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Emergência e realismo perspectivista

Emergence and perspectivist realism

Resumos

Este artigo trata das questões da emergência de sistemas complexos (mentais e sociais) e da determinação descendente do ponto de vista do realismo perspectivista. Essas são questões sobre os fundamentos das ciências humanas em geral e, em particular, da psicologia e da sociologia. É proposto um critério para distinguir problemas metafísicos de problemas ontológicos (ou conceituais), e são discutidas as noções de sistema complexo hierárquico e de causação que seriam adequadas para uma fundamentação emergentista e perspectivista das ciências humanas.

Emergência; Causação descendente; Sistemas complexos; Realismo perspectivista


This paper deals with the questions of emergence and complex (mental and social) systems and with downward determination from the viewpoint of perspectival realism. These are issues concerning the foundations of the human sciences, generally speaking, and particularly psychology and sociology. A criterion is put forward, which distinguish metaphysicalfrom ontological (conceptual) problems, and the notions of complex, hierarchic system and causation that would be suitable for those that defend emergence and perspectivist foundations of the human sciences are discussed.

Emergence; Downward causation; Complex systems; Perspectivist realism


ARTIGOS

Emergência e realismo perspectivista

Emergence and perspectivist realism

Luiz Henrique de Araújo Dutra

Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. lhdutra@cfh.ufsc.br

ABSTRACT

This paper deals with the questions of emergence and complex (mental and social) systems and with downward determination from the viewpoint of perspectival realism. These are issues concerning the foundations of the human sciences, generally speaking, and particularly psychology and sociology. A criterion is put forward, which distinguish metaphysicalfrom ontological (conceptual) problems, and the notions of complex, hierarchic system and causation that would be suitable for those that defend emergence and perspectivist foundations of the human sciences are discussed.

Keywords: Emergence. Downward causation. Complex systems. Perspectivist realism.

RESUMO

Este artigo trata das questões da emergência de sistemas complexos (mentais e sociais) e da determinação descendente do ponto de vista do realismo perspectivista. Essas são questões sobre os fundamentos das ciências humanas em geral e, em particular, da psicologia e da sociologia. É proposto um critério para distinguir problemas metafísicos de problemas ontológicos (ou conceituais), e são discutidas as noções de sistema complexo hierárquico e de causação que seriam adequadas para uma fundamentação emergentista e perspectivista das ciências humanas.

Palavras-chave: Emergência. Causação descendente. Sistemas complexos. Realismo perspectivista.

O emergente superior foi descrito como algo baseado na complexidade dos emergentes inferiores; assim, a vida é um complexo de corpos materiais, e a mente, de corpos vivos. Pareceria que a ascensão tem lugar através da complexidade. Mas, a cada mudança de qualidade, por assim dizer, a complexidade se reorganiza e é expressa em uma nova simplicidade. A qualidade emergente é aquilo que resulta em uma nova totalidade dos materiais componentes (Alexander, 1927 [1920], v. 2, p. 70).

A emergência e a causação descendente são temas hoje bastante discutidos em relação aos fundamentos das ciências humanas. Particularmente, duas disciplinas têm sido objeto de discussões a esse respeito, envolvendo questões ontológicas com as quais a filosofia tem lidado desde sempre: a psicologia e a sociologia. Essas discussões sucedem aquelas que, em décadas passadas, se concentraram mais em torno da biologia, embora o tema da emergência das realidades mentais esteja em pauta desde o século XIX. Assim, já apresentei (cf. Dutra , 2003) uma discussão da posição de Claude Bernard, que se aproxima daquela dos emergentistas adiante mencionados, uma vez que nega tanto o materialismo estrito quanto o mentalismo espiritualista tradicional, assim como o vitalismo.

No caso das realidades mentais, de forma mais específica, a emergência tem sido evocada para lidar com a questão da relação corpo-mente.1 1 O termo emergent aparece pela primeira vez em G. H. Lewes (1875, p. 368 ss.), na discussão que esse autor faz sobre a concepção de causação de Hume, discussão na qual ele apresenta sua distinção entre emergentes e resultantes. Lewes é um dos clássicos sobre a emergência do mental em relação ao neurofisiológico (cf . Stephan, 1992). A concepção metafísica com maior respeitabilidade científica hoje, digamos, é aquela que podemos denominar fisicalista ou materialista. Segundo ela, qualquer que seja o entendimento que tenhamos dos eventos mentais e da mente humana, isso deve ser compatível com a ideia de que não existe nada no mundo que possa ser apontado como um estofo espiritual, mental etc., ou seja, qualquer coisa que não seja de natureza material e cujo comportamento básico (por exemplo, o movimento) não possa ser descrito por meio de leis pertencentes às ciências físicas.

No caso da sociologia, o foco de atenção é a relação indivíduo-grupo. Em analogia com o problema relativo à psicologia, nesse caso, nossa visão científica razoável do mundo sugere que os fenômenos sociais são apenas resultado da ação dos indivíduos humanos. Quando, por exemplo, uma instituição age, é pelo menos um indivíduo humano que está agindo.

A emergência entra em cena quando alguns desafiam esse status quo metafísico e sustentam que, embora não possa haver fenômenos mentais sem a ocorrência de processos neurofisiológicos em nossos cérebros, e embora não possa haver fenômenos sociais sem a concorrência das ações dos indivíduos humanos, enfim que, embora não haja qualquer estofo não material com o qual estejam relacionados os eventos mentais e sociais, uma descrição cientificamente adequada da mente humana não pode ser redutiva à neurofisiologia, nem uma descrição cientificamente adequada da sociedade humana pode ser redutiva à psicologia do indivíduo.

É possível aproximar ainda mais os dois problemas, em relação à psicologia e à sociologia, se concebermos um tipo de causação descendente do social em relação ao mental e, por sua vez, deste em relação ao neurofisiológico. Isso significaria que, em última instância, indiretamente, o social afetaria também o que é neurofisiológico. Nesse caso, temos o outro lado da moeda, por assim dizer, de muitas discussões atuais a respeito da emergência, isto é, sua associação com a noção de causação descendente.

Em favor dessa nova visão da sociedade e do ser humano está o fato de que o que se pretende é um entendimento unificado de todos os fenômenos que podemos presenciar, sem rupturas desde aqueles relativos à natureza bruta dos corpos até os mais sutis aspectos da organização das instituições sociais e de nossa vida intelectual e moral. Contra essa visão está a dificuldade de relacionar os três níveis adequadamente, pois relacioná-los envolve questões ontológicas de considerável dificuldade. A mesma concepção cientificamente informada sugere que, enquanto nossos corpos são de natureza material, sendo, assim, tangíveis e localizáveis no espaço e no tempo (muito embora a concepção física do mundo hoje seja muito mais complexa, como indicaremos adiante), nossas instituições e outros objetos culturais são abstratos e, logo, intangíveis, de modo que apenas em um sentido não literal podemos dizer que eles são localizáveis no espaço e no tempo. Por fim, os processos mentais, por sua vez, são de natureza mais difícil ainda de discernirmos. Embora eles possam, sem dúvida, ser localizados no espaço e no tempo, porque não concebemos que eles não estejam no indivíduo humano que age, em seu sistema nervoso, em seu cérebro, isso parece pouco para caracterizá-los adequadamente, a não ser para os propósitos de certo tipo de investigação neurofisiológica e não para os interesses da psicologia propriamente.

Na base dessa dificuldade está a noção de sistema. Pois, segundo a concepção emergentista, o que é mental e emerge do físico é um sistema de processos cognitivos, e o que é social e emerge do mental é um sistema de processos institucionais (abstratos, com certeza, mas também linguísticos). A questão de fundo é então a de como podemos descrever um mundo unificado no qual haja apenas um estofo, o material, mas no qual há uma pluralidade de sistemas de diversos níveis, e que pedem conceitos específicos, aparentemente irredutíveis uns aos outros.

Neste artigo, vamos procurar lidar com esses problemas filosóficos mais gerais que dizem respeito aos fundamentos das ciências humanas de um ponto de vista emergentista. Em primeiro lugar, nas primeiras duas seções, vamos propor um critério para distinguir as questões que podemos denominar eminentemente metafísicas sobre o estofo do mundo daquelas que podemos denominar talvez mais apropriadamente ontológicas ou conceituais sobre as noções adequadas para caracterizarmos cada um dos tipos de sistemas que conhecemos, a saber, físicos (em particular, neurofisiológicos), mentais e sociais. Nas últimas seções, vamos discutir as noções de sistema, de emergência e de causação que estão envolvidas nessa concepção das ciências humanas.

A nosso ver, essa concepção deve envolver um tipo peculiar de realismo científico, nomeadamente, o realismo perspectivista. Essa seria a forma de podermos compatibilizar uma metafísica monista (fisicalista) com uma ontologia pluralista. O realismo perspectivista resulta, por sua vez, da própria consideração da realidade emergente de sistemas mentais e, sobretudo, sociais. Ele representa uma fundamentação filosófica não inflacionária e cientificamente aceitável para as ciências humanas.

1 Monismo metafísico e pluralismo ontológico

Os termos "metafísica" e "ontologia" têm sido utilizados como sinônimos, com certa preferência pelo segundo, marcando determinadas diferenças de autores ou tradições filosóficas. Tanto na tradição analítica como na tradição fenomenológica e existencialista, o termo "ontologia" é preferido a "metafísica". O que os autores ligados a essas escolas desejam salientar é a diferença entre sua forma de discutir as questões filosóficas que transcendem os limites das ciências especiais ou seus fundamentos e a forma que encontramos nos pensadores tradicionais anteriores a Kant, em especial, Platão, Aristóteles e Descartes, entre outros.

Contudo, mesmo depois de Kant a metafísica não deixou de provocar polêmicas e tomadas de posição heterodoxas quanto a seu objeto e a seu método. O exemplo mais ilustrativo a este respeito talvez seja o de Hegel, mas os séculos XIX e XX conheceram concepções da metafísica que hoje são menos consideradas e discutidas, e que se pretendiam não apenas heterodoxas em relação à tradição aristotélica, mas também inovadoras. Esse é o caso, por exemplo, de Collingwood, um autor hoje quase esquecido e lembrado apenas por causa de sua filosofia da história. Mas sua concepção da história, por sua vez, está intimamente ligada à sua concepção da metafísica (cf. especialmente Collingwood, 1940).

