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ANTONIO MARÍA ESQUIVEL E LOS NIÑOS: PINTURA, RETÓRICA E EDUCAÇÃO NATURAL NO SÉCULO XIX ESPANHOL

ANTONIO MARÍA ESQUIVEL AND LOS NIÑOS: PAINTING, RHETORIC AND NATURAL EDUCATION IN SPANISH 19TH CENTURY

ANTONIO MARÍA ESQUIVEL Y LOS NIÑOS: PINTURA, RETÓRICA Y EDUCACIÓN NATURAL EN EL SIGLO XIX ESPAÑOL

RESUMO

O retrato dos meninos Raimundo Roberto e Fernando José, filhos da infanta Josefa Fernanda de Borbón, feito por Antonio María Esquivel Y Suárez de Urbina na metade do século XIX, e pertencente à coleção do Museu do Prado, em Madri, revela ligações interessantes com a filosofia da educação natural de Jean-Jacques Rousseau, embora tenha o pintor convenientemente buscado muito mais ilustrá-la do que debatê-la.

PALAVRAS-CHAVE
Pintura; Educação natural; Liberdade

ABSTRACT

The portrait of the boys Raimundo Roberto and Fernando José, sons of Infanta Josefa Fernanda de Borbón, made by Antonio María Esquivel Y Suárez de Urbina in the mid-nineteenth century, and belonging to the collection of the Prado Museum, in Madrid, reveals interesting connections with the Jean-Jacques Rousseau’s philosophy of natural education, although the painter conveniently sought much more to illustrate it than to debate it.

KEYWORDS
Rhetoric; Painting; Natural Education; Freedom

RESUMEN

El retrato de los niños Raimundo Roberto y Fernando José, hijos de la infanta Josefa Fernanda de Borbón, realizado por Antonio María Esquivel y Suárez de Urbina a mediados del siglo XIX, y perteneciente a la colección del Museo del Prado en Madrid, revela interesantes conexiones con la filosofía de la educación natural de Jean-Jacques Rousseau, aunque el pintor haya buscado convenientemente ilustrarla más que debatirla.

PALABRAS CLAVE
Retórica; Pintura; Educación natural; Libertad

Há uma pintura no acervo do Museu do Prado, em Madri, da mão de Antonio María Esquivel Y Suárez de Urbina (1806-1857), figurando Raimundo Roberto y Fernando José, hijos de la infanta Josefa Fernanda de Borbón (1855), sobre a qual é possível refletir acerca das confluências ou encontros entre as preceptivas acadêmicas em torno do campo executivo da pintura, da retórica antiga e do pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) sobre a educação natural – ou, pelo menos, de como tal pensamento foi particularmente divulgado na Espanha do século XIX. Os meninos retratados são os filhos do escritor e jornalista cubano José Lorenzo Güell Y Renté (1818-1884) – Raimundo, de pé, à esquerda do observador, acariciando seu cachorro em cuja coleira se lê a palavra LIBRE, e seu irmão, Fernando José, sentado, libertando um pintassilgo de uma gaiola cheia deles. Ambos nos encaram de frente, vestidos somente com pelegos de ovelhas e tendo cada qual um cordão de ouro (único elemento que atesta serem filhos de cortesãos) pendurado no pescoço desnudo. O cenário é um bosque em penumbras, e a iluminação principal se dá apenas no primeiro plano, emanando principalmente dos corpos das figuras, nos quais as sombras são muito suavizadas e as carnações delicadamente trabalhadas. A posição de Raimundo emula a conhecidíssima figura de Augusto Imperador, segurando ao alto uma espiga de milho (Senhor dos Campos Férteis). A poucos centímetros de sua mão direita, aberta, dedos espalmados para o alto, voa um dos pássaros, recém-liberto, contrastando também com a mão direita do irmão mais novo, reclinado sobre uma lastra de pedra, segurando cuidadosamente outra ave, que acaba de ser retirada da referida gaiola. A sugestão de que o ganho da liberdade é gradual, ou que não se dá mediante um passo apenas, não é gratuita. Mas falaremos disso mais adiante. A pele imaculada dos garotos, os cabelos bem penteados e a aparência de limpeza ou pureza conferem a paradoxal impressão de artificialidade à representação. Dito de outro modo, não é uma pintura naturalista, mas uma alegoria na qual se cruzam referências e conceitos diversos, e alguns deles, filiados às concepções de uma educação liberal tal como proposta por Rousseau cerca de um século antes. Há um poema de Güell, pai dos meninos, incluído na reedição de seu livro Lágrimas del corazón, de 1855 (mesma data da pintura), intitulado A mi hijo Raimundo, que atesta a sua concordância, poética e política, com os pressupostos ou ideias do pensador francês:

