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O populismo como modelo de “democracia polarizada”: a teoria do populismo de Pierre Rosanvallon à luz do debate contemporâneo

Resumo

O objetivo deste artigo é examinar a contribuição de Pierre Rosanvallon para a compreensão do populismo. Para tanto, adotamos duas abordagens: a primeira, internalista, consiste numa análise rigorosa da obra Le Siècle du populisme (2020), assim como na articulação desta com sua teoria das mutações da democracia contemporânea (2006-2015); a segunda consiste no cotejamento de Le Siècle du populisme com obras de outros autores sobre o tema. O artigo está dividido em três segmentos. No primeiro, analisamos Le Siècle du populisme focando os dois aspectos que consideramos mais originais: a tipologia das “democracias-limite” e suas formas de degradação, e sua crítica ao populismo. No segundo, articulamos essa obra à sua teoria das mutações da democracia contemporânea. No terceiro, inserimos a obra de Rosanvallon no interior da bibliografia sobre o tema do populismo, explorando como o autor pensa o populismo em interação com a democracia e comparando-o com três das principais leituras contemporâneas sobre o tema: a de Nadia Urbinati, no campo da teoria democrática, e a de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, dois dos principais teóricos do “populismo de esquerda”, objeto da crítica de Rosanvallon. Concluímos que o que diferencia sua contribuição para a pesquisa sobre o populismo é o alcance de sua teoria, capaz de incorporar tensões e complexidades ao estudo da democracia, e que oferece uma saída para as ambiguidades teóricas das análises precedentes sobre o populismo.

Palavras-chave
Pierre Rosanvallon; populismo; teoria política contemporânea; Nadia Urbinati; Chantal Mouffe; Ernesto Laclau

Abstract

This paper examines Pierre Rosanvallon’s contribution to understanding populism by adopting two approaches: the first one is the internalist approach, comprising an analysis of his book Le Siècle du populisme (2020) and its comparison with his theory of changes in contemporary democracy (2006-2015). The second approach consists of comparing Le Siècle du populisme with the works of other authors on the subject. The paper is divided into three parts. First, we analyze Le Siècle du populisme, focusing on the two aspects that we consider the most original: the typology of “limit forms of democracy” and its ways of degradation and his critique of populism. In the second part, we contrast this work with his theory of changes in contemporary democracy. In the third part, we contextualize Rosanvallon’s work within the literature on populism, exploring the author’s idea of populism vis-à-vis democracy. We also compare his interpretation with three of the main contemporary works on the subject: that of Nadia Urbinati involving theory of democracy, and that of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, leading theorists of “leftist populism”, targets of Rosanvallon’s criticism. Then, we argue that what distinguishes his contribution to populism research is the scope of his theory, able to encompass tensions and complexities in the study of democracy and that offers a way out of the theoretical ambiguities of previous studies on populism.

Keywords
Pierre Rosanvallon; populism; contemporary political theory; Nadia Urbinati; Chantal Mouffe; Ernesto Laclau

Résumé

L’objectif de cet article est d’examiner la contribution de Pierre Rosanvallon à la compréhension du populisme. Pour ce faire, nous adoptons deux approches : la première, internaliste, consiste à analyser Le Siècle du populisme et l’articuler à sa théorie des mutations de la démocratie contemporaine (2006-2015) ; la seconde consiste à confronter ce même livre avec des œuvres d’autres auteurs sur le sujet. Dans une première partie, nous analysons Le Siècle du populisme en privilégiant les deux aspects qui nous semblent les plus originaux: la typologie des « démocraties limites », ses formes de dégradation et sa critique du populisme. Dans la seconde partie, nous articulons ce travail à sa théorie des mutations contemporaines de la démocratie. Dans la troisième, nous examinons comment cet auteur pense le populisme en interaction avec la démocratie et en parallèle avec trois des principales lectures contemporaines sur le sujet : celle de Nadia Urbinati, dans le champ de la théorie démocratique, et celles d’Ernesto Laclau et de Chantal Mouffe, deux des principaux théoriciens du « populisme de gauche », objet de la critique de Rosanvallon. Nous concluons que ce qui différencie sa contribution à l’étude du populisme c’est la portée de sa théorie, qui est en mesure d’incorporer tensions et complexités, et qui offre une issue par rapport aux ambigüités théoriques des études précédentes sur le populisme.

Mots-clés
Pierre Rosanvallon; populisme; théorie politique contemporaine; Nadia Urbinati; Chantal Mouffe; Ernesto Laclau

Introdução

“O populismo revoluciona a política do século 21. Mas nós ainda não nos demos conta da justa medida da transformação que ele induz” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 9). É com essas palavras que Pierre Rosanvallon inicia Le Siècle du populisme, seu mais recente trabalho, no qual assume a ambiciosa missão de desenvolver uma teoria do populismo. Partindo da constatação de que as grandes ideologias da modernidade foram associadas a obras fundadoras que ligavam análise crítica a visões do futuro, Rosanvallon enuncia que seu objetivo é permitir uma “confrontação radical” da sua teoria com a “ideia populista [...], ideologia ascendente do século 21” (p. 14).

O objetivo deste artigo é examinar a teoria do populismo de Rosanvallon e, consequentemente, sua contribuição para a compreensão desse fenômeno político. Há duas abordagens possíveis para tal fim. A primeira, que poderíamos chamar de “internalista”, consiste numa análise rigorosa de Le Siècle du populisme. Esse exame é, em si, pertinente, mas insuficiente. Essa abordagem precisa ser ampliada a partir de sua articulação com a reflexão mais ampla do autor sobre a democracia. Estamos nos referindo aos vários volumes publicados sobre o tema durante os últimos 30 anos, notadamente sua trilogia sobre a história intelectual da democracia (Rosanvallon, 1992ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France. Paris: Éditions Gallimard, 1992., 1998ROSANVALLON, Pierre. Le peuple introuvable. Histoire de la représentation démocratique en France. Paris: Éditions Gallimard, 1998., 2000ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée. Histoire de la souveraineté du peuple en France. Paris: Éditions Gallimard, 2000.) e da sua tetralogia sobre as mutações da democracia contemporânea (Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance. Paris: Éditions du Seuil, 2006., 2009ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. Tradução de Christian Lynch. São Paulo: Alameda, 2010., 2011ROSANVALLON, Pierre. La société des égaux. Paris: Éditions du Seuil, 2011., 2015aROSANVALLON, Pierre. Bref retour sur mon travail. In: AL-MATARY, S.; GUÉNARD, F. (ed.). La Démocratie à l’œuvre. Autour de Pierre Rosanvallon. Paris: Éditions du Seuil, 2015a.). Essa articulação é fundamental: sustentamos que o pleno entendimento e apreensão da teoria do populismo elaborada em Le Siècle du populisme é indissociável dos seus estudos precedentes sobre a democracia, na medida em que o populismo é uma forma de “democracia-limite” entre outras, resultado de uma simplificação do ideal democrático. A segunda abordagem, “externalista”, consiste no cotejamento de Le Siècle du populisme com outros estudos sobre o tema publicados por contemporâneos e interlocutores de Rosanvallon.

Nos últimos anos, historiadores e teóricos políticos vêm se debruçando sobre a obra de Rosanvallon. Duas coletâneas publicadas recentemente testemunham esse interesse. A primeira, La Démocratie à l’œuvre: autour de Pierre Rosanvallon (Al-Matary; Guénard, 2015AL-MATARY, Sarah; GUÉNARD, Florent (ed.). La Démocratie à l’œuvre. Autour de Pierre Rosanvallon. Paris: Éditions du Seuil, 2015.), reúne estudos sobre os diversos aspectos dos trabalhos de Rosanvallon. Publicado antes de Le Siècle du populisme e no mesmo ano de Le Bon gouvernement (Rosanvallon, 2015bROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Éditions du Seuil, 2015b.), o livro, portanto, não inclui nas análises esses dois trabalhos e tampouco Notre histoire intellectuelle et politique (1968-2018) (Rosanvallon, 2018ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020.). Mais recentemente, foi publicado Pierre Rosanvallon’s political thought. Interdisciplinary approaches (Flügel-Martinsen et al., 2019FLÜGEL-MARTINSEN, Olivier; MARTISEN, Franziska; SAWYER, Stephen W.; SCHULZ, Daniel (ed). Pierre Rosanvallon’s political thought. Interdisciplinary approaches. Bielefeld: Bielefeld University Press, 2019.), obra coletiva na qual a questão do método rosanvalloniano e seus estudos sobre a democracia também ocupam um lugar central. Nesse trabalho, as análises chegam até Le Bon gouvernement, como mostra o capítulo de Anna Hollendung (2019)HOLLENDUNG, Anna. Governing democratically. A reconceptualization of the executive based on Pierre Rosanvallon. In: FLÜGEL-MARTINSEN, O. et al. (ed). Pierre Rosanvallon’s political thought. Interdisciplinary approaches. Bielefeld: Bielefeld University Press, 2019. p. 199-215. sobre a ação democrática. Entre os autores que participaram dessa coletânea estão estudiosos que já vinham explorando a obra de Rosanvallon há algum tempo, como é o caso de Wim Weymans e de Paula Diehl, notadamente sobre o problema da representação. Weymans (2005)WEYMANS, Wim. Freedom through political representation: Lefort, Gauchet and Rosanvallon on the relationship between State and society. European Journal of Political Theory, v. 4, n. 3, p. 263-282, 2005. https://doi.org/10.1177/1474885105052705
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buscou mostrar como esse conceito oferece uma solução para a tensão entre os princípios abstratos que devem guiar uma coletividade e sua realidade concreta. Em outro artigo, ele examinou também a ideia de “crise da representação”, a partir de uma comparação do pensamento de Rosanvallon com o de Quentin Skinner, privilegiando o papel da história na compreensão do presente (Weymans, 2007WEYMANS, Wim. Understanding the present through the past? Quentin Skinner and Pierre Rosanvallon on the crisis of political representation. Redescriptions: Political Thought, Conceptual History and Feminist Theory, v. 11, n. 1, p. 45-60, 2007. http://doi.org/10.7227/R.11.1.4
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). Diehl (2019)DIEHL, Paula. Political Theory through History. Pierre Rosanvallon’s concepts of representation and the people and their importance for understanding populism. In: FLÜGEL-MARTINSEN, O. et al. (ed.). Pierre Rosanvallon’s political thought. Interdisciplinary approaches. Bielefeld: Bielefeld University Press, 2019. p. 39-60. também focou o conceito de representação, assim como o de “povo”, para demonstrar como eles ajudavam a explicar o populismo. É, portanto, um estudo do populismo em Rosanvallon anterior à publicação de Le Siècle du populisme. A autora propõe uma abordagem diferente daquela do próprio Rosanvallon (2011)ROSANVALLON, Pierre. Penser le populisme. La vie des idées, 2011. Disponível em: https://laviedesidees.fr/Penser-le-populisme.html.
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em “Penser le populisme”, ao sustentar que o populismo desloca a ideia de representação democrática situando-a numa fronteira entre dinâmicas democrática e antidemocrática. Para Diehl, essa dinâmica se diferencia daquela do totalitarismo – com o qual Rosanvallon faz um paralelo com o populismo em seu artigo de 2011 – e o populismo permanece sempre um fenômeno ambíguo. Apesar da importância da contribuição de Diehl, é forçoso constatar que ela se fundamenta num texto de Rosanvallon consideravelmente revisto em Le Siècle du populisme.

