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Pensar a desconstrução do cinema a partir de 68

Reflecting upon the Deconstruction in Movies Around 68

Pensar la desconstrucción en el cine desde 68

RESUMO

Motivado pela ampla politização que insurge com fôlego nos últimos anos da década de 1960, o cinema ensaia uma virada institucional, proclamando uma nova vanguarda. Na França se falará em desconstruí-lo, adequando-o a um debate sintonizado ao estruturalismo. Este artigo pretende explorar o cinema produzido a partir de 68 em suas conversas prático-teóricas com a desconstrução estruturalista e algumas variações, tomando o trabalho de Jean-Luc Godard como referência. A proposta visa a expandir a análise e pretende apontar uma diversificação conceitual no Brasil no chamado cinema marginal.

PALAVRAS-CHAVE:
Cinema de vanguarda; Desconstrução; Estruturalismo

ABSTRACT

Driven by the widespread politicization that took over the late 60’s, cinema rehearses an institutional turn, proclaiming a new avant-garde. In France, this turn revolves around the deconstruction of the media, adapted to a debate in tune with structuralism ideas. This article intends to explore the cinema produced around 68 in its practical-theoretical conversations with structuralist deconstruction and some of its variations, focusing on Jean-Luc Godard’s work as a reference. The proposal aims to expand the analysis by pointing to a conceptual diversification on Brazilian so-called marginal cinema.

KEYWORDS:
Avant-garde Cinema; Deconstruction; Structuralism

RESUMEN

Motivado por la amplia politización que insurge con folego en los últimos años de la década de 1960, el cine intenta un giro institucional proclamando una nueva vanguardia. En Francia se hablará en desconstruirlo, adecuándolo a un debate en sintonía con el estructuralismo. Este artículo pretende explorar el cine producido a partir de 68 en sus conversaciones teórico-prácticas con la deconstrucción estructuralista y sus variantes, tomando como referencia el trabajo de Jean-Luc Godard. La propuesta tiene como objetivo la expansión del análisis intentando señalar una diversificación conceptual en Brasil en el llamado cine marginal.

PALABRAS CLAVE:
Cine de vanguardia; Deconstrucción; Estructuralismo

Ce que je voulais, c’est passer à l’interieur de l’image, puisque la plupart des films sont faits à l’extérieur de l’image1Jean-Luc Godard, 1967 Nous voudrions même qu’il y ait une rupture avec le concept de rupture!2 Jean-Pierre Gorin, 1972 Arte de viver fora de si: a vida não basta, madame Julio Bressane, 1977 A gente buscava o impossível, o libertário Rogério Sganzerla, 2000

INTRODUÇÃO

Se hoje é possível falar sobre a desconstrução do cinema a partir de 68 privilegiando uma prospecção historicista, que abarque desenvolvimentos e aproximações, é necessário principiar o trajeto no contexto francês. Os alicerces dessa aventura conceitual estão ancorados na atmosfera intelectual que movimenta os pensadores mais expressivos do estruturalismo de forma a fazê-los de certa maneira antecipadores da instabilidade que irrompe no Maio de 68. É na França - no cruzamento entre seus notórios contestadores que margeiam o saber institucionalizado e a Nouvelle vague - que irá se delinear uma filmografia muito particular. Entre as “invenções de um cinema político”3 e a tentativa de consolidar a produção cinematográfica em uma via cientificista, toma forma um campo próspero para formular reflexões basilares sobre a desconstrução no cinema e diversificações alhures.

Os anos que antecedem 1968 compreendem o ápice do estruturalismo, investida ambiciosa de fazer as ciências sociais terem, no âmbito das cientificidades, a mesma prevalência das exatas. Para atingir tal objetivo, aposta-se, entre outras propostas, na incursão pela linguística, de forma a ampliar o alcance de estudos em disciplinas como a antropologia (Lévi-Strauss), a psicanálise (Lacan), a história (Foucault) ou a filosofia (Althusser). Visa-se a uma ruptura com o existencialismo, substituindo o protagonismo do sujeito e sua consciência pela ênfase nos códigos e na estrutura4 a partir de um homem agora descentrado. No que concerne às tendências estruturalistas, nota-se que o cinema se aproxima dos pensadores do estruturalismo historicizado ou epistêmico (Althusser, Derrida, Foucault, Bourdieu), sobretudo em sua função de renovação marxista.5

É já próximo a 68 e a esse bloco que irão aparecer ou se intensificar tentativas de reacender a polêmica em torno do estruturalismo. É o caso da desconstrução, formulada por Derrida, e a incursão pelo marxismo, chancelada por Althusser e de grande ressonância entre os grupos maoístas do período. São em especial esses nomes, ou ações derivadas do trabalho efetuado por eles, que irão incidir com força sobre a tentativa militante de ressuscitar o cinema em uma chave vanguardista, afinada ao que se convencionou chamar de pós-estruturalismo.6

Restringir o escopo da desconstrução do cinema a essa via seria uma forma de inscrever o tema e a pesquisa em um corpus delimitado. Tal escolha dá continuidade ao que fora trabalhado, por exemplo, por Harvey (197828. LEBEL Jean Patrick. Cinema e ideologia. Lisboa: Edições Mandacaru, 1975.), Xavier (200536. ZIMMER Christian. Cinéma et politique. Paris: Seghers, 1974.), Albera (20121. ALBERA François. Modernidade e vanguarda do cinema. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.), Leblanc (201223. FAVARETTO Celso. A contracultura, entre a curtição e o experimental. São Paulo: N-1 Edições, 2019.) ou Faroult (201822. FAROULT David, LEBLANC Gérard. Mai 68 ou le Cinéma en suspens. Paris: Syllepse, 1998.). Ainda que não seja intenção deste artigo em um primeiro momento se afastar completamente dessa tendência, compreende-se, contudo, que a desconstrução direcionada a uma postura vanguardista no repertório de 68 pode englobar outros caminhos. Esta pesquisa propõe enxergar desdobramentos do tema em um contexto brasileiro.

A partir desse cenário, a prospecção aqui apresentada se divide em duas frentes de reflexão. A primeira visa a estabelecer paralelos entre uma interpretação teórica do estruturalismo/pós-estruturalismo e um cinema francês que é em parte alimentado por ela. Opta-se por delimitar o objeto a um expressivo representante: o trabalho de Jean-Luc Godard em torno dos anos do Grupo Dziga Vertov, fundado por ele após o Maio de 68. Na presente análise, toma-se como objeto Um filme como os outros (1968) e o manifesto “Que fazer?”, escrito em 1970. A segunda frente de trabalho desenvolvida no texto pretende explorar alguns paralelos da mirada política em torno da desconstrução no contexto do cinema brasileiro que se quer de vanguarda, apontando aproximações e discrepâncias. É o caso de se deter sobre aspectos da produtora Belair, fundada em 1970 pelos cineastas Rogério Sganzerla e Julio Bressane junto à atriz Helena Ignez.7

A DESCONSTRUÇÃO, TEORICAMENTE

Entre o grupo do estruturalismo epistêmico e suas ideias que visam a reinterpretar a história, a leitura de documentos ou a obra de Marx, dois nomes se impõem nesta pesquisa: Derrida e Althusser. É sobre conceitos destes pensadores que irá desenvolver-se nas próximas páginas um encaminhamento para a desconstrução que será retomado ao longo do texto. Compreende-se que o conceito contempla inúmeros desdobramentos,8 e que as ideias apresentadas por esse par de autores e recuperadas aqui são muito mais complexas, sendo inviável pretender esgotá-las nas páginas de um artigo.

