretas que vêm de África: xenofobia e racismo em Cabo Verde. 2009. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade de Cabo Verde.
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18SEXTON, Jared. Amalgamation schemes: antiblackness and the critique of multiracialism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.
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19WILDERSON III, Frank B. The vengeance of vertigo: Aphasia and abjection in the political trials of black insurgents. InTensions, v. 5, p. 1-41, 2011.
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20WILDERSON III, Frank B. Red, white & black Durham: Duke University Press, 2010.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Jul 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
06 Dez 2021 -
Aceito
29 Jan 2022