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Inters_tícios – inter_tiscos* * Este trabalho foi apresentado no Seminário Internacional ARTE_PESQUISA: Inter-Relações, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UNESP, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da USP e pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UNICAMP, e realizado entre os dias 9 e 11 de outubro de 2012 no Instituto de Artes da UNESP, São Paulo. A conferência foi realizada no dia 10 de outubro de 2012.

Resumos

Os espaços possíveis para pesquisa em/sobre arte são, na maior parte das vezes, os espaços inter, não são os que se localizam pacificamente em algum ponto ou em alguma posição. O que se configura nessa condição é que, sendo os territórios da arte contextos movediços, é preciso considerar se os intervalos/ pequenos espaços entre esses territórios também o são. Se considerarmos que sim, como determinar o foco da pesquisa? Sendo os intervalos/pequenos espaços plenos de potencialidades, é necessário que as fontes de fruição, contextualização e experimento artístico sejam uma escolha em rede, que perpassam nós, rotas e vãos, sem caminhos exatos nem territórios precisos. Inter_relacionar arte, pesquisa e ensino em consonância com os movimentos e a intencionalidade de ação é uma tarefa complexa, que exige conhecimentos e entendimentos específicos, bem como pensar criativa e metaforicamente conceitos em rede que possuem nós, caminhos e vãos possíveis de convergências e potencialidades de expansão. A plêiade de possibilidades artísticas à disposição e as diferentes concepções do que seja arte - embora hoje o que se questione seja quando é arte – faz do artista contemporâneo um vagueador constante. Não só porque deve estar atento e tentar acompanhar tudo o que se passa no campo artístico, mas também porque é obrigado a mover-se constantemente em direção ao que el@ própri@ busca como expressão artística.

pesquisa em arte; inter-relações; espaços inter


The possible areas for research on/about art are, most of the time, the inter spaces, and not those located peacefully at some point or at some position. What is set by this condition is that, once the art territories are shaky contexts, one must consider whether the intervals/small gaps between these territories are shaky too. If we consider that this is true, how to determine the focus of research? As the intervals/small gaps are full of potential, it is necessary for the sources of fruition, contextualization and artistic experiment to be a choice in networking that pervade knots, routes and gaps, without preset paths nor precise territories. To inter_relate art, research and education, in line with the movements and the intentionality of action, is a complex task that requires specific knowledge and understanding, as well as thinking creative and metaphorically the networking concepts that have nodes, spans and possible paths of convergence and potential for expansion. The available pleiad of artistic possibilities and the different conceptions of what constitutes art – although nowadays the question is when something is art – make the contemporary artist a constant walker. Not only because the artist must be aware and try to follow everything that is happening in the artistic field, but also because he is forced to move constantly toward what he seeks as his own artistic expression.

research on art; interrelations; inter spaces



Gilbertto Prado, Série Amazonas, 2011.

Interstício, do latim interstitìum, II, ‘intervalo’, tem várias definições.

1 - pequeno espaço entre as partes de um todo ou entre duas coisas contíguas;

2 - fenda, greta;

3 - intervalo de tempo que a lei canônica estabelece como obrigatório entre a colação de uma ordem e a da ordem que lhe é imediatamente superior;

4 - intervalo de tempo antes do qual não se pode promover determinado ato.

Tisco: pedacinho de qualquer coisa; tico, tisca1 1 . Cf: Dicionário Eletrônico Houaiss, 2009. .

Tiscos não são cacos, são resíduos da matéria de onde se extrai, que guardam dessa matéria um indício de propriedade, de corporeidade possível.

O trabalho inter é sempre instigador e aventureiro. Mais que trabalhar a integração, nos sentimos impelidos a fazer pontes de passagem. Fazer pontes é sempre um desafio. Se há necessidade de ponte é porque se reconhece a existência de um vazio que não pode ser preenchido arbitrariamente. Uma ponte tem que ser pensada, planejada e executada de forma a não haver danos para quem vai fazê-la e por quem vai por ela passar.

Ser ponte é ser detentora de uma história e deixar-se atravessar por culturas diversas, com vários olhares, diversas vozes e diversos passos. Reconhecer a diversidade de olhares, vozes e passos – e dar passagem a todos, propiciando encontros – é tarefa também da Arte.