Y no adornes tu frente con laureles,

la luz del almo sol nunca te vea,

ridículo, vestido de oropeles

ni del poder llevando la librea

Político liberal, Güell foi defensor do abolicionismo, desempenhando um papel político importante em Cuba no final de sua vida, onde foi senador da Universidade de Havana; estudou direito em Barcelona, tendo iniciado um romance secreto com a irmã do marido da Rainha, a Infanta Josefa Fernanda de Borbón ( OSSORIO Y BERNARD, 1903OSSORIO Y BERNARD, Manuel. Ensayo de un catálogo de periodistas españoles del siglo XIX. Madri: Imprenta y litografía de J. Palacios, 1903.). O casamento, também em segredo, realizado pouco tempo depois, causou o desterro do casal e a perda do título de Josefa. Raimundo e Fernando, retratados na pintura, são frutos dessa relação. Em 1846, um pouco antes de tudo isso, Güell fora retratado junto a um grupo de poetas espanhóis pelo mesmo pintor, Antonio María Esquivel, o que comprova uma relação de amizade longa entre os dois. O centro dessa pintura é dividido pela figura do jovem escritor, atento e focado à leitura de um jornal parcialmente dobrado e segurando-se com apenas uma das mãos (a outra está repousada num dos bolsos de seu casaco), tendo ao seu redor uma plateia de senhores nobres, aristocratas, oficiais, membros do clero e intelectuais num grande salão repleto de pinturas sacras e esculturas de modelos greco-romanos. O próprio pintor, figurado ao lado direito de Güell, segura orgulhosamente seus instrumentos de trabalho – pincéis e paleta de tintas – enquanto olha em direção ao amigo palestrante. Não há nada de surpreendente na composição dessa pintura, que segue o padrão e a conveniência do gênero à época, incluindo a frontalidade de algumas figuras que, de certos cantos da tela, encaram de frente, impávidos, os espectadores. Trata-se, na verdade, de uma alegoria que figura o lugar das artes e das letras, incluídas as de cunho jornalístico, na alta sociedade espanhola e no seu círculo político. É também uma declaração, e ao mesmo tempo um louvor a ambos, o escritor e o pintor, sendo aceitos (ou assim desejavam se ver representados) pela elite social de seu tempo. Não há sombra alguma de discórdia, nenhuma atitude de contestação.

Figura 1
Antonio María Esquivel Y Suárez de Urbina, Raimundo Roberto y Fernando José, hijos de la infanta Josefa Fernanda de Borbón, 1855.

Esquivel iniciou seus estudos na Academia de Belas Artes de Sevilha, transferindo-se mais tarde para Madri, onde, em 1832, concorre e obtém uma vaga na Academia de San Fernando. Na mesma cidade, participa da fundação do Liceu Artístico e Literário, no qual ministraria aulas de anatomia. O pintor, então, se tornaria uma referência no ensino dessa cadeira, tendo-a exercido também na Academia de San Fernando. Em 1838, retorna a Sevilha acometido de uma enfermidade que o deixaria cego. Recuperou a visão em 1840 e, em 1847, é nomeado acadêmico de San Fernando, tornando-se também membro fundador da Sociedade Protetora das Belas Artes. As décadas de 1840 e 1850 (Esquivel faleceu em 1857) marcaram a plena maturidade desse pintor, assim como o domínio daquilo que o tornou célebre para a Academia e seus pares: a representação da anatomia humana e sua utilização como suporte para a construção de finíssimas alegorias.