Não podemos deixar de mencionar, finalmente, os estudos de William Selinger que, além de abordar o problema da representação num artigo escrito com Gregory Conti, também examinou a contribuição de Rosanvallon para a compreensão do populismo antes da publicação de Le Siècle du populisme. Em “The other side of representation: the history and theory of representative government in Pierre Rosanvallon” (Selinger; Conti, 2016SELINGER, William; CONTI, Gregory. The other side of representation: the History and Theory of representative government in Pierre Rosanvallon. Constellations, v. 23, n. 4, p. 548-562, 2016. http://dx.doi.org/10.1111/1467-8675.12220
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), os autores contestam a perspectiva “construtivista” atribuída a Rosanvallon por teóricos como Nadia Urbinati, Lisa Disch e Wim Weymans, mostrando que a teoria descritiva adotada em seus primeiros escritos não desapareceu em sua principal obra sobre o tema, Le Peuple introuvable. Para isso, os autores reconstroem a teoria da representação rosanvalloniana partindo da identificação da perspectiva descritiva dos seus primeiros trabalhos, analisando em seguida sua persistência em escritos mais recentes e, finalmente, considerando em que medida as perspectivas descritivas e construtivistas podem ser reconciliadas. Já em “Populism, parties, and representation: Rosanvallon on the crisis of parliamentary democracy”, Selinger (2020)SELINGER, William. Populism, parties, and representation: Rosanvallon on the crisis of parliamentary democracy. Constellations, v. 27, n. 2, p. 231-243, 2020. https://doi.org/10.1111/1467-8675.12497
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adota uma abordagem similar, a saber, a reconstituição do pensamento rosanvalloniano a respeito de um aspecto específico: o declínio dos sindicatos e dos partidos políticos, ambos cruciais para o funcionamento da democracia parlamentarista. O populismo, nessa perspectiva, é o resultado de uma crise profunda e de longa duração do próprio parlamentarismo.

Em que pese a originalidade e a pertinência desses estudos, todos são anteriores à Le Siècle du populisme. Por ser uma publicação ainda recente, não encontramos estudos acadêmicos que tenham abordado o último trabalho de Rosanvallon, daí a originalidade deste artigo. Para dar conta do nosso objetivo, o texto divide-se em três segmentos. No primeiro, examinamos a “teoria democrática do populismo” elaborada em Le Siècle du populisme. No segundo, ampliamos a análise, propondo alguns pontos de articulação entre sua teoria do populismo e sua teoria democrática desenvolvida em obras anteriores. No terceiro, enfim, cotejamos a reflexão rosanvalloniana com outros trabalhos sobre o tema, procurando identificar como a perspectiva da história conceitual do político permite uma compreensão mais ampla do populismo, de modo a fugir da ambiguidade presente em boa parte dos estudos sobre o tema, notadamente os estudos que apresentam o populismo como retorno a um dos polos “autênticos” da democracia, aquele da manifestação da vontade do povo, em detrimento de sua contraface instrumental, a das instituições políticas liberais.

Uma teoria democrática do populismo: Le Siècle du populisme

A ambição de Rosanvallon com Le Siècle du populisme é produzir uma teoria abrangente do populismo. Para tanto, ele articula as dimensões sociológica, histórica e crítica que lhe permitiriam apreender o fenômeno em sua totalidade. Na primeira dimensão, ele propõe uma anatomia do populismo a partir de cinco elementos constitutivos: uma concepção do povo que se pretende mais adequada, mobilizadora e capaz de refundar a democracia; uma teoria da democracia que deve ser “direta, polarizada e imediata”; uma modalidade de representação – na forma de exaltação do líder; uma política e uma filosofia da economia – abrangendo uma concepção da soberania e da vontade política, assim como uma filosofia da igualdade e uma visão da segurança; e o papel das paixões e emoções – “emoções de posição, emoções de intelecção e emoções de ação” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 42, 57).

Na segunda dimensão, Rosanvallon retraça a história do populismo. Há três formas de o fazer. Resgatando os usos da palavra populismo, em primeiro lugar1 1 Trata-se de uma abordagem que Rosanvallon reconhece ser de pouca utilidade para a compreensão do fenômeno na contemporaneidade. Por essa razão, ele coloca sua reflexão sobre a história da palavra “populismo” nos apêndices. ; identificando, ao longo da história, os momentos e/ou regimes que manifestaram os elementos constituintes do seu ideal-tipo; e, enfim, a partir de uma abordagem global e compreensiva do fenômeno.

A terceira dimensão é a crítica do fenômeno, feita tanto no nível da teoria quanto no da experiência concreta. No primeiro caso, Rosanvallon faz uma crítica do referendo, mostrando como é projetado nesse instrumento um conjunto de expectativas que ele não satisfaz, como uma maior intervenção cidadã nas questões públicas, uma reformulação da expressão eleitoral ou uma compensação do déficit de representação. A crítica da teoria também é dirigida contra a dimensão unanimista e a absolutização da legitimação pelas urnas. No segundo caso, a crítica da experiência concreta é feita à ideia de homogeneidade e das condições a partir das quais um governo populista transforma uma democracia numa “democratura”. Privilegiamos dois aspectos em nossa análise: a tipologia do que Rosanvallon está chamando de “democracias- limite” e suas formas de degradação; e sua “crítica democrática”, que ele define como “uma crítica aprofundada da teoria democrática que estrutura a ideologia populista” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 21).

História conceitual: o populismo como uma forma democrática

Para Rosanvallon (2020)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., o exame das diversas experiências populistas só tem valor explicativo se ampliado numa abordagem conceitual. É essa última que permite a compreensão da essência dos populismos (2020, p. 145). Nessa perspectiva, ele propõe uma tipologia do que chama de “democracias-limite”, com o objetivo não só de evitar os amálgamas como também de permitir caracterizar forças de atração que esses tipos-limite podem exercer, e os paralelos que podem ser estabelecidos. O uso da terminologia “democracias-limite” é explicado pelo fato de seus defensores exacerbarem de forma problemática certas características das democracias em detrimento de outras, criando o risco de “uma reviravolta das democracias contra si mesmas” (p. 161).

A primeira forma de “democracia-limite” é representada pelas democracias minimalistas, que tiveram em Karl Popper e Joseph Schumpeter seus teóricos mais ilustres. Desde o século 19, seus defensores foram guiados pelo medo do número. Sua forma de degeneração é sua transformação numa “oligarquia democrática”. Já as “democracias essencialistas”, segundo tipo de “democracia-limite”, são definidas como aquelas que se fundam na denúncia das mentiras do formalismo democrático e identificam o ideal democrático à realização de uma ordem social comunitária em que a distinção entre sociedade política e sociedade civil é apagada (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 163). Essas duas formas de democracia-limite buscaram acabar com as indeterminações democráticas, seja através de um encolhimento realista da sua definição procedimental, no caso da primeira, seja por meio da dissolução das indeterminações através de uma visão utópica do social, no caso da segunda (p. 164). O terceiro modelo de “democracia-limite”, enfim, são as “democracias polarizadas”, das quais fazem parte os populismos que, por sua vez, buscam simplificar as aporias estruturantes da democracia por meio dos elementos constitutivos do ideal-tipo populista descritos anteriormente (p. 165). A forma de degeneração das “democracias polarizadas” é sua transformação numa democratura, definida como “um tipo de regime fundamentalmente iliberal conservando formalmente a roupagem de uma democracia” (p. 227).

A crítica rosanvalloniana

A crítica ao “populismo real” privilegia dois eixos de análise: o primeiro, teórico, é a concepção do funcionamento democrático, o que compreende a crítica do referendo e da polarização democrática; o segundo, o da experiência, remete à ideia de sociedade homogênea e das condições a partir das quais uma democracia se torna uma democratura. O referendo é um dos instrumentos mais reivindicados por governos populistas. Seus líderes o exaltam como meio de revigorar a democracia na medida em que ele deve supostamente devolver ao povo o poder de decidir. Porém, como Rosanvallon (2020)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020. mostra, ele é inegavelmente problemático, na medida em que possui vários efeitos negativos do ponto de vista do aprofundamento do projeto democrático. O referendo leva a uma dissolução da responsabilidade; a uma simplificação da noção de “vontade política”; à eliminação dos processos de deliberação; à irreversibilidade da decisão; aos graves problemas na sequência do voto, em razão da não especificação das condições de implementação da opção escolhida; à desvalorização do legislativo e à instauração de um regime hiperpresidencial.

A segunda crítica é relativa à ideia da possibilidade da realização de uma suposta “vontade geral”. Essa visão unanimista acompanhou a própria ideia de comunidade política, da Antiguidade ao século 19, quando a sociedade se tornou estruturada em classes com o desenvolvimento de um capitalismo causador de uma fratura social fundamental (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020.). A vontade geral tomou, então, novas vias de expressão – reflexão desenvolvida mais amplamente em La Légitimité démocratique (2008) –, entre elas as que Rosanvallon chama de “poder de qualquer um” e “poder de ninguém”. No primeiro caso, entende-se que qualquer indivíduo deve ter uma capacidade plena de representação e se reconhece em cada um a mesma importância na comunidade política. Esse reconhecimento prolonga e completa o status do eleitor: “é enquanto titular de direitos que podem ser reivindicados que ele participa da soberania” (2020, p. 205). As cortes constitucionais são as guardiãs desse direito e é zelando para que todos os cidadãos sejam igualmente importantes na comunidade que elas participam da vontade geral. No segundo caso, o “poder de ninguém” remete à imparcialidade de instituições que devem estar a serviço de todos e protegidas das possíveis tentativas de apropriação privada. Nesse sentido, é a distância em relação aos interesses particulares que garante a busca do interesse geral, caso das autoridades independentes de vigilância e de regulação.