No entanto, mergulhar nos vãos que podem ou não ser vislumbrados da ponte é tarefa ainda mais profunda, que requer investimento maior, desapego imenso, dúvida constante. Por ser de arte que tratamos, uma área de conhecimento complexa, pois trabalha com cognição e emoção em todas as suas atividades, esse mergulho reveste-se de maior intensidade.

A dinâmica da produção artística refere-se a reflexos e incitações do pensamento humano, que se transmutam em formas, sons, cores, movimentos, gestos etc. A obra artística, considerada como resultado material ou virtual do pensamento artístico, ensina o olhar pensante, o sentimento agudo. A arte contemporânea caracteriza-se por incongruências e paridades, contradições e condescendências, apaziguamento e conflito. Tal qual as sociedades contemporâneas, a arte é atravessada por divisões a antagonismos. As questões de tempo e de espaço são coordenadas básicas, tanto da identidade das pessoas quanto da construção artística. Se, por um lado, o indivíduo personalizado como único foi considerado, durante o modernismo, a personalidade dominante, sobretudo quando em relação aos desejos, por outro lado, hoje a vida de cada indivíduo acontece numa rede de equipamentos, modos cognitivos humanos, instituições de ensino, sistemas informatizados, livros, jogos etc. A atividade cognitiva não é privilégio de um sujeito, uma vez que só é possível pensar, contemporaneamente, dentro de um coletivo.

Entende-se aqui como coletivo não necessariamente o comunitário, mas o intercomunicativo, em que vários são os sujeitos interferentes, quer sejam eles identificáveis ou não. As multiplicidades levam forçosamente a que sejam feitos agenciamentos entre os sujeitos interferentes, tanto no universo macro do indivíduo e do social quanto no micro, uma vez que todas as percepções sofrem imposições do contexto circundante, interior e exterior.

A construção constante do sujeito individual e coletivo, que faz parte do outro e é composto pelo outro, tem de ser feita na busca incessante de atualização de dados do problema apresentado e em sua ordenação em uma estratégia eficiente.

Um sujeito é uma existência presentificada que possui uma visibilidade e uma invisibilidade. O conjunto de práticas que ele realiza – quer sejam elas discursivas ou afetivas ou de qualquer outra ordem –, e às quais ele dá vida, pertence à visibilidade. A trama formada pelos vetores de forças vivas do mundo e pelos traços do passado que deixaram marcas específicas e são por ele revitalizados é a invisibilidade.

A interligação da cartografia cultural elaborada nas práticas sociais com a subjetividade é recíproca, uma vez que, se a cartografia cultural serve de guia à subjetividade, o perfil do modo de subjetivação determina a configuração da cultura. Arte deixa de ser a sublime inspiração de pouc@s eleit@s para se tornar a possível realização de nov@s agenciador@s de subjetividades mais harmônicas em sua processualidade, mais interagentes em suas construções individuais e coletivas, menos disponíveis ao controle ditatorial do sistema identitário rígido. Arte passa a ser vida em cada um@ e em tod@s, respeitando mas reformulando o patamar historicamente identitário da sociedade e das diversas instituições. Arte passa a ser a resposta à interrogação do presente, suas possibilidades e contradições. Começa-se a aceitar a diferença como parte, e não como periferia.

Pode-se dizer que, nos dias de hoje, a relação entre arte e vida tem sido celebrada de maneira mais intensa, por vários fatores. Mesmo quando a vida é outra e quando a vida é de outro. A globalização instigada, em grande parte, pelas tecnologias contemporâneas, nos leva à possibilidade de pretender outra vida e de participar da vida de outros, mesmo que não façamos parte de seu círculo próximo familiar ou de amizades. Assim, nossa identidade é perpassada por outras identidades. Fazemos nossos vários hábitos alienígenas à nossa cultura.

Mesmo que se considere que a globalização desarticula identidades, pode-se pensar também que essa mesma globalização abre novas possibilidades de articulações para a criação de novas identidades. Essas novas identidades, por sua vez, sobrepõem-se ou compõem-se com as já presentes, reconfigurando espaços e territórios.

