Resumos
Este artigo procura analisar o processo de formação e desenvolvimento humano. Ele toma como ponto de partida conceitos da pedagogia humanista e tenta produzir alguns avanços na reflexão sobre esses processos. O artigo tenta demonstrar que essa abordagem explica esses processos de forma interacionista, global e holística. Suas reflexões iniciais se baseiam no pensamento de Carl Rogers, Jean-Jacques Rousseau e John Dewey, tentando resgatar importantes contribuições desses três pensadores sobre o desenvolvimento humano. Em seguida, busca demonstrar a necessidade de superar algumas contradições nas idéias desses autores, atitude necessária para radicalizar uma compreensão interacionista do tema. Talvez a principal contradição nesses autores e em uma parte considerável das pedagogias antiautoritárias esteja na oscilação entre inatismo e interacionismo. Não obstante o grande valor dessas pedagogias para a estruturação de propostas radicalmente democráticas de educação e de sociedade, o artigo tenta demonstrar a necessidade de superação da citada oscilação para avançarmos nesse campo. Ao radicalizarmos o interacionismo, podemos exercitar uma compreensão complexa de ser humano, que o enxerga como um ser afetivo, político e cósmico, simultaneamente. Assim, o organismo humano é entendido em sua unidade interna, em seu pertencimento social e em sua ligação com o cosmos, dimensões imprescindíveis para uma compreensão não fragmentária do desenvolvimento humano.
Formação humana; Desenvolvimento; Pedagogia humanista
This article seeks to analyze the process of human formation and development. It takes as a point of departure concepts of the humanist pedagogy, and tries to move forwards in the reflection upon these processes. The text attempts to demonstrate that this approach explains these processes in an interactionist, global and holistic way. Its main reflections are based on the thought of Carl Rogers, Jean-Jacques Rousseau, and John Dewey, trying to recall important contributions from these thinkers to the study of human development. Next, the paper seeks to show to need to overcome some contradictions in the ideas of these authors, an attitude required to deepen an interactionist understanding of the issue. Perhaps the main contradiction in these authors, shared with a considerable fraction of anti-authoritarian pedagogies, lies in the oscillation between innatism and interactionism. Despite the high value of these pedagogies to the establishment of radically democratic proposals of education and society, the text tries to demonstrate the need to overcome the above mentioned contradiction in order to move forwards in this field. By radicalizing interactionism we can exercise a complex understanding of the human being, seeing it simultaneously as an affective, political and cosmic being. The human organism is thus understood in its internal unity, in its social belonging, and in its connection with the cosmos, dimensions indispensable to a non-fragmentary vision of human development.
Human formation; Development; Humanist pedagogy
ARTIGOS
Educação, desenvolvimento humano e cosmos* * Este artigo nasceu de uma parte da minha pesquisa de doutorado, recentemente concluída na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Mogilka, 2004). A minha gratidão com o programa de doutorado da UFBA e com o orientador da pesquisa, Prof. Dante Galeffi, é incomensurável.
Education, human development and cosmos
Maurício Mogilka
Universidade do Estado da Bahia
Correspondência Correspondência Mauricio Mogilka Rua Tenente Pires Ferreira, 230 apto 303 - Barra 40130-160 - Salvador - BA e-mail: mmogilka@uneb.br
RESUMO
Este artigo procura analisar o processo de formação e desenvolvimento humano. Ele toma como ponto de partida conceitos da pedagogia humanista e tenta produzir alguns avanços na reflexão sobre esses processos. O artigo tenta demonstrar que essa abordagem explica esses processos de forma interacionista, global e holística. Suas reflexões iniciais se baseiam no pensamento de Carl Rogers, Jean-Jacques Rousseau e John Dewey, tentando resgatar importantes contribuições desses três pensadores sobre o desenvolvimento humano. Em seguida, busca demonstrar a necessidade de superar algumas contradições nas idéias desses autores, atitude necessária para radicalizar uma compreensão interacionista do tema. Talvez a principal contradição nesses autores e em uma parte considerável das pedagogias antiautoritárias esteja na oscilação entre inatismo e interacionismo. Não obstante o grande valor dessas pedagogias para a estruturação de propostas radicalmente democráticas de educação e de sociedade, o artigo tenta demonstrar a necessidade de superação da citada oscilação para avançarmos nesse campo. Ao radicalizarmos o interacionismo, podemos exercitar uma compreensão complexa de ser humano, que o enxerga como um ser afetivo, político e cósmico, simultaneamente. Assim, o organismo humano é entendido em sua unidade interna, em seu pertencimento social e em sua ligação com o cosmos, dimensões imprescindíveis para uma compreensão não fragmentária do desenvolvimento humano.
Palavras-chave: Formação humana - Desenvolvimento - Pedagogia humanista.
ABSTRACT
This article seeks to analyze the process of human formation and development. It takes as a point of departure concepts of the humanist pedagogy, and tries to move forwards in the reflection upon these processes. The text attempts to demonstrate that this approach explains these processes in an interactionist, global and holistic way. Its main reflections are based on the thought of Carl Rogers, Jean-Jacques Rousseau, and John Dewey, trying to recall important contributions from these thinkers to the study of human development. Next, the paper seeks to show to need to overcome some contradictions in the ideas of these authors, an attitude required to deepen an interactionist understanding of the issue. Perhaps the main contradiction in these authors, shared with a considerable fraction of anti-authoritarian pedagogies, lies in the oscillation between innatism and interactionism. Despite the high value of these pedagogies to the establishment of radically democratic proposals of education and society, the text tries to demonstrate the need to overcome the above mentioned contradiction in order to move forwards in this field. By radicalizing interactionism we can exercise a complex understanding of the human being, seeing it simultaneously as an affective, political and cosmic being. The human organism is thus understood in its internal unity, in its social belonging, and in its connection with the cosmos, dimensions indispensable to a non-fragmentary vision of human development.
Keywords: Human formation - Development - Humanist pedagogy.
A partícula cósmica que navega meu sangue é um mundo infinito de forças siderais.
Veio a mim sob um longo caminho de milênios quando talvez fui areia para os pés do ar.
Logo fui a madeira, raiz desesperada, submersa no silêncio de um deserto sem água.
Depois fui caracol, quem sabe aonde, e os mares me deram a primeira palavra.
Logo a forma humana derramou sobre o mundo a universal bandeira do músculo e da lágrima.
E cresceu a blasfêmia sobre a antiga terra
E então vim à América para nascer homem, e em mim juntei a mata, os pampas e a montanha.