A segunda parte da crítica é relativa à experiência concreta do fenômeno. Rosanvallon admite que o “povo-uno”, em alguns momentos específicos, pode emergir com força. A questão que se coloca, contudo, é como inscrever esse “povo-acontecimento” na duração do regime democrático, uma vez que ele não engendra necessariamente um povo democrático real. Essa é a sua preocupação, como já era a de Proudhon no século 19. O marxismo tentara, com algum sucesso, absorver os dois povos – o “povo-acontecimento” e o “povo-eleitoral” – num só, através da noção de proletariado. Contudo, a partir de meados do século 20, as classes teriam perdido o papel estruturante que lhes era próprio, sendo substituídas, no início do século 21, por uma suposta oposição entre os “99%” e o “1%”. Rosanvallon (2020)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020. mostra como essa oposição é imprecisa e não dá conta das tensões, divisões e solidariedades que existem em qualquer comunidade. O que ele defende é a necessidade de considerar o povo em suas múltiplas dimensões: povo-eleitoral, povo-acontecimento, povo-juiz, povo-aleatório. Esse “povo desmultiplicado”,2 2 O termo “desmultiplicar”, tanto em francês como no português falado em Portugal, tem dois sentidos: “reduzir a velocidade de rotação” ou “desdobrar-se ou esforçar-se em várias ações ou atividades”. Este segundo sentido é exatamente o que Pierre Rosanvallon dá ao termo. O sinônimo mais próximo no português falado no Brasil seria “desdobrar”. Pelo fato de o termo “democracia desdobrada” soar estranho, optamos pela tradução literal: “povo desmultiplicado”. com as situações individuais levadas em consideração pelo poder público, está no fundamento de uma sociedade democrática fundada nos princípios de justiça distributiva e redistributiva, o que equivaleria a uma sociedade de iguais (p. 225).

Para Rosanvallon (2020)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., a pertinência do termo “democratura” está em aclarar, por um lado, a justificação democrática de práticas autoritárias, e, por outro, a passagem progressiva dos países para regimes autoritários a partir de um quadro institucional democrático preexistente. O último elemento da crítica rosanvalloniana reside nesse aspecto. Assim, o autor distingue três fatores para analisar as condições através das quais um governo populista pode transformar uma democracia numa democratura: a instauração de uma filosofia e de uma política da irreversibilidade, uma dinâmica de polarização institucional e de radicalização política e uma epistemologia e uma moral da radicalização.

Uma filosofia e uma política da irreversibilidade estão ligadas à crença de que a vitória nas urnas não marca uma alternância, mas sim a entrada numa nova era política (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020.). A noção de maioria muda de perspectiva e adquire uma dimensão “substancial”, caracterizada como o triunfo do “povo” contra seus “inimigos”. Considerando-se os escolhidos para a instauração de uma nova era, os governantes populistas organizam a irreversibilidade a partir de dois instrumentos: o recurso às assembleias constituintes com o objetivo de remodelar as instituições e a possibilidade de reeleições indefinidas. Na retórica populista, não há autonomia do direito com relação à política e “a Constituição é a simples expressão momentânea de uma relação de forças” (p. 231).

A polarização e politização das instituições é o segundo ponto da crítica do “populismo real”. A polarização é um processo que pode seguir duas modalidades: a “brutalização direta das instituições e as estratégias de desvitalização progressiva” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 235). Já a politização se dá através do constrangimento e afastamento de funcionários públicos, que resulta numa “privatização do Estado”, uma vez que ele é esvaziado da noção de serviço público (p. 236). Há ainda outro aspecto a considerar, a saber, a ascendência dos governantes populistas sobre os meios de comunicação.3 3 Essa ascendência não se dá necessariamente através de uma censura oficial. Os governos populistas utilizam meios diversos como a redução da publicidade oficial ou privada em jornais opositores, minando consideravelmente sua autonomia financeira. Nas democraturas que conseguiram estrangular os meios de comunicação, aquelas que estão a serviço do poder acabam “colonizando o espaço público e pesando na opinião de maneira decisiva” (p. 237).

O terceiro aspecto da crítica ao “populismo real”, enfim, é o que Rosanvallon chama de “epistemologia e moral da politização generalizada”. Os populistas não defendem projetos, mas se colocam como portadores da verdade e da moral rodeados por inimigos maus e imorais. Há um apagamento de fatos e argumentos e, consequentemente, da troca racional. Ao mentir deliberadamente, os líderes populistas acabam por confundir a natureza dos problemas e desestruturar o debate público. Há, nesse sentido, o que Rosanvallon chamou de uma “corrupção cognitiva” do debate democrático: “não há vida democrática possível sem que existam elementos de linguagem comuns e a ideia de que possam se opor argumentos fundados numa descrição compartilhada dos fatos” (2020, p. 240).

Tanto os estudos sobre o populismo quanto a própria experiência concreta de movimentos e governos populistas frequentemente envolveram grande número de ambiguidades e imprecisões. Imprecisões sociológicas, referentes à base eleitoral populista; imprecisões políticas, que se traduziram na incapacidade de bem distinguir entre populismo de direita e de esquerda; imprecisões históricas, que surgiram da dificuldade de se identificar historicamente movimentos populistas e a maneira como estão relacionados; imprecisões conceituais, devidas à dificuldade em se definir de forma precisa o conceito de populismo.4 4 Rosanvallon cita o exemplo de um número temático da revista Éléments (no 177, abril-maio de 2019), intitulado “Les 36 familles du populisme”. Segundo ele, tal exercício é o exato oposto de um trabalho de conceitualização e só faz mascarar uma incapacidade de apreender a essência das coisas (Rosanvallon, 2020). A teoria do populismo de Rosanvallon pretende sanar esses problemas e oferecer os instrumentos para apreender o fenômeno a partir dos diversos modos como ele interage com a democracia. Contudo, consideramos que essa teoria só é apreendida em toda sua potencialidade se articulada às suas reflexões precedentes sobre as mutações da democracia contemporânea. É essa articulação que focaremos no próximo segmento.

Ampliando a abordagem internalista: a teoria do populismo rosanvalloniana à luz da sua teoria democrática

A teoria da democracia de Rosanvallon, formulada em diversos trabalhos, buscou compreender algumas das mutações que caracterizam as democracias contemporâneas. A primeira delas é a mutação da atividade cidadã com a ascensão de uma forma de participação, ao lado da eleitoral, que se traduz em práticas difusas de vigilância, de impedimento e de julgamento. A segunda mutação está na concepção da vontade geral que, por sua vez, levou a uma mudança da legitimidade democrática. Rosanvallon mostrou como o sistema da dupla legitimidade, oriundo das revoluções francesa e americana, no final do século 18, e do crescimento do papel do Estado, a partir do início do século 20 – a “legitimidade de estabelecimento” e a “legitimidade de identificação à generalidade social” – entra em declínio a partir dos anos 1980, como resultado da perda de confiança dos cidadãos em seus dirigentes e do declínio das capacidades do Estado. Assim, a vontade geral passa a ser considerada já não só como expressão da maioria, mas também como plenamente democrática, desde que submetida a controles e validações. Três formas de legitimidade emergem: a legitimidade de imparcialidade, a legitimidade de reflexividade e a legitimidade de proximidade. A terceira mutação está na democracia como forma de sociedade ameaçada pela explosão das desigualdades das últimas décadas do século 20. A quarta mutação, finalmente, foi o fortalecimento do poder executivo, a partir de meados do século 20 – processo que Rosanvallon chamou de “presidencialização das democracias”.

Como, portanto, articular essas mutações da democracia contemporânea com o problema do populismo, e como a apreensão das primeiras contribui para a compreensão do segundo? O ponto de partida é a ideia de “indeterminação democrática” que, em Rosanvallon, se distingue tanto da concepção de Claude Lefort (1991)LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. – que a associa à ideia do poder como lugar vazio e não passível de reapropriação –, quanto daquela de Hans Kelsen (2000)KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. – que a associa a uma qualidade de ordem epistemológica traduzida num ceticismo filosófico. Rosanvallon a situa num plano mais funcional, ligado ao fato de o sujeito, o objeto e os procedimentos da democracia serem estruturalmente vinculados a tensões, ambiguidades, paradoxos e aporias que tornam sua definição problemática; consequentemente, essas também são fontes de múltiplas formas de desencanto (Rosanvallon, 2015aROSANVALLON, Pierre. Bref retour sur mon travail. In: AL-MATARY, S.; GUÉNARD, F. (ed.). La Démocratie à l’œuvre. Autour de Pierre Rosanvallon. Paris: Éditions du Seuil, 2015a.). O que Rosanvallon chamava de “patologias da democracia” pode ser apreendido como formas de redução da complexidade, de polarização ou esquecimento das tensões estruturantes de suas diferentes figuras. Como ele escreveu, “são patologias da realização ou da limitação apoiada na ilusão de uma simplificação” (Rosanvallon, 2013ROSANVALLON, Pierre. Histoire moderne et contemporaine du politique. L’Annuaire du Collège de France, n. 112, p. 681-696, 2013. Disponível em: https://journals.openedition.org/annuaire-cdf/752.
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).5 5 Da Revolução de 1789 ao século 20, Rosanvallon identificou algumas “patologias internas à democracia” analisadas em La Démocratie inachevée (2000): elas assumiram três formas no século 19 – a “democracia constitucional”, a “cultura da insurreição” e uma concepção de “governo direto”, encarnada por Napoleão III, duas no século 20 – os totalitarismos comunista e nazista – e uma no século 21– o populismo. Compreender a democracia, para Rosanvallon, é compreender o sistema que forma essa indeterminação e esse desencantamento. Esse, portanto, é um primeiro ponto a enfatizar: o populismo é mais um resultado perverso, entre outros, de uma tentativa de simplificação do ideal democrático.