Para começar, a desconstrução que toma proporções expressivas no cinema a partir de 68 não poderia ser desarticulada do que é estabelecido por Derrida no ano anterior em torno do termo e se firmará como uma das correntes pós-estruturalistas. A desconstrução que desponta em Gramatologia põe em xeque a metafísica ocidental, a tendência hierarquizante das coisas e as oposições binárias que orientam a lógica metafísica. De imediato, ao discorrer sobre desconstrução, fala-se sobre dialética enquanto oposição à metafísica. Mas fala-se também sobre sua aplicação em um sentido de corte historiográfico, ao questionar identidades e reconhecimentos regulados por convenções: “Se eu quisesse dar uma descrição econômica, elíptica da desconstrução, eu diria que é um pensamento da origem e dos limites da questão ‘o que é?’, a questão que domina toda a história da filosofia” (DERRIDA, 2004, p. 3 apud RODRIGUES, 2006, p. 330). De forma preliminar, trata-se de compreender a desconstrução como exercício questionador das bases, das estruturas de um determinado objeto ou, ainda, uma crítica imanente à maneira de compreendê-lo.

Como consequência desse esforço, é preciso compreender a desconstrução também como uma espécie de elogio ao impossível: “O interesse da desconstrução, de sua força e de seu desejo, se ela os tem, é uma certa experiência do impossível” (DERRIDA, 1987, p. 27, tradução nossa). Essa ligação entre a desconstrução e o impossível, observa Duque-Estrada (20086. BERNARDO Fernanda. lévinas e derrida: ponto(s) de (não)-contato. In DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU, 2008, p. 157-211., p. 14, grifos do autor), “(...) deve ser entendida tanto no sentido de um pensamento que provém do impossível como também e simultaneamente como um pensamento que pensa o impossível”. É, portanto, entre o questionamento institucional e a propensão ao irrealizável que se visa a salientar por aqui os domínios conceituais do termo.

No que concerne à inversão hierárquica, e já prevendo um paralelo a ser investigado mais à frente em torno do cinema pós-68, a desconstrução em Derrida ganha uma forte representação na revisão da oposição entre palavra oral e escrita. Ao contrário da metafísica dominante e do que o filósofo chama de logocentrismo9 - prevalência da oralidade sobre a escrita/valorização do presencial sobre a mediação -, propõe-se repensar a escritura: “(...) ao mesmo tempo mais exterior à fala, não sendo sua ‘imagem’ ou seu ‘símbolo’ e, mais exterior à fala que já é em si mesma uma escritura” (DERRIDA, 2000, p. 56). Nesse composto dialético, que não deixa de ser uma relativização da prática historiográfica ocidental, a metafísica não é negada, ela passa a fazer parte da estrutura, assim como seu inverso, no sentido de problematizá-la.10 Na Gramatalogia, Rousseau, que “condena a escritura como destruição da presença e como doença da fala (DERRIDA, 2000, p. 174)”, será o objeto central da análise. Em resumo, trata-se de propor uma revisão histórica a partir da horizontalização, o que, a rigor, destitui a hierarquia da palavra fonética e do ser (emissor do pronunciamento) sobre sua variação escrita produzida por outrem e alhures. E, ao fazê-lo, enfraquece a ideia de oposição, entre, por exemplo, um dentro e um fora; um interno (palavra falada) e um externo (representação gráfica da dimensão fonética).

Essa horizontalização, que inscreve as características contrárias como parte de um mesmo, explica o termo gramatologia para fora da lógica da oposição entre grafocentrismo e logocentrismo. E o faz no sentido de colocar em revista a ciência enquanto instituição movida pela lógica metafísica:

(...) não se tratou jamais de opor um grafocentrismo a um logocentrismo, nem, em geral, um centro qualquer a qualquer outro. A Gramatologia não é uma defesa e uma ilustração da gramatologia. Menos ainda uma reabilitação daquilo que sempre se chamou de “escrita” (...) A Gramatologia é o título de uma questão: sobre a necessidade de uma ciência da escrita, sobre suas condições de possibilidade, sobre o trabalho crítico que deveria abrir seu campo e levantar os obstáculos epistemológicos; mas uma questão também sobre os limites dessa ciência. E esses limites sobre os quais eu não insisti menos são também os da noção clássica de ciência, cujos projetos, cujos conceitos, cujas normas, estão fundamentalmente e sistematicamente ligados à metafísica”. (DERRIDA, 2001, p. 19-20)

Derrida repele a construção do raciocínio a partir de uma estrutura nuclear, o que implica a reconfiguração daquilo que pode ser considerado como marginal, estando à margem, e descentraliza o sujeito enquanto entidade originária do discurso. Tal quadro faz despontar a figura do entre-lugar, possuidor ambivalente de características contraditórias, ou interrupções, que encontra um emblema no vocábulo grego pharmakon, que em sua extensão significante compreende tanto “remédio” quanto “veneno”; ou na différance (em contraste à différence), traduzido eventualmente por aqui como “diferência”.11 O entre-lugar pode ser também pensado como uma chave de acesso para o slogan derridiano “relação sem relação”: “(...) uma relação na separação tanto em relação a si-mesmo como em relação ao outro - ao outro em si e/ou fora de si” (BERNARDO, 20086. BERNARDO Fernanda. lévinas e derrida: ponto(s) de (não)-contato. In DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.). Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU, 2008, p. 157-211., p. 192).

Althusser aporta nessa narrativa dialética como o teórico que melhor buscou aproximar sua linha de pesquisa ao marxismo, propondo uma revisão científica em outra perspectiva. É um marxismo científico, renovador da vulgata marxista, que seduz a militância ativa no interstício entre a guerra da Argélia e o Maio de 68 - evento que vai relativizar o próprio Althusser. A nova perspectiva, ao contrário da stalinista, entende que nem tudo é uma derivação de aspectos econômicos, mas que pode ser compreendido enquanto uma ciência depurada.

Em 1965, o filósofo ganha força com a publicação da coletânea de artigos A favor de Marx e de Ler o capital, obra coletiva em dois tomos. Neste último, no qual discorre sobre uma nova teoria da leitura, escreve: “Devemos dizer que, assim como não há produção em geral, não há história em geral, mas estruturas específicas da historicidade, fundadas, em última instância em estruturas específicas dos diferentes modos de produção...” (ALTHUSSER; BALIBAR; ESTABLET, 1980, p. 49). Nessa perspectiva, encontra-se um comentário fraterno à proposta da “descontinuidade” a ser formulada mais tarde por Foucault.12 Mas Althusser investe em uma relação horizontalizada de dependência entre histórias e história, dialetizando o propósito em uma aresta afinada à desconstrução de Derrida:

Que cada um desses tempos e cada uma dessas histórias sejam relativamente autônomos não significa que constituam outros tantos domínios independentes do todo: a especificidade de cada um desses tempos, de cada uma dessas histórias, em outras palavras, sua autonomia e independências relativas, funda-se em certo tipo de articulação no todo, e, portanto, em certo tipo de dependência em relação ao todo. (ALTHUSSER; BALIBAR; ESTABLET, 1980, p. 39, grifos do autor)

Tal raciocínio pode propor paralelos que auxiliem na compreensão de outras investidas do autor em sua reinterpretação de Marx. No trabalho de discorrer sobre a dialética marxista, é especialmente influente um texto intitulado “Sobre a dialética materialista”, escrito em 1963. Nele, Althusser propõe uma diferença metodológica entre Marx e Hegel, apontando, entre outras coisas, uma prática teórica científica e o conceito de structure “à” dominante - traduzido por aqui como “estrutura com dominante”.

No primeiro caso, a prática teórica, o filósofo propõe um esquema estruturado em Generalidades (I, II e III), no qual a Generalidade I corresponde à matéria-prima que será transformada em Generalidade III pela Generalidade II - sendo esta última equivalente à prática teórica, que, por sua vez, é uma ciência.13 Tal esquema é utilizado para estabelecer a passagem de um concreto-realidade (Generalidade I) a um concreto-do-pensamento (III) a partir da prática teórica (II). Por meio dele, Althusser acredita resolver, dessa maneira, o “método científico correto”, que consiste na passagem do abstrato ao concreto por meio de um processo científico. As descontinuidades que emergem entre Generalidade I e III intervêm na continuidade da produção de conhecimento. A prática teórica seria, portanto, uma força que trabalha (Generalidade II) sobre um material trabalhado (I). Ou, como propõe Leblanc (201231. MAIA Victor. No rastro da desconstrução. Rio de Janeiro: Mauad, 2021.), já em uma contextualização cinematográfica, a prática teórica seria constituída pelos homens, seus meios de produção e modos de utilização.