Converso com as folhas no meio dos montes e em dão suas mensagens as raízes secretas.
E assim vou pelo mundo sem idade nem destino, ao amparo de um cosmos que caminha comigo.
Amo a luz, o rio, o caminho e as estrelas, e floresço em violões porque fui a madeira.
(Atahualpa Yupanqui)
A positividade da natureza humana
O conceito de desenvolvimento é, na minha interpretação, um dos mais críticos em educação. A fragilidade no seu entendimento ou a influência de teorias com forte viés determinista têm produzido o seu escamoteamento, com graves conseqüências na prática. Neste artigo, eu procuro fazer uma discussão sobre esse importante processo, buscando inspiração em algumas idéias da pedagogia humanista, especialmente no pensamento de Jean-Jacques Rousseau, Carl Rogers e John Dewey.
Uma questão que tem travado nosso avanço nesse assunto é a dificuldade de pensarmos em termos complexos e interacionistas. Por isso, freqüentemente acabamos fazendo escolhas, ora privilegiando a natureza humana e as suas potencialidades inatas, ora as estruturas externas como a cultura e as relações sociais. Estas certamente sempre estão presentes, mas tomadas de forma determinante, não conseguem elucidar o processo de formação humana. Como explicar características humanas que se repetem em culturas e contextos sociais extremamente diversos?
Por outro lado, vários autores das pedagogias antiautoritárias enfatizam as potencialidades inatas da criança e o seu senso de orientação orgânica, anteriores ao processo de socialização. Suas reflexões são de valor inestimável para a estruturação de propostas educativas democráticas. Contudo, essas reflexões por vezes carecem de uma maior ênfase nas estruturas e nos processos sociais, tão fundamentais na formação humana. Eu aqui vou iniciar justamente por dois desses autores, Carl Rogers e Jean-Jacques Rousseau, para resgatar o valor de alguns de seus conceitos. Em seguida, ao longo deste texto, tentarei mostrar algumas contradições que, se superadas, nos ajudarão muito no entendimento dos processos do desenvolvimento humano.
Notamos esse posicionamento de forma bem clara, por exemplo, no pensamento de Carl Rogers. Para esse autor, existe uma base orgânica para o processo de valores: estes não são exclusivamente culturais. Essa base orgânica para a elaboração dos valores é tão mais eficaz quanto mais a pessoa é aberta às suas próprias experiências, inclusive às suas vivências internas. Essa base orgânica do processo de valoração tem duas características importantes. Primeiro, ela representa uma base comum, que se repete não só em pessoas diferentes, mas tem orientações comuns à vida em geral. Ela faz parte do funcionamento do processo vital de qualquer organismo saudável e tem relação direta com a própria sobrevivência individual e coletiva. São valores orientados para vida:
Tem sido um fato notável de minha experiência que, na terapia onde os indivíduos são valorizados, onde existe uma maior liberdade de sentir e de ser, aparentemente surgem certas direções de valor. Elas não são caóticas, mas ao contrário, possuem uma homogeneidade surpreendente, que não depende da personalidade do terapeuta, pois já vi tais tendências surgirem em clientes de terapeutas com personalidades nitidamente diferentes. Esta homogeneidade também não parece ser devida às influências de qualquer cultura, pois já encontrei provas destas direções em culturas tão divergentes como as dos EUA, Holanda, França e Japão. (Rogers, 1985, p. 281)
Essa base orgânica do processo de valoração, que reaparece nas pessoas que passam a conviver em ambientes mais abertos aos seus sentimentos e aos seus modos autênticos de ser, é bem visível nas crianças pequenas. Elas preferem algumas coisas e rejeitam outras, mesmo com pouca experiência de vida. Do estudo cuidadoso do comportamento infantil, Rogers (1985) constata que as crianças preferem as experiências que mantêm, aperfeiçoam ou tornam efetivo o seu organismo, rejeitando aquelas que comprometem o seu bem-estar. A fome, por exemplo, é valorada de forma negativa. O alimento é valorado positivamente, mas passa a sê-lo de forma negativa quando a criança já está satisfeita. A dor também é valorada negativamente, sem que ninguém ensine que a dor é dolorosa. Por outro lado, a segurança e as experiências de descoberta são valoradas positivamente.
A perspectiva de valoração da criança pequena, de base orgânica, tem algumas tendências. É flexível e mutante, e não rígida: ela valoriza segurança, mas pode rejeitá-la em outro momento em troca de novas experiências. Isso ocorre porque cada experiência, em cada momento, é pesada e escolhida ou rejeitada de acordo com a sua tendência a atualizar ou não o organismo. Isso evidentemente é um processo orgânico e não simbólico ou consciente. São valores operativos, isto é, aqueles que se baseiam na sabedoria instintiva do corpo, e não valores concebidos.
Outro aspecto da perspectiva de valoração da criança pequena é que a fonte do processo de valoração se encontra dentro dela. Ao contrário da maioria dos adultos, o bebê sabe do que gosta e não gosta e a origem da escolha está dentro do organismo. Seus próprios sentidos, no contato com o objeto da escolha, é que lhe fornecem as evidências para as suas opções. Ele ainda não se acha influenciado pelo que os pais ou a igreja acham que ele deveria preferir e, mesmo assim, escolhe. É dentro de sua própria experiência que o seu organismo está dizendo, de forma não verbal, "isto é bom para mim", "isto é mau para mim". Ele riria de nossa preocupação com valores se pudesse entendê-la. Como pode alguém não saber do que gosta, do que é bom ou não para si? (Rogers, 1985).
A criança é naturalmente integrada. É justamente a família, a escola e as demais relações sociais, quando autoritárias ou paternalistas, que vão progressivamente afastando a criança de suas próprias percepções, enfraquecendo a base corporal de referência e fragmentando o eu, ao negar o corpo e as emoções. Esse processo provoca o afastamento da experiência, reduz a autoconfiança e aumenta a dependência em relação aos valores instituídos, uma vez que a criança e o jovem têm enfraquecida a sua relação com a realidade: está montado o cenário para o domínio do eu.
É claro que poderíamos argumentar com Rogers o seguinte: o campo de escolhas do adulto é muito mais vasto e mais complexo do que o da criança pequena. Além disso, ele possui a capacidade de simbolizar, que o coloca em confronto com valores e escolhas simbólicas, que nem sempre podem ser testadas organicamente. Isso é verdadeiro, mas não anula a capacidade, que tem também o adulto, de recorrer aos seus sentimentos e percepções diretas como base para a avaliação de situações, mesmo aquelas complexas.