Propomos, aqui, três pontos de articulação entre as mutações da democracia contemporânea e os populismos: o problema do “impolítico” e da consequente necessidade de um “trabalho do político”; a ideia de realização da vontade na democracia, o que remete à sua dimensão reflexiva; e a atual “corrupção cognitiva” da esfera pública, o que remete à importância da linguagem e, especificamente, da noção de parler vrai, forjada por Rosanvallon em Le Bon gouvernement.

O problema do impolítico

Até a publicação de Le Siècle du populisme, o populismo não havia ocupado um lugar central nas reflexões rosanvallonianas sobre a democracia e suas perversões. Um curto capítulo lhe é dedicado em La Contre-démocratie (Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance. Paris: Éditions du Seuil, 2006.), além de um artigo publicado em 2011 em La Vie des idées. Assim, a discussão que nos interessa em La Contre-démocratie vai além do problema específico do populismo, uma vez que este último é apenas uma das consequências de um problema mais amplo e profundo que Rosanvallon definiu como o “impolítico”. Convém aprofundar esse ponto.

Esse conceito é definido por Rosanvallon (2006, p. 27-28) como “a falta de apreensão dos problemas ligados à organização de um mundo comum”. Esse é o problema contemporâneo – não a passividade. Essa dissolução do político – ou seja, das expressões de pertencimento a um mundo comum – se manifesta de duas maneiras: por um lado, no aprofundamento da separação entre a sociedade civil e as instituições, e por outro, na constituição de uma “contrapolítica” que deprecia poderes em vez de procurar conquistá-los. Assim, num mesmo movimento, coloca-se o campo político em posição de exterioridade em relação à sociedade, deslegitimando o poder, e perde-se as qualidades essenciais do político através de um processo de perda de visibilidade e legibilidade do regime democrático. A era da democracia impolítica, que ora vivemos, deve ser entendida como um tipo de ação governamental cujas modalidades foram profundamente modificadas por um movimento simultâneo de crescimento da democracia sob uma forma essencialmente indireta e de declínio do político.

Esse é o pano de fundo tanto da ascensão de formas de participação contrademocráticas, quanto de seus desvios. A contrademocracia é todo um “emaranhado de práticas, de testes, de contrapoderes sociais informais, mas igualmente de instituições, destinadas a compensar a erosão da confiança através da organização da desconfiança” (Rosanvallon, 2006ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance. Paris: Éditions du Seuil, 2006., p. 11, grifos no original). Em La Contre-démocratie, o populismo é compreendido como uma patologia da democracia e, sobretudo, da contrademocracia. Como patologia da democracia eleitoral-representativa, ele está intrinsecamente ligado às tensões estruturantes da representação, fazendo referência à ideia de um povo sano e homogêneo que deve se opor ou se proteger daquilo que é exterior a ele. Não sendo esse fator suficiente para apreender as causas e exprimir as peculiaridades do fenômeno, o autor aprofunda, então, a análise, a partir da ideia de populismo como patologia da contrademocracia. Como patologia da vigilância, o populismo transforma a preocupação ativa e positiva de inspecionar a ação dos poderes, de submetê-los à crítica e à avaliação, em estigmatização compulsiva e permanente das autoridades governantes, a ponto de transformá-las em inimigas e exteriores à sociedade; como patologia do impedimento, ele se transforma numa visão negativa do político fechado em si mesmo; finalmente, como patologia do julgamento, ele é a “exacerbação destruidora da ideia do povo-juiz” (p. 275), em que a cena do tribunal se degrada e há um processo de criminalização ou de ridicularização do poder. O populismo como patologia da contrademocracia pode ser considerado uma forma de expressão política na qual o projeto democrático se deixa totalmente aspirar e sugar pela contrademocracia, transformando-se numa forma extrema da antipolítica (p. 276).

Se o próprio Rosanvallon reconheceu em Le Siècle du populisme que sua análise do populismo em La Contre-démocratie foi redutora, pois não se trata apenas de uma patologia da contrademocracia, o diagnóstico do impolítico como pano de fundo dos problemas da democracia contemporânea permanece um tema essencial da sua reflexão. Pensar o impolítico e suas possíveis soluções lança luz também sobre o problema do populismo. Essa resposta passa pelo que Rosanvallon (2006)ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance. Paris: Éditions du Seuil, 2006. chamou de um “trabalho do político”, que consiste na atividade reflexiva e deliberativa através da qual se elaboram as regras de constituição de um mundo comum: determinação dos princípios de justiça; arbitragem entre situações e interesses de diferentes grupos; modos de articulação entre o público e o privado. A solução – fazer frente ao impolítico – passa pela reconstrução da visão de um mundo comum, traduzido num “trabalho da sociedade sobre si mesma” (p. 312).

A dimensão reflexiva da democracia: desmultiplicação do povo e vontade política como construção histórica

As transformações na concepção da vontade geral oferecem um ângulo de análise privilegiado para abordar a questão da reflexividade e mensurar um dos principais contrapontos entre uma concepção de democracia “complexificada” e aquela “simplificada” da retórica populista – direta, polarizada e imediata. Esse é um dos pontos da crítica de Rosanvallon em Le Siècle du populisme que convém ampliar neste segmento. Como já mencionado, três novas formas de legitimidade democrática emergiram a partir dos anos 1980: a imparcialidade, a reflexividade e a proximidade.6 6 A legitimidade de imparcialidade é característica das autoridades administrativas independentes. Estas reduzem o campo do poder executivo e administrativo, impactando a tradicional divisão dos poderes. Espera-se delas que sejam independentes com relação ao executivo, aos políticos em geral e aos lobbies, mas também que sejam coerentes. Elas devem atingir a generalidade de forma negativa, ou seja, não concedendo a ninguém vantagens ou privilégios e manifestando uma forma de desapego constitutiva do desinteresse. A legitimidade de proximidade se refere a uma nova expectativa dos cidadãos que estão cada vez mais sensíveis ao próprio comportamento dos governantes. Eles querem ser escutados, levados em consideração, expor seus pontos de vista; esperam que o poder esteja atento ao cotidiano das pessoas ordinárias. Além do mais, cada pessoa gostaria que a especificidade de sua situação fosse levada em conta e não apenas submetida a regras abstratas (Rosanvallon, 2008, p. 267). A palavra de ordem, nesse caso, é a “proximidade”. A reflexividade pretende combater os perigos de uma democracia imediata, direta e polarizada, através da pluralização das modalidades de exercício e da temporalidade da soberania do povo. Condorcet é, nesse aspecto, uma referência fundamental. Recorrendo a ele, Rosanvallon afirma que a vontade geral resulta de um processo contínuo de interação entre o povo e os representantes e de uma construção histórica a partir da articulação de várias temporalidades. O “povo” da democracia, por sua vez, manifesta-se de diferentes formas, nenhuma podendo monopolizar o sujeito da democracia. Essas “formas do povo” são o povo-eleitoral, o povo social e o povo-princípio. As principais instituições da reflexividade são as cortes constitucionais que encarnam o povo-princípio no tempo longo da memória coletiva e do direito. Trata-se de uma lógica que não é a do maior número.

Por outro lado, se deriva de uma interação de tipo institucional, a soberania do povo é igualmente uma construção histórica, na medida em que articula várias temporalidades: tempo curto do referendo; ritmo institucional das eleições; tempo longo da constituição (Rosanvallon, 2008ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, réflexivité, proximité. Paris: Éditions du Seuil, 2008.). Em cada um dos casos, a expressão do povo instaura uma vontade que é, ao mesmo tempo, completada, vigiada e controlada pelos outros procedimentos. São diferentes expressões de si mesma que entram em jogo. Condorcet abre, dessa maneira, a via a uma profunda renovação da questão da separação dos poderes, não mais apreendido no modo tradicional de uma balança ou de uma divisão equilibrada das prerrogativas, mas concebido como uma condição do aprofundamento democrático, condição para dar consistência ao povo real que é sempre complexo e plural. O povo, para dizer de outra forma, é múltiplo e, por essa razão, nenhuma de suas manifestações pode resumi-lo e “representá-lo” satisfatoriamente.

O tempo, portanto, constrói a reflexividade; logo, constrói a vontade geral num movimento contínuo de reflexão. Como coloca Rosanvallon (2008, p. 210)ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, réflexivité, proximité. Paris: Éditions du Seuil, 2008., querer conjuntamente não se limita a escolher ou decidir juntos, como numa eleição. Escolher e decidir pressupõem um antes e um depois. A vontade geral não é mais eficaz no referendo, ao contrário. Ela inscreve uma escolha momentânea, envolvendo pessoas e programas, na perspectiva mais ampla da realização de valores, na busca de objetivos mais gerais envolvendo uma forma de sociedade desejada. A vontade é a disposição complexa que liga esses diversos elementos e, por essa razão, é estruturalmente uma construção do tempo, fruto de uma experiência, expressão de uma projeção do ser. A vontade está, por definição, ligada à construção de uma narrativa, e não é, como coloca a retórica populista, a decisão a respeito de uma questão específica, colocada de forma dicotômica.

A batalha do parler vrai contra a corrupção cognitiva

O trabalho do político e a manifestação da vontade só se realizam através da linguagem. Esse é o terceiro aspecto que nos parece particularmente relevante para pensar a relação das mutações da democracia contemporânea com o populismo. Embora a importância da linguagem seja subjacente a todas as dimensões da reflexão propostas por Rosanvallon, ela recebe um tratamento especial em Le Bon Gouvernement, através da noção de parler vrai. O caráter incontornável da linguagem em sua teoria é claramente enunciado quando ele afirma que “governar é falar” (Rosanvallon, 2015bROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Éditions du Seuil, 2015b., p. 327). Segundo ele, os políticos falam para se explicar, mas também para apontar uma direção, desenhar um horizonte e prestar contas de suas ações. Uma política democrática implica tornar a vida das pessoas e a ação pública inteligíveis através da linguagem. É o parler vrai que faz aumentar o controle dos cidadãos sobre sua existência e lhes permite estabelecer uma relação positiva com a vida política. Em contrapartida, a ausência do parler vrai significa distanciamento dos cidadãos das questões envolvendo a coletividade. Portanto, a linguagem política é crucial para o estabelecimento de um elo de confiança.