Nesse esquema, compreende-se a prática teórica como a ênfase na exposição da materialidade. Pois, quando a Generalidade II é suprimida do processo, incorre-se em uma abstração. “O ato de abstração, que extrairia dos indivíduos concretos a sua pura essência, é um mito ideológico” (ALTHUSSER, 1979, p. 167, grifos do autor). Para Althusser, é preciso deixar aparente a diferença entre Generalidades I e II, assegurando o primado do trabalho sobre aquilo que é trabalhado. Não deixa de ser um argumento questionador sobre a constituição das coisas, a origem e os limites, como formulará Derrida em torno da desconstrução.

O esquema das generalidades será reinterpretado por Philippe Sollers nas páginas de Tel quel (no debate literário) e, no âmbito do cinema, por Jean-Paul Fargier, em Cinéthique. Para o debate cinematográfico, a transposição das Generalidades ganha o seguinte quadro: a produção ideológica hegemônica suprime a práxis e, por isso, precisa ser combatida. Nela, a Generalidade I passa à Generalidade III ocultando o trabalho de transformação que levou de um estágio a outro. Trata-se de discorrer sobre a transparência do cinema, da tarefa de criar um mundo ilusório que aliena o espectador do processo de produção nele investido. Ainda em Cinéthique, Baudry (20085. BAUDRY Jean Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2008, p. 383-389., p. 386), inspirado em Derrida14 - naquele que será, para alguns, possivelmente o texto mais significativo sobre o assunto no período e único traduzido no Brasil -, abordará a questão da seguinte forma:

A especificidade cinematográfica se refere, pois, a um trabalho, isto é, a um processo de transformação. O que importa é saber se o trabalho está à mostra, se o consumo do produto provoca um efeito de conhecimento; ou se ele é dissimulado e, neste caso, o consumo do produto será evidentemente acompanhado de uma mais-valia ideológica.

Não será, contudo, incompreensível constatar que a montagem terá um papel técnico norteador nessa mentalidade que visa a produzir conhecimento e não reconhecimento; e que Eisenstein e Vertov encontrarão uma designação preponderante na narrativa proposta. Seja como uma espécie de avalista (Vertov); seja no papel de uma revisão crítica desmistificadora (Eisenstein)15.

Quanto ao conceito de structure “à” dominante, Althusser está investindo no estudo da identidade dialética enquanto uma estrutura instável, na qual uma contradição não se sobrepõe às demais, mas está em movimento a partir de uma causalidade estrutural.

(...) a grande lição da prática é que, se a estrutura com dominante permanece constante, o emprego dos papéis muda: a contradição principal torna-se secundária (...). Há sempre uma contradição principal e contradições secundárias, contudo trocam de papel na estrutura com dominante que permanece estável. (ALTHUSSER, 1979, p. 186).

Essa compreensão da estabilidade da dialética enquanto estrutura instável vai inspirar um texto complexo, mas de grande representatividade para os filiados da comunidade althusseriana no cinema: “A autonomia do processo estético”, escrito por Alain Badiou (ex-aluno de Althusser) e publicado em 1966. Nele, trata-se de estabelecer a obra de arte como objeto que trabalha sobre material estético, e não ideológico, a partir de um “modo de produção estético”. Isso implica uma defesa da arte, no sentido de libertá-la da ideologia. Badiou vai argumentar sobre a autonomia da arte trazida por Pierre Macherey (outro ex-aluno de Althusser) e a ideia de que o processo estético não duplica a realidade, mas a inverte:

Se a ideologia produz o reflexo imaginário da realidade, em contrapartida, o efeito estético produz a ideologia como realidade imaginária. Pode-se dizer que a arte repete no real a repetição ideológica desse real. Contudo, a inversão não reproduz o real: realiza o reflexo dele. (BADIOU, 1968, p. 403, grifo do autor)

Tal argumento irá repercutir nos escritos sobre cinema alguns anos mais tarde, e a questão do reflexo terá grande representatividade no debate sobre a ideologia16.

Badiou, entretanto, vai abordar as Generalidades de Althusser e seus entornos com ressalvas: “A teoria da causalidade estrutural está ainda muito obscura. A minha impressão é a de que uma tal teoria é impossível (...) ao contrário de L. Althusser, prevejo dificuldades muito graves na ‘passagem’ do materialismo histórico ao materialismo dialético” (BADIOU, 1968, p. 411). O próprio Althusser (19792. ALTHUSSER Louis. A favor de Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979., p. 146) vai enxergar dificuldades na materialização da prática teórica, que estaria ainda a encontrar uma correspondência real, e não presumida. Trata-se, portanto, como na desconstrução derridiana, de uma forma de se interrogar sobre os limites de um determinado objeto, e/ou concepção, reconhecendo uma propensão ao impossível, ao que parecerá até então irrealizável.

Fica, portanto, estabelecido no escopo deste artigo a desconstrução enquanto espaço de interrogação sobre determinado objeto e motivação de conjecturas. Para o assunto deste trabalho, significa discorrer sobre o que é, ou o que pode ser o cinema a partir de seus limites, seus componentes, suas materialidades e, sobretudo, suas impossibilidades. Especificamente no caso do cinema a ser analisado em seguida aqui, a desconstrução será indissociável da pretensão althusseriana de restauração marxista, o que coloca Althusser em relevo e Derrida nos bastidores.

A DESCONSTRUÇÃO NO CONTEXTO DO CINEMA MILITANTE

A desconstrução visada até aqui tem seus teóricos de cabeceira e está delimitada a um cenário específico, a França pós-1968. Para os partidários de Althusser, em favor da emergência de uma nova vanguarda, a questão é invariavelmente formalizada no combate à ideologia. É certamente a partir dele, mas também da inspiração derridiana, que o crítico e poeta Marcelin Pleynet17 disserta sobre o assunto em uma espécie de mesa redonda promovida por Cinéthique, trazendo o vocábulo “desconstrução” pela primeira vez na revista: “um dos problemas mais atuais do cinematógrafo na França é um problema de desconstrução, um problema teórico de desconstrução da ideologia produzida pela câmera. Há nesse sentido um trabalho sistemático a fazer (...) no nível da realização de um filme” (LEBLANC, 1969, p. 11, tradução nossa).

No quadro fixo de Cinéthique, é talvez Jean-Paul Fargier quem vai melhor documentar o percurso teórico em torno da desconstrução por meio de seus artigos ao longo dos primeiros anos. O comentário se baseia em três textos, “La parenthèse et le detour”, de 1969; “Le processus de production de film”, de 1970; e, por fim, “Vers le récit rouge”, que sai na sequência. Nos dois primeiros, a influência de Althusser é dominante. No último, trechos da obra de Derrida são pinçados para estabelecer comentários como este:

Aqui, sobre os traços de Jacques Derrida (Gramatologia, A escritura e a diferença), deve ser marcada a cumplicidade estrutural e histórica que uniu de um lado: a escritura fonológica, uma prática e uma teoria metafísica de escritura em geral, e da literária em particular, e uma escritura cinematográfica (aquela dominante até os dias de hoje, da linearidade e da transparência) - e, de outro lado: “um modelo de escritura irredutível à palavra”, uma prática e uma teoria materialista da escritura em geral, e da literária (“textual”) em particular, e uma escritura cinematográfica reprimida até a aparição de Méditerranée. (FARGIER, 1970, p. 14, tradução nossa)

O filme de Jean-Daniel Pollet é eleito como um marco da desconstrução, responsável por iniciar um processo de destruição da representação no cinema, da escritura fonológica.