Num sentido mais amplo, de história evolutiva, esse é também o caso de emergentistas como Samuel Alexander (1927 [1920]) e de Lloyd Morgan (1927 [1923]). Segundo Stephan (1992), Alexander e Morgan, juntamente com Broad (1925), são os expoentes da segunda fase do emergentismo britânico. Além desses dois autores, são apontados como expoentes do emergentismo britânico Stuart Mill, Bain e Lewes. Segundo McLaughlin (2008), Broad teria sido o último dessa escola que terminou não em virtude de erros filosóficos, mas das realizações científicas do século XX, especialmente a mecânica quântica. McLaughlin cita também Roger Sperry, cujas ideias vamos comentar adiante e que, segundo Stephan (1992), integra a quarta e última fase dessa tradição emergentista, juntamente com Popper, Smart e Kim. Contudo, ao contrário de Stephan, McLaughlin não toma a posição de Sperry muito a sério, em virtude de considerar o emergentismo um ponto de vista derrotado pela história da ciência na época de Broad. Ele toma em consideração mais as questões de emergência relativas à física, enquanto que, para a tradição emergentista britânica e para os emergentistas atuais, são as questões sobre a biologia e a psicologia as que interessam.2 2 De qualquer forma, o texto de McLaughlin é boa fonte de informação, assim como os demais textos da coletânea na qual ele está, organizada por M. Bedau e P. Humphreys (2008), e como aquela organizada por Beckermann et al. (1992), na qual está também o texto de McLaughlin, além daquele de Stephan, que é mais útil porque, além de reconstituir historicamente o emergentismo, identifica os principais problemas e os descreve de modo mais justo para com os emergentistas.

Como sabemos, Kant foi o grande divisor de águas no pensamento ocidental em relação a como devemos lidar com a metafísica e sua relação com o pensamento científico. O que Kant (1998 [1781/1787]) critica são as teses dos domínios da teodiceia, da psicologia e da cosmologia, disciplinas que, ao lado da ontologia, constituíam as divisões da metafísica tradicional. E podemos dizer que, do ponto de vista de Kant, a ontologia está resgatada nas categorias do entendimento, o que dá base para a metafísica do futuro, embora esse possa ser um tema de disputa entre os estudiosos de Kant.3 3 Cf . Kant (1998 [1781/1787], B873-B875). Cf. também, por exemplo, o próprio Collingwood (1940, Parte 3, cap. 22-8). Atendo-nos à literatura mais recente, cf. Heidemann (2010) e as referências feitas nos textos reunidos nesse volume. Como sabemos, a posição de Kant concilia um realismo metafísico, no sentido de que aceita a existência de corpos e de coisas-em-si, como ele argumenta na Crítica da razão pura, na refutação do idealismo (1998, B274 ss.), com o idealismo transcendental. Assim, a posição a ser delineada neste artigo se pretende fiel à postura kantiana nesse aspecto, embora, obviamente, não em muitos outros. Queremos nos referir especificamente às categorias do entendimento como os conceitos com os quais o real é pensado, o que restringe a discussão a um domínio puramente conceitual e aplicável a questões científicas, como pensava Kant. Entretanto, tal como diversos comentadores e estudiosos de seu pensamento notam, o final da Crítica da razão pura (cf. B880 ss.) faz retornar a metafísica num sentido mais forte, o que é também um tema para os estudiosos de Kant.

Nesta seção e na seguinte, vamos propor um uso para os termos "metafísica" e "ontologia" que resgata as denominações tradicionais e que não pretendemos que seja apenas uma convenção terminológica. Trata-se de um uso que deve ser científica e epistemologicamente adequado.

Se considerarmos, por exemplo, a postura de Quine em seu famoso artigo "Sobre o que há" (Quine, 1961 [1953]), podemos dizer que "ontológico" seria sinônimo de "conceitual". Sem citar Kant, mas convergindo em parte com seu ponto de vista, Quine reduz as questões ontológicas àquelas relativas à aceitação de uma teoria e do esquema conceitual a ela relativo. Sendo mais epistemológica do que metafisicamente motivada, a solução de Quine procura evitar tanto o platonismo quanto posições tradicionais contrárias ao realismo platônico, como o nominalismo e o conceitualismo. Essa saída providenciada pelo critério de compromisso ontológico de Quine é engenhosa e nos permite permanecer no campo do realismo, com certo viés pragmatista, o que inclui certo empirismo também, pois, diz ele no mesmo artigo:4 4 As traduções dos textos de Quine, assim como de outros autores citados adiante, são nossas e foram feitas diretamente a partir dos originais, razão pela qual as possíveis traduções publicadas em português não são citadas aqui.

Penso que nossa aceitação de uma ontologia é em princípio semelhante a nossa aceitação de uma teoria científica, um sistema de física, digamos: pelo menos na medida em que formos razoáveis, aceitamos o esquema conceitual mais simples no qual os fragmentos desordenados da experiência bruta possam se ajustar e ser ordenados. Nossa ontologia está determinada uma vez que tenhamos nos decidido por um esquema conceitual geral que deve acomodar a ciência no sentido mais amplo (...) (Quine, 1961 [1953], p. 16 ss.).

Embora em parte com inspiração no realismo de Quine, pretendemos ir além de sua posição oficial quanto ao critério de compromisso ontológico. Assim, se aplicarmos os termos "metafísica" e "ontologia" às discussões contemporâneas sobre os fundamentos das ciências humanas, o caráter emergente do mental em relação ao neurofisiológico e do social em relação ao mental, a posição a ser aqui delineada é a de um monismo metafísico fisicalista combinado com um pluralismo ontológico emergentista. De acordo com o primeiro, tudo o que há é matéria; mas, de acordo com o segundo há mentes e instituições, entidades psicológicas e sociais, que são os objetos das ciências humanas, em particular, da psicologia e da sociologia. Esse pluralismo ontológico emergentista é uma forma de realismo quanto às realidades mentais e sociais, mas é um realismo perspectivista, como veremos. Tais realidades existem apenas da perspectiva humana e, considerada essa perspectiva, elas são irredutíveis a outras realidades, e não meros resíduos ontológicos resultantes de uma análise conceitual dos eventos que presenciamos.

2 Um teste para distinguir o metafísico do ontológico

O que propomos indicar por "metafísico" são questões sobre a natureza do universo que nos é dado e no qual vivemos e que, em princípio, fisicamente falando, continuaria igual mesmo que toda presença humana fosse suprimida. Desse modo, "metafísico" é sinônimo de "cosmológico" no sentido que o termo tinha para a metafísica pré-kantiana. Por outro lado, o que propomos indicar por "ontológico" são questões sobre o que há no mundo como resultado da presença humana, e que, de fato, desapareceria se toda presença humana fosse suprimida. Nesse sentido, o que sustentamos tem certo parentesco com a posição de Quine acima comentada. "Ontológico" é sinônimo então de "conceitual" ou de "categorial", no sentido kantiano. Mas nem o tipo de realismo sustentado por Quine no referido artigo, nem o idealismo transcendental de Kant são suficientes para o que desejamos discutir, a saber, os fenômenos emergentes nos domínios do mental e do social. As realidades que emergem nesses domínios não emergiriam sem, de um lado, haver realidades materiais, nem, de outro, a ação humana. Mas elas não são meros epifenômenos; não são, por assim dizer, como a sombra de uma árvore que a luz do sol projeta no chão e não retroage sobre a árvore.5 5 A comparação com a sombra de um objeto para indicar o que é um epifenômeno é comum na literatura e já aparece, por exemplo, em Durkheim (1924, p. 12), no texto "Représentations individuelles et représentations collectives" (cuja publicação original é de 1898), quando o autor procura refutar justamente os defensores do epifenomenalismo em relação tanto aos fenômenos mentais quanto aos fenômenos sociais. Voltaremos a esse tema adiante.

Não se trata, por outro lado, apenas da tão conhecida distinção entre as questões pertencentes às ciências da natureza e aquelas pertencentes às ciências do espírito ou, numa terminologia mais atual, entre as ciências naturais (englobando basicamente as disciplinas da física, da química e da biologia) e as ciências humanas ou sociais (ou humanidades, englobando a psicologia, a antropologia, a sociologia, a economia etc.). Trata-se, além disso, de procurar eliminar aquelas questões que diriam respeito, na terminologia kantiana, às indagações cosmológicas ou sobre a natureza do que há. Um caso particularmente importante seria aquele das Formas eternas concebidas por Platão, como sabemos. Assim, num viés claramente fisicalista que caracteriza, aliás, o ambiente filosófico de hoje, trata-se de adotar uma postura metafísica monista, segundo a qual tudo o que há no universo é material, para utilizarmos termos mais tradicionais que os próprios físicos acham hoje ultrapassados.6 6 A cosmologia física atual é imensamente mais complicada e rica, e não se limita a falar da matéria, no sentido tradicional, introduzindo noções muito distantes dessas que estão no senso comum. Para uma visão atualizada da natureza segundo a física atual, pode-se consultar, por exemplo, Greene (2003, 2004); cf. também Randall (2006, 2011). Os detalhes da cosmologia física atual não alteram, contudo, o essencial de nossa argumentação, e podemos continuar a empregar os termos mais tradicionais, "matéria" e "material". Mas, isso não significa que tudo o que resta no mundo seja material, digamos assim pelo menos para efeitos de argumentação, embora possa ser se toda presença humana no universo for suprimida.7 7 Estamos presumindo, obviamente, e para simplificar a discussão, que o tipo de mente em que estamos interessados seja apenas a mente humana, o que não é o caso de um ponto de vista naturalista mais geral. Por exemplo, cf. Allen e Bekoff (1999) para uma discussão abrangente e cientificamente fundamentada dos tipos de mentes e da cognição em outras espécies animais. Nossa simplificação aqui se justifica apenas porque estamos interessados em discutir a relação entre o social e o mental, do ponto de vista humano, o que se relaciona com o realismo perspectivista que será comentado adiante.

Se suprimirmos a presença humana, aparentemente (ou assim se crê fortemente nos círculos filosóficos e científicos), todo evento mental será suprimido, e com isso, necessariamente, também será suprimido todo evento social. Mas enquanto mantivermos a presença humana no universo, além da matéria, existirão também entidades e processos mentais, e, com isso, também entidades e processos sociais. A questão tradicional é se podemos reduzir todos os conceitos sociais e psicológicos aos conceitos fisicalistas, como querem os fisicalistas mais radicais, ou se há alguma forma de sustentar a irredutibilidade do social e do mental, como querem os emergentistas.

Consideradas essas questões dessa forma, podemos separar claramente então o que é metafísico (isto é, cosmológico) do que é ontológico, pois temos um critério ou teste do que diz respeito à natureza das coisas ou do que diz respeito a sua existência.

No artigo já citado, Quine também menciona algumas das estratégias linguísticas para contornar essas dificuldades, como a de distinguir entre existir e subsistir. Com ironia, o próprio Quine diz que pode abrir mão do verbo "existir", já que ele continuará a ter o verbo "ser". Em português e algumas outras línguas neolatinas, temos um recurso terminológico complementar; temos "estar", que pode trazer vantagens ontológicas. Mas não é preciso recorrermos a esses cuidados terminológicos mais sofisticados se nossas ideias forem claras. Falar sobre o que há, como Quine prefere dizer, é o mesmo que falar sobre o que existe, mas não é o mesmo que falar da natureza (no sentido cosmológico tradicional) do que há ou existe.