O parler vrai não possui uma definição simples, existindo apenas na forma de um trabalho permanente de reflexão crítica sobre a linguagem política, trabalho esse que é uma das dimensões vitais da atividade democrática. Ele é, nas palavras de Rosanvallon (2015b, p. 342)ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Éditions du Seuil, 2015b., “uma forma radical de implicação na comunidade, o elo entre uma existência pessoal e um destino coletivo”. O parler faux, em contrapartida, tem um efeito destruidor da vida democrática. Pois, se, por um lado, a linguagem tem o poder de dar sentido às coisas e desenhar um horizonte, ela também tem uma função de sedução e dissimulação, além do poder de criar um mundo artificial que bane a possibilidade de uma interrogação sobre a condução das coisas públicas. Portanto, a mesma linguagem criadora de elos de confiança, vetor de intercompreensão e meio de exploração da realidade, cria as condições do autoritarismo. Os regimes totalitários o demonstraram perfeitamente. Não foi só através do terror que esses regimes puderam criar um mundo fictício; foi também através da linguagem, criadora do universo fictício e coerente da ideologia.

Rosanvallon (2015b)ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Éditions du Seuil, 2015b. identifica três batalhas a serem travadas em prol do parler vrai. A primeira é contra a mentira pura e simples. Trata-se de caçar as mentiras, imprecisões, alterações semânticas.7 7 Rosanvallon (2015b) exemplifica essas alterações semânticas a partir de um texto de George Orwell intitulado “La politique et la langue anglaise”, no qual ele nota como, em países totalitários, execuções sumárias passaram a ser chamadas de “eliminação de suspeitos” ou deslocamentos massivos de população reduzidos a “retificação de fronteiras”. É preciso desconstruir as mentiras por todos os meios possíveis, para não mais deixar o mundo político impor sua linguagem sem ser contestado. A segunda batalha deve ser uma crítica do “monólogo”, um tipo de linguagem que não permite a troca de argumentos, pois não se arrisca, nunca é testada, permanece protegida atrás da “fortaleza” de suas puras afirmações. A consequência desse tipo de linguagem é a manutenção dos cidadãos na posição de espectadores passivos. Finalmente, a terceira batalha é contra o que Rosanvallon chama de “linguagem das intenções”. Relativamente nova, ela faz referência à ideia de impotência do político com relação às potências impessoais, notadamente do mercado. Essa linguagem restaura o sentimento de domínio da ordem moral sobre as coisas, cortada da ação política, ligando-se à percepção de um mundo governado por intenções das quais procederiam as realidades. Nesse sentido, mudar o mundo consistiria em impor outras intenções das quais poderia sair um novo mundo. Essa linguagem não tem vínculo com as realidades, liga-se estruturalmente a uma aversão aos compromissos e arranjos práticos, pois o mundo das intenções é o mundo dicotômico do bem contra o mal.

As considerações em torno do impolítico, da reflexividade e da linguagem possibilitam ampliar a compreensão da teoria do populismo de Rosanvallon. Nesse sentido, a leitura de Le Siècle du populisme é indissociável da sua teoria das mutações da democracia contemporânea. Esses pontos de articulação, que buscamos operacionalizar, revelam que, para além da construção de um ideal-tipo do populismo, da identificação da sua emergência em distintos períodos históricos e da crítica passível de lhe ser dirigida, o populismo é uma forma de democracia-limite própria de uma era ameaçada pelo problema do impolítico e da exacerbação das formas contrademocráticas, de uma concepção reducionista da vontade geral e de um processo crescente de corrupção cognitiva do debate público. São, fundamentalmente, esses aspectos que permitiram a emergência de uma concepção de democracia “direta, polarizada e imediata”, sedutora para vários setores da sociedade. O problema é que essa concepção de democracia não resolve os problemas que os líderes populistas prometem solucionar. Ao contrário, aprofunda-os abrindo a via para uma democratura e, em última instância, para um regime abertamente autoritário. Limitar o estudo da teoria do populismo de Rosanvallon a uma abordagem puramente internalista – ainda que seja uma abordagem internalista ampliada às suas outras obras –, não oferece senão uma visão parcial do objeto em análise. Por isso, é fundamental cotejar sua teoria com outros estudos, particularmente aqueles que tomaram a defesa teórica do populismo.

Rosanvallon e o debate contemporâneo sobre o populismo

A literatura sobre o populismo tem recebido contribuições crescentes no debate sobre a crise política contemporânea. Contudo, apesar do volume crescente de textos, a bibliografia está longe de encontrar consenso sobre o que é o populismo, como este se diferencia de outros tipos de movimentos políticos e, mesmo, se sequer existe como fenômeno distinguível e conceito eficiente.8 8 Dado que a finalidade do artigo é a interpretação da concepção de populismo de Rosanvallon à luz do debate contemporâneo, deixaremos de lado a discussão sobre as variações históricas do populismo, tanto no caso russo, em que a palavra “populismo” encontra sua origem, quanto o desenvolvimento do populismo agrário norte-americano e, sobretudo, a longa e complexa discussão sobre o populismo na América Latina. Para fontes sobre esse debate, ver, respectivamente: Berlin (1968), Kazin (1995) e Ferreira (2001). Já na célebre coletânea de artigos sobre o tema do populismo organizada por Ghita Ionescu e Ernst Gellner, no final dos anos 60, os autores insistem na importância do conceito, ao mesmo tempo em que reconhecem sua natureza elusiva: “não é possível, no presente, duvidar da importância do populismo. Mas ninguém sabe com clareza exatamente o que ele é”, e completam, adiante, afirmando que “ele aparece por toda parte, mas em várias formas contraditórias. Teria ele uma unidade, ou seria apenas um nome que cobre tendências desconectadas?” (Ionescu; Gellner, 1969IONESCU, Ghita; GELLNER, Ernest (ed.). Populism. Its meanings and national characteristics. Nova York: Macmillan, 1969., p. I).

A diversidade de abordagens responde, evidentemente, a perspectivas teóricas consideravelmente distintas: encontramos na literatura interpretações históricas que ressaltam as continuidades ideológicas entre os populismos do pós-guerra e o fascismo (Finchelstein, 2017FINCHELSTEIN, Federico. From fascism to populism in History. Berkeley: University of California Press, 2017.), a relação do populismo como crise da representação liberal (Taggart, 2004TAGGART, Paul. Populism and representative politics in Contemporary Europe. Journal of Political Ideologies, v. 9, n. 3, p. 269-288, 2004. https://doi.org/10.1080/1356931042000263528
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; Urbinati, 2019URBINATI, Nadia. Me the people. How populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019.), o populismo como manifestação de uma ação política que visa substituir o regime democrático por uma “democracia iliberal” (Müller, 2016MÜLLER, Jan-Werner. What is Populism? Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2016.), o populismo como um estilo de performance política (Moffit, 2016MOFFIT, Benjamin. The global rise of Populism: performance, political style and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016.) ou ainda os estudos empíricos que buscam compreender aspectos específicos do fenômeno, como as características geracionais do voto nas lideranças populistas (Norris; Inglehart, 2019NORRIS, Pippa; INGLEHART, Ronald. Cultural Backlash: Trump, Brexit, and the rise of authoritarian-populism. Nova York: Cambridge University Press, 2019.). Caberia, portanto, perguntar-nos que contribuição para a literatura sobre o populismo a obra de Rosanvallon oferece e como sua abordagem teórica se aproxima ou afasta das principais interpretações da literatura. Como procuramos demonstrar até aqui, a interpretação rosanvalloniana do populismo é inseparável de sua teoria da indeterminação democrática e do diagnóstico do populismo como sinal de um “fechamento” do horizonte democrático. Nesse sentido, buscaremos, em primeiro lugar, mostrar como a interpretação de Rosanvallon se distingue no âmbito da relação entre populismo e representação, com especial atenção para sua comparação com Nadia Urbinati, reconhecidamente uma leitora crítica de seus trabalhos anteriores. Em segundo lugar, buscaremos contrastar a abordagem de Rosanvallon com uma das principais elaborações teóricas objeto de crítica em seu livro sobre o populismo, aquela de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.

Populismo e representação política

Desde a coletânea de Ionescu e Gellner, de 1969, passando pelas contribuições de Margaret Canovan (1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., 1999CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political Studies, v. XLVII, p. 2-16, 1999., 2002)CANOVAN, Margaret. Taking politics to the people: populism as the ideology of democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. Nova York: Palgrave, 2002., algumas das interpretações mais influentes do populismo interpretam-no como uma síndrome da pretensa ambiguidade democrática fundamental: o paradoxo entre a ideia de soberania do povo e as práticas institucionais ou “pragmáticas” da democracia (Canovan, 1999CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political Studies, v. XLVII, p. 2-16, 1999.) e sua natureza limitadora das demandas populares. Não muito longe dessa interpretação, os trabalhos de Cass Mudde e Kaltwasser (2012MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal R. (ed.). Populism in Europe and the Americas: threat or corrective for democracy? Cambridge: Cambridge University Press, 2012., 2017)MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal R. Populism. A very short introduction. Nova York: Oxford University Press, 2017. definiriam o populismo como uma “ideologia esvaziada” (thin-centered ideology), identificada pela reivindicação de uma vinculação ao povo em oposição ao establishment político. Essa “ideologia esvaziada” não existiria sozinha, mas se manifestaria no interior de outras ideologias “cheias” – o socialismo, o nacionalismo ou mesmo o liberalismo. O populismo, para eles, contrapor-se-ia a outros dois fundamentos das democracias: o pluralismo e o elitismo (Mudde; Kaltwasser, 2017MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal R. Populism. A very short introduction. Nova York: Oxford University Press, 2017.).

As críticas a tais abordagens estão centradas, sobretudo, em seus problemas de operacionalização analítica. Haveria, na suposição de uma ideologia populista, poucos elementos capazes de diferenciá-la de outras características ideológicas já presentes em ideologias políticas bem definidas (o socialismo, o nacionalismo de extrema-direita, o neoliberalismo etc.). Como nota Benjamin Moffit (2016, p. 19)MOFFIT, Benjamin. The global rise of Populism: performance, political style and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016., “uma ideologia esvaziada pode se tornar tão vazia que perde sua validade e utilidade conceitual”.