Pela via teórica da desconstrução proposta pela revista, que abarca o novo Godard como um dos protagonistas, é um consenso equacioná-la enquanto oposição formal à ideologia. Nela, a realização do filme assume a dianteira, trazendo à frente o processo. Mas se torna insuficiente sem o amparo demasiado de confabulações textuais e laudos científicos - é o que será confirmado mais tarde por Godard em “Que fazer?”. Tal concepção da desconstrução não deixará de despertar críticas.18

Nos estudos sobre cinema político posteriores à efervescência de 68, Zimmer (197437. Cuidado madame (1970), Julio Bressane, Brasil.) apresenta uma breve explicação sobre o termo que não está apartada dos preceitos elaborados pelo grupo que lidera a crítica à ideologia. É enfático em relação à autoria, o faz, contudo, com uma abertura geral para as artes e sem perder de vista uma conotação dialética favorável ao que fora proposto por Derrida na compreensão da desconstrução a partir de um deslocamento:

A “desconstrução” é uma renúncia voluntária do artista a uma de suas prerrogativas, é um deslocamento que ele opera, do impacto de sua criação, mas na medida estrita e, se poderia dizer, na exata proporção, onde esta renúncia parcial, onde este deslocamento beneficiam o leitor ou o espectador, aumentam sua própria potência criativa, sua própria liberdade. Desconstruir a obra é contribuir para liberar aquele ao qual ela está destinada. (ZIMMER, 1974, p. 259, tradução nossa, grifo do autor).

Nessa ótica, o artista abdica de sua autoridade artística sem, entretanto, deixar de sê-lo. Ao mesmo tempo que renuncia uma hierarquia pré-estabelecida, que opõe o criador e seu jogo criativo a um público que não interage criativamente, nunca deixa de referenciá-la na contínua produção de obras e no direcionamento delas para uma possível audiência. A desconstrução do cinema, portanto, não dispensaria a produção de filmes, e tampouco abriria mão do protagonismo de um artista em um número consciente de autossacrifício cultural. Este, sobretudo aos olhos de seu público pregresso, não deixaria de ser o artista que está em vias de propor uma aniquilação pessoal.

No quadro do cinema francês e na passagem de uma identidade moderna para outra, de vanguarda, ninguém se encaixa melhor no paradigma dialético descrito por Zimmer do que Godard. Seu desejo de destruir o cinema, manifestado à época, o encaminha para uma solução complexa: fazendo cinema. Nada muda em relação à alta produtividade que já o notabilizara ao longo da década. O labor incessante ganha novo fôlego, grupal.19

Sintonizado a esse processo de transformação, ou deslocamento, o trabalho de Godard não será menos fascinante; poderá habilitar paralelos à desconstrução derridiana. Um filme como os outros (1968), obra que está em uma espécie de entressafra - já contaminado pela efervescência militante, mas ainda fora da estrutura pretensamente horizontal do Grupo Dziga Vertov -, é um caso exemplar. Trata-se de uma sólida provocação crítica sobre a instituição cinematográfica e suas convenções, ou uma “verdadeira empresa de destruição do cinema” (FAROULT, 1998, p. 15, tradução nossa). A começar pelo título, que faz menção a um filme que só poderá ser como os outros enquanto identificação preliminar. Isto é, na condição de um objeto composto por sequências de imagens e sons em uma tira de celuloide. É um e, ao mesmo tempo, são todos, materialmente falando.

Uma grande ironia do título desse filme que, a bem da verdade, quer ser tudo menos como os demais, é fazer dessa (des)semelhança também um ponto de partida para uma nova sensibilidade. Esta propõe uma outra ordem, na qual todo filme será agora um manifesto aberto, e não cinema em seu formato elementar, fechado em um mundo ilusório e apartado do espectador. É, portanto, um filme como os outros filmes que não são cinema, mas uma provocação direta a ele, à sua ideologia. Há, logo, espaço à produção de filmes fora do escopo do cinema, mas ainda dentro dele. São, por outro lado, uma forma cinematográfica de atingir a mídia enquanto instituição consolidada: sua política cultural-econômica; seu viés hegemonicamente diversionista; sua forma anestesiada de abordagem de uma suposta realidade. Tomando como referência a explicação elíptica de Derrida (200419. DUQUE-ESTRADA Paulo Cesar. sobretudo... o perdão - (im)possibilidade, alteridade, afirmação. In Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU, 2008, p. 13-38., p. 3 apud RODRIGUES, 2006, p. 330) sobre a desconstrução, Um filme como os outros parece colocar em prática um “pensamento da origem e dos limites da questão ‘o que é?’”, aplicado ao cinema.

O jeito dialético de fazer cinema buscando negá-lo, ou destruí-lo, ganha uma profunda ressonância na maneira como são trabalhados as imagens e os sons em Um filme como os outros. Uma forma de mudança de paradigma visada por ele consiste em inverter a prevalência do visual sobre o sonoro. É uma proposta que celebra a quebra de hierarquia do visual em uma arte tida como das imagens, tornando-a, talvez, um campo do domínio da palavra. Godard (199126. GODARD. Que faire?. In BRENEZ, Nicole. Cinémas d’avant garde. Paris: Cahiers du Cinéma, 2006., p. 117) falará de uma “image sonore”/“imagem sonora” para esse filme. Essa espécie de recusa sobre as informações visuais se manifesta de duas maneiras.

Uma, a principal, insiste em se deter durante um grande acúmulo de tempo sobre um grupo de estudantes e operários que debate sobre a relva, ocultando identidades em um jogo que favorece o anonimato do indivíduo perante a identidade coletiva. A câmera busca, na medida do possível, misturar o grupo entre a vegetação, camuflando-o em tomadas estrategicamente produzidas. Dá pouco a ver e muito a ouvir. Para Godard, em um comentário replicado pela imprensa, trata-se de preservar a identidade de pessoas que estariam sendo procuradas pelas autoridades. Mas essa justificativa parece soar como uma anedota, uma saída para despistar um comentário maior, que denota o artista em sua prática de autossacrifício, celebração do anonimato - que ele mesmo não consegue atingir em sua virada militante.20 A proposta de obscurecer identidades está, ao fim, destituindo o poder da autoridade e o remetendo às massas, à solução grupal. Parece ressoar a ideia de uma “revolução sem rosto”, tal como proposta por Morin (201833. RODRIGUES Carla. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Revista Brasileira de Literatura Comparada, Niterói, v. 8, nº 9, 2006, p. 330-335.) sobre o Maio de 68 e de grande alcance.

Tal mirada para a desautorização do indivíduo enquanto fonte centralizadora de fala, que repercute a militância estudantil anti-institucional de 68, pode contemplar ainda outra conexão ao meio acadêmico. Esta teria como fonte um desenho de Maurice Henry publicado em La quinzaine littéraire como ilustração ao artigo de François Châtelet chamado “Où est le structuralisme?”, em julho de 1967. Nessa charge, que se notabilizou à época, vê-se grandes autoridades do estruturalismo - Lévi-Strauss, Lacan, Foucault e Barthes - sentadas na relva debatendo, caracterizados com figurinos indígenas. O tom jocoso da ilustração repercute o artigo, crítico, nada favorável ao reconhecer o estruturalismo como uma doutrina sem unidade, uma “pseudoescola” (DOSSE, 2018b, p. 147-148). Cerca de um ano mais tarde, Godard poderia substituir na relva os famosos interlocutores, já ridicularizados pelos traços de Henry, por um grupo de anônimos que simbolizaria uma desinstitucionalização da fala (e do saber). Se tal crítica de fato se dá, ela perderá força com a produção do Grupo Dziga Vertov e o alinhamento a Althusser (também criticado no texto de Châtelet).