Aqui cabe uma explicação ao leitor moderno. Há um preceito antigo, retórico, de acordo com o qual a arte deve imitar a natureza. De Aristóteles a Horácio e além, essa ideia influenciou profundamente o campo executivo da pintura ao longo do tempo, tornando a observação minuciosa da natureza uma das ferramentas mais apreciadas e elogiadas pelos artistas. Ao mesmo tempo, a emergência da alegoria como gênero no século XVI determinava a utilização do corpo humano como um campo para a construção de metáforas. É esse o uso que encontramos preceituado, por exemplo, no cultuado texto de Cesare Ripa Iconologia (Iconologia ou Descrição das imagens universais escavadas da Antiguidade e de outros lugares por Cesare Ripa, perusiano. Obra não menos útil que necessária a Poetas, Pintores & Escultores, para representar as virtudes, vícios, afetos e paixões humanas), cuja primeira edição é de 1593. Ripa definiu a iconologia como uma lógica das imagens ( ragionamenti d’imagini) duplamente articulada como formare e dicchiarare: formar e declarar ( RIPA, 1991RIPA, Cesare (ed.). Iconologia. Piero Buscaroli. Prefácio de Mario Praz. Milão: TEA, 1991.). Quando propõe a imagem pictórica como uma “definição ilustrada”, Ripa pensa sua forma “arquétipa” como uma metáfora. E para que a imagem pintada se assemelhe à definição do conceito a ser exposto (ainda que encoberto parcial ou totalmente), ela deve ser figurada segundo as diferenças específicas e os acidentes da coisa definida, principalmente os acidentes da fisionomia e do corpo humano, que convencionalmente metaforizam o caráter e a paixão humanos. Dito de outro modo, a exposição do corpo humano – suas proporções assim como desproporções, e principalmente a descrição de seus gestos e diferenças fisionômicas – era de suma importância para a construção dos significados da pintura, tendo-a homologamente como um discurso não escrito e não falado, mas dirigido retoricamente como aqueles. Houve historicamente também muitos exemplos e argumentos em favor da arte como imitação da natureza – no entanto, sempre considerando-a como um ponto de partida para a construção de discursos que pudessem ser compreendidos por uma inteligibilidade. Também quanto a isso, Ripa refere-se à sua obra como uma “lógica das imagens”.

A Natureza

Em muitos desses discursos, a natureza ocupava uma posição dúbia, ora entendida vagamente como um conjunto de condições materiais e formais a serem conhecidas e usadas pelos artistas para alcançar o seu objetivo – ars est recta ratio factibilium, como dizia São Tomás ( ECO, 2000, p. 126ECO, UMBERTO. Arte e beleza na estética medieval / trad. de Antônio Guerreiro. 2 ed. Lisboa: Presença, 2000.), ou seja, “arte é o exato conhecimento do que deve ser feito” –, ora entendida como um ente que disputava com as artes o primado da perfeição sob o reino sublunar. Tenha-se por exemplo o diálogo de Anton Francesco Doni (1513-1574) intitulado Disegno, cuja primeira parte é justamente uma contenda entre a Arte e a Natureza. Logo no início, a Arte busca se apresentar como superior em virtude da conclusão e perfeição das suas obras frente às da Natureza:

[...] quem é a inventora, senão eu; e quem melhor as faz do que eu, pois tenho todas dentro, unidas e distintas, e como fazê-las necessárias [?]. A Natureza responde-lhe, indignada e relembra o exemplo de Donatello, que após ter feito uma estátua de mármore em Florença, batizada de O Zuco, deu-lhe um golpe com a mão, dizendo: “Fala!”. [DONI ( 1549DONI, Anton Francesco. Disegno del Doni, partito in più ragionamenti, ne quali si tratta della scoltura et pittura; de colori, de getti, de modegli, con molte cose appartenenti a quest’arti: & si termina la nobiltà dell’una et dell’altra professione con historie, esempi, et sentenze & nel fine alcune lettere che trattano della medesima matéria. Veneza: Gabriel Giolito di Ferrari, 1549.), p.18] 1 1 As traduções de trechos em idiomas estrangeiros são de nossa autoria.