Mantendo-se dentro da crítica à imprecisão do conceito de populismo como ideologia, mas buscando, ainda assim, entendê-lo a partir de suas interações com o elitismo e o pluralismo democrático, Nadia Urbinati desenvolve uma tentativa de interpretar o populismo a partir de uma teoria da representação democrática. Segundo ela,

podemos dizer que vemos as coisas melhor se pararmos de nos engajar em debates sobre o que o populismo é – se ele é uma “ideologia esvaziada”, uma mentalidade, uma estratégia ou um estilo – e voltarmo-nos para analisar o que o populismo faz: em particular, perguntarmo-nos sobre como ele muda ou reconfigura os procedimentos e instituições da democracia representativa

(Urbinati, 2019URBINATI, Nadia. Me the people. How populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 7).

Tratar-se-ia, assim, menos de remeter ao populismo como uma das expressões do fundamento da democracia, a busca por modos de expressão da soberania e da vontade popular, e sim de interpretá-lo como parte da dinâmica de competição e circulação de elites políticas do regime representativo. Urbinati (2019)URBINATI, Nadia. Me the people. How populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019. propõe, de partida, afastar a “mitologia” do paradoxo ontológico da democracia – e, portanto, do populismo como expressão do polo propriamente democrático da ontologia dualista – e assumir que a compreensão do populismo deve partir de uma interpretação de seus efeitos na prática da democracia representativa, que não pode ser compreendida fora de sua relação com valores liberais e republicanos como as garantias individuais e os exercícios da representação, e dos mecanismos institucionais de exercício do poder. Trata-se de entender que tipo de reivindicação por mudança institucional o populismo opera na prática e, sobretudo, suas consequências para as instituições democráticas fundamentais como o pluralismo, a competição política, o funcionamento de mecanismos contramajoritários etc.

O ponto de partida da crítica de Urbinati à literatura sobre o populismo e de sua proposta interpretativa e teórica parece-nos, a princípio, aproximar-se do que procuramos demonstrar até aqui a respeito da teoria de Rosanvallon: o que ambos os autores propõem demonstrar é que o populismo reivindicaria a representação como um modo de “confirmação” que anula a complexidade da democracia, já que o exercício do poder resultante da representação não está mais relacionado à sua adequação a normas sociais objetivas – que pressupõem o exercício do povo-soberano como povo institucionalizado pelo Estado de direito –, mas a uma suposta resposta direta ao soberano e à possibilidade de interpretar e encarnar sua vontade. Em termos práticos, essa distinção remete ao problema colocado inicialmente pelo populismo como um fenômeno de natureza antipluralista: se a competição política por representação é que gera o pluralismo democrático, a pressuposição de uma democracia que pudesse prescindir do pluralismo abriria espaço para a construção de uma “democracia autoritária, imediata e polarizada, que chamaríamos hoje em dia de ‘democracia iliberal’” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 18).

Contudo, é preciso ressaltar uma diferença fundamental entre as interpretações de Rosanvallon e Urbinati sobre o populismo, a qual, em verdade, revela disjuntivas de longo prazo entre os dois autores. A análise de Urbinati é construída no sentido de demonstrar que o populismo é, sobretudo, uma forma de transformar a democracia, e não de substituí-la por um regime autoritário; essa é a principal diferença que a autora percebe entre o populismo e o fascismo, dado que este último seria inseparável do objetivo de construir uma “tirania”. Contudo, a necessidade de distinguir o populismo de outras formas abertamente autoritárias parece-nos ter levado a autora a confundir, na mesma categoria de “populismo”, formas potencialmente antidemocráticas de mobilização política com formas de reivindicação por modos alternativos de participação.

Urbinati afirma que “deveríamos falar de uma transformação populista da democracia – ou, ainda melhor, uma transformação na forma como a democracia representativa está se preparando para entrar na era da soberania de audiência” (Urbinati, 2019URBINATI, Nadia. Me the people. How populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 176). E, para demonstrar essa transformação populista no interior das democracias representativas, ela ilustra o argumento com os casos do Podemos na Espanha e do Movimento 5 Stelle na Itália como exemplos de reivindicação de formas de “poder popular direto” e “democracia participativa” como alternativa de combate ao poder das elites que parasitam o sistema político-partidário tradicional. Para ela, ambos os partidos seriam os “mais expressivos e espetaculares casos de ascensão populista que desafiaram os partidos mainstream em anos recentes” (p. 181). Ora, se é verdade que esses partidos obtiveram crescimento eleitoral expressivo a partir da crítica ao establishment político e reivindicando novas formas de participação e de controle sobre a representação, o fato de ambos terem formado gabinetes com o establishment de centro-esquerda em anos recentes mostra que não há distinção eficiente entre chamá-los de populistas ou encará-los como manifestação de novas formas de conflito e transformação do quadro partidário nos sistemas democráticos. Ao fim, Urbinati qualifica de populista qualquer tipo de reivindicação por novas formas de participação, de deliberação e de crítica ao sistema partidário estabelecido, não as diferenciando de exemplos que colocam as estruturas da democracia representativa e o Estado de direito em risco, como o processo de regressão democrática do caso húngaro, que se encaixaria perfeitamente “no seu conceito de populismo como transição de movimento para regime” (Cassimiro, 2021CASSIMIRO, Paulo H. P. Os usos do conceito de populismo no debate contemporâneo e suas implicações sobre a interpretação da democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 35, p. 1-52, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.35.242084
https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.3...
, p. 41).

Esse problema na análise de Urbinati remete às próprias críticas endereçadas a Rosanvallon, em seu livro Democracy desfigured (Urbinati, 2014URBINATI, Nadia. Democracy desfigured. Opinion, truth and the people. Cambridge: Harvard University Press, 2014.), onde a autora argumenta que haveria, na teoria política contemporânea, uma tendência a desafiar as definições procedimentais da democracia no sentido de atribuir a certas instituições conteúdos substantivos que não seriam, necessariamente, resultado dos procedimentos eleitorais. No caso de Rosanvallon, Urbinati reconhece essa “desfiguração” da democracia em sua defesa do lócus institucional em que se desenvolveriam instrumentos de “imparcialidade e reflexividade”, em especial o judiciário e as autoridades independentes. A crítica de Urbinati revela, em muitos sentidos, o problema teórico de fundo que distingue ambos os autores: para ela, a centralidade de certa concepção minimalista de democracia, que ela chama de procedimentalista em seu livro de 2014, dota sua concepção de democracia de um conteúdo bem determinado e consideravelmente afastado da ideia de “indeterminação” rosanvalloniana: a democracia pode não ser dotada de um conteúdo “perfeccionista”, mas ela é algo bem definido para Urbinati, “um método para regular a distribuição de governo entre os cidadãos” (2014, p. 234). É justamente por essa razão que fenômenos políticos tão distintos como o de Viktor Orbán, Trump ou o Podemos podem ser incluídos por ela numa única categoria chamada “populismo”: em todos os casos, trata-se de um tipo de política que procura se exercer para além da execução dos mecanismos procedimentais do “jogo democrático”, “desfigurando-os”. Contudo, como apontamos, essa indistinção não nos permite entender se essa desfiguração carrega ou não consigo uma normatividade autoritária.

Essa tentativa de se refugiar na defesa dos procedimentos é justamente o que a teoria da indeterminação democrática de Rosanvallon procura superar, ao se afastar da teoria do “paradoxo” democrático ou da ideia das potencialidades emancipatórias do populismo. Como já demonstramos, para Rosanvallon, o populismo é uma “forma limite do projeto democrático”, ao lado, contudo, de duas outras: as democracias minimalistas e as democracias essencialistas. A ideia schumpeteriana de democracia (criticada por Urbinati, mas que ainda assim guarda afinidades com sua defesa do procedimentalismo contra as formas perfeccionistas de democracia) não é, para Rosanvallon, senão uma das manifestações possíveis da indeterminação democrática, na medida em que revela a dimensão institucional associada ao método de seleção das elites políticas, sem, contudo, esgotar ou concluir as possibilidades da democracia. Se é evidente que, para Rosanvallon (2020, p. 151)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., o poder não pode “tomar forma senão de modo mediatizado e instrumentalizado pelos procedimentos representativos”, não se pode esquecer que “a democracia não designa só um tipo de regime, mas qualifica também uma forma de sociedade” (p. 158). É justamente o conflito entre as promessas não exercidas pela institucionalidade democrática tal como ela existe e sua tensão com as promessas de realização da “sociedade dos iguais”, no âmbito da democracia como forma de sociedade, que alimentam processos sintomáticos do “desencantamento democrático contemporâneo” (p. 19). É, pois, essa ambiguidade, criada pela definição de populista aplicável a processos políticos consideravelmente diferentes – do Podemos a Viktor Orbán –, que Rosanvallon parece superar ao propor a ideia de “formas limites” da democracia. Em verdade, poderíamos dizer que a originalidade de sua teoria está menos em uma “nova definição” de populismo do que na compreensão teórica do populismo no interior dessas formas limites. Tais horizontes redutores da complexidade democrática, Rosanvallon observa tanto na defesa minimalista da democracia liberal quanto na apologia normativa das potencialidades democratizantes do populismo, como procuraremos discutir a seguir.

As limitações do “momento populista”

Entre os teóricos que avaliam os potenciais positivos do populismo, quem desenvolveu um argumento mais elaborado, e com consequências normativas para a ação política, foi o filósofo argentino Ernesto Laclau, cuja obra foi desenvolvida em conjunto e, após a sua morte, desdobrada – não sem diferenças – nos argumentos de Chantal Mouffe. Sua perspectiva, que poderíamos chamar aqui de “ontológica”, apontaria para o populismo como a manifestação de um tipo de conflito antagônico constitutivo do “político”: a capacidade de estabelecer diferenças entre o dentro e o fora, entre o “nós” e os “outros”. O populismo seria o ato de superar a ideia da política como um “conjunto puramente diferencial” de demandas, identificada pela democracia liberal, em favor de um tipo de identidade capaz de congregar demandas subalternas num conceito de totalidade diferencial, reconstruindo a política como um conflito antagônico (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005.). Laclau se fasta dos esforços de catalogação das variedades de populismo, dado que, para ele, o fenômeno não pode ser apreendido pela síntese de suas manifestações históricas, tentativa que ofereceria, no máximo, “um mapa da dispersão linguística” (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005., p. 7) do fenômeno populista. Nesse sentido, a natureza elusiva do populismo não seria uma falha conceitual, mas antes uma consequência da realidade social à qual ele remete: o populismo, antes do que uma operação ideológica e política, é um ato performativo capaz de construir identidades em torno de demandas políticas específicas.