Na caricatura silenciosa de Henry, o debate entre as estrelas do estruturalismo é totalmente aparente. O mesmo não ocorre na proposta de Godard. A ênfase no texto que é falado pelo grupo que, por sua vez, não é visto em sua particularidade (faces), e que chega a motivar o falseamento de dados no reemprego de imagens produzidas alhures, abre um parêntese promissor para retomar a desconstrução de Derrida. Há um excesso textual em Um filme como os outros que ultrapassa a informação visual sobre aqueles que estão a falar. Não se vê os rostos, portanto, não há sincronismo entre som e imagem, apesar de se identificar a procedência sonora como advinda da técnica do som direto. Há uma recusa em tornar a sincronia, esse recurso legitimador de verdades no cinema documental, um artifício que respalda a veracidade do instante. A palavra está desarticulada daquele que fala - haverá de fato uma sincronia em todos os instantes do longa-metragem, ou sequer em algum? Como, afinal, aferi-la, uma vez que não se pretende captar a referência facial? A partir desse dado, pode-se encontrar uma reverberação do debate crítico em torno do logocentrismo, ou mesmo fonocentrismo: “(...) proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da voz e da idealidade do sentido. Hegel mostra muito bem o estranho privilégio do som na idealização, na produção do conceito e na presença a si do sujeito” (DERRIDA, 2000, p. 14). Para esse debate, é a palavra que está em jogo, e não imagens: oposição e privilégio da palavra oral sobre a escrita, representação gráfica.

Já para a estrutura audiovisual de um filme que se quer um documento (não ficcional), essa discussão não faria tanto sentido sem passar por adaptações. Nesse caso, a proposta do logo/fonocentrismo se daria em relação à imagem síncrona. A sincronia assevera o instante e toda a oralidade do momento. Corresponde à metafísica, à percepção racional da coisa como supostamente ela é (foi). Ela se sobrepõe ao relato afastado, posterior à cena, retrabalhado, editado. A ausência de sincronia, sobretudo em um filme de teor documental, representaria, portanto, o equivalente à palavra escrita no sistema trabalhado por Derrida. Ou seja, uma tendência à mediação apartada do evento sobre a ação constituinte do ato (inclinação à montagem).

Ao solapar a sincronia entre sons e imagens que insinuam compatibilidade, há, evidentemente, uma problematização em curso. Esta problematização implica a ênfase sobre as materialidades do som e da imagem, que figuram como partículas autônomas divergentes, tomando o áudio uma proporção muito mais complexa do que a fatura imagética. A hierarquia histórica do visual sobre o sonoro no cinema é, então, invertida. O registro documental e metafísico do debate sobre a relva ganha um tratamento dialético. Ele é descontruído. Parece estar dentro (na percepção documental, do “assim ocorreu”); mas também fora (nos acréscimos estéticos que podem insinuar que o que se vê pode não ser “apenas aquilo”).

A outra forma de problematizar o componente visual a partir do som está no reemprego de imagens de manifestações produzidas pelo ARC (Atélier de Recherches Cinématographiques). O comentário imagético proposto por Godard a partir da utilização desse material estabelece paralelos irregulares. Eles escapam à identidade francesa e ao repertório imediatamente francês que motiva o grupo anônimo e tornam aquele conteúdo, de reflexão ou revolta, imagens como as outras. Nessa utilização, pode-se prospectar sobre uma ilustração à frase que Godard irá formular em seguida, em torno de outro filme - Vento do leste (1969), já com o Grupo Dziga Vertov e sob inspiração althusseriana: “Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image” (“Isto não é uma imagem justa, mas justo uma imagem”). Essa forma de reavaliar imagens, descontextualizando-as do que elas pretendem ser para encará-las como o que elas poderiam também ser, habilita uma remissiva à desconstrução derridiana e à descontinuidade de Foucault - respaldando uma crítica historiográfica útil aos propósitos do Grupo Dziga Vertov. Une image juste, ou melhor, um documento, lugar de certezas e definições metafísicas, pode ser recolocada como um monumento, juste une image, apontamento de rupturas, questionamentos, problematização de discursos que elas trazem em si. Em resumo: espaço de contrastes, de incertezas e indefinições, local da crise das narrativas.

A indefinição que norteia o momento em que Um filme como os outros é produzido ressalta sua vocação para se dotar, ele mesmo, em uma peça dialética. Isto é, de síntese complexa e avesso ao que está se tentando racionalizar sobre o Maio de 68 e suas reverberações por documentários da imprensa para a TV. Um filme como os outros é, na verdade, como nenhum. Constitui-se como uma recusa sobre o retrato, ou sobre as técnicas de aprontar um documento.

METAFÍSICA X DIALÉTICA NO “QUE FAZER?” GODARDIANO

A filmografia completa do Grupo Dziga Vertov, como outras propostas relativamente semelhantes que despontam no período, amplia a discussão sobre a desconstrução apresentada em Um filme como os outros. Não é o caso de analisar aqui a integralidade dos títulos produzidos por essa empreitada com a pretensão de esgotar o assunto a partir deles. Mas se faz necessário prosseguir neste trajeto com um notório texto produzido por Godard à época, de forma a contemplar a fração teórica do projeto e cotejá-la com a parte prática, insuficiente por si só.

No auge da experiência coletiva com o Grupo Dziga Vertov, Godard redige “Que fazer?”, manifesto homônimo à conhecida obra de Lenin, publicada em 1903. Ele aparece originalmente em inglês nas páginas da revista Afterimage. Nesse texto, que é estruturado a partir de frases enumeradas de 1 a 40, Godard estabelece seu raciocínio a partir de duas vertentes: a metafísica e a dialética. Essa polarização ganha uma identificação inicial entre o fazer filmes políticos (metafísica) e o fazê-los politicamente (dialética).21 Mas a conclusão que toma forma no manifesto a partir do primeiro filme assinado pelo Grupo Dziga Vertov, British Sounds (1969), é a de que é preciso fazer filmes políticos politicamente. Nesse caso, qualquer um desses filmes como os outros parece estar inscrito no mesmo princípio dialético que rege os vocábulos derridianos pharmakon e différance. British Sounds é, em si, um filme político, atesta Godard no inciso 15, identificando-o à “concepção idealista e metafísica do mundo” (GODARD, 2006, p. 78). Mas a tarefa de exibi-lo na televisão britânica, o que de fato não ocorrerá, reinstaurando a propensão ao impossível, vai inscrevê-lo em uma “concepção marxista e dialética do mundo” (Ibidem).

Em resumo: há nessa estratégia uma inversão clara sobre a forma econômica de produção adotada pela indústria e que será mais à frente esmiuçada no “Que fazer?” godardiano. Essa inversão recusa o projeto que é pensado comercialmente antes mesmo de ser produzido, que já nasce sob a expectativa do bom resultado financeiro a partir das práticas recorrentes de distribuição/comercialização. Nela, a política se sobrepõe à economia e a produção individual diverge da cadeia produtiva e seus regramentos comerciais.22

Há, portanto, um entendimento que não separa o filme da ação que o comporta para além de sua finitude objetal. O filme é um objeto, mas este objeto não está divorciado de uma concepção que é maior do que ele e corresponde a um projeto mais ambicioso, o qual ele, por si só, não consegue contemplar em sua totalidade. Trata-se de um empreendimento de renovação, ou de desconstrução do cinema que implica um comentário que se dirige à cadeia como um todo, sua plateia e meios de recepção. Nela, o filme é apenas um instrumento que não tem utilidade se considerado isoladamente, caindo em um paradigma metafísico, o do filme político. Em termos comparativos, seria algo como recusar o valor do objeto filme enquanto mercadoria elementar do processo econômico cinematográfico: diferentemente do esquema industrial, aqui o filme não se basta. Ele vem agregado a um programa mais ambicioso de restruturação que enfraquece o objeto e a individualização. O filme passa a ser pensado criativamente a partir de uma base horizontalizada (o trabalho grupal enquanto oposição à estrutura autoral ou restrita à hierarquia que coloca o diretor no topo). E, enquanto produto, é aberto e solicita a seu público uma tarefa igualmente criativa, de recriação, decifração, interpretação e mesmo contestação, como se vê nas lacunas apresentadas em Um filme como os outros.