Também não se trata de apenas separar conceitos, pois, quando a emergência entra em cena, o que for considerado ontologicamente irredutível poderá também ser causalmente efetivo. Assim, o teste é, na verdade, duplo, e não pode consistir apenas em imaginar se suprimimos ou não a presença humana no universo, mas também se, com ela e com as entidades e processos mentais e sociais, há algum poder causal (ou determinação) do social sobre o mental e deste sobre o físico. Ou seja, a questão de fundo é se os fenômenos sociais e mentais são apenas epifenômenos do que é físico, se apenas os acompanham, ou se são ontologicamente autônomos, embora sempre dependentes de fenômenos físicos, uma vez adotado o monismo fisicalista. A sombra, fisicamente falando, consiste em um epifenômeno, dadas a luz do sol e a árvore. As entidades mentais e sociais não estão na mesma situação, segundo os defensores da emergência.

O que se desenha então é uma concepção de níveis relativamente bem aceita tanto na filosofia e nas ciências como no saber comum, com as usuais categorias do físico, do mental e do social em progressiva dependência e relativa independência. Ou seja, do ponto de vista do monismo metafísico fisicalista, haverá eventos mentais apenas se houver entidades e processos neurofisiológicos, e apenas havendo entidades e processos mentais haverá eventos sociais. Mas, do ponto de vista do pluralismo ontológico emergentista, não apenas o social é irredutível ao mental, e o mental, ao neurofisiológico, mas o social pode retroagir sobre o mental e este sobre o neurofisiológico. Essa segunda parte do teste, obviamente, é muito mais difícil de conceber e aceitar que a primeira, e também muito mais difícil de demonstrar. Ela depende de pesquisas empíricas, e não apenas de argumentos racionais.8 8 Para os que conhecem a obra de Popper, salta aos olhos a semelhança entre o que estamos dizendo e o que ele defende em Objective knowledge (Popper, 1995 [1972]), sua teoria dos três mundos, tal como já comentamos no capítulo 8 de nosso Pragmática de modelos (Dutra, no prelo). Popper não faz, contudo, a distinção que propomos entre "metafísico" e "ontológico", limitando-se a afirmar a existência dos objetos e processos dos mundos físico, psíquico e abstrato (no qual se encontram as instituições e outros objetos culturais ou sociais). Sobre o emergentismo de Popper, cf. Popper & Eccles (1984 [1977]), e também Stephan (1992).

Mesmo assim, de maneira geral, podemos conceber o teste para o que é metafísico da seguinte maneira:

TM: Suprimimos toda presença humana no mundo – o que resta?

Se todos concordarmos que restarão apenas as realidades materiais, então estaremos metafísica ou cosmologicamente comprometidos com uma postura fisicalista. E muito poucos estariam hoje dispostos a sustentar que há outros tipos de estofo, além daquele de que são feitas as coisas e processos físicos, resumidamente, os corpos materiais e o que possibilita suas relações, ainda que sejam partículas ou, para além desse nível, cordas, supercordas etc., o que possa ser (cf. Greene, 2003; Randall, 2006).

E, de forma complementar, podemos conceber o teste para o que é ontológico da seguinte maneira:

TO: Acrescentamos a presença humana no mundo – o que há?

Aqui, tomarão uma postura dualista, ontologicamente falando, aqueles que concordarem que, aplicando o critério de compromisso ontológico de Quine, haverá também entidades e processos mentais. E se, em acréscimo a isso, concordarem, nos mesmos termos, que também haverá entidades e processos sociais, tomarão uma postura pluralista. Sua ontologia comportará três tipos de coisas no mundo, embora apenas uma substância ou estofo.9 9 Acreditamos que o critério aqui apresentado vai ao encontro das ideias de C. Lloyd Morgan, em especial, passagens como a seguinte: "As novas relações emergentes em cada nível mais alto guiam e sustentam o curso dos eventos distintivos desse nível, o que, na formulação que sugerimos, depende de sua presença contínua. Em sua ausência, ocorre a desintegração" (Morgan, 1927, Lecture 1, p. 17). Esse autor, contudo, não discute especificamente as realidades sociais, como fazemos aqui, mas apenas aquelas entidades, diz ele, materiais, vivas e mentais, sendo que o mesmo vale para Alexander (1927), já citado e comentado também por Morgan em seu mencionado livro. Contudo, Morgan (1927, Lecture 3) dá exemplos de sistemas sociais, como uma família. Nesse caso, o que ele diz sobre a constituição de sistemas vai ao encontro das ideias de Herbert Simon, que analisaremos adiante.

Para Quine, trata-se apenas do compromisso ontológico envolvido na aceitação de teorias. E é nesse ponto que é preciso ir além de suas considerações. O teste ontológico, pressupondo a emergência, requer pesquisa empírica para mostrar que o social é irredutível e pode ser determinante sobre o mental e que esse, igualmente, é irredutível e pode ser determinante sobre o neurofisiológico. Poderemos acrescentar um monismo também ontológico ao monismo metafísico ou cosmológico se sustentarmos a redutibilidade do social ao mental e do mental ao neurofisiológico. Mas, se quisermos sustentar o pluralismo ontológico que resulta de uma postura emergentista, então será preciso demonstrar empiricamente não apenas que as possíveis leis pertencentes aos níveis social e mental são irredutíveis a leis pertencentes a níveis inferiores, mas também que há (ou pode haver) causação descendente do social sobre o mental e do mental sobre o neurofisiológico. Vamos nos ocupar dessa questão adiante. Contudo, uma adequada discussão da causalidade descendente depende de, antes, esclarecermos determinados pontos a respeito da própria noção de emergência e da noção de causaque está envolvida quando falamos em determinação descendente. Esses são respectivamente os assuntos de duas próximas seções.

A base conceitual que torna TM e TO aplicáveis é, como vimos, a noção de presença humana no mundo. Mas isso não deve ser tomado como a defesa de um ponto de vista meramente relativista ou puramente conceitual ou epistêmico em relação às questões de ontologia. Por outro lado, o que há depende, obviamente, da perspectiva humana, se admitirmos que a única resposta aceitável para TM elimina toda forma de dualismo mentalista ou espiritualista e toda forma de platonismo com relação a entidades abstratas e a universais. Como veremos na última seção, havendo evidência empírica em favor da causação descendente do social sobre o mental e do mental sobre o físico, o tipo de realidade que uma resposta positiva a TO pode sustentar para as entidades sociais e mentais é perspectivista. Assim, respostas afirmativas para TO em relação a entidades mentais e sociais têm de ser consubstanciadas por um tipo de realismo perspectivista, que é ontológico, mas não é cosmológico ou metafísico, isto é, admite outras realidades além das coisas materiais, mas não se compromete com a existência de outros estofos.

3 As questões ontológicas não são apenas questões internas de existência

Além das posições emblemáticas de Kant e Quine, mencionamos acima também aquela de Collingwood, entre outros autores do início do século XX. Embora hoje quase esquecido, esse autor merece um comentário a esse respeito porque, curiosamente, sua posição guarda uma interessante semelhança com aquela de Quine, embora, historicamente, não haja qualquer relação entre esses dois filósofos. A semelhança está em caracterizar as questões de ontologia como afirmações de existência.

Além de ser conhecido por sua filosofia da história, exposta, por exemplo, em A ideia de história (Collingwood, 1994 [1946]), Collingwood é autor também de outras obras que trazem considerações pertinentes para a presente discussão, a saber, A ideia de natureza (Collingwood, 1949 [1945]), que recapitula a cosmologia desde os gregos até o século XX, e principalmente Um ensaio sobre metafisica (Collingwood, 1940). Nessa última obra, Collingwood sustenta que a metafísica é uma disciplina de caráter histórico, que ela consiste na análise das pressuposições absolutas de uma teoria. Ora, a forma como Collingwood expõe seu argumento em favor dessa ideia na primeira parte da citada obra lembra as ideias de Quine em "Sobre o que há", já citado, e em "Relatividade ontológica" (Quine, 1961 [1953]; 1969), relacionando o que há com o que é afirmado ou presumido por uma teoria. Por sua vez, o que Collingwood rejeita peremptoriamente em seu texto é que a metafísica seja a ciência do puro ser.

Essa concepção é antecipada em outro livro de Collingwood, Um ensaio sobre o método filosófico, no qual esse autor discute a natureza da filosofia, o que envolve, obviamente, a natureza da metafísica. No sexto capítulo dessa obra, aproveitando sua análise do argumento ontológico de Santo Anselmo em favor da existência de Deus, Collingwood afirma que o que, afinal, esse argumento prova não é a existência de Deus, mas que a essência envolve a existência (Collingwood, 2005 [1933], p. 127). E é daí que o autor extrai então sua concepção básica da filosofia (e da metafísica), que antecipa aquela que já comentamos acima. Ele diz:

Mas isso significa o objeto do pensamento filosófico em geral; pois a metafísica, mesmo que seja vista como apenas uma dentre as ciências filosóficas, não é única em sua referência objetiva ou em sua estrutura lógica; todo o pensamento filosófico é do mesmo tipo, e toda ciência filosófica compartilha da natureza da metafísica, que não é uma ciência filosófica separada, mas um estudo especial do aspecto existencial daquele mesmo assunto cujo aspecto ligado à verdade é estudado pela lógica, e cujo aspecto ligado ao bem, pela ética (Collingwood, 2005 [1933], p. 127, grifo meu).

Por mais interessante e inusitado que seja esse ponto, contudo, e por mais que vá ao encontro das necessidades de sua filosofia da história, a forma como Collingwood concebe a metafísica elimina diretamente o que desejamos fazer neste artigo. Isto é, se toda discussão ontológica (em nosso sentido, ou metafísica no sentido de Collingwood) for uma discussão sobre os compromissos ontológicos das teorias, como diz Quine, então não há espaço para qualquer disciplina que discuta diretamente noções como a da realidade de sistemas complexos, de emergentes etc., a não ser relativamente a determinada teoria. O resultado de uma discussão metafísica à maneira deCollingwood seria, portanto, apenas uma versão dos fundamentos e dos compromissos ontológicos de determinada teoria, o que pode ser útil de qualquer modo e esclarecedor já que, como sustenta Quine, sempre estamos comprometidos com alguma teoria e com sua ontologia, aquela que corresponde à linguagem que utilizamos.