Nesse caso, a base orgânica, ou a experiência corporal, é ainda a referência para escolhas, mesmo que de forma indireta. Mesmo no contato com símbolos ou situações imaginadas, recorremos a alguma experiência primária, anterior, e às sensações que ela nos causou para podermos avaliá-las. A capacidade de simbolizar, em conjunto com a memória, é que nos permite fazer essa conexão, mas ela nunca se emancipa por completo da experiência corporal.
A partir de sua larga experiência clínica, Rogers (1985) mostra que a reversão desse processo de fragmentação interna ocorre quando a pessoa encontra um clima de aceitação e confiança, que lhe permita entrar em contato mais intenso com sua própria experiência e resgatar a autenticidade do eu. Esse clima e as relações interpessoais que o caracterizam ajudam a pessoa a se aceitar, ao invés de negar seus sentimentos e sensações. A vivência do que está ocorrendo em seu íntimo é empaticamente compreendida e valorizada e ela tem a liberdade de experienciar os seus próprios sentimentos e os dos outros, sem se sentir ameaçada por fazê-lo. Ao amadurecer nesse processo, a pessoa se aproxima (nesse aspecto) da criança pequena que ainda não aprendeu a negar, em sua consciência, os processos que ocorrem no seu íntimo.
Rogers (1985) mostra, com provas clínicas, quais são algumas dessas orientações de valor, que se repetem em pessoas diferentes quando se deslocam na direção do crescimento pessoal e da autenticidade. Tais características resgatadas representariam um estoque, um acervo inato de tendências positivas do ser humano. Entre elas, a tendência de a pessoa dispensar as aparências, as fachadas, e valorizar a autenticidade; afastamento da noção impositiva do dever: a pessoa se distancia de comportamentos compulsivos, dos sentimentos expressos em frases do tipo "eu deveria fazer assim ou deveria ser assim" (1985, p. 151); tendência a não satisfazer as expectativas dos outros, a agradar os outros como um objetivo em si, para obter aprovação; valorização da auto-orientação, da capacidade em fazer as suas próprias escolhas; abertura às próprias experiências, internas e externas, e aos sentimentos, próprios e dos outros, na comunicação contínua com a realidade.
Rogers (1985) e outros autores da pedagogia humanista fundamentam essa concepção positiva do ser humano em diferentes matrizes filosóficas, como o pragmatismo norte-americano, a fenomenologia e o existencialismo. Contudo, uma referência do século XVIII praticamente atravessa toda a pedagogia humanista e impacta no pensamento rogeriano fortemente, embora o autor cite essa referência poucas vezes: trata-se do pensamento de Jean-Jacques Rousseau.
O conflito entre exterior e interior, natureza e experiência, que a pedagogia humanista tenta resolver no século XX, está bem marcado no pensamento contraditório de Rousseau. Esse filósofo suíço tem uma importância primordial não só no âmbito dessa pedagogia, mas no pensamento ocidental. Seus textos de filosofia política foram uma referência para a construção dos modernos regimes políticos, ditos democráticos, embora a democracia formal existente seja diferente daquela pensada por Rousseau (Mogilka, 2004).
Em plena era iluminista, ele alertava para os limites da razão e para importância do instinto, intuição e emoção para se compreender o comportamento humano. Rousseau tem uma forma de pensar que eu chamaria de oscilatória: ele hesita, se move inquietamente entre posições diferentes, às vezes assumindo o que estabelecera como seu contraponto, parecendo abandonar o que originalmente definira como sua posição. Essa forma de pensar parece indicar conflitos e dúvidas internas do autor, mas em parte é explicável pela dificuldade em tratar de temas extremamente complexos, em uma época na qual os dados empíricos eram bem mais escassos do que hoje. Por isso, podemos questionar algumas de suas afirmações.
Rousseau nos mostra a importância daquilo que trazemos ao mundo em nós mesmos ao nascermos. Sem desprezar a importância do social sobre o indivíduo a filosofia política ocupa uma parte considerável das atenções desse autor , ele coloca em evidência a natureza humana por meio do conceito de estado natural. Rousseau define o estado da natureza como aquilo que a pessoa é antes de qualquer processo de socialização. Em tal estado hipotético, não há o desejo de domínio sobre o outro e tam-pouco comportamentos que degradem a própria natureza do indivíduo. É um estado sadio, embora limitado pelas condições que o meio ambiente oferece e pelo pouco desenvolvido aparato psíquico (Rousseau, 1978a, 1978b).
O caminho seguido por Rousseau é problemático. Primeiro porque não há ser humano antes da socialização: os casos de crianças que cresceram sem o contato humano, como as meninas-lobo na Índia e o garoto selvagem descoberto pelo Dr. Itard, na França do século XIX, mostraram como essas crianças não mostravam comportamentos humanos, mas fortemente instintivos. Em segundo lugar, ao contrário do afirmado por Rousseau em seu raciocínio hipotético-dedutivo, o ser humano não é naturalmente tendente à vida solitária, mas inatamente gregário. Não há sequer uma cultura humana em que os indivíduos vivam isolados, como já nos mostrou a antropologia e a história.
Inclusive, o próprio autor reverá esse conceito solitário de sujeito, alguns anos depois, no livro Emílio ou da educação:
Mas se, como não se pode pôr em dúvida, o homem é sociável por sua natureza, ou ao menos feito para sê-lo, ele só o pode ser através de outros sentimentos inatos, relativos à sua espécie. (Rousseau, 1985, p. 337).
Apesar dessas contradições e sustentado por um raciocínio brilhante, Rousseau legou ao século XIX, nesse ponto específico do seu pensamento, uma concepção positiva de ser humano e uma crítica rigorosa a uma sociedade que corrompe o estado natural.
Essa concepção positiva de ser humano se fundamenta no conceito que Rousseau tem da natureza humana. Esta é essencialmente positiva, sadia, embora precise ser estruturada pela vida em sociedade e pelo exercício da razão. Se a razão é importante para Rousseau, por outro lado ela não pode dar aquilo que não possui. Ela trabalha sobre a natureza, mas não pode produzi-la. A consciência não é a constituidora do real e só em parte responde pela construção do sujeito. Por isso, dois sentimentos que definem o ser humano são anteriores à razão: uma tendência à autoconservação e à busca do próprio bem-estar; e uma rejeição natural à morte ou ao sofrimento de qualquer ser sensível, especialmente seus semelhantes (Rousseau, 1978b). O homem não é, portanto, o lobo do homem: a competição e o domínio são produzidos na socialização e a tendência natural do ser humano é pela compaixão e não pela destruição dos outros seres:
[...] seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias de sabedoria, e enquanto resistir ao impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência si mesmo. (Rousseau, 1978b, p. 231)
Rousseau nos mostra que a liberdade, a compaixão e o respeito pela vida do outro não se sustentariam se não possuíssem uma base natural, isto é, se fossem desenvolvidas apenas pela razão, pela cultura e pela socialização, especialmente em uma sociedade de classes. Há muito tempo a espécie humana teria perecido se a sua conservação dependesse apenas da aprendizagem social e da razão. Rousseau recorre a argumentos muito fortes, com base na vida cotidiana, para demonstrar que a natureza humana não só existe, como também é inicialmente sadia e voltada à positividade. Como explicar, por exemplo, a compaixão?