Entre as características apontadas por Godard como próprias a uma concepção metafísica está o posicionamento burguês; a atitude passiva de um sujeito que compreende o mundo, mas não faz nada para mudá-lo; que até se propõe a absorver coisas, mas que não milita a favor ou contra o que apreende. Tal quadro salienta o espectador que não contesta a realidade ou o documento que pretende prová-la enquanto tal. Como um paralelo contrastante à questão, Godard decompõe uma expressão inspirada em Brecht que já havia sido utilizada por ele outrora e pode estar também na origem da frase “Isto não é uma imagem justa, mas justo uma imagem”. Trata-se do seguinte comentário: “O realismo não é como são as coisas reais, mas como são realmente as coisas”. É uma fórmula que reitera a contestação do documento, retrabalhando, contestando, reinterpretando e colocando-o em uma nova escala historiográfica. Ela enfatiza a desconstrução da ideia de realismo.

Além de Brecht, Lenin e Kiang-Tsing (esposa de Mao Tsé-Tung), há ainda a previsível menção a Dziga Vertov, cineasta da vanguarda soviética dos anos 1920 que assume um protagonismo na conversão de Godard. Vertov é evocado em um comentário que contraria a ordem convencional de produção de um filme (roteiro, filmagem, montagem, comercialização). Esse comentário consiste em afirmar o primado da montagem sobre o processo de produção, o que implica o montar antes, durante e depois da filmagem. É mais uma forma de discorrer sobre uma nova metodologia, um complemento de ordem prática à sobreposição teórica da política sobre a economia. Algo como passar de uma tradicional política econômica para uma economia política que, por sua vez, contesta os princípios capitalistas do setor regidos pelo lucro, submetendo-os a uma tomada de decisão política.

PENSAR A DESCONSTRUÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO A PARTIR DE 68

Não se pode dizer que o cinema brasileiro pós-68 conheceu uma influência militante tão marcadamente teórica, tal como se configurou no cinema francês. Diferentemente do exemplo europeu, a cultura acadêmica do país e suas manifestações artísticas não vinham fortemente amparadas por um desenvolvimento teórico tal como o provocado pelo estruturalismo. Pensar sobre a desconstrução do cinema brasileiro a partir de 68 não implica assumir uma linha a reboque das incursões acadêmicas. Mas sim a favor do subdesenvolvimento e da afirmação da precariedade como mola propulsora para fazer germinar “tradutores ‘diferenciais’ da tradição” (CAMPOS, 1992, p. 261) dispostos à deturpação despudorada.

No quadro do cinema moderno, os últimos anos daquela década veem o surgimento do Cinema Marginal como uma oposição crítica ao Cinema Novo e suas figuras de maior envergadura. O cinemanovismo, contudo, não irá interromper sua meta de integrar-se a um público maior, agora respaldada pelo processamento colorido de imagens e aprimorada por uma produção financeiramente superior. Nem presenciará o afastamento de um integrante radicalmente convertido pelo cenário político. Glauber, uma liderança política inegável no expediente cinemanovista, irá manifestar sua desconfiança sobre a febre militante em diversos comentários pela imprensa.23 O estranhamento será contundente no relato feito por ele sobre o posicionamento pós-68 de Godard a partir de sua participação em Vento do leste. Câncer e 1968, o que mais poderia aproximar a filmografia de Glauber a uma vertente militante/experimental, permanecerão fora de suas prioridades imediatas.

O ano de 1969, por sua vez, é caracterizado pela produção até então mais bem-acabada dos cinemanovistas. A safra de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Macunaíma, Brasil ano 2000 e Os herdeiros será responsável por intensificar as críticas formuladas por aqueles que foram apontados outrora como herdeiros do cinema moderno brasileiro. A partir desse antagonismo, um tanto semelhante à guinada contrária ao cinema de autor protagonizada por Godard, fica estabelecido um quadro favorável à prospecção de uma nova vanguarda por aqui.

Pensar a desconstrução do cinema brasileiro a partir de 68 necessita, entretanto, incorporar alguns valores que estão fora do radar dos franceses e dizem respeito a uma identidade tipicamente latino-americana, periférica. Nesse cotejamento, a desconstrução pode ganhar uma representação regional histórica na antropofagia, como o observa Haroldo de Campos (199212. COMOLLI Jean-Louis. Cinéma contre spectacle. Lagrasse: Verdier, 2009., p. 261):

Para nós não é nova a ideia da ‘desconstrução’ do orgulhoso logocentrismo ocidental, europeu, à maneira preconizada por Derrida, uma vez que já tínhamos a antropofagia oswaldiana, que é, por si mesma, uma forma “brutalista” de “desconstrução”, sob a espécie da devoração, da deglutição crítica do legado cultural universal.

Nela, vê-se uma conexão clara com a ideia do entre-lugar, de não ser uma coisa nem outra, mas estar atravessado entre uma expressão regional e outra externa, um amálgama entre os dois. A antropofagia, tal como colocado por Haroldo de Campos, seria uma espécie de marco vanguardista sobre a questão, antecipadora do pós-estruturalismo europeu. Será, contudo, reincorporada por aqui nos entornos de 68, na contemporaneidade do debate francês.

A oposição entre cinemanovistas e marginais durante o biênio 1969-70 abarca uma discussão sobre a legitimidade tropicalista - que já vem apresentando resultados desde 1967, em filmes como Terra em transe e, no ano seguinte, O bandido da luz vermelha. O cenário aponta uma disputa em torno da representatividade de figuras modernistas valorizadas pelos concretistas a partir dos anos 1950: Oswald e Mário de Andrade. Encontra-se, novamente, uma tendência à reavaliação historicista, que evoca símbolos do passado de forma a contextualizá-los no presente, sobrepondo-os a contextos dispersos. O impulso que busca dar um tratamento adequado à obra de Oswald (começando no teatro, por Zé Celso e sua adaptação de O rei da vela) pode remeter ao ímpeto que irá levar Godard ao encontro de Dziga Vertov, fazendo-o prevalecer sobre Eisenstein. Mas se Godard propõe uma abordagem erudita, de transposição respeitosa do construtivismo soviético para a militância francesa, é um retorno à história do próprio Brasil e à identidade miscigenada que está na base do apego pela antropofagia. É, mais uma vez, discorrer sobre uma desconstrução “brutalista” que emerge no Brasil. Esta toma forma conforme a repressão militar fecha o cerco e o modernismo cinematográfico perde fôlego às vésperas de selar um pacto institucional com o governo a partir do surgimento da Embrafilme.

A valorização idealista de Godard pela cultura estrangeira, da vanguarda russa ao cinema do terceiro mundo, é rechaçada pelo quadro da desconstrução “brutalista”. Pois este se apropria da cultura estrangeira no sentido de desvalorizá-la por meio de um projeto paródico, de afirmação da falta de condições e, nos casos mais radicais, elogio ao subdesenvolvimento enquanto redenção criativa - editorial respaldado no campo das artes por Hélio Oiticica e Frederico Morais,24 para ficar em dois exemplos contemporâneos e de grande envergadura.

Pensar a desconstrução do cinema brasileiro a partir de 68 é, portanto, dirigir-se para fora do Cinema Novo, mas obrigatoriamente se deter nele enquanto motivador principal de reprovações prático-teóricas. A desconstrução aqui se direciona criticamente ao cinema de autor, do qual o Cinema Novo vigora como o grande representante local, e contra qualquer outra iniciativa destoante da proposta vanguardista - ponto pacífico entre a desconstrução no Brasil e na França.

Outro ponto obrigatório de convergência está na exposição da materialidade, que aqui, entretanto, ganha outra coloração. Assume um papel crítico em relação à sofisticação do cinema moderno brasileiro e sua campanha internacionalista. É por meio da exposição do fazer o filme - da utilização de tomadas defeituosas ou repetidas à visualização da equipe de produção - que a crítica à superprodução ganha fôlego. Parece dispor sobre a subprodução enquanto reivindicação de autenticidade para uma identidade nacional, que lida com os conteúdos estrangeiros com a intenção da deturpação compulsória - agregando aí técnicas como o plano-sequência ou títulos celebrados pela chamada “cultura culta”. É também uma forma de apontar criticamente a influência que o êxito europeu de certos filmes brasileiros exerceu sobre o trabalho de seus cineastas, acusando um programa de concessão que resulta, por fim, na perda da identidade. Não há, portanto, uma conotação marxista explícita nessa proposta de reiteração do materialismo - diferentemente do contexto francês, que irá embasar os argumentos nas Generalidades, na prática teórica de Althusser. A desconstrução aqui ganha um terreno de debate mais próspero na fricção com Derrida e na ideia da “relação sem relação”.