Entretanto, há um aspecto crucial da visão que Platão, Aristóteles e Descartes, já mencionados, tinham das questões metafísicas (ou ontológicas, se quisermos) que Collingwood parece desconsiderar, e que talvez Quine não desconsidere totalmente. Esses autores tradicionais da metafísica pretendiam apresentar uma teoria. Pode bem não ser uma teoria do ser em geral, como argumenta Collingwood, porque isso seria talvez absurdo, como diz ele (Collingwood, 1940, p. 11 ss.). Mas seria uma teoria de categorias, digamos, de concepções mais gerais que podem estar presentes em qualquer outra teoria. Isso Collingwood não pode eliminar. A nosso ver, é isso o que Kant permite resgatar da ontologia tradicional. Uma discussão sobre os sistemas complexos e a emergência ligada a eles, assim como sobre a causação descendente. Esse é o tipo de discussão geral que podemos classificar como ontológica, conceitual ou categorial, nesses sentidos renovados dos termos. Isso se encontra também, por exemplo, em Alexander (1927 [1920]).

Não desejamos que esses poucos e breves comentários à filosofia de Collingwood sejam tomados como uma crítica apressada e que não leva em consideração os propósitos de suas reflexões. De fato, Collingwood estava basicamente preocupado com o método da filosofia, como ilustra bem sua longa discussão em Um ensaio sobre o método filosófico. Uma leitura atenta desse livro, e de outros dele, mostra como o autor tinha preocupações quanto ao papel do filósofo (em oposição aos papeis do cientista natural, do matemático e do historiador) equivalentes àquelas de autores analíticos como Gilbert Ryle, com quem manteve correspondência e discussão filosófica, embora com conclusões diferentes, do mesmo modo que Alexander (1927 [1920]).10 10 Cf. Collingwood (2005, p. 253 ss.) onde está publicada a correspondência entre os dois autores. No texto "O senhor Collingwood e o argumento ontológico", Ryle (2009, p. 105 ss.) criticou as ideias de Collingwood expostas no Um ensaio sobre o método filosófico. Em particular, Ryle criticou a conclusão geral que Collingwood tira de sua análise do argumento de Santo Anselmo. Vale notar, por outro lado, mas sem entrar nesse ponto aqui, que Alexander defende a existência da Divindade com base em seu emergentismo (cf. Alexander, 1927, Livro 4, vol. 2). Além disso, o Livro 2, vol. 1, dessa mesma obra é dedicado a uma extensa e minuciosa discussão das categorias a partir da concepção esboçada por Kant.

De qualquer maneira, quando considerada apenas a possibilidade de discussões ontológicas, apesar de suas profundas e óbvias diferenças, tomado o tema da metafísica tradicional, se alinharmos de um lado Kant, Collingwood e Quine e, de outro, Platão, Aristóteles e Descartes, a filosofia atual talvez tenha muito mais motivos para ter simpatia para com os três primeiros, e para concordar com eles que o projeto tradicional de uma ciência primeira talvez seja irrealizável. Mas, mesmo assim, acreditamos que a filosofia atual gostaria de poder falar de temas que aparecem aqui e ali em diversos domínios de investigação – entre eles a psicologia e a sociologia, a filosofia da mente e a filosofia social – e que nos motivam a tomar esses assuntos em uma discussão específica que transcenda as disciplinas particulares, ou científicas, ou filosóficas. E isso reacende uma pequena chama de simpatia para com os outros três filósofos mencionados. Não desejar construir novos sistemas metafísicos não parece então dever impedir que discutamos questões ontológicas que não estão necessariamente apenas onde talvez primeiro aparecem. E isso conduz à ontologia, em nosso sentido, pace Collingwood, e como querem também Alexander e Morgan.

Esse é o momento de deixarmos claro, contudo, que, apesar de nossa simpatia para com a concepção geral de emergência que se encontra nesses dois autores, eles entendem que, no ápice da pirâmide da emergência, após as realidades físicas, vivas e mentais, encontra-se a divindade, embora haja diferenças de formulação entre os dois. Contudo, a nosso ver, devemos considerar o ápice da pirâmide como aquele que contém as realidades sociais. Nesse caso, a noção de divindade pode ser tomada como um objeto abstrato, socialmente construído, entre outros, e pode fundamentar a moralidade, como Alexander e Morgan desejam. Mas essa noção não seria a única capaz de fazer isso. Assim, a esse respeito, nossa simpatia vai mais ao encontro da posição de Sperry e de Durkheim. Sperry também sustenta, como veremos, que os valores (entre eles, os morais) determinam o comportamento (individual), mas eles não decorrem de nenhuma noção de divindade. Logo, embora Alexander e Morgan reivindiquem para sua concepção emergentista o título de naturalismo, os naturalistas atuais os tomariam como transgressores dos princípios naturalistas mais estritos. Por outro lado, a nosso ver, tomar a divindade como um objeto abstrato – e, mesmo assim, determinante do comportamento individual – estaria de acordo com a postura de Durkheim.

4 A emergência de sistemas complexos mentais e sociais

Separados então os domínios ontológico e metafísico, podemos enfrentar as questões relativas à emergência das realidades psíquicas e sociais sem o receio de incorrer em reificações ou em compromissos metafísicos que, aos olhos dos cientistas de hoje, pareçam inadequados.11 11 Vamos utilizar o termo "realidades" (sobretudo no plural), como já fizemos acima por vezes, para podermos evitar a distinção que pode (e que, em certa medida e para determinados fins, deve) ser feita entre eventos e entidades, ou entre fenômenos e coisas (cf. Dutra, 2005). Uma forma alternativa que permite evitar essa distinção, mas que não perde em rigor conceitual, como faremos abaixo, consiste em falarmos de sistemas como realidades emergentes de determinado nível, realidades que pressupõem certos processos de um nível (ontológica, mas não metafisicamente, falando) inferior, nível esse ao qual, contudo, elas são ontologicamente irredutíveis. Alexander (1927) utiliza os termos "realidades" (" realities") e "existentes" (" existents") de modo semelhante ao que fazemos aqui. O monismo fisicalista segundo o qual não há outros estofos além daquele que constitui os corpos materiais que nos rodeiam não conflita com o pluralismo ontológico segundo o qual determinados processos físicos – mais particularmente, neurofisiológicos – acarretam a emergência de realidades psíquicas conceitualmente irredutíveis aos processos físicos que as produzem. E, do mesmo modo, determinados processos psíquicos ou mentais dão lugar a realidades sociais conceitualmente irredutíveis a tais processos mentais (e possivelmente também físicos) que as produzem.

No segundo caso, um dos autores clássicos que defendem esse ponto de vista emergentista é Durkheim, já citado, e nisso ele tem sido seguido por autores contemporâneos no domínio das ciências sociais.12 12 Por exemplo, cf. Sawyer (2005) para uma discussão ampla da emergência nas ciências sociais em comparação com a psicologia e a defesa de uma posição durkheimiana, sustentando a emergência e a causação descendente. No primeiro caso, da emergência das realidades mentais a partir dos processos neurofisiológicos de nosso cérebro, um dos fortes defensores do ponto de vista que associa a emergência com a causação descendente, além dos já citados Alexander e Morgan, é Roger Sperry (1969, 1983), em oposição ao fisicalismo e ao behaviorismo que imperaram na psicologia até os anos 1960.13 13 Podemos comparar a posição emergentista defendida por Sperry (1969, 1983) com a posição fisicalista e redutivista de Patricia Churchland (2011), por exemplo. Sperry cita Morgan (1927), mas não Alexander que é citado por outros autores atuais.

A discussão sobre emergência é hoje vasta e rica. Obviamente, não pretendemos dar conta aqui das variações ou posições mais relevantes. A nosso ver, a linha de reflexão mais interessante é aquela que tem em conta a possibilidade da causação descendente e as formas concretas pelas quais isso pode ocorrer, o que envolve também uma discussão inovadora acerca da relação causal. Embora sejam campeões da emergência, nem Durkheim, nem Sperry e outros, nas décadas mais recentes, apontam o que poderíamos denominar os "mecanismos", digamos, da influência causal do todo sobre as partes que o constituem, ou seja, de que forma, concretamente falando, um sistema pode ser determinante sobre o comportamento de suas partes, embora sejam essas últimas, por sua vez, que o constituam e sejam de maneira ascendente as responsáveis causais (eficientes) pelo funcionamento do próprio sistema.14 14 A esse respeito, podem ser consultadas obras como Andersen et al. (2000). Consultar também o volume 6 (1) da revista Principia, organizado por Charbel N. El-Hani (2002), que contém diversos textos dedicados à realidade dos sistemas emergentes e à causação descendente.

O que desejamos discutir nesta seção e na próxima são os princípios que orientam a própria abordagem pluralista não redutiva que contempla o caráter das realidades mentais e sociais de um ponto de vista emergentista. É uma questão empírica se há processos sociais que são determinantes do comportamento dos indivíduos humanos, como sustentam os que seguem Durkheim a esse respeito, assim como se há processos mentais (cognitivos) que são determinantes do funcionamento do cérebro humano, como sustenta Sperry. Mas os problemas empíricos que a esses respeitos podem e devem ser investigados têm de ser formulados adequadamente, e isso não é possível sem noções adequadas a respeito das realidades sociais e mentais com as quais estamos lidando. Assim, o que vamos discutir aqui são as noções de sistema e de causação que seriam adequadas para tal pesquisa empírica. Se o mental emerge a partir do neurofisiológico e o social a partir do mental, com que tipo de sistemas (mentais e sociais) estamos lidando? E por que seus processos podem afetar o nível inferior que os fez emergirem? Em outras palavras, que tipo de sistema pode emergir de realidades de determinado nível de forma a, depois de emergir, ter influência causal sobre esse próprio nível que, em primeiro lugar, o criou?

As realidades mentais e sociais a que nos referimos são sistemas complexos. Elas pertencem, mais particularmente, de fato, a um tipo de sistema complexo, aquele que Herbert Simon (1996 [1969]) denominou sistema hierárquico. Esse ponto é sustentado também por Sperry (1983) especificamente em relação à organização dos valores que, sendo realidades cognitivas – e, logo, mentais –, retroagem sobre o cérebro e alteram os processos neurofisiológicos. Esses valores e outras realidades cognitivas possuem uma estrutura hierárquica. A forma dessa estruturação hierárquica, contudo, não é discutida por Sperry.15 15 Apesar de analisar com certo detalhe a posição de Sperry, Stephan (1992, p. 43) a considera decepcionante por não apontar os mecanismos responsáveis pela causação descendente, o que é uma reclamação justa, tal como já mencionamos e como comentaremos adiante.