O espaço da arte apresenta-se indiferenciado e transforma-se em lugar à medida que o dotamos de valor. O próprio objeto artístico pode ser eleito um lugar. Segundo Tuan2 2 . TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983, p.26. , lugares são espaços aos quais atribuímos valor, ou seja, “o que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”.

O lugar pode ser “qualquer objeto estável que capta nossa atenção”. Assim, o objeto artístico pode ser um lugar. Caso elejamos esse espaço como um lugar, nos deteremos diante dele e nos apossaremos de suas referências, dotando-o de valor. Fazemos de seu espaço nosso lugar. O lugar, portanto, não é permanente nem universal. Um mesmo objeto artístico pode ser eleito como lugar em determinada cultura e não ser em outra. Nesse sentido, a cultura afeta a percepção.

Mas existem objetos que “persistem como lugares através da eternidade do tempo, sobrevivendo ao apoio de determinadas culturas”3 3 . Idem, Ibidem. .

Os territórios da arte são contextos espaciais movediços, que se mostram e se escondem, nos atravessam e nos instigam, nos incomodam e nos apaziguam. Viver nesses territórios implica em não ter certezas estanques, mas, sim, inquietações constantes. No entanto, são justamente essas inquietações que nos fazem viver mais entre esses territórios do que firmemente em algum deles, notadamente quando nos dedicamos à pesquisa.

Os espaços possíveis para pesquisa em/sobre arte são, na maior parte das vezes, os espaços inter, não são os que se localizam pacificamente em algum ponto ou em alguma posição.

O que se configura nessa condição é que, sendo os territórios da arte contextos movediços, é preciso considerar se os intervalos/pequenos espaços entre esses territórios também o são. Se considerarmos que sim, como determinar o foco da pesquisa? Sendo os intervalos/pequenos espaços plenos de potencialidades, é necessário que as fontes de fruição, contextualização e experimento artístico sejam uma escolha em rede, que perpassam nós, rotas e vãos, sem caminhos exatos nem territórios precisos. Inter_relacionar arte, pesquisa e ensino em consonância com os movimentos e a intencionalidade de ação é uma tarefa complexa, que exige conhecimentos e entendimentos específicos, bem como pensar criativa e metaforicamente conceitos em rede que possuem nós, caminhos e vãos possíveis de convergências e potencialidades de expansão.

Assim, fica o desafio de para onde ir, por onde ir, por que ir. E isso implica diretamente na pesquisa em/sobre arte. Se estamos entre territórios, se esses territórios são contextos movediços, se não temos problemas a priori, mas construímos problemas para construirmos soluções, para depois sermos contestad@s, como saber de onde virão as questões que nos inquietam e movem?

O que nos move em nossas escolhas? Por que fazemos arte? Por que pesquisamos arte? Por que ensinamos/aprendemos arte? Como ensinar/aprender arte nesse contexto tão movediço? Como pontuar a identidade de uma cultura? É possível falar em identidade cultural quando nos referimos à arte? Quem determina o lugar da arte?

Onde o lugar da arte?

O desenvolvimento dos conhecimentos e os saltos significativos do saber estão ligados às rupturas metodológicas: o abandono e a mudança na utilização dos instrumentos, as novas definições de critérios para a identificação dos fenômenos, das técnicas inusitadas de análise dos dados etc., toda opção metodológica envolve necessariamente valores epistemológicos: visões de mundo e formas de conhecer conhecimento.

O que pode ser proposto, então, são referências para o balizamento de nossas escolhas, a partir do momento em que os conhecimentos acadêmicos nos proporcionam uma trajetória com vias amplamente abertas para que possamos percorrer, de acordo com o que desejamos alcançar com o ensino/aprendizagem/pesquisa de arte. Em arte, há necessidade de ampliarmos o âmbito e a qualidade da experiência estética. Isso significa que existe uma interlocução entre as propostas de construção elaboradas pel@ pesquisador@/orientador@ e o respeito ao conhecimento trazido pel@ orientand@.

A vivência de experiências estéticas significativas depende de intencionalidade responsável, tanto na legitimação dos propósitos quanto na clareza do que se pretende avaliar ao final do tempo de trabalho.