A publicação de Le Siècle du populisme recebeu atenção imediata do debate intelectual sobre o populismo e a crise da democracia. Uma das reações críticas ao trabalho, um artigo de Chantal Mouffe publicado no Le Monde Diplomatique (2020) e intitulado “Ce que Pierre Rosanvallon ne comprend pas” permite explorar algumas das implicações da interpretação de Rosanvallon em comparação com as teorias que reivindicam o populismo como horizonte normativo da ação política. Em sua crítica, Mouffe afirma que a leitura de Rosanvallon sobre seus próprios trabalhos e os de Laclau retomaria o “lugar comum” de definir o populismo como uma contraposição entre “povo puro” e “elites corruptas”, por não entender que a variedade dos populismos responderia a estratégias específicas de “construção da fronteira política estabelecida com base em uma oposição entre as camadas inferiores e as superiores, os dominantes e os dominados” (Mouffe, 2020MOUFFE, Chantal. Ce que Pierre Rosanvallon ne comprend pas. Le Monde Diplomatique, maio 2020, p. 3. Disponível em: https://www.monde-diplomatique.fr/2020/05/MOUFFE/61778.
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), tentando reduzir o fenômeno a uma definição ideológica unívoca. Esse ponto estrutura a concepção de populismo de Laclau (2005)LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005. como performance do conflito político, pois para o autor o populismo utiliza a categoria “povo” como um significante vazio que permite estabelecer uma cadeia de equivalências entre demandas aparentemente desagregadas de parcelas subalternas da população. Essa cadeia, fundada em uma lógica da identidade, constrói a fronteira entre o povo e seu “outro”, as elites, estabelecendo a dicotomia necessária para a reconstrução do conflito político fundamental, oculto sob a máscara da “totalidade diferencial” representada pela democracia liberal.

Contudo, diferentemente de Laclau, que identifica democracia liberal com democracia burguesa e, portanto, reivindica a ação populista visando construir um outro projeto emancipatório, o projeto populista de Mouffe opera como uma “radicalização da democracia liberal”, consistindo justamente em reafirmar a “natureza partidária da política” (Mouffe, 2018MOUFFE, Chantal. For a Left Populism. Londres: Verso, 2018., p. 10). O momento atual, que a autora define como sendo o “momento populista”, é uma possibilidade de “retorno ao político”; contudo, vale lembrar, esse retorno não necessariamente tem um conteúdo essencialmente democrático, mas pode, também, conduzir a alternativas autoritárias; por isso, o conflito político fundamental do mundo contemporâneo é definido por ela como uma disputa entre um populismo de esquerda e um populismo de direita, possibilitado pelo “interregno” resultante da crise da hegemonia neoliberal. Nesse sentido, o encontro entre populismo e agonismo aparece nos trabalhos mais recentes de Mouffe como resultado de uma radicalização possível do imaginário político das democracias modernas: “inscrever a estratégia populista na tradição democrática é, em minha visão, o movimento decisivo, pois ele estabelece uma conexão com os valores políticos centrais para as aspirações populares” (Mouffe, 2018MOUFFE, Chantal. For a Left Populism. Londres: Verso, 2018., p. 26). Ora, a ação populista não será, portanto, uma reconstrução do zero de um significante vazio, mas a reconexão com os “valores políticos” do projeto democrático representado, entre outras experiências, pela Declaração dos Direitos do Homem.

A crítica agonista, no limite, pressupõe uma inscrição distinta no projeto emancipatório da democracia ou, nas palavras de Mouffe (2018, p. 25)MOUFFE, Chantal. For a Left Populism. Londres: Verso, 2018., “a radicalização dos princípios ético-políticos do regime liberal-democrático”. É essa dimensão do vínculo entre o construtivismo da estratégia populista e a radicalização do ideal emancipatório da democracia que Mouffe acusa Rosanvallon de não ter compreendido, mantendo-se vinculado a uma concepção consensual de democracia, “uma versão sofisticada da doutrina dominante dos partidos socialdemocratas sob a hegemonia neoliberal” (Mouffe, 2020MOUFFE, Chantal. Ce que Pierre Rosanvallon ne comprend pas. Le Monde Diplomatique, maio 2020, p. 3. Disponível em: https://www.monde-diplomatique.fr/2020/05/MOUFFE/61778.
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), para a qual o “déficit democrático” contemporâneo poderia ser resolvido através de um sistema político capaz de dar espaço à diversidade das demandas individuais numa sociedade em que as classes sociais e suas consequências para as identidades de esquerda e direita perderam pertinência.

Ora, sem abordarmos aqui o juízo de Mouffe sobre as implicações normativas da teoria democrática de Rosanvallon, acreditamos ser possível observar que a leitura deste, antes de se equivocar quanto ao estatuto teórico do “momento populista” da esquerda, toma-o como um exemplo teoricamente preciso do populismo como manifestação de uma das aporias estruturantes da democracia, que aponta não para uma realização das “promessas” da democracia, mas antes para sua limitação em um horizonte democrático restrito. Retomemos os trabalhos de Laclau para desenvolver essa questão.

Laclau procura formular uma distinção entre o potencial emancipatório do populismo e sua possível manifestação em um significante vazio cuja natureza seja limitadora, ou mesmo regressiva em termos de conquistas democráticas. Dado que a identidade do povo necessita da superação dos aspectos puramente diferenciais da institucionalidade democrático-burguesa, deve ser afastado, por princípio, o apelo a quaisquer aspectos de mediação institucional como modo de limitar a possível conversão antidemocrática da representação populista. A saída para escapar da possibilidade de que o populismo se manifeste em formas antidemocráticas está em reivindicar uma identidade entre universalismo e emancipação, que estaria, portanto, ausente em formas autoritárias de populismo. “A plebe, cujas demandas parciais estão inscritas num horizonte de totalidade – uma sociedade justa que existe apenas idealmente – pode aspirar a constituir o povo verdadeiramente universal que a situação atual nega” (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005., p. 94). É através de uma aposta no horizonte normativo de uma identidade entre demandas da plebe e seu conteúdo universal – articulados em uma ação política populista de conteúdo emancipatório – que Laclau diferencia o populismo como potencial emancipatório de sua perversão autoritária (Cassimiro, 2021CASSIMIRO, Paulo H. P. Os usos do conceito de populismo no debate contemporâneo e suas implicações sobre a interpretação da democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 35, p. 1-52, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.35.242084
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, p. 21).9 9 Para mais sobre a relação entre populismo, universalismo e a questão das classes sociais, ver Butler et al. (2000).

O argumento de Laclau está fundado na defesa da democracia como exercício de uma ação política emancipatória (cuja manifestação é o populismo) e na recusa das formas institucionais, do direito e da representação, que caracterizam os modos de mediação da democracia liberal. Essa recusa está baseada em uma distinção feita por Mouffe entre a democracia como uma forma de governo baseada no princípio da soberania do povo e a estrutura institucional liberal através da qual a democracia é exercida (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005.). Para Mouffe, a democracia moderna é resultado da conjunção circunstancial de duas tradições: a reivindicação liberal da rule of law, “a defesa dos direitos humanos e o respeito pela liberdade individual”, e a tradição democrática baseada nas ideias de “igualdade e de soberania popular”. “Não há uma relação necessária entre essas duas tradições, mas apenas uma articulação histórica contingente” (Mouffe, 2000MOUFFE, Chantal. The democratic paradox. Londres: Verso, 2000., p. 3) que, em última instância, se expressaria através de um paradoxo, como ela pretende demonstrar em seu livro The democratic paradox (2000).

A princípio, essa interpretação parece ir ao encontro da ideia de indeterminação democrática, que pressuporia a democracia como campo de disputas pelas representações fundamentais que organizam a vida política, negando definições puramente procedimentais da democracia ou sua limitação em uma forma institucional final. Contudo, as interpretações do populismo como ontologia do político estão longe da ideia de indeterminação democrática, que tem como origem a reflexão de Claude Lefort e que Rosanvallon pretende desenvolver e amplificar. Para Laclau, por exemplo, a teoria de Lefort não daria conta da compreensão da dimensão performática da construção dos sujeitos populares e democráticos, justamente porque “ela estaria concentrada apenas nos regimes liberal-democráticos” (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005., p. 166).

O problema dessa crítica, no entanto, é que ela tem origem em uma leitura muito parcial da obra de Lefort: para este, a centralidade dos direitos humanos e das liberdades individuais não se confunde com uma defesa do liberalismo, mas parte, antes, do reconhecimento de que a concepção moderna de democracia pressupõe uma relação entre a ideia de um “lugar vazio do poder” e a “nova constituição simbólica do social”.10 10 Como mostra Mark Ingram (2006), as interpretações da obra de Lefort costumam pender ora para ressaltar as afinidades com o liberalismo e ora por afirmar sua vinculação a uma ideia de democracia radical. Essa nova constituição simbólica do social está marcada justamente pelo fato de que é através das formas políticas – o direito, as liberdades, a publicidade, os modos de representação – que a experiência política democrática se manifestou na modernidade. Nesse sentido, Lefort (1991, p.34) não recusa a crítica de que as instituições liberal-democráticas foram também formas de “limitar a uma minoria os meios de acesso ao poder, ao conhecimento e ao gozo de direitos”, mas recusa, sim, a redução da esfera das mediações formais – os direitos humanos, sobretudo – como puras manifestações da alienação (p. 33). É esse argumento lefortiano que Rosanvallon busca desdobrar, ao apontar que o populismo é um modo específico de resolução da indeterminação fundamental que caracteriza a experiência democrática, a partir da absorção da democracia por apenas uma das dimensões que a constitui, cujo exemplo maior está justamente em uma concepção unívoca e totalizante de representação: “o imperativo da representação é cumprido com o mecanismo de identificação do líder (...) ao mesmo tempo em que a visão da sociedade remete a uma dicotomia elementar” (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 165). É justamente a crítica dessa “concepção restrita do político” que pressupõe a vinculação da legitimidade democrática a apenas uma das manifestações da sua indeterminação, que Rosanvallon pretende operar em seu trabalho.