Dentre as características elencadas acima, cabe à Belair e seu projeto prático de questionamento constituir-se possivelmente na mais farta iniciativa que buscou assimilar um grande acúmulo de ambiguidades no cinema brasileiro do período. A produtora criada por Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Helena Ignez pode corresponder, de maneira muito particular e conflitante, ao quadro contestatório revelado no cinema francês pós-68, e figura como um sólido representante na cinematografia brasileira no que concerne à adoção de uma identidade dialética que faz da produção fílmica um prosseguimento dependente de um discurso maior.25 É político de forma desigual ao que orienta o Grupo Dziga Vertov em sua cruzada erudita em direção ao filme materialista dialético, reencaminhando as críticas para a safra mais recente do Cinema Novo (comprometida com a expansão a mercados internacionais e… ideológicos) - sem, contudo, descartar a pretensão comercial ou recusar o cinema como negócio.26 A produtora concentra a promoção do projeto sobre a feitura ininterrupta de filmes sem trabalhá-los individualmente, mas como parte de uma ação que visa destacar a numerosa e barata produção no âmbito da política cinematográfica. Como resultado, entregará filmes sem fim (Bressane), ou prestes a serem retrabalhados ao longo do tempo, originando versões distintas (Sganzerla). O processo é maior que o produto, e este não consegue se desvincular dele (se falará mais tarde em filme Belair,27 flagrante tentativa de prolongamento da experiência).

Os filmes da produtora agregam comentários sobre a ditadura e o sufocamento militar em uma chave muito singular, contaminada por um ambiente histérico que resvala na paródia e em uma densa proposta de reciclagem do popular. O objeto de fascínio e, paradoxalmente, revisão crítica que emerge nos títulos da Belair é a chanchada e sua penetração no público de outrora, habilitando o papel de “tradutores ‘diferenciais’ da tradição” a seus diretores. Para Bressane (19778. BRESSANE Julio. O inimigo é outro? Cinema brasileiro: novos rumos - IV. Arquivo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), n° 255, 13 nov. 1970.),28 possivelmente no texto sobre a Belair mais influenciado pela desconstrução, com o conveniente título “Cuidado madame: semelhante sem semelhante”, Cuidado madame (19708. BRESSANE Julio. O inimigo é outro? Cinema brasileiro: novos rumos - IV. Arquivo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), n° 255, 13 nov. 1970.) “traduz tradição”. É, de certa maneira, evocar um clima de ingenuidade, como se vê no título deste filme da Belair, para traí-lo sucessivamente em uma encorpada disposta a tornar do subdesenvolvimento uma tônica identitária indissociável do brasileiro e, portanto, do seu cinema e sua condição industrialmente desfavorável. Se Godard se valeu do paradoxo “image sonore” para discorrer sobre Um filme como os outros, Bressane, nesse mesmo texto, vai meditar sobre “imagem-sonora que pensa imagem-sonora”. Em ambos os casos, trata-se de uma abordagem materialista. De discorrer sobre o audiovisual destacando seus componentes materiais (imagem, som) para ir além deles.

É preciso contextualizar o potencial belicoso da Belair também dentro do processo de integração do cinema com as demais artes. Nesse segmento, encontra-se no tropicalismo uma porta de entrada bem-sucedida, inclusive enquanto campo promissor para estender suas críticas a uma suposta apropriação estética equivocada - acusando, novamente, uma política reprovável apresentada pelo Cinema Novo.29 Já absorvido pela safra cinemanovista, que irá propor o termo tropicolor, o tropicalismo é reavaliado criticamente pela Belair. Talvez seja o caso de considerar seus filmes como pós-tropicalistas, como o propõe Favaretto (201924. FOUCAULT Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.) em uma chave mais ampla (a do Cinema Marginal), apontando Sem essa, Aranha, título da Belair, entre uma lista de produções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se pensar a desconstrução do cinema a partir de 68 significa vê-lo como uma proposta que ocupa um entre-lugar (retomando Derrida), um composto dialético que assume uma feição híbrida e contraditória; espaço de visibilidade do todo, assumindo a materialidade do processo como um dado inextinguível, não parece haver uma resposta tão contundente no horizonte do cinema brasileiro pós-68 quanto a Belair. É ela quem melhor se adequa no período à ideia de uma desconstrução “brutalista”, proposta por Haroldo de Campos. Sua celebração já nesse século e o fortalecimento da ideia de tê-la como “fora do seu tempo”, ou mesmo vítima das forças da época, só irá reforçar seu pertencimento a nenhuma época e, ao mesmo tempo, a todas as épocas. Enquanto questionamento da lógica metafísica, mas que tampouco assimilou de forma voluntária uma proposta política na chave do Godard de “Que fazer?”, a Belair habilita um fértil terreno para a prospecção da desconstrução do cinema pós-68 no Brasil. Na superfície, pode soar como apenas uma fonte inesgotável de anedotas; ou, nas palavras de Sganzerla, como “uma forma de esconder a verdade”,30 mas também de buscar “o impossível, o libertário” (apud BUTCHER, 2000, p. 4). Como no Grupo Dziga Vertov, trata-se de uma renúncia radical e de um projeto que pretende pensar o cinema para fora dos limites do escopo artístico-cultural: “(...) o desafio crítico do cinema brasileiro seria precisamente pensar o que ‘não está lá’ nestas dez31 horas Belair” (BRESSANE, 1977, grifos meus).

Ainda que a Belair e seus porta-vozes jamais tenham visado a assumir uma encorpada cientificista - mas uma brecha no varejo, que argumenta sobre a fragilidade industrial do cinema brasileiro -, nunca perderam de vista propor uma via radical da convergência entre modernidade e mercado pretendida pelos cinemanovistas. É contra essa ideologia periférica que uma interpretação “brutalista” para a desconstrução do cinema a partir de 68 se dá no Brasil. Para retomar as indagações de uma personagem (Maria Gladys) em Sem essa, Aranha, “O que é o Brasil? O que é o brasileiro?”, a Belair, enquanto projeto afinado ao editorial antropofágico, parece estender a questão para o cinema brasileiro. Tornaram este uma aposta no impossível.