É importante destacar o papel da pesquisa e do ensino de arte na informação de suas premissas e valores, mas, tão importante quanto, é destacar esse ensino na construção da personalidade e valores do próprio sujeito aprendente. É preciso pensar e agir em estratégias que contemplem a complexidade da pesquisa tanto em relação a quem aprende enquanto ensina, quanto em relação a quem constrói conhecimentos e vida cultural e pessoal nessa relação. É preciso que as formas sejam múltiplas e criativas.

Considerando a pesquisa em arte um campo integrado e político, é necessário estarmos atentos aos saberes culturais diversos, como esses saberes se integram às diversas formas de expressão e como eles são ensinados e aprendidos nos diversos espaços, quer sejam eles acadêmicos ou não acadêmicos. A construção da identidade pessoal está diretamente ligada à construção da identidade cultural, não sendo apenas parte dela, mas influenciando e sendo influenciada por ela.

A formalização da pesquisa em arte evidencia uma situação, esclarece os processos de pensamento artístico, denuncia o limite e aponta as possibilidades de sua expansão. Formalizar uma pesquisa significativa em arte é também um ato de criação.

Há que se considerar que a provocação da experiência estética tem que incluir não só artes curatorialmente reconhecidas (de suma importância), como também são igualmente relevantes o artesanato, a arte popular, a arte de mídia eletrônica e outras. Arte não é somente o que está nas galerias ou museus consagrados. A arte pública – ou arte do público, como diz Ana Mae Barbosa – invade os espaços urbanos (e, muitas vezes, também os rurais), convidando as pessoas a participarem de sua fruição.

Fica a responsabilidade na formação de pessoas que sejam aptas a colaborar na tarefa de transformar o conjunto de conhecimentos e experiências em algo apreendido e aprendido como valor.

Professor@s/Artistas/Pesquisador@s que sejam capazes de criar, produzir, pesquisar, teorizar, educar, provocar, refletir, construir trajetórias e aceitar desvios. Que se movam nos interstícios considerando os tiscos, ambos como plenos de potencialidades. Nossa responsabilidade frente às nossas escolhas não se restringe a um processo localizado apenas no contato acadêmico. Ela refletirá nossas próprias concepções enquanto indivíduos culturais e, portanto, políticos.

Bibliografia complementar

  • BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991.
  • CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • DAVIES, T.; PIMENTEL, L.G.; WORRALL, P. Electric Studio. Londres: Anglia Multimedia, 1999. Livro e CDROM.
  • EFLAND, Arthur D. Art and cognition: interating the visual arts in the curriculum. New York: Teachers College and National Art Education Association, 2002.
  • EFLAND, Arthur D. Cultura, sociedade, arte e educação num mundo pós-moderno. In: GUATTARI, Félix. Guattari, o paradigma estético. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, v.1, n.1, p.29-34, 1993.
  • GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana Mae. (Orgs.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005a. p.173-188.
  • EFLAND, Arthur D. Imaginação na cognição: o propósito da arte. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.). Arte/Educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2005b. p.318-345.
  • GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Relógio d’Água, s/d.
  • LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. 2ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1986.
  • MORIN, Edgar. O Método: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005.
  • PIMENTEL, Lucia Gouvêa. Limites em expansão. Licenciatura em Artes Visuais. Belo Horizonte. C/ARTE, 1999.
  • PIMENTEL, Lucia Gouvêa. Saber arte para saber enseñar arte: la formación de los maestros de educación artística. Pensamiento, Palabra y Obra, n.2, 2009. Disponível em: http://www.pedagogica.edu.co/revistas/ojs/index.php/revistafba/issue/view/17/showToc
    » http://www.pedagogica.edu.co/revistas/ojs/index.php/revistafba/issue/view/17/showToc
  • SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. São Paulo: Nobel, 1991.
  • VIRILO, Paul. Espaço crítico. Trad. Paulo R. Pires. Rio de Janeiro: ED 34, 1995.
  • 1
    . Cf: Dicionário Eletrônico Houaiss, 2009.
  • 2
    . TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983, p.26.
  • 3
    . Idem, Ibidem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2012

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2012
  • Aceito
    29 Out 2012
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