Mesmo em segurança, ao vermos uma pessoa ser injustiçada ou maltratada, o sentimento de identificação com seu sofrimento e a cólera contra o agressor nos assaltam. Como explicar isso se a ação agressiva não nos atinge como indivíduos? Porque sofremos com o sofrimento dos outros? Rousseau luta, no seu tempo, contra as duas mais poderosas vertentes da filosofia moderna: o empirismo e o racionalismo. Essa filosofia, que só admite o que pode explicar, nega, pelo racionalismo de base cartesiana, a força dos instintos e da vida sensorial e, pelo empirismo, qualquer estrutura inata, já que, segundo essa concepção, nada existe no sujeito que não tenha sido introduzido pela experiência e nada julgamos senão por meio das idéias adquiridas (Rousseau, 1985).
Contra tudo e contra todos, e antes de Kant, Rousseau nos mostra que é impossível reduzir todas as capacidades humanas ao repertório disponível em nossa cultura. Algo existe em nós antes da socialização:
Basta para isto fazer-vos distinguir nossas idéias adquiridas de nossos sentimentos naturais, porque sentimos antes de conhecermos. E como não aprendemos a querer nosso bem e a fugir de nosso mal e recebemos essa vontade da natureza, o amor ao bom e o ódio ao mau são tão naturais quanto o amor a nós mesmos. Os atos da consciência não são julgamentos e sim sentimentos. (Rousseau, 1985, p. 337)
Se a compaixão e o senso inato de justiça não são sentimentos inicialmente despertados a partir de nossa memória natural, de onde eles vêm? Nas sociedades de classe, a moral e a cultura não são predominantemente favoráveis à solidariedade e à compaixão. Como elas poderiam então ser aprendidas?
Existir é sentir. A sensibilidade é anterior à inteligência, tivemos sentimentos antes de ter idéias. Os sentimentos positivos são fundamentais para a conservação do indivíduo e da espécie (Rousseau, 1985). É nessa base estética que repousa o início da atividade intelectual e da vida moral. Entenda-se aqui estética como sinônimo da vida sensorial e, por extensão, de toda a afetividade. Isso é bem claro para o autor:
É do sistema moral formado por esta dupla relação consigo mesmo e com seus semelhantes que nasce o impulso da consciência. Conhecer o bem não é amá-lo: o homem não tem o conhecimento inato dele, mas logo que sua razão o faz conhecer, sua consciência o leva a amá-lo: esse sentimento é que é inato. (Rousseau, 1985, p. 338)
Porém, se a natureza da criança é potencialmente boa e sadia, de onde vem a maldade e a patologia humanas? De estruturas sociais injustas, isso me parece evidente. No entanto, como a maldade é incorporada em cada criança transformando o bem potencial em mal real? Nada funciona sem energia. Qual a força de onde a patologia retira a sua energia? Ora, é a própria energia do impulso e do desejo reprimidos que sustentam a estrutura do sofrimento. Uma criança não nasce má, cruel, nem tem tendência a provocar sofrimento em si mesma. Quem trabalha com crianças pequenas, creio, tem condições de confirmar na prática esse conceito. As crianças são orientadas naturalmente para o prazer, a ação e o próprio crescimento. Contudo, elas têm funções naturais que permitem que elas se defendam.
Por exemplo, a agressividade, despertada quando se sentem ameaçadas. Eu penso que a agressividade não é um impulso negativo, mas sadio. Sem a agressividade sequer sobreviveríamos, pois até o ato de mastigar um alimento é agressivo: ele envolve a destruição para permitir a continuidade da vida. Agressividade não é o mesmo que crueldade nem hostilidade. A crueldade consiste em ter prazer ao provocar sofrimento no outro. Na agressividade, sentimos prazer ao reagir, afastando um estímulo que nos causava mal. É um movimento direcionado contra o mal, buscando o bem-estar e a segurança próprios. Tão logo o problema seja resolvido e voltemos a nos sentir em segurança, cessa a ação agressiva. Essa capacidade de reagir, até o extremo da violência se necessário, a criança possui.
Diferente é a dinâmica da crueldade. Ela nasce de um continuado processo de repressão aos impulsos e desejos, inclusive ao impulso de agredir para se proteger. A crueldade nasce do ressentimento, em parte uma expressão distorcida da agressividade que não foi bem conduzida. Essencialmente, a crueldade, como a hostilidade (bem diferente da raiva, sentimento natural) ou o masoquismo, nascem da infelicidade e da impossibilidade de realizar desejos genuínos, e não de algum princípio biológico e natural, oculto na criança, esperando a ocasião de se manifestar. Ao vermos uma criança apresentar comportamentos cruéis, esquecemos de perguntar o que ela passou para ser assim. Lidamos com aquilo que se apresenta, não questionamos a sua história.
Dewey nos mostrava isso já em 1908, em Teoria da vida moral. Os desejos e impulsos são a energia da vida em movimento. Eles são tão poderosos que não podem ser suprimidos, podem apenas ser deslocados. Sem eles, não haveria vida. Analisando o processo de repressão dos apetites e impulsos, Dewey explica que, primeiro, eles são excluídos do campo do pensamento e da observação. Depois, há a supressão que impulsiona os desejos para canais secretos de expressão. Eles não perdem a força, mas são deslocados, de tal modo que exercem a ação de maneira indireta (Dewey, 1980b). Muitas vezes, essa ação indireta e distorcida, em relação à sua natureza original, é que fornecerá o combustível para a maldade e a patologia.