É aqui que Simon pode ajudar na discussão. Segundo esse último, um sistema complexo é aquele sistema no qual "dadas as propriedades das partes e as leis de sua interação, não é uma questão trivial inferir as propriedades do todo" (Simon, 1996 [1969], p. 184). Em outros termos, também empregados por Simon, num sistema complexo o todo é maior que a soma das partes. Assim sendo, segundo o autor, um sistema hierárquico, sendo um tipo de sistema complexo, é definido da seguinte forma:16 16 Embora citemos aqui os textos de Simon em virtude da forma clara e mais técnica na qual ele formula as noções ligadas à complexidade dos sistemas, é interessante notar como Alexander (1927 [1920], Livro 3, v. 2, cap. 2) antecipa algumas dessas ideias ontológicas, digamos, embora expressas de forma não muito técnica e em uma linguagem mais filosófica, como no trecho usado como epígrafe deste artigo. C. Lloyd Morgan, por sua vez, se expressa de forma um pouco mais técnica, embora ainda marcadamente ontológica (cf. Morgan, 1927 [1923], Lecture 3), e, para caracterizar um sistema qualquer, introduz a noção de relacionalidade ( relatedness), que pode ser intrínseca (o que é o mesmo, diz Morgan, que apontar uma entidade) ou extrínseca (o que determina o caráter de uma entidade em função de suas relações com outras entidades). Os termos em uma relação, segundo Morgan, são sempre relativos e dependem da relacionalidade da própria relação. Isso faz com que sua discussão sobre os sistemas (complexos) antecipe a própria maneira como Simon trata do tema (cf. Morgan, 1927 [1923], p. 70–3 e 76).

Por um sistema hierárquico, ou hierarquia, entendemos um sistema que é composto de subsistemas inter-relacionados, sendo cada um desses últimos, por sua vez, hierárquico em estrutura, até que alcancemos o nível mais baixo de um sistema elementar. Na maior parte dos sistemas na natureza, é de certa forma arbitrário onde paramos a partição e que subsistemas tomamos como elementares. A física utiliza muito o conceito de "partícula elementar", embora as partículas tenham a decepcionante tendência de não permanecer elementares por muito tempo (...). Em um tipo de pesquisa biológica, uma célula pode ser tratada como um subsistema elementar; em outro, uma molécula de proteína; em outro ainda, um resíduo de aminoácido (Simon, 1996 [1969], p. 184–5).

Embora seja "de certa forma arbitrário", como diz Simon, quais são os sistemas que vamos considerar elementares, obviamente, são os compromissos teóricos ou ontológicos dos pesquisadores que trabalham em determinado programa de pesquisa que vão determinar isso. E por isso é relevante uma discussão geral sobre tais questões ontológicas. Mas considerar esses compromissos ontológicos não resolve totalmente o problema, pois é necessário também um elemento empírico, que é apontado também por Simon, para que possamos retratar o sistema como um sistema hierárquico. Trata-se da possibilidade de descrever as ocorrências ou processos entre os subsistemas envolvidos em um sistema hierárquico por meio de uma matriz que expresse as relações ou interações entre esses subsistemas do sistema hierárquico.

Assim, por exemplo, se estivermos falando de um sistema hierárquico social, que é um dos focos de nossa atenção, constituído a partir, digamos, de sistemas elementares que seriam seres humanos, a descrição das interações entre os subsistemas seria feita por uma matriz sociométrica. Esse é exatamente um dos casos evocados por Simon:

Já demos um exemplo de um tipo de hierarquia que encontramos frequentemente nas ciências sociais – uma organização formal. As empresas, governos e universidades, todas essas coisas possuem claramente uma estrutura que pode ser vista como partes dentro de partes. Mas as organizações formais não são os únicos tipos de hierarquia social, nem mesmo as mais comuns. Quase todas as sociedades possuem unidades elementares denominadas famílias, que podem ser agrupadas em aldeias ou tribos, e essas em agrupamentos maiores, e assim por diante. Se fizermos um mapa das interações sociais, de quem fala com quem, os agrupamentos de interação densa nesse mapa vão indicar uma estrutura hierárquica bastante bem definida. Os agrupamentos nessa estrutura podem ser definidos operacionalmente por meio de alguma medida de frequência de interação nessa matriz sociométrica (Simon, 1996 [1969], p. 186).

Aqui as ideias de Simon e de Durkheim e Sperry convergem. Pois o que esse último autor sustenta, de sua parte, é que os valores compartilhados por determinado grupo humano possuem poder de determinação sobre os processos neurofisiológicos que, por sua vez, determinam o comportamento manifesto dos indivíduos do grupo (Sperry, 1983, cap. 6 e 7). Ora, essa é uma noção tipicamente durkheimiana, embora Sperry não cite Durkheim. Por sua vez, a contribuição de Simon, metodologicamente falando, seria aquela de apontar a forma pela qual podemos lidar empiricamente com tais valores. Para isso, operacionalmente falando, seria preciso construir uma matriz sociométrica para as interações verbais (expressas, por exemplo, em princípios explicitamente formulados, ordens, relatórios e prestações de contas etc.) que acompanham as ações dos indivíduos humanos de determinado grupo que constitui certo sistema hierárquico com certas finalidades, como aqueles sistemas sociais mencionados por Simon na citação acima. Com isso podemos apontar os valores sociais compartilhados que determinam parte do comportamento manifesto dos indivíduos do sistema, ou seja, as ações voltadas para as finalidades do sistema que eles constituem.

Cabe notar aqui que Morgan também sustenta a determinação do comportamento pelos valores morais, embora eles provenham da divindade, que está no ápice da pirâmide da emergência. Ele diz que "atingimos um nível naturalista no qual o enriquecimento é devido, digamos, à presença de ideais de valor dos quais depende a modelagem da conduta. Eles são emergentes e devem ser aceitos por aquilo que valem" (Morgan, 1927, p. 205). E mais adiante, na mesma página, ele acrescenta: "É tarefa de uma ética naturalista dar uma explicação sobre a gênese natural dos valores. Eles são reais sob a rubrica da relacionalidade? Com certeza, eles são reais no sentido naturalista pleno. Eles são o estofo emergente do qual o "ir conjuntamente" (gotogetherness), no nível da divindade, é a substância" (p. 205). Ora, se no lugar do termo divindade colocarmos sociedade, o que se afirma continua valendo de um ponto de vista emergentista sem qualquer perda ontológica, e apenas com certa perda metafísica.

Esse poder normativo dos valores sobre o comportamento dos indivíduos que são as partes de um sistema hierárquico pode ser interpretado como um tipo de causação (ou determinação) descendente. Essa ideia também está contida nas discussões de Sperry (1983). Mas é óbvio que, de sua parte, essa ideia pede também uma reelaboração da noção de causação. A causação não poderia ser encarada então, tal como sugere a concepção que herdamos de autores modernos como Hume, como uma relação temporal entre dois eventos, sendo o mais remoto no tempo aquele que apontamos como a causa do evento posterior no tempo, o efeito. De fato, as discussões de hoje tendem a recuperar noções que a tradição ou negligenciou (como a de causa final), ou não elaborou tão detalhadamente (como as de função e de ação recíproca), e tendem a aproximar as duas noções, como veremos na próxima seção.

Quando descrevemos um grupo humano como um sistema hierárquico e a ele atribuímos certos valores (e, portanto, também crenças que são, em última instância, propriedades do sistema) em função dos quais os elementos desse sistema (os seres humanos individualmente) agem para alcançar determinado fim, pode parecer que efetuamos uma reificação. Essa tem sido, de um lado, uma preocupação constante e justa em relação às ciências sociais e, de outro, uma constante crítica à sociologia de orientação durkheimiana. Ora, não há aí reificação maior que aquela que poderia haver no caso de dizermos que determinado sal (o cloreto de sódio, digamos) é solúvel em água, para recorrermos a um exemplo frequente nas discussões sobre a emergência. Embora hoje a física esteja em posição de nos explicar as interações moleculares e atômicas microscópicas que estão envolvidas no fenômeno macroscópico, não deixa de ser uma generalização empírica legítima e nomológica dizermos que determinado sal é solúvel e apontarmos seu ponto de saturação.

Essas são descrições empíricas legítimas do ponto de vista científico, e não há reificação em dizermos que o cloreto de sódio, por exemplo, é um sal solúvel em água. O que fazemos nesse caso, como em muitos outros em que há emergência e causação descendente, é apontarmos determinado sistema complexo (uma molécula de cloreto de sódio) e algumas de suas propriedades (como a solubilidade em água), propriedades essas que pertencem apenas ao sistema todo e não a suas partes (no caso, obviamente, os átomos de cloro e sódio), e que são causalmente efetivas em relação ao comportamento das partes do sistema.17 17 A posição de Brian McLaughlin (2008) a esse respeito é diametralmente oposta. Segundo ele, a mecânica quântica explicou conveniente e redutivamente esses fenômenos e, com isso, contribuiu para o fim do emergentismo na década de 1930. Esse autor não tem em conta, contudo, o aspecto ontológico – na forma de expressar de Morgan (1927), interpretativo – das considerações em relação à emergência e sua perspectiva molar. Ele também desconsidera as dificuldades de interpretação da própria mecânica quântica e sua (hoje considerada) possibilidade de redução a teorias mais fundamentais, como a das cordas (cf. Randall, 2006). E como isso, por outro lado, tal como certamente McLaughlin poderia argumentar, não tornaria a mecânica quântica obsoleta, sua posição, no fundo, é de certo chauvinismo fisicista, digamos assim.

Do mesmo modo, ainda que, no futuro, a psicologia e a neurofisiologia possam nos explicar mais detalhadamente aquilo que agora apontamos como valores de um grupo humano que determinam o comportamento dos membros do grupo, essas descrições (mais) molares de realidades emergentes não deixam de ter valor empírico. Os valores, assim como as crenças, são elementos cognitivos perfeitamente aceitáveis em uma descrição empírica legítima do comportamento individual e coletivo. Essas realidades emergentes, talvez diferentemente de outras realidades, apenas nos convidam a investigações futuras que apontam novos aspectos do mundo dos quais ainda não nos demos conta (em relação às crenças, mas acreditamos que de forma igualmente aplicável aos valores; cf. Dutra, 2010). Mas elas não são menos empíricas por isso, nem perdem seu valor científico quando certas explicações de nível molecular se apresentam como alternativas ou se somam às explicações de nível (mais) molar que já possuíamos.

5 Uma concepção neoaristotélica da causação: funcionalidade e teleologia

Como dissemos acima, se há causação descendente e as propriedades de um sistema determinam o comportamento de suas partes ou elementos constituintes, então devemos discutir mais detalhadamente as noções de causação (ou de causa) e de função. Pois esse tipo de descrição de um sistema hierárquico é a descrição de seu funcionamento, o que envolve necessariamente sua finalidade. Nesse caso, pelo menos à primeira vista, parece mais fácil falarmos dos sistemas hierárquicos sociais do que dos psíquicos, biológicos e físicos. Pois nos parece que um grupo humano ou instituição, assim como uma pessoa, pode possuir finalidades definidas, porque tais finalidades são conscientemente auto-atribuíveis. E, no caso dos sistemas biológicos e físicos, falar de finalidades levanta a suspeita de antropomorfização. Os fins naturais e as explicações teleológicas foram banidas da ciência moderna – assim também aprendemos –, que tendeu a conservar apenas explicações mecânicas, isto é, em termos de causas eficientes. Desse modo, a reelaboração das noções de causa final e de função tem sido um dos desafios para os defensores da emergência e da causação descendente. O que vamos fazer nesta seção é apontar uma das linhas em que noções adequadas podem ser alcançadas a esse respeito.18 18 Mas para uma discussão mais abrangente, cf. o livro de Peter McLaughlin (2003), obra que vai ao encontro das preocupações teóricas aqui mencionadas. Cf. também Nunes-Neto & El-Hani (2009, 2011).

