Acessibilidade / Reportar erro

Latham e a saúde materno-infantil

EDITORIAL EDITORIAL

Latham e a saúde materno-infantil

Malaquias Batista FilhoI; Francesco SintoniII

IMembro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA)

IICenter for International Health. University of Bologna. Italy

Como uma característica da pós-modernidade, costuma-se dizer que a história não tem ou, pelo menos, não terá rumos. Há um processo civilizatório em desenvolvimento, mas já não sujeito ao controle do homem, à governalidade de gestores públicos ou à gestão co-participativa de todos, segundo a Utopia de Thomas Morus. Por outro lado, teoriza-se que a história é feita por heróis, ou seja, o herói carlyliano das guerras e da paz, das letras, das artes, das religiões das ciências, das tecnologias. O avanço das culturas e das civilizações se faz sob o signo dos heróis, não necessariamente pela oferenda do próprio sacrifício, como na história dos mártires, mas pela força dos ideais, pela capacidade de argumentação e mobilização de alguns protagonistas que desencadeiam ou impulsionam correntes de opinião capazes de acelerar o curso dos acontecimentos. Assim, os eventos marcantes da história seriam, em grande parte, a extensão biográfica de seus ícones.

Michael Latham,1 professor da Universidade de Cornell, falecido no mês de abril passado, pode ser tomado como um exemplo de herói carlyliano. Nascido na África, tornou-se paladino da luta contra as desigualdades que fazem as grandes diferenças de distribuição do processo saúde/doença em nível populacional, seja na história mais velha do patriarcalismo e/ou do colonialismo político, econômico e social, seja na fase mais recente da globalização assimétrica, criando iniquidades e gerando exclusões. No contexto mais antigo ou em sua versão mais moderna (a globalização, o capitalismo central e suas dependências periféricas) o binômio saúde/doença aparece como corolário de um processo com perfis distintos de morbimortalidade, como demonstraram, entre outros, pensadores e ativistas da saúde coletiva, como Nájera na Espanha, Breilh no Equador, Berlinguer na Itália, Samuel Pessoa, Josué de Castro e Sérgio Arouca, no Brasil.

Mais do que celebridades profissionais da área de saúde, também economistas, sociólogos e pensadores políticos têm referenciado a área de saúde, expressa mediante índices epidemiológicos convencionais, como um espaço privilegiado de leitura da própria saúde econômica e social de regiões geográficas, países e populações radicadas em espaços territoriais menores. É assim que pensam Amartya Sem,2 prêmio Nobel de Economia, Fogel, Conway (autor da Segunda Revolução Verde)3 e Ignacy Sachs, um especialista em desenvolvimento do chamado Terceiro Mundo, inclusive com vasta experiência no Brasil.

Estas considerações introdutórias podem valer para distinguir a grande contribuição prestada à doutrina e a prática da saúde humanizada pelo professor Michael Latham, como catedrático aposentado (mas jamais inativo), da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. De origem africana (Tanzânia), mas de formação acadêmica anglosaxônica, Latham teve a percepção de dois mundos distintos, em termos de problemas, de valores, de estilos de vida e de perspectivas de desenvolvimento. E foi com a ótica desta visão bilateral que assumiu posições como docente, como pesquisador e como pensador humanista sobre os grandes problemas da saúde da área materno-infantil. Documentou e denunciou, por exemplo, os enormes prejuízos para a saúde das mães e, notadamente, das crianças, face à massificação do desmame precoce, diante da avalanche de leite em pó e outros produtos industrializados promovidos como substitutos do leite materno.

A "revolução das mamadeiras" foi, de fato, um atentado em grande escala à saúde das crianças em todo o mundo, inclusive nos países mais desenvolvidos. O professor Latham foi uma das lideranças, como estudioso e como militante, de uma cruzada mundial pela promoção do aleitamento materno, como a primeira e mais universal das estratégias de proteção à saúde e ao estado de nutrição das crianças. Chegou mesmo a criar uma expressão muito simbólica: a desnutrição "comerciogênica" ou mercadológica. Ou seja, a pandemia da desnutrição edematosa, do marasmo nutricional, da deficiência de vitamina A que se seguiu à massificação do leite industrializado, vitimando, sobretudo, as crianças pobres da Ásia, África e América Latina. O livro "O Matador de Bebês" (The Baby Killer), de Muller (1974)4 traduzido em vários idiomas, é uma compilação muito ilustrativa do desastre epidemiológico induzido pelo desmame prematuro nos primeiros dias e meses de vida.

Assim se desencadeou, há quatro ou cinco décadas, em quase todos os países do mundo, um confronto aberto ou subliminar entre os interesses das indústrias de alimentos para uso infantil e as posições defendidas por profissionais de saúde, crescentemente convencidos e mobilizados em relação à alimentação e estilos de vida saudáveis, a começar pela amamentação. Percebendo a desigualdade de recursos mobilizados pelos interesses do mercado de alimentos e os profissionais de saúde sensibilizados pelas vantagens incomparáveis do aleitamento materno nos primeiros seis meses de vida, Latham se dispôs a oferecer uma denúncia, no Conselho Nacional de Igrejas, propondo um boicote a uma poderosa empresa internacional fabricante de leite em pó. Disse então, sem esconder sua emoção, que ficava furioso quando, diante de um bebê edemaciado, desidratado e gravemente doente, era informado pela mãe que havia sido persuadida a usar a mamadeira. Considerava isto simplesmente imoral. E como se tratava de uma moção/denúncia ao conselho diretor de organizações religiosas, questionou: "Pergunto-me como países com generosidade cristã, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, bem como a Suíça, deixam isto acontecer. E são nossas corporações as responsáveis".

Hoje, em grande parte devido à luta de cientistas e educadores como o professor Latham, o professor Dick Jelliffe, o apoio de instituições internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),5 a Organização Mundial da Saúde e o International Baby Food Action Network (IBFAN),6 a promoção do aleitamento materno, mais que uma estratégia, tornou-se uma das causas mais importantes para a sobrevivência e desenvolvimento saudável das crianças em todo o mundo. Não é apenas uma questão profissional: é um dever de cidadania.

  • 1. Latham MC. Human nutrition in the developing world. Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Food and Nutrition Series - No. 29. Rome; 1997.
  • 2. Sen A. The Idea of Justice. Penguin Books: London; 2010. 496 p.
  • 3. Conway, Gordon, 1938 Produção de alimentos no século XXI: biotecnologia e meio ambiente; tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Estação Liberdade; 2003.
  • 4. Muller Mike. The baby killer. Londres: War on Want; 1974.
  • 5. UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Situação Mundial da Infância 2011. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF); 2011.
  • 6
    IBFAN (International Baby Food Action Network). The Code Handbook. A guide to implementing the international code of marketing of breastmilk substitutes. IBFAN/ICDC. 2 Ed.; 2005. 295 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br