O princípio de funcionamento do organismo humano é o princípio do prazer. Não apenas a psicologia e a pedagogia humanista afirmam isso. Nós podemos reencontrar esse princípio em muitas outras teorias, de origens diferentes. Aquilo que é, aparece. Por exemplo, é o mesmo princípio que reaparece quando a bioenergética nos mostra a fisiologia do prazer. O sistema nervoso parassimpático atua em situações de relaxamento e prazer; ele é associado à descontração, ao contato com o meio, à receptividade. O sistema simpático, denominado o nervo da guerra, é ativado em situações que exigem reações rápidas e alto dispêndio de energia. Trata-se de situações e de uma fisiologia em que a vivência do prazer não é possível, mas elas são temporárias.
O organismo não pode viver muito tempo sob o domínio do sistema nervoso simpático, inclusive porque ele não tem estrutura para isso, essa não é a sua função. Sua atuação prolongada produz estresse e desgaste. Segundo a bioenergética, uma pessoa sadia só se afasta do objeto do prazer em duas situações. A primeira é quando está em perigo e ativa o sistema nervoso simpático para reagir e garantir a sobrevivência, lutando ou fugindo. A segunda é quando a pessoa percebe - e aí entra a reflexão - que o adiamento da situação de prazer significa um prazer maior em momento posterior (Lowen, 1984).
O desenvolvimento humano na perspectiva interacionista
Não obstante todo o valor das reflexões rousseauístas e da sua coerente defesa da positividade da natureza humana, esse autor, como qualquer outro, precisa ser interpretado de forma crítica. Algumas posições de Rousseau precisam ser relativizadas para não cair em extremos que não encontram respaldo na realidade, e que poderiam comprometer uma compreensão interacionista radical dos processos de formação e desenvolvimento humano. Por exemplo, em alguns momentos, o autor exagera as possibilidades de a afetividade fundamentar a vida moral:
Embora todas as nossas idéias nos venham de fora, os sentimentos que as apreciam estão dentro de nós e é unicamente por eles que conhecemos a conveniência ou a inconveniência que existe entre nós e as coisas que devemos respeitar ou evitar. (Rousseau, 1985, p. 337)
Nesse momento, Rousseau parece desconhecer que na cultura e no conhecimento também existem elementos positivos, capazes de orientar, junto com a vida estética, a elaboração de uma sociabilidade realmente ética. A pedagogia humanista, no século XX, vai retomar Rousseau de forma bastante crítica e demonstrar como a ética precisa se fundamentar na vida estética, mas também necessita dos elementos positivos da cultura (entenda-se positivos aqui como aqueles elementos favoráveis à vida humana). A ética também necessita da reflexão. Por isso, Dewey se refere à ética reflexiva, para diferenciá-la da ética costumeira, baseada na tradição (Dewey, 1980d).
Uma outra posição importante assumida por Rousseau é a sua defesa da tendência humana para a liberdade. Da mesma forma como não é naturalmente destrutivo ao ser do outro, a pessoa humana também não possui uma tendência natural à servidão. O estado natural é um estado de liberdade e é somente após séculos de domínio que se pode entender o comportamento submisso dos civilizados, que tanta indignação causa a Rousseau.
Freqüentemente interpretamos um fenômeno apenas por aquilo que vemos, sem perceber que ele poderia ser diferente daquilo que é: atribuímos qualidades a ele, quando na verdade elas são contingenciais, isto é, históricas e não essenciais. Rousseau nos mostra como atribuímos à pessoa humana uma tendência natural à servidão, pois vemos em nossa sociedade um grande contingente de pessoas se acomodarem à sua falta de liberdade.
Esquecemos que só se percebe o valor da liberdade quando a usufruímos e que perdemos o seu gosto quando não a temos na prática. O autor recorre a um outro argumento para provar a tese segundo a qual o ser humano possui uma tendência natural para a liberdade. A submissão dos civilizados não pode ser tomada como indício de uma suposta tendência à servidão, pois a luta dos povos não civilizados para conservar a liberdade demonstra como esse bem lhes é importante:
Não é pois pelo aviltamento dos povos dominados que se devem julgar das disposições naturais do homem a favor ou contra a servidão, mas sim pelo prodígio realizado por todos os povos livres para se defenderem da opressão. Sei que os primeiros nada fazem senão enaltecer continuamente a paz e o sossego de que gozam sob seus grilhões e que chamam de paz à mais miserável das servidões, mas quando vejo os outros sacrificarem os prazeres e o repouso, a riqueza o poder e a própria vida pela conservação deste único bem tão desprezado por aqueles que o perderam [...] concluo não poderem ser os escravos os mais indicados para raciocinar sobre a liberdade. (Rousseau, 1978b, p. 272-273)
Essa concepção positiva de natureza humana estará presente na obra de Rousseau, mais especificamente pedagógica, Emílio ou da educação. Aqui também habitam contradições que exigem uma leitura cuidadosa e uma interpretação relativizada. O autor demonstra a positividade do organismo humano, analisando o processo de repressão e violência praticado pela educação em sua época. A deformação produzida na criança, mediante esse processo violento ou, ao contrário, pela permissividade e falta de orientação, levou muitos pedagogos a acreditar na tese da maldade e passividade da natureza humana. Tomavam o resultado pela origem, buscando meios de corrigir essa natureza "deficiente":
Ao nascer, uma criança grita; sua primeira infância passa a chorar. Sacodem-na às vezes ou a acariciam para acalmá-la; ameaçam-na também e batem-na para que se cale. Ou fazemos o que lhe agrada, ou dela exigimos o que nos agrada [...] não há meio termo, é preciso que nos dê ordens ou que as receba. Assim, suas primeiras idéias são de império ou servidão. Antes de saber falar ela manda, antes de poder agir ela obedece; e não raro castigam-na antes que ela possa conhecer os seus erros. Ou os cometer. E assim é que se inculcam em seu jovem coração as paixões imputadas a seguir à natureza que, depois de ter se esforçado por torná-la má, a gente se queixa de descobri-la má. (Rousseau, 1985, p. 23-24)
Daí a importância social da educação: é preciso preservar o estado de natureza, conservar o potencial inato do ser humano para o bem e desenvolvê-lo para a construção de uma sociedade democrática. Isso exige uma intervenção cuidadosa logo na educação infantil, pois uma função inata e fundamental à vida democrática e à convivência ética, a sensibilidade, fica fortemente comprometida em processos de socialização repressivos:
Se a voz do sangue não for fortalecida pelo hábito e pelos cuidados, ela se extinguirá nos primeiros anos, e o coração morrerá (por assim dizer), antes de nascer. Ei-nos, desde os primeiros dias, fora da natureza. (Rousseau, 1985, p. 22)
Os problemas da educação proposta no Emílio ou da educação me parece que surgem principalmente na área metodológica. E isso é conseqüência, ao menos em parte, de uma questão conceitual: a noção de natureza humana defendida pelo autor, aliás, o peso que a natureza representaria no processo de formação humana. O próprio Rousseau alerta que não é um educador, sendo escassas as suas experiências como preceptor, apesar dos diversos convites recebidos. A ênfase na natureza humana e seu potencial é extremamente positiva para uma educação democrática.