Retomando então as duas questões principais sobre a psicologia e a sociologia que temos discutido desde o início – a relação corpo-mente e a relação indivíduo-grupo – e retomando as considerações da seção precedente sobre os sistemas hierárquicos, podemos dizer que se a mente emerge de processos neurofisiológicos, sendo um sistema complexo (possivelmente hierárquico), como sugerem as discussões fundamentadas na própria neurofisiologia, então há propriedades da mente que não são atribuíveis ao cérebro, ao contrário do que sustentam redutivistas como Churchland, e tal como sustenta Sperry.19 19 Por exemplo, cf. o já clássico Neurophilosophy, de Patricia Churchland (1989), assim como o também já clássico Descartes' error, de Antonio Damasio (2005 [1994]), entre tantas obras disponíveis hoje nesse domínio de discussão, entre elas, também Freeman (2000). E, do mesmo modo, seguindo as ideias emergentistas em relação ao social, tal como a sociologia de orientação neodurkheimiana sustenta, há propriedades das instituições sociais que não são atribuíveis aos indivíduos que são membros de tais instituições. Em outras palavras, os processos mentais podem estar dirigidos para finalidades que não podem ser relacionadas com os processos neurofisiológicos a eles subjacentes, e, igualmente, os processos sociais podem estar dirigidos para finalidades que não podem ser relacionadas com os processos mentais dos indivíduos humanos neles envolvidos.

Assim, se um sistema mental, ou seja, um indivíduo humano, estiver dirigido para determinado fim (isto é, a ação do indivíduo visar a determinado resultado, ou for função dele), é esse fim que, de forma teleológica, determina o funcionamento das partes desse sistema. Mas como tal sistema mental não pode existir e agir se seu cérebro não funcionar convenientemente, então essa finalidade do sistema mental tem, de alguma forma, de retroagir sobre os processos neurofisiológicos que, em primeiro lugar, devem existir para que haja alguma realidade mental.

Do mesmo modo, se um sistema social (uma instituição, digamos, seja uma família, um clube, um sindicato, ou mesmo uma nação) estiver dirigido para determinado fim, caso em que as ações dos indivíduos pertencentes a tal instituição visam a determinado resultado, ou dele são função, é também esse fim que, da mesma forma teleológica, determina o funcionamento das partes do sistema social, que são os indivíduos humanos. Como tal sistema social ou instituição não pode existir e agir se seus membros não agirem convenientemente, então tal finalidade do sistema social tem de retroagir sobre as ações de seus membros, sem as quais não pode haver qualquer realidade social.

Quando pensamos de forma ascendente, isto é, a partir dos processos neurofisiológicos do cérebro humano para podermos explicar nossa atividade mental, estamos apontando, obviamente, causas eficientes e também materiais, para utilizarmos os termos aristotélicos consagrados. Mas quando queremos entender a mente como um tipo de sistema hierárquico emergente, é apenas uma finalidade do próprio sistema emergente e suas propriedades não atribuíveis a suas partes que podem nos dar uma explicação satisfatória. Essa explicação funcional é, sem dúvida, teleológica, mas não é incompatível com uma explicação em termos de causas eficientes, ou seja, uma explicação mecânica dos processos mentais. Ela é apenas mais molar e complementar, e permite retratar os processos mentais de uma forma que não é possível para uma abordagem ascendente ou mecânica. E com isso, é claro, temos de considerar de que forma uma finalidade do sistema como um todo pode ser determinante de forma descendente. Essa causação descendente que então nos explica o funcionamento do sistema, para ser satisfatória, deve explicar, no caso da atividade mental (cognitiva), em primeiro lugar, como os subsistemas cognitivos estão voltados para a finalidade geral do sistema mental; e, em segundo lugar, deve explicar também como tal causação descendente atinge o nível inferior, neurofisiológico, tal como sustenta Sperry, por exemplo.

Mutatis mutandis, os mesmos pontos assinalados no parágrafo anterior a respeito da mente como sistema valem para os sistemas sociais. Ou seja, é preciso também explicarmos teleologicamente como a finalidade de uma instituição determina o comportamento dos indivíduos humanos que a ela pertencem, que são as partes do sistema social em questão. Mas é preciso também explicarmos como a ação de um indivíduo humano determina teleologicamente sua atividade mental; e isso é exatamente o contrário do que sugere nossa visão comum em termos de causas eficientes. Ou seja, estamos acostumados a pensar que é a atividade mental de um indivíduo que determina sua ação, que o que um indivíduo faz é resultado de seus processos mentais. E, do mesmo modo, com relação aos eventos sociais, estamos acostumados a pensar que é a atividade dos indivíduos que determina a realidade social, e não o contrário, como sugerem Durkheim (1895, 1924) e seus seguidores contemporâneos (Sawyer, 2005).

Justamente aqui temos umas das questões espinhosas com as quais lidam as discussões atuais sobre a emergência e a causação descendente. O que vamos propor na última seção deste artigo é uma das formas pelas quais podemos dar um sentido razoável à ideia de causação descendente de modo a tomarmos descrições teleológicas de sistemas sociais e mentais, descrições molares do funcionamento desses sistemas, como tão científica e filosoficamente aceitáveis quanto as descrições mecânicas que evocam causas eficientes.

6 Causação descendente e realismo perspectivista

As discussões sobre a determinação ou causação descendente na relação mente-cérebro parecem requerer complexidades técnicas talvez menos acessíveis a uma consideração filosófica geral e breve, apesar das indicações feitas por Sperry (1983). Sua posição é delineada apenas enquanto questão de princípio, não chegando nem mesmo a ser a enunciação de um programa. De que maneira uma realidade cognitiva como um valor sustentado por um indivíduo humano pode afetar seus processos neurofisiológicos, isso parece ser ainda objeto de especulações custosas e pouco apoiadas por pesquisa empírica com resultados estabelecidos e bem interpretados, ao contrário do que se dá no caso da pesquisa científica neurofisiológica que poderia ter implicações cognitivas e morais (cf. Churchland, 2011), isto é, no sentido ascendente.

O caso das explicações funcionais sobre a relação grupo-indivíduo, no domínio das ciências sociais, por sua vez, parece mais promissor e mais acessível a uma reflexão filosófica mais geral porque, aparentemente, pode se basear em resultados de pesquisas de campo provindos dos domínios da antropologia, da sociologia e da economia, entre outras ciências comportamentais, que descrevem em termos observacionais e precisos o comportamento dos indivíduos em determinados contextos sociais, com recursos metodológicos similares àqueles sugeridos por Simon (1996 [1969]). Essas diversas ciências sociais têm podido relacionar o comportamento individual com determinados padrões sociais de comportamento e apontado os mecanismos, digamos, por meio dos quais as finalidades de determinadas instituições afetam o comportamento individual, por exemplo, quando consideramos a hierarquia social de um grupo e as formas de comunicação entre os indivíduos aí inseridos, o que pode resultar numa matriz sociométrica (sobre quem fala com quem, por exemplo, como diz Simon).

Assim, embora a instituição e suas finalidades resultem, de forma ascendente, da ação de indivíduos humanos, não é difícil discernirmos aquelas circunstâncias em que é a existência de um elemento social o que explica convincentemente determinado comportamento humano que, na ausência da instituição, não existiria. Seguir qualquer norma social é o melhor tipo de exemplo. O indivíduo que age enquanto membro de uma instituição qualquer, frequentemente, não está fazendo exatamente o que quer, mas o que é esperado dele enquanto membro de tal instituição. Mas essas realidades sociais que, certamente, determinam pelo menos parte de seu comportamento só existem quando reconhecidas por aquele que age e pelos que avaliam sua ação, isto é, elas só existem do ponto de vista de quem conhece o sistema social no qual o comportamento do indivíduo deve se encaixar.

Na literatura recente em filosofia da ciência, a posição conhecida como realismo perspectivista foi introduzida por Ronald Giere (2006). Embora o próprio Giere aplique a noção de realidade perspectivista apenas em relação a determinadas realidades abstratas, como teorias científicas e modelos, a nosso ver, sua posição pode ser estendida a todas as realidades abstratas ou culturais, aquelas que resultam das interações sociais que criam todos os elementos da cultura humana (cf. Dutra, no prelo, cap. 8). O realismo perspectivista torna ontologicamente aceitáveis não apenas as realidades sociais e mentais, em acréscimo às realidades físicas, mas também fornece o pano de fundo conceitual mediante o qual a causação descendente pode fazer sentido, e pode fazer com que as explicações funcionais que correlacionam o individual com o social e o neurofisiológico com o mental possam ser aceitas sem suspeita de reificação ou de antropomorfização.

Voltando às considerações metafísicas e ontológicas que fizemos nas primeiras seções deste artigo, podemos constatar que, quando falamos de realidades abstratas (não apenas teorias científicas e modelos, mas também crenças e valores compartilhados, obras de arte, costumes etc., enfim, tudo o que resulta da interação e colaboração entre os indivíduos humanos), poucos de nós hoje levariam a sério uma posição platônica tradicional, para a qual tais realidades abstratas residiriam em algum mundo supraempírico. Mas estamos todos razoavelmente inclinados a reconhecer que nosso comportamento é pautado por valores, a maioria dos quais é, com certeza, socialmente construída e compartilhada, e que, embora tais valores existam apenas de nossa perspectiva humana, não podemos negar sua existência, inclusive porque, justamente, tais realidades abstratas determinam nosso comportamento. Elas possuem, com certeza, poder normativo sobre o que fazemos. É isso o que reconhecemos todos como aquilo em que consiste viver dentro de uma cultura. Fazer parte de uma cultura é agir em função de tais realidades abstratas que, contudo, só existem porque as criamos, só são reais de nosso ponto de vista. Assim, embora não provoquemos nenhuma inflação metafísica ao reconhecermos as realidades abstratas, ou sociais, ou culturais, ou institucionais, pelo menos implicitamente estamos comprometidos com uma ontologia tripartite, na qual entram realidades abstratas em acréscimo às realidades mentais e físicas. Como já assinalamos, esse pluralismo ontológico se aproxima daquele defendido pela teoria dos três mundos, de Popper (cf. Popper, 1995; Dutra, no prelo, cap. 8, 10).