O problema dessa dimensão da mediação das formas institucionais e do direito na teoria populista é que ela não está pressuposta como parte inextrincável da experiência democrática moderna, mas como resultado do aporte liberal à democracia, ao fim um elemento alienígena à “essência” democrática, a identidade ontológica entre poder e povo. O problema da dimensão da mediação para Laclau, é que ela permanece sendo uma “totalidade diferencial/institucional” (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. Londres: Verso, 2005., p. 77), e a necessidade de sua superação por meio da mobilização populista obedeceria à fidelidade a uma ontologia do político que pressupõe uma polaridade sem mediações

(Cassimiro, 2021CASSIMIRO, Paulo H. P. Os usos do conceito de populismo no debate contemporâneo e suas implicações sobre a interpretação da democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 35, p. 1-52, 2021. https://doi.org/10.1590/0103-3352.2021.35.242084
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, p. 23).

Essa equação é, no limite, uma aposta em uma forma unívoca de representação: como mostra Rosanvallon, mesmo que a teoria de Laclau pretenda preservar uma ideia de pluralismo no interior das identidades subalternas, a construção da identidade coletiva pressupõe a “articulação vertical em torno de um significante hegemônico que, na maioria dos casos, tem o nome de líder” (Laclau apud Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020., p. 51).11 11 Um desafio teórico importante é investigar as afinidades entre o argumento de Laclau e Mouffe e do ideólogo de extrema-direita francês Alain de Benoist. Não só Rosanvallon chama a atenção para as convergências, apontando, por exemplo, as afinidades de Mouffe e Benoist com Carl Schmitt, como essas são reconhecidas pelo próprio Benoist em seus trabalhos (ver a nota 2 em Rosanvallon, 2019, p. 31). As convergências teóricas – que, vale dizer, não ocultam as profundas discordâncias políticas – também podem ser testemunhadas no debate de televisão entre Mouffe e de Benoist, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9E_9c8B1cPg.

É justamente sobre as implicações desse tipo de teoria política, expressas na ideia da democracia como um paradoxo, que Rosanvallon (2020, p.19)ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020. está chamando a atenção ao apontar o populismo como uma “forma limite do projeto democrático”. Sua proposta de “complicar a democracia” não é senão uma manifestação normativa de sua concepção da democracia como uma forma inacabada que, ao mesmo tempo, se expressa nas suas diversas dimensões – majoritárias, cidadã, contrademocráticas etc. –, conforme procuramos demonstrar na primeira parte deste artigo. No limite, o argumento de Laclau e Mouffe aponta para a continuidade daquilo que é a essência da crítica rosanvalloniana ao populismo como “forma limite” da representação democrática: se, para o populismo, o político deve ser entendido como manifestação da representação como unidade (construída a partir da integração de identidades subalternas, como quer o populismo de esquerda, ou da revelação da autenticidade nacional de um povo, como quer o populismo de direita), essa concepção do político está em flagrante contradição com a ideia de democracia como pluralidade complexa de temporalidades, modos de representação e formalizações institucionais passíveis da expansão e transformação.

Considerações finais: a alternativa

Rosanvallon nunca se furtou a participar do debate público e a propor soluções para os problemas da cité. Ele encerra Le Siècle du populisme com o esboço de uma alternativa que, inclusive, já estava delineada em trabalhos anteriores, especialmente em Le Bon gouvernement – alternativa que toma o contrapé das “democracias-limite”. Ou seja, a solução não é simplificar a democracia, superar suas aporias estruturantes ou acabar com suas indeterminações. O que ele sugere, ao contrário, é complicá-la. Começando com a ideia de “povo” considerando-o em suas múltiplas dimensões – eleitoral, social, princípio – para que ninguém possa “possuí-lo” ou falar em seu nome, pois “o povo” só existe em formas de manifestação parciais. Além desse processo de “desmultiplicação” do povo, Rosanvallon insiste na necessidade não apenas de um regime democrático e de uma sociedade democrática, mas também de uma ação democrática. Faz-se necessário, para isso, passar do que ele chama de uma “democracia de autorização” para uma “democracia como exercício”. Esta última deve manter uma relação entre governantes e governados regida pelos princípios da legibilidade, da responsabilidade e da reatividade. Seus governantes, por sua vez, devem ter as qualidades da integridade e do parler vrai. Se juntamos as duas dimensões da democracia de exercício, temos na legibilidade, na responsabilidade, na reatividade, no parler vrai e na integridade os seus pilares. Seu fortalecimento, através de instituições adequadas, é o caminho para um bom governo democrático.

  • 1
    Trata-se de uma abordagem que Rosanvallon reconhece ser de pouca utilidade para a compreensão do fenômeno na contemporaneidade. Por essa razão, ele coloca sua reflexão sobre a história da palavra “populismo” nos apêndices.
  • 2
    O termo “desmultiplicar”, tanto em francês como no português falado em Portugal, tem dois sentidos: “reduzir a velocidade de rotação” ou “desdobrar-se ou esforçar-se em várias ações ou atividades”. Este segundo sentido é exatamente o que Pierre Rosanvallon dá ao termo. O sinônimo mais próximo no português falado no Brasil seria “desdobrar”. Pelo fato de o termo “democracia desdobrada” soar estranho, optamos pela tradução literal: “povo desmultiplicado”.
  • 3
    Essa ascendência não se dá necessariamente através de uma censura oficial. Os governos populistas utilizam meios diversos como a redução da publicidade oficial ou privada em jornais opositores, minando consideravelmente sua autonomia financeira.
  • 4
    Rosanvallon cita o exemplo de um número temático da revista Éléments (no 177, abril-maio de 2019), intitulado “Les 36 familles du populisme”. Segundo ele, tal exercício é o exato oposto de um trabalho de conceitualização e só faz mascarar uma incapacidade de apreender a essência das coisas (Rosanvallon, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil, 2020.).
  • 5
    Da Revolução de 1789 ao século 20, Rosanvallon identificou algumas “patologias internas à democracia” analisadas em La Démocratie inachevée (2000): elas assumiram três formas no século 19 – a “democracia constitucional”, a “cultura da insurreição” e uma concepção de “governo direto”, encarnada por Napoleão III, duas no século 20 – os totalitarismos comunista e nazista – e uma no século 21– o populismo. Compreender a democracia, para Rosanvallon, é compreender o sistema que forma essa indeterminação e esse desencantamento. Esse, portanto, é um primeiro ponto a enfatizar: o populismo é mais um resultado perverso, entre outros, de uma tentativa de simplificação do ideal democrático.
  • 6
    A legitimidade de imparcialidade é característica das autoridades administrativas independentes. Estas reduzem o campo do poder executivo e administrativo, impactando a tradicional divisão dos poderes. Espera-se delas que sejam independentes com relação ao executivo, aos políticos em geral e aos lobbies, mas também que sejam coerentes. Elas devem atingir a generalidade de forma negativa, ou seja, não concedendo a ninguém vantagens ou privilégios e manifestando uma forma de desapego constitutiva do desinteresse. A legitimidade de proximidade se refere a uma nova expectativa dos cidadãos que estão cada vez mais sensíveis ao próprio comportamento dos governantes. Eles querem ser escutados, levados em consideração, expor seus pontos de vista; esperam que o poder esteja atento ao cotidiano das pessoas ordinárias. Além do mais, cada pessoa gostaria que a especificidade de sua situação fosse levada em conta e não apenas submetida a regras abstratas (Rosanvallon, 2008ROSANVALLON, Pierre. La légitimité démocratique. Impartialité, réflexivité, proximité. Paris: Éditions du Seuil, 2008., p. 267). A palavra de ordem, nesse caso, é a “proximidade”.
  • 7
    Rosanvallon (2015b)ROSANVALLON, Pierre. Le bon gouvernement. Paris: Éditions du Seuil, 2015b. exemplifica essas alterações semânticas a partir de um texto de George Orwell intitulado “La politique et la langue anglaise”, no qual ele nota como, em países totalitários, execuções sumárias passaram a ser chamadas de “eliminação de suspeitos” ou deslocamentos massivos de população reduzidos a “retificação de fronteiras”.
  • 8
    Dado que a finalidade do artigo é a interpretação da concepção de populismo de Rosanvallon à luz do debate contemporâneo, deixaremos de lado a discussão sobre as variações históricas do populismo, tanto no caso russo, em que a palavra “populismo” encontra sua origem, quanto o desenvolvimento do populismo agrário norte-americano e, sobretudo, a longa e complexa discussão sobre o populismo na América Latina. Para fontes sobre esse debate, ver, respectivamente: Berlin (1968)BERLIN, Isaiah. To define Populism. Government and Opposition, v. 3, n. 2, p. 127-179, 1968., Kazin (1995)KAZIN, Michael. The Populist persuasion: an American History. Nova York: Basic Books, 1995. e Ferreira (2001)FERREIRA, Jorge (org.). O Populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001..
  • 9
    Para mais sobre a relação entre populismo, universalismo e a questão das classes sociais, ver Butler et al. (2000)BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ZIZEK, Slajov. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. Londres: Verso, 2000..
  • 10
    Como mostra Mark Ingram (2006)INGRAM, James. The politics of Claude Lefort’s political: between liberalism and radical democracy. Thesis Eleven, v. 87, n. 1, p. 33-50, 2006. https://doi.org/10.1177/0725513606068774
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    , as interpretações da obra de Lefort costumam pender ora para ressaltar as afinidades com o liberalismo e ora por afirmar sua vinculação a uma ideia de democracia radical.
  • 11
    Um desafio teórico importante é investigar as afinidades entre o argumento de Laclau e Mouffe e do ideólogo de extrema-direita francês Alain de Benoist. Não só Rosanvallon chama a atenção para as convergências, apontando, por exemplo, as afinidades de Mouffe e Benoist com Carl Schmitt, como essas são reconhecidas pelo próprio Benoist em seus trabalhos (ver a nota 2 em Rosanvallon, 2019ROSANVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen. Histoire du suffrage universel en France. Paris: Éditions Gallimard, 1992., p. 31). As convergências teóricas – que, vale dizer, não ocultam as profundas discordâncias políticas – também podem ser testemunhadas no debate de televisão entre Mouffe e de Benoist, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9E_9c8B1cPg.

Agradecimentos

O autor Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que financiou, por meio de seu programa de Pós-Doutorado (processo nº 2019/09549-1) a execução da pesquisa apresentada neste artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    15 Jun 2021
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