Contudo, a construção metodológica a partir desses princípios é trabalho árduo, embora apaixonante. Parece-me que o problema principal aqui não é a ênfase atribuída por Rousseau à natureza da criança no processo de formação humana. O problema seria a maneira como o autor entende aquilo que é originário, inato. Ele parece pensar que a natureza está razoavelmente estruturada, sendo necessário fazê-la desabrochar (embora em algumas passagens do discurso rousseauísta isso não parece tão claro para o autor). É preciso preservar essa estrutura:
Quereis que conserve sua forma original? Conservai a partir do instante em que vem ao mundo. Logo ao nascer apropriai-vos dele, não o largueis antes que seja homem: nada conseguireis sem isto. (Rousseau, 1985, p. 24)
Contudo, eu não creio que exista uma forma original. O que há são potencialidades, tendências, funções, impulsos, desejos. As formas e estruturas são o resultado da interação dessas tendências e potencialidades com a cultura e as relações sociais. Esse conceito de forma original conduz a princípios metodológicos em que a intervenção da educadora é insuficientemente enfatizada. Um exemplo dessa influência, no século XX, é visível em Montessori (s/d), no próprio seio da pedagogia humanista (Mogilka, 2003a).
Na minha percepção, um autor que lidou bem com essas contradições, essa oscilação entre inatismo-interacionismo nas pedagogias alternativas, como a escola nova, foi John Dewey. O conceito de desenvolvimento desse filósofo supera em grande parte essas contradições e ele caminha para a construção de um interacionismo radical, penso eu, embora prefira se autodenominar, em alguns textos, de empirista radical, tomando emprestado um termo de seu colega Willian James.
Ele considera que a criança não é originalmente uma folha em branco, um ser moldável pelas forças sociais, sem nenhuma tendência inata, como queria um empirismo clássico. Por outro lado, a criança também não se estrutura espontaneamente: a sua construção cognitiva e pessoal é um processo social. É um equívoco considerar o desenvolvimento um processo que se dá por si mesmo.
Dewey já defendia essa concepção em 1902, no seu ensaio A criança e o programa escolar. Analisando alguns equívocos cometidos pelas escolas novas, ao enfatizarem excessivamente a espontaneidade da criança, ele escrevia:
O perigo da nova educação está em considerar as forças e interesses da criança como coisa de significação definitiva [...]. A "velha educação" tinha a tendência para ignorar a qualidade dinâmica, a força intrínseca de desenvolvimento da experiência infantil; daí pressupor que direção e controle eram inteiramente arbitrários consistindo em pôr a criança em um determinado caminho e a compelir a segui-lo. A "educação nova" está em perigo de tomar a idéia de desenvolvimento de um modo muito vazio e formal. Espera-se que a criança "desenvolva" este ou aquele fato ou idéia, de seu próprio espírito. Queremos que ela pense sobre coisas ou que ela aja, sem suprila das condições indispensáveis para despertar e guiar o pensamento. (Dewey, 1980a, p. 145)
Daquilo que é incompleto e rudimentar, somente o incompleto pode desenvolver-se. Não conseguiremos muito em termos de desenvolvimento se contarmos apenas com o que a criança já traz. De potência a ato, a criança precisa do mundo. A natureza da criança não provê tudo o que é necessário para ela ser o que precisa ser. A natureza precisa da experiência:
Desenvolvimento não quer dizer retirar qualquer coisa da própria natureza. O verdadeiro desenvolvimento é desenvolvimento da experiência pela experiência. E isto será impossível, se não providenciarmos um meio educativo que permita o funcionamento dos interesses e forças que foram selecionados como mais úteis. Estas capacidades devem entrar em operação, o que dependerá essencialmente dos estímulos que os envolvam e do material sobre o qual se exercitem. O problema do direcionamento do desenvolvimento infantil é, pois, o problema da seleção dos estímulos adequados aos instintos e impulsos que desejamos desenvolver. (Dewey, 1980a, p. 145)
Dewey é um autor, na minha opinião, que conseguiu trabalhar de forma profunda e precisa essa perspectiva complexa na análise do desenvolvimento humano. Isso transparece em vários de seus textos, que ainda merecem um estudo mais amplo, dada a sua fecundidade para contextualizar o processo de desenvolvimento humano na ótica de uma educação para uma democracia radical e não formal.
Radicalizando o interacionismo
Eu penso que uma compreensão radicalmente interacionista nos permite lidar com o fenômeno do desenvolvimento e com a natureza humana sem recair em uma visão essencialista de educação. A natureza humana não é uma essência abstrata e imutável, pronta para um desabrochar espontâneo, sem a atividade da criança e sem a influência do mundo exterior ao eu. Tampouco o ser da criança, em um dado momento, é apenas o resultado da atualização dessa constituição inicial. Porém, a natureza humana, com variações de criança para criança, é o repertório inicial, a estrutura das estruturas, o princípio de construção do eu. Esquecer esse fato tem conduzido a discursos e práticas dotados de uma violência cada vez mais sofisticada, mesmo que fundamentados em princípios e intenções críticas.
Há um problema conceitual que tem travado a compreensão sobre a importância da natureza humana na formação do sujeito, quando esse tema é abordado. Trata-se da não-distinção entre "natureza humana" e "eu". Aqueles que argumentam contra a existência da natureza humana, ou seja, a existência de um conjunto de características, tendências e sentimentos que são inatos, dizem que isso levaria a uma concepção essencialista de sujeito. Contudo, o problema reside na confusão entre esses dois conceitos e o que eles representam.
É preciso fazer a distinção entre "natureza humana" e "eu", pois a primeira contribui para formar o segundo, mas o "eu" é mais do que oferece a natureza inicial da criança. Tomados esses conceitos como sinônimos, reforçam-se atitudes intelectuais que têm conduzido tanto ao descuido pela natureza e potencialidades inatas, próprias das abordagens de sustentação empirista (para evitar cair no inatismo), como à supervalorização da natureza inicial, própria das abordagens inatistas ou essencialistas.