Ao reconhecermos então o poder normativo de uma regra ou convenção social, por exemplo, sobre o comportamento individual, estamos aceitando uma descrição funcional e teleológica da determinação descendente do social sobre o mental. Operacionalmente falando, aqui também podemos conceber testes que, empiricamente, nos ajudam a esclarecer a questão. Suponhamos que certo indivíduo alegue pertencer a determinada instituição cujas formas de conduta estejam claramente determinadas. Poderia ser, por exemplo, uma religião, ou uma atividade profissional, a filiação a determinado partido político etc. Em circunstâncias normais (isto é, a não ser que seu comportamento esteja na dependência de variáveis não conhecidas, e que podem bem ser variáveis ligadas tanto a processos físicos quanto a processos ou mentais, ou sociais) o teste consiste em expor o indivíduo a estímulos que, sabidamente, provocarão respostas (ou verbais, ou não verbais) conhecidas como padrões de comportamento tipicamente ligados à instituição em questão.

Se determinado comportamento, em determinado tipo de contexto, é uma resposta típica do indivíduo pertencente a tal instituição e tal comportamento é exibido na presença do estímulo apropriado, o resultado do teste é positivo, e podemos dizer que temos motivo para contar aquele indivíduo como membro daquela instituição. Por outro lado, o teste será negativo se, nas mesmas circunstâncias, o estímulo não provocar a resposta esperada. Quando contrastamos então as duas respostas ao mesmo estímulo (aquela do indivíduo que supostamente pertence a determinada instituição e aquela do indivíduo que não pertence a ela), o que explica a diferença de comportamento entre eles, ceteris paribus, é apenas o fato de que um pertence à instituição em questão e o outro não. O indivíduo do caso positivo do teste segue uma regra que não é seguida pelo outro. Os exemplos possíveis são inúmeros, mas pensemos em dois indivíduos em jejum prolongado, um dos quais come ao ser exposto a algum alimento e o outro não. A hipótese de que esse último pertence a determinada seita que requer dele o jejum naquele dia seria a mais adequada, sem dúvida, mais uma vez, ceteris paribus.

Nesse exemplo, guardar o jejum é uma realidade social que determina de forma descendente o comportamento e, logo, os processos mentais (cognitivos) desse indivíduo. Seria tentador aqui, passando para o outro nível, especularmos sobre a determinação do mental sobre o físico, e embora hoje muitos estejam dispostos a tomar isso a sério mesmo do ponto de vista neurofisiológico, como, por exemplo, Sperry (1983), que sustenta também esse ponto, trata-se, contudo, de algo muito mais especulativo, e por isso podemos deixar esse ponto de lado.20 20 Entretanto, a esse respeito, vale conferir as discussões de Flanagan (2011), o que mostra uma crescente tendência de considerar seriamente essa possibilidade, pelo menos em princípio. A dificuldade a esse respeito é, de fato, empírica, tal como já assinalamos no início da presente seção, mas os defensores mais entusiastas da emergência e da causação descendente, como Sperry, insistem na questão filosófica de princípio.

De qualquer modo, o poder normativo das realidades abstratas (culturais ou sociais), como dissemos, já ilustra o tipo de explicação funcional baseada na ideia de determinação descendente. No caso do exemplo acima apresentado a esse respeito, isto é, no caso do contraste entre os comportamentos de dois indivíduos em resposta ao mesmo estímulo e nas mesmas condições, sendo que um desses comportamentos, claramente, não é esperado do ponto de vista que tem em conta processos físicos ou meramente mentais, a hipótese da determinação social do comportamento é de se levar em conta seriamente. E assim, do mesmo modo, havendo condições materiais de fazer o mesmo tipo de contraste no caso de determinação mental-neurofisiológico, em princípio, valeria o mesmo ponto. Em ambos os casos, é uma finalidade de nível superior (ou social, ou mental) o que permite a explicação funcional que faz a correlação entre os níveis (ou social-individual, ou mental-cerebral).

Por fim, sendo emergentes e restritas ao universo humano, tanto as realidades mentais como as realidades sociais em questão só são reais de forma perspectivista. Esse realismo perspectivista, por sua vez, aparentemente, se acomoda mais facilmente à forma como encaramos as realidades sociais ou abstratas (isto é, culturais) do que àquela como encaramos as realidades mentais ou psíquicas. Pois diríamos que, claramente, as realidades abstratas da cultura foram criadas por nós deliberadamente, enquanto que as realidades mentais, por exemplo, nossos estados cognitivos, seriam o resultado espontâneo do funcionamento do cérebro. Aqui, de fato, esbarramos em preconceitos filosóficos que concebem a cultura em descontinuidade com a natureza. Na verdade, devemos nos dar conta de que pouco da cultura humana é criada por nós deliberadamente, seja individual, seja coletivamente. Na grande maioria dos casos, nós nos damos conta de realidades institucionais que já existem e que determinam nosso comportamento largamente. E nossas supostas criações deliberadas na cultura não passam de pequenas reformas na cultura na qual já estamos inescapavelmente inseridos ab ovo. Além disso, as realidades mentais de que estamos tratando são aquelas relativas à consciência. Assim, as noções relativas a elas só podem fazer sentido de maneira perspectivista também.

Por isso, o realismo perspectivista não é uma decisão filosófica, mas uma descoberta. Associado a uma visão naturalizada da mente e da cultura ao mesmo tempo, e tratando natureza e sociedade sem rupturas, como uma realidade de sistemas emergentes que possibilitam o surgimento de outros sistemas emergentes, o realismo perspectivista é uma constatação ontológica. Ele consiste em tomarmos consciência de nossos compromissos ontológicos com realidades não físicas que não negam o monismo metafísico que desejamos manter.

Considerações finais

Para ser convincente, a noção de emergência dos processos mentais precisa ser mais específica, assim como no caso dos processos sociais, caso no qual, como vimos na seção precedente, podemos apontar os valores como aqueles elementos compartilhados por um grupo humano que determinam o comportamento individual. No caso da determinação da mente sobre o cérebro, diversos autores – como Sperry (1983) e, antes dele, Alexander (1927) – tomam a consciência como o elemento, ou mais precisamente como aquela parte dos processos mentais que pode exercer algum tipo de controle sobre os processos neurofisiológicos.

Obviamente, não pode haver consciência e, em decorrência dela, ação deliberada de um indivíduo humano, sem haver as realidades neurofisiológicas complexas em nossos cérebros que, reunidas, aparentemente, constituem a gama de fenômenos mais sofisticados que a natureza já produziu. Com a emergência da consciência, do ponto de vista naturalista que encara todos os eventos no mundo em continuidade e como resultado de processos evolutivos, para os emergentistas, é a própria natureza que se torna mais complexa e variada, adquirindo formas irredutíveis a seus estágios evolutivos anteriores (cf. Morgan, 1927 [1923]).

Contudo, esse processo não para nas realidades mentais da consciência; ele continua e dá lugar aos processos sociais, à cultura humana que, por sua vez, se torna todo um domínio de realidades inusitadas. Mas, para reconhecer essas realidades sociais, é preciso já fazer parte do grupo humano e, para isso, é preciso estar dotado do aparato neurofisiológico característico da espécie. É assim que, do ponto de visto ontológico, a própria espécie se torna uma realidade irredutível aos indivíduos que a compõem, uma realidade abstrata cujo reconhecimento também depende da perspectiva humana. A própria noção de espécie é resultado de processos sociais (cognitivos e linguísticos) que criam modelos de coisas para além das coisas (cf. Dutra, 2011; no prelo, cap. 8, 10). O mesmo vale, obviamente, para as realidades sociais em geral. É apenas da perspectiva humana que todos esses sistemas emergentes – mentais e sociais – podem ser reconhecidos.

A ideia de emergência que surge então, do ponto de vista do realismo perspectivista, por sua vez, só se mostra convincente porque, apesar de estarmos lidando com realidades reais apenas da perspectiva humana, ao falarmos do mental e do social, estamos falando de realidades não elimináveis e não redutíveis. Ronald Giere (2006) – que, como dissemos, introduziu a noção de realismo perspectivista na filosofia da ciência atual – utiliza o sugestivo exemplo da realidade das cores para argumentar em favor de sua posição. Ora, as cores que vemos (supondo a comunidade humana de tricromatas, a maioria de nós) resultam da combinação de três ordens de processos, a saber: a luz que incide sobre os corpos, a constituição de suas superfícies, e nosso aparato ocular e neurofisiológico. E por isso as cores que vemos nos corpos não são nem propriedades suas, nem da luz, nem de nosso aparato biológico. Elas são também realidades emergentes e não redutíveis aos processos físicos e neurofisiológicos que as produzem.

Morgan (1927, Lecture 8), por sua vez, discute também – e longamente – a realidade das cores. Embora ele não contasse na época com os recursos científicos da atual ciência das cores na qual Giere (2006, cap. 2) se baseia para defender a realidade perspectivista das cores, Morgan chega mesmo a apresentar, em nota, ao final da mencionada conferência, um modelo para explicar como vemos as cores do espectro luminoso. Sua posição emergentista é basicamente a mesma, o que se pode inferir de passagens como a seguinte:

Mais ainda, [a mente] é, em certo sentido, criadora de nosso mundo objetivo com sua cor, aroma, sua música e beleza (...). Eis um corolário da conclusão de que as características secundárias são propriedades extrinsecamente reais em relação a nossas pessoas – não apenas nossas mentes, mas também nossa organização corporal, como receptora de influência adventícia e como a sede de processos intervenientes e que, assim, contribuem para com a referência projiciente [projicient] (Morgan, 1927, p. 233).

Essa passagem surge ao final de uma discussão na qual o autor rejeita tanto a posição dos que ele denomina idealistas (para os quais as cores e outras propriedades secundárias das coisas pertenceriam à mente) quanto a posição dos que ele denomina realistas (para os quais as cores pertencem às próprias coisas). Por sua vez, ele afirma que as cores pertencem "à situação toda" (Morgan, 1927, p. 229), que é explicada então, resumidamente, na passagem acima citada.

Para Morgan e Giere, igualmente, as cores são, portanto, como as realidades mentais e sociais; elas são reais da perspectiva humana apenas. Todavia, são reais, isto é, são não elimináveis e nem redutíveis, ontologicamente falando. E, contudo, elas não são propriedades de qualquer outro estofo diferente daquele do qual tratam as ciências físicas em geral. E ainda que assim seja, as ciências físicas não estão em posição de lidar com elas, em virtude de sua realidade emergente. Mas as ciências humanas sim.

Agradecimentos. O autor agradece ao CNPq pelo apoio financeiro com uma bolsa de produtividade em pesquisa (nível 1B) durante a pesquisa para a elaboração deste artigo e a Charbel N. El-Hani pela estimulante correspondência sobre os temas deste artigo nos últimos meses.