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  • 1
    . “O que eu queria era passar ao interior da imagem, porque a maior parte dos filmes é feita no exterior da imagem” (tradução nossa, grifos no original).
  • 2
    . “Nós gostaríamos mesmo que houvesse uma ruptura com o conceito de ruptura”. (tradução nossa)
  • 3
    . Retiro a expressão de Faroult (2018), que nomeia sua pesquisa sobre a incursão militante de Godard como “inventions d’un cinéma politique”.
  • 4
    . Para código e estrutura, destaco essa definição de Descombes (1979, p. 121 apud DOSSE, 2018a, p. 69): “A definição de um código é ser traduzível num outro código: a essa propriedade que o define dá-se o nome de estrutura”.
  • 5
    . As demais correntes são o estruturalismo científico (Lévi-Strauss, Greimas, Lacan) e o semiológico (Barthes, Genette, Todorov), como o aponta Dosse (2018a, p. 30). Sobre o estruturalismo epistêmico: “O estrutural-epistemista substitui o marxismo totalizador com igual certeza de cientificidade, obedecendo às leis da ciência clássica. Maneja o determinismo e a objetivação excluindo o sujeito, demasiado aleatório, e a história, demasiado contingente, em proveito de um modelo tão rigoroso quanto às ciências da natureza: a linguística estrutural” (Ibidem, p. 245).
  • 6
    . Se a intenção é compreender nesse cinema alinhado à desconstrução uma influência que combina Derrida e Althusser, é preciso observar que esses nomes podem divergir entre si. Representam uma continuidade (Althusser) e uma ruptura (Derrida) do estruturalismo. É o caso de compreendê-los como exemplificadores de uma base dialética; perceber o velho e o novo, ou o dentro e o fora, como partes de um mesmo: “O significado de ‘pós’ em pós-estruturalismo é, pois, não um ‘depois’ definitivo no sentido de um obstáculo agora ultrapassado. Ao invés disso, o ‘pós’ significa ‘com, mas também diferente’. A desconstrução é ainda estruturalismo, mas aberto e transformado” (WILLIAMS, 2013, p. 46). Tal cenário ganha representatividade com o Maio de 68: “O efeito de Maio de 1968 sobre o estruturalismo é (...) contraditório: antigo e novo se misturam, racionalismo científico e antirracionalismo estão ligados, inclusive no pensamento dos próprios autores” (DOSSE, 2018b, p. 188).
  • 7
    . Atuante durante alguns meses e responsável pelos seguintes filmes: A família do barulho, Barão Olavo, o horrível, Cuidado madame - de autoria de Bressane; Carnaval na lama, Copacabana mon amour e Sem essa, Aranha, todos de Sganzerla. Há ainda um suposto registro coletivo intitulado A miss e o dinossauro.
  • 8
    . Como referência à pluralidade de perspectivas em torno da desconstrução entre pesquisadores brasileiros, destaco as coletâneas organizadas por Duque-Estrada (2004, 2008) e a obra recente de Maia (2021).
  • 9
    . “O logocentrismo é uma metafísica etnocêntrica, num sentido original e não ‘relativista’. Está ligado à história do Ocidente” (DERRIDA, 2000, p. 98).
  • 10
    . Destaco esse comentário de Derrida (2001, p. 18-19): “(...) todo gesto transgressivo volta a nos encerrar na metafísica - precisamente por ela nos servir de ponto de apoio”.
  • 11
    . “Différance é uma estrutura de diferenças identificáveis (...) mas é também um processo de diferir que não pode ser reduzido a cadeias de identidades. Ao invés disso, é a razão por que tais cadeias são sempre abertas e incompletas” e “(...) adifférance’ é a condição para a abertura e incompletude de qualquer parte identificável da cadeia” (WILLIAMS, 2013, p. 58, grifos do autor).
  • 12
    . Sobretudo em relação à ideia de uma “nova história”, defendida em Arqueologia do saber.
  • 13
    . “Quando uma ciência, já constituída, desenvolve-se, ela elabora sobre uma matéria-prima (Generalidade I) constituída seja de conceitos ainda ideológicos, seja de ‘fatos’ científicos, seja de conceitos já cientificamente elaborados, mas que pertencem a um estágio anterior da ciência (uma ex-Generalidade III). É, por conseguinte, ao transformar essa Generalidade I em Generalidade III (conhecimento) que a ciência trabalha e produz” (ALTHUSSER, 1979, p. 160).
  • 14
    . “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base” é baseado em uma conferência de Derrida, “Freud e a cena da escritura”, incluída em A escritura e a diferença.
  • 15
    . Refiro-me, obviamente, ao comentário de Godard, que, ao projetar Vertov como um paradigma histórico, passa a ver Eisenstein como um revisionista. Faroult (2018) discorre sobre o assunto e oferece respostas.
  • 16
    . Como uma referência para esse debate, ver Leblanc (2012), Comolli (2009) e Lebel (1975).
  • 17
    . Oriundo da revista Tel quel.
  • 18
    . Destaco essas palavras do crítico Guy Hennebelle (apud HARVEY, 1978, p. 135-136, tradução nossa, grifo do autor) em defesa de Coup pour coup (1972), de Martin Karmitz: “Está na hora de colocar um fim à ilusão telqueliana na qual intelectuais têm a tarefa especial de promover uma ‘linha proletária’ no ‘front da linguagem’ contra a ‘linha burguesa, enquanto os trabalhadores têm como objetivo a tomada do poder nas fábricas. (...) ‘Desconstrução’ (distinta do ‘distanciamento’ brechtiano) raramente traz algo além do tédio”.
  • 19
    . Ou, ao menos, em dupla, se considerado o papel e a influência de Jean-Pierre Gorin sobre Godard à época.
  • 20
    . O esforço pretendido por Godard ao suprimir o rosto como uma forma de se afastar da identidade ao filmar os debatedores de Um filme como os outros e, mais tarde, na proposta do Grupo Dziga Vertov, encontra ressonância nessas palavras do Foucault (2008, p. 20) de 1969: “Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”. A liberação de filmar/escrever a partir do anonimato não deixa de afirmar a recusa sobre si e a ênfase sobre a descentralização do autor.
  • 21
    . Ainda que não seja um dos estruturalistas visados nesta análise, Lyotard poderia contribuir com um paralelo à questão: “O político é primordialmente uma relação com eventos e com intensidades emocionais, enquanto que a política é primordialmente uma reflexão sobre como realizar metas e sobre quais estruturas são corretas e necessárias para essa realização” (WILLIAMS, 2013, p. 128, grifos do autor).
  • 22
    . “28. Fazer 2, é produzir um filme antes de o difundir, aprender a produzi-lo seguindo este princípio: é a produção que comanda a difusão, é a política que comanda a economia” (GODARD, 2006, p. 79).
  • 23
    . Um exemplo central para essa observação está em “O último escândalo de Godard”, publicado na revista Manchete nº 928, jan. 1970.
  • 24
    . Penso aqui, como referência, em Vanguarda e subdesenvolvimento (1969), de Gullar, e “Situação da vanguarda no Brasil” (1966), de Oiticica.
  • 25
    . Esse comentário pode ser comprovado nas diversas abordagens do projeto pela imprensa durante seu funcionamento. Isto é, nas citações sobre a Belair sem quase nunca chamá-la pelo nome; no discurso de seus fundadores, que enfatiza um projeto de agravo às bases do cinema moderno sem trabalhar individualmente os filmes que nele estavam sendo produzidos. Um exemplo contundente dessa tática está nas duas cartas escritas por Bressane e publicadas em programas da Cinemateca do MAM quando da mostra Novos rumos do cinema brasileiro - ocasião na qual dois títulos da Belair são projetados pela primeira vez: “S.O.S Brazil” e “O inimigo é outro?”. Nelas, fala-se sobre os caminhos equivocados que o cinema brasileiro tomava com a adoção da mentalidade industrial. Os filmes da Belair são até citados, mas de forma genérica. A ênfase recai sobre o processo e em certos resultados técnicos (ampliação, cor). Destaco esse trecho de “S.O.S Brazil”: “Além de criar uma dinâmica totalmente nova (chegamos a fazer seis longas-metragens em quatro meses, é fantástico) a Belair virou naquele momento para o lado enterrado do cinema brasileiro, ou seja, o cinema livre, político (numa acepção total desse significado) e tendo como base o que havia de melhor entre nós: de Trotsky a Oswald de Andrade, da precariedade limitativa à improvisação criadora” (BRESSANE, 19719. BRESSANE Julio. S.O.S. Brazil. Cinema brasileiro: novos rumos - V. Arquivo Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), n° 25, 29 jan. 1971.).
  • 26
    . Para além das inúmeras menções ao longo do tempo sobre um suposto acordo firmado com o exibidor Luis Severiano Ribeiro, uma parcela da filmografia da Belair de fato tentou obter um certificado de exibição, mas foi impedida pela censura. Tais processos geraram uma volumosa documentação de cerca de duas dezenas de itens, de pareceres de censores a certificados e requisição de censura - além de menções na imprensa.
  • 27
    . Expressão dita por Bressane no curta-metragem Viola chinesa (1975).
  • 28
    . Texto avulso depositado no Centro de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (Rio de Janeiro).
  • 29
    . Tais críticas são feitas sem parcimônia por Sganzerla na entrevista ao lado de Helena Ignez para O pasquim nº 33, fev. 1970.
  • 30
    . Trecho extraído de depoimento filmado de Rogério Sganzerla, inserido em Elogio da luz (2003), de Joel Pizzini.
  • 31
    . Número equivalente ao que seria a soma total de horas da produção do grupo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2020
  • Aceito
    13 Maio 2022
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