Quando percebemos essa distinção [não separação] entre "natureza humana" e "eu", vemos que este é construído a partir dessa natureza, transformada, enriquecida e, acima de tudo, estruturada pela cultura e pelas condições sociais. Muitas vezes, essas condições deformam, ao invés de formar, por serem desumanas; mas isso não nega o que está sendo afirmado aqui: a natureza inicial é sempre o ponto de partida e sempre estará presente, modificada, naquilo que nós chamamos de "eu" ou "sujeito". O problema das propostas de formação de base empirista não é a ênfase, muito coerente, que elas dão aos fatores sociais na formação humana, mas a desvalorização dos fatores inatos.
Logo, a formação humana é um resultado da interação dessas três grandes forças cósmicas: a natureza genética, as relações sociais e a cultura. A humanização é um modo de ser, de um organismo específico, que nasce do confronto dessas três forças. Ela não está, a meu ver, em nenhum deles isoladamente; ela não está "depositada" na cultura. Por isso, em um interacionismo radical, não há sentido em se falar em "internalização das funções psíquicas superiores". A cultura nada faz sem a interação com a genética. Podemos ver isso com um exemplo muito simples: mesmo com as melhores atividades e produtos culturais e as mais estimulantes relações sociais, não conseguimos transformar um bebê de chimpanzé em um ser humano.
Quanto às relações sociais, elas representam a terceira força cósmica, a tendência não só dos humanos, mas de tudo que existe no universo para a comunhão, o compartilhamento, o choque transformador, a complementação no outro. Os elementos cósmicos "necessitam", por assim dizer, voltar à integração com o cosmos e tudo aquilo que o representa. Sua energia pulsante não permite que eles fiquem em repouso permanente. Isso é ainda mais visível nas formas de vida e ainda mais nos organismos gregários, como o ser humano. O desenvolvimento do seu ser, nunca concluído, exige essa constante interação com outros elementos cósmicos. Nessa interação, ambos se modificam em algum grau.
Por isso, as relações sociais jamais podem ser transcendidas no processo de formação humana. Essas relações são importantes não só, como se tem afirmado, porque elas são o vínculo, a mediação entre a criança e a cultura, mas também porque a relação é formadora (ou deformadora) em si mesma, ela tem caráter educativo e moral em sua própria natureza. Além disso, as relações sociais possuem fortíssimos aspectos afetivos, especialmente as relações que têm uma certa continuidade no tempo.
Por temor de cair em "psicologismo", algumas teorias contemporâneas subvaloram os aspectos afetivos das relações sociais, deixando no campo teórico um vácuo em que precisaria existir uma reflexão mais profunda sobre a subjetividade, desde que tratada em articulação com as estruturas políticas e sociais. Devido ao seu caráter formador e afetivo, as relações sociais democráticas representam o maior potencial de humanização, ao menos nos tempos modernos. Elas são afetivas, políticas e cósmicas, simultaneamente.
As reflexões desenvolvidas neste artigo pretendem, por meio da radicalização do interacionismo, contribuir para o avanço na compreensão de um problema presente na teoria pedagógica desde a antigüidade, inclusive no seio do próprio humanismo. Como contemplar natureza e sociedade em uma mesma análise?
Para isso ser alcançado, é necessário a adoção de uma perspectiva complexa, que integre os vários elementos constitutivos da formação e do desenvolvimento humano, sem fazer escolhas que simplificam processos que não são nada simples. Eu penso que é do jogo complexo, conflitivo e às vezes tenso entre as potencialidades inatas, da contribuição da cultura e das relações sociais que acontece o indeterminado e instável processo de formação humana.
O ser humano é um organismo complexo em que são indissociáveis mente, corpo e sociedade, isto é, ele é um ser biopsicossocial. Além da tendência inata para a liberdade, o ser humano possui uma tendência natural para a realização, o bem-estar e o crescimento. Ele é intrinsecamente motivado e deseja crescer e aprender sempre mais sobre o seu ambiente e sobre si mesmo. Ao concebermos o ser humano dessa forma integral, não desconsideramos o processo de alienação e fragmentação, mas estes são entendidos como conseqüência de uma socialização repressiva, e não de uma tendência estrutural do eu.
O ser humano, quando sadio e não alienado, tem nas suas sensações e emoções um sistema de referência, que lhe permite elaborar valores no contato rico e contínuo com a realidade e com o seu próprio mundo interior. Essa base orgânica dá à vida humana um mínimo de estabilidade, que nos permite reconhecer aquilo que é humano em culturas e locais tão diversos. Sem essa base, cairíamos no relativismo total, que não é confirmado pela antropologia nem pela história: não haveriam estruturas internas.
Inclusive na minha interpretação, é justamente a necessidade de superar o relativismo total e explicar as estruturas da vida humana, que se repetem de cultura a cultura e que não podem ser negadas, que levou a filosofia racionalista a buscar uma certeza supra-histórica. Contudo, esses filósofos, desde o século XVI, procuraram esse elemento mais estável em um plano metafísico, em um princípio absoluto, ideal e inexistente, em vez de buscá-lo nas estruturas orgânicas da vida, na ontologia genética da espécie. Talvez por já viverem em uma cultura que nega a vida sensorial e por não a terem superado, esses filósofos não julgaram a corporeidade digna da reflexão filosófica.
Quando dirigiram as suas reflexões para o tema da corporeidade, os filósofos racionalistas o fizeram de forma negativa e não afirmativa. Dessa forma, a corporeidade não é definida como elemento integrante e fundamental da subjetividade. Descartes, na Meditação II, dá-nos um bom exemplo dessa tomada de posição:
Não sou esta reunião de membros que se chama corpo humano; não sou um ar solto e penetrante, espalhado por todos os membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, e nada daquilo que posso fingir ou imaginar. (Descartes apud Merleau-Ponty, 1980a, p. 71)
Um fator que dificulta a nossa apreensão da integralidade ou, colocado de outra forma, dificulta uma compreensão integral do sujeito e das suas relações holísticas com a realidade é justamente essa racionalidade dominante no ocidente nos últimos trezentos anos. Mesmo que a partir do século XIX, e especialmente a partir de meados do século XX, essa racionalidade venha sendo combatida e demolida em seus fundamentos, ela ainda é muito forte nos processos formativos do ser humano. Eu penso que tal racionalidade, tal modo de compreender e explicar o ser humano e o seu desenvolvimento, baseiam-se em uma redução da pessoa e da realidade que opera de três formas diferentes.