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  • 1
    O termo
    emergent aparece pela primeira vez em G. H. Lewes (1875, p. 368 ss.), na discussão que esse autor faz sobre a concepção de causação de Hume, discussão na qual ele apresenta sua distinção entre
    emergentes e
    resultantes. Lewes é um dos clássicos sobre a emergência do mental em relação ao neurofisiológico (cf
    . Stephan, 1992).
  • 2
    De qualquer forma, o texto de McLaughlin é boa fonte de informação, assim como os demais textos da coletânea na qual ele está, organizada por M. Bedau e P. Humphreys (2008), e como aquela organizada por Beckermann
    et al. (1992), na qual está também o texto de McLaughlin, além daquele de Stephan, que é mais útil porque, além de reconstituir historicamente o emergentismo, identifica os principais problemas e os descreve de modo mais justo para com os emergentistas.
  • 3
    Cf
    . Kant (1998 [1781/1787], B873-B875). Cf. também, por exemplo, o próprio Collingwood (1940, Parte 3, cap. 22-8). Atendo-nos à literatura mais recente, cf. Heidemann (2010) e as referências feitas nos textos reunidos nesse volume. Como sabemos, a posição de Kant concilia um
    realismo metafísico, no sentido de que aceita a existência de corpos e de coisas-em-si, como ele argumenta na
    Crítica da razão pura, na refutação do idealismo (1998, B274 ss.), com o idealismo transcendental. Assim, a posição a ser delineada neste artigo se pretende fiel à postura kantiana nesse aspecto, embora, obviamente, não em muitos outros. Queremos nos referir especificamente às categorias do entendimento como os conceitos com os quais o real é pensado, o que restringe a discussão a um domínio puramente
    conceitual e aplicável a questões científicas, como pensava Kant. Entretanto, tal como diversos comentadores e estudiosos de seu pensamento notam, o final da
    Crítica da razão pura (cf. B880 ss.) faz retornar a metafísica num sentido mais forte, o que é também um tema para os estudiosos de Kant.
  • 4
    As traduções dos textos de Quine, assim como de outros autores citados adiante, são nossas e foram feitas diretamente a partir dos originais, razão pela qual as possíveis traduções publicadas em português não são citadas aqui.
  • 5
    A comparação com a sombra de um objeto para indicar o que é um epifenômeno é comum na literatura e já aparece, por exemplo, em Durkheim (1924, p. 12), no texto "Représentations individuelles et représentations collectives" (cuja publicação original é de 1898), quando o autor procura refutar justamente os defensores do epifenomenalismo em relação tanto aos fenômenos mentais quanto aos fenômenos sociais. Voltaremos a esse tema adiante.
  • 6
    A cosmologia física atual é imensamente mais complicada e rica, e não se limita a falar da matéria, no sentido tradicional, introduzindo noções muito distantes dessas que estão no senso comum. Para uma visão atualizada da natureza segundo a física atual, pode-se consultar, por exemplo, Greene (2003, 2004); cf. também Randall (2006, 2011). Os detalhes da cosmologia física atual não alteram, contudo, o essencial de nossa argumentação, e podemos continuar a empregar os termos mais tradicionais, "matéria" e "material".
  • 7
    Estamos presumindo, obviamente, e para simplificar a discussão, que o tipo de mente em que estamos interessados seja apenas a mente humana, o que não é o caso de um ponto de vista naturalista mais geral. Por exemplo, cf. Allen e Bekoff (1999) para uma discussão abrangente e cientificamente fundamentada dos tipos de mentes e da cognição em outras espécies animais. Nossa simplificação aqui se justifica apenas porque estamos interessados em discutir a relação entre o social e o mental, do ponto de vista humano, o que se relaciona com o realismo perspectivista que será comentado adiante.
  • 8
    Para os que conhecem a obra de Popper, salta aos olhos a semelhança entre o que estamos dizendo e o que ele defende em
    Objective knowledge (Popper, 1995 [1972]), sua teoria dos três mundos, tal como já comentamos no capítulo 8 de nosso
    Pragmática de modelos (Dutra, no prelo). Popper não faz, contudo, a distinção que propomos entre "metafísico" e "ontológico", limitando-se a afirmar a existência dos objetos e processos dos mundos físico, psíquico e abstrato (no qual se encontram as instituições e outros objetos culturais ou sociais). Sobre o emergentismo de Popper, cf. Popper & Eccles (1984 [1977]), e também Stephan (1992).
  • 9
    Acreditamos que o critério aqui apresentado vai ao encontro das ideias de C. Lloyd Morgan, em especial, passagens como a seguinte: "As novas relações emergentes em cada nível mais alto guiam e sustentam o curso dos eventos distintivos desse nível, o que, na formulação que sugerimos, depende de sua presença contínua. Em sua ausência, ocorre a desintegração" (Morgan, 1927,
    Lecture 1, p. 17). Esse autor, contudo, não discute especificamente as realidades sociais, como fazemos aqui, mas apenas aquelas entidades, diz ele, materiais, vivas e mentais, sendo que o mesmo vale para Alexander (1927), já citado e comentado também por Morgan em seu mencionado livro. Contudo, Morgan (1927,
    Lecture 3) dá exemplos de sistemas sociais, como uma família. Nesse caso, o que ele diz sobre a constituição de sistemas vai ao encontro das ideias de Herbert Simon, que analisaremos adiante.
  • 10
    Cf. Collingwood (2005, p. 253 ss.) onde está publicada a correspondência entre os dois autores. No texto "O senhor Collingwood e o argumento ontológico", Ryle (2009, p. 105 ss.) criticou as ideias de Collingwood expostas no
    Um ensaio sobre o método filosófico. Em particular, Ryle criticou a conclusão geral que Collingwood tira de sua análise do argumento de Santo Anselmo. Vale notar, por outro lado, mas sem entrar nesse ponto aqui, que Alexander defende a existência da Divindade com base em seu emergentismo (cf. Alexander, 1927, Livro 4, vol. 2). Além disso, o Livro 2, vol. 1, dessa mesma obra é dedicado a uma extensa e minuciosa discussão das categorias a partir da concepção esboçada por Kant.
  • 11
    Vamos utilizar o termo "realidades" (sobretudo no plural), como já fizemos acima por vezes, para podermos evitar a distinção que pode (e que, em certa medida e para determinados fins, deve) ser feita entre
    eventos e
    entidades, ou entre
    fenômenos e
    coisas (cf. Dutra, 2005). Uma forma alternativa que permite evitar essa distinção, mas que não perde em rigor conceitual, como faremos abaixo, consiste em falarmos de sistemas como
    realidades emergentes de determinado nível, realidades que pressupõem certos processos de um nível (ontológica, mas não metafisicamente, falando) inferior, nível esse ao qual, contudo, elas são ontologicamente irredutíveis. Alexander (1927) utiliza os termos "realidades" ("
    realities") e "existentes" ("
    existents") de modo semelhante ao que fazemos aqui.
  • 12
    Por exemplo, cf. Sawyer (2005) para uma discussão ampla da emergência nas ciências sociais em comparação com a psicologia e a defesa de uma posição durkheimiana, sustentando a emergência e a causação descendente.
  • 13
    Podemos comparar a posição emergentista defendida por Sperry (1969, 1983) com a posição fisicalista e redutivista de Patricia Churchland (2011), por exemplo. Sperry cita Morgan (1927), mas não Alexander que é citado por outros autores atuais.
  • 14
    A esse respeito, podem ser consultadas obras como Andersen
    et al. (2000). Consultar também o volume 6 (1) da revista
    Principia, organizado por Charbel N. El-Hani (2002), que contém diversos textos dedicados à realidade dos sistemas emergentes e à causação descendente.
  • 15
    Apesar de analisar com certo detalhe a posição de Sperry, Stephan (1992, p. 43) a considera decepcionante por não apontar os mecanismos responsáveis pela causação descendente, o que é uma reclamação justa, tal como já mencionamos e como comentaremos adiante.
  • 16
    Embora citemos aqui os textos de Simon em virtude da forma clara e mais técnica na qual ele formula as noções ligadas à complexidade dos sistemas, é interessante notar como Alexander (1927 [1920], Livro 3, v. 2, cap. 2) antecipa algumas dessas ideias ontológicas, digamos, embora expressas de forma não muito técnica e em uma linguagem mais filosófica, como no trecho usado como epígrafe deste artigo. C. Lloyd Morgan, por sua vez, se expressa de forma um pouco mais técnica, embora ainda marcadamente ontológica (cf. Morgan, 1927 [1923],
    Lecture 3), e, para caracterizar um sistema qualquer, introduz a noção de
    relacionalidade (
    relatedness), que pode ser
    intrínseca (o que é o mesmo, diz Morgan, que apontar uma
    entidade) ou
    extrínseca (o que determina o caráter de uma entidade em função de suas relações com outras entidades). Os termos em uma relação, segundo Morgan, são sempre relativos e dependem da relacionalidade da própria relação. Isso faz com que sua discussão sobre os sistemas (complexos) antecipe a própria maneira como Simon trata do tema (cf. Morgan, 1927 [1923], p. 70–3 e 76).
  • 17
    A posição de Brian McLaughlin (2008) a esse respeito é diametralmente oposta. Segundo ele, a mecânica quântica explicou conveniente e redutivamente esses fenômenos e, com isso, contribuiu para o fim do emergentismo na década de 1930. Esse autor não tem em conta, contudo, o aspecto ontológico – na forma de expressar de Morgan (1927),
    interpretativo – das considerações em relação à emergência e sua perspectiva molar. Ele também desconsidera as dificuldades de interpretação da própria mecânica quântica e sua (hoje considerada) possibilidade de redução a teorias mais fundamentais, como a das cordas (cf. Randall, 2006). E como isso, por outro lado, tal como certamente McLaughlin poderia argumentar, não tornaria a mecânica quântica obsoleta, sua posição, no fundo, é de certo
    chauvinismo fisicista, digamos assim.
  • 18
    Mas para uma discussão mais abrangente, cf. o livro de Peter McLaughlin (2003), obra que vai ao encontro das preocupações teóricas aqui mencionadas. Cf. também Nunes-Neto & El-Hani (2009, 2011).
  • 19
    Por exemplo, cf. o já clássico
    Neurophilosophy, de Patricia Churchland (1989), assim como o também já clássico
    Descartes' error, de Antonio Damasio (2005 [1994]), entre tantas obras disponíveis hoje nesse domínio de discussão, entre elas, também Freeman (2000).
  • 20
    Entretanto, a esse respeito, vale conferir as discussões de Flanagan (2011), o que mostra uma crescente tendência de considerar seriamente essa possibilidade, pelo menos em princípio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      2013
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