A primeira é a redução da consciência ao pensar, ao intelecto. Pensar e tomar consciência são considerados sinônimos. Esse reducionismo produz uma hipertrofia da atividade intelectual, prometendo um alcance que ela não pode ter. Além disso, desconhece ou trata de forma secundária os dois outros modos de ser da consciência, a percepção e a imaginação. Estas são tratadas como funções psíquicas de segunda grandeza ou até mesmo como obstáculos ao pensar límpido e lúcido. Esse modo de explicar a consciência humana sobrecarrega a atividade intelectual, provoca estresse no sujeito e dificulta a tomada de consciência do real, produzindo uma compreensão pobre da sua riqueza.
A segunda forma é a redução do sujeito à consciência, sendo esta definida como explicado acima. A pessoa humana, ou melhor, aquilo que caracteriza o que é humano na pessoa, reduz-se à capacidade de pensar. Se penso, existo. Assim se deixa de fora daquilo que é precisamente humano: os desejos e a corporeidade, os instintos e a sexualidade, a ação e as relações. Dessa forma, esse organismo extremamente complexo, biológico, psíquico e social, tem a sua natureza definida por uma das suas funções. Mesmo quando se reconhece nos discursos a existência da vida corporal, esta é admitida como uma dimensão menor, ou inferior, ou como um substrato físico às atividades intelectuais.
É importante analisarmos aqui uma característica do discurso humano quando ele não é dotado de complexidade. Um dos efeitos mais poderosos do discurso, seja ele científico ou cotidiano, é obtido de forma sutil: exatamente por aquilo que não é dito, pelos silêncios do texto, ou então por aquilo que não é suficientemente realçado. Omitir um elemento é uma das formas de reforçar os outros elementos envolvidos - e ainda carrega uma vantagem estratégica, pois o autor do discurso não precisa se confrontar com a força daquilo que é omitido, o que seria impossível se defendesse explicitamente a sua negação. O resultado da omissão é ainda mais forte quando aquele discurso pretende fornecer uma explicação completa sobre o tema: se um elemento não aparece, é porque não existe ou não tem importância.
Isso é muito relevante nos processos de formação humana, pela importância que tem os discursos e a comunicação, de uma forma geral, na estruturação do que nós chamamos e reconhecemos como humano. Os signos e temas utilizados nos discursos têm função instrumental, isto é, eles significam ou remetem a algo. Porém, eles também têm função estruturante, pois contribuem para formar os objetos conhecidos e as próprias pessoas que interagem com e por meio deles. Eu não creio que os discursos formem o sujeito literalmente, ou seja, que a pessoa humana seja um resultado da linguagem. No entanto, parece inegável, embora não explícito (porque ocorre de forma velada) que a comunicação seja um dos fatores que jogam um importante papel na formação do sujeito.
Por último, a terceira forma de redução do sujeito e da realidade é a redução do real àquilo que pode ser conhecido e pensado. Desse modo, a riqueza da nossa relação cotidiana com o real, por meio da experiência primária, é desconhecida ou valorada de forma depreciativa. Os sonhos e a imaginação, o desejar e o desfrutar, o agir e o possuir, o sentir e o sofrer não são identificados como algo que se possa dignamente chamar de realidade. Ou, pelo menos, que se possa chamar de conhecimento científico da realidade. No máximo, são obstáculos que, se convenientemente "tratados", podem reduzir o erro e a ignorância, produzindo um pensamento cujas conclusões são certas e verdadeiras. Eles não são entendidos como aspectos do real, que enriquecem, sustentam e orientam a reflexão.
Nós precisamos lutar em educação para superar essa racionalidade fragmentadora, produzindo uma compreensão da realidade que abarque, na medida em que isso é possível em um discurso, a integralidade da pessoa em todas as suas relações. Sendo a pedagogia a teoria da educação, precisamos então desenvolver pedagogias cósmicas. Isto é, pedagogias que consigam integrar o organismo humano à sociedade e à natureza e, por extensão, ao cosmos. Aliás, elas não serão capazes de "integrar", elas podem apenas reconhecer a união ou vínculo, pois a integração é anterior ao pensamento. É a própria análise intelectual, e a atitude da subjetividade formada a partir dela, que produz a representação fragmentária do sujeito. Isso é promovido e reforçado pelas divisões sociais, que limitam certos tipos de experiências e mentalidades a certos grupos e classes sociais, dificultando a estruturação de outros tipos de experiências.
Essa compreensão cósmica da vida nos leva a "integrar", por assim dizer, o pensamento ao organismo; o indivíduo à vida social (sem sociedade não há sujeito, pois não ocorre o processo de formação humana); e a cultura à natureza, pois o ser social produtor de cultura não deixa de ser natureza. Caso não fosse assim, caso não pertencêssemos à natureza, como explicar fenômenos como a menstruação, regulada por um ciclo de aproximadamente 28 dias, independente da cultura à qual a mulher pertence? Como entender que alguns dos nossos comportamentos e estados de espírito são influenciados por fenômenos cósmicos, como a proximidade da lua, da mesma forma que esta influencia o ritmo das marés?
Como explicar que precisamos dormir a cada 24 horas, que é o período de rotação da terra em relação ao sol? Porque não dormimos a cada 36 horas, por exemplo? Como um fenômeno aparentemente tão "psicológico" como a depressão pode ser causado por um baixo nível de compostos bioquímicos em nosso corpo, os neurotransmissores? Todos esses fatos, tão comprováveis em nosso cotidiano, parecem mostrar a nossa unidade orgânica com o universo. Alguns dos elementos químicos que compõem o nosso corpo são do mesmo tipo daqueles que constituem gigantescas estrelas de galáxias distantes bilhões de anos-luz da Terra. Uma unidade que desconhece distâncias, provavelmente resultante de uma origem comum entre nós e as estrelas.
Finalmente, esse tipo de compreensão do humano reconhece, ou intuitivamente percebe, a integração da pessoa com a imensidão do cosmos. Isso caracteriza a religiosidade não como adesão a uma religião instituída, mas como um tipo de experiência que atira o sujeito ao encontro do universo, transcendendo os limites individuais e mesmo planetários.
Recebido em 14.10.04
Aprovado em 09.06.05
Mauricio Mogilka é professor adjunto de Metodologia do Ensino do Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia - UNEB (Campus Salvador). Doutor em Educação pela FACED/UFBA. Desenvolve trabalhos na área de educação, desenvolvimento humano e cidadania. Atua na extensão universitária, junto a movimentos sociais, ONGs e projetos comunitários.
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- MONTESSORI, M. Em família Rio de Janeiro, Nórdica, s/d.
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- ______. Liberdade de aprender em nossa década Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Fev 2006 -
Data do Fascículo
Dez 2005
Histórico
-
Aceito
06 Set 2005 -
Recebido
14 Out 2004