Prossegue, então, com a seguinte exortação:

Digo, porém, que (Donatello) acreditava ser eu, e se deu aquela ousadia; porém, não quero que, sendo tu a mãe em espírito de todos estes exercícios particulares humanos, com teu falar, alces este e abaixes aquele, mas somente percebas o raciocinar dos homens, porque cada um desses dirá a razão mais forte, e nós poderemos dar juízo mais são. E quando tu e eu, que somos a Natureza e a Arte de todas as coisas, dermos a sentença, serão forçados os escultores e pintores a aquietarem-se. ( DONI, 1549, p. 18DONI, Anton Francesco. Disegno del Doni, partito in più ragionamenti, ne quali si tratta della scoltura et pittura; de colori, de getti, de modegli, con molte cose appartenenti a quest’arti: & si termina la nobiltà dell’una et dell’altra professione con historie, esempi, et sentenze & nel fine alcune lettere che trattano della medesima matéria. Veneza: Gabriel Giolito di Ferrari, 1549.)

Vê-se que, na disputa entre Arte e Natureza, esta última sempre está a um passo adiante, pois é anterior a qualquer ato praticado pelo homem e, portanto, tende a ter na arte simplesmente um campo de atividade de emulação de seus efeitos. Exatamente porque a natureza não pode ser superada pela arte é que esta busca imitá-la, aperfeiçoando suas produções e comparando-as às criações daquela. Se, de modo geral, as artes da pintura, escultura e do desenho desenvolveram-se como homólogas às artes liberais, pois foram consideradas igualmente atividades emuladoras da natureza. De modo inverso, a natureza instruiu os artistas a agirem em conformidade com suas leis e princípios internos. Esse entendimento prosseguiu nas academias de arte europeias até os séculos XVIII e XIX (em alguns casos, até meados do século XX), e não é estranho conjecturar que Antonio María Esquivel tenha tido ciência dele em seu tempo e em seu círculo de formação, assim como Guëll e outros homens letrados à época em que o retrato dos meninos foi pintado.

A preceptiva que prega a superioridade da natureza não esteve presente apenas nos discursos sobre as artes. Ela foi um argumento importante para o pensamento de Jean Jacques Rousseau (1712-1778), que, como dissemos, apresenta-se lido também na pintura de los niños. Em seu Discurso (1750) sobre a questão “se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar os costumes” (que se popularizou no século seguinte como uma espécie de manual contra as regras e aparências sociais vazias), Rousseau propõe a ideia contraditória da segurança e bem comum, garantidos pelos governos, como antítese da liberdade individual. A troca consentida, do bem-estar social pela liberdade dos indivíduos, é ornamentada pelas letras e pelas artes, que ajudariam a escamoteá-la e enfraquecê-la ao invés de alimentá-la, pois “[...] estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro que eles carregam, sufocam neles o sentimento dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido, fazem-nos amar sua escravidão e formam assim os chamados povos policiados” ( ROUSSEAU, 2010, p. 22ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.).

Obviamente, Rousseau não parte de uma análise detalhada dos sistemas das Belas Artes ou das Práticas Letradas em seu tempo ou mais antigos. Ele apenas os generaliza, tratando-os como campos de produção de ornamentos que alimentam a superfluidade e a vacuidade dos indivíduos no trato social a fim de defender a ideia de que esses não nascem predispostos a acolher tais ornamentos. Rousseau diz:

[...] A riqueza do ornamento pode anunciar um homem opulento, e sua elegância um homem de gosto: o homem são e robusto é reconhecido por outros sinais; é sob a vestimenta rústica de um lavrador, e não sob os dourados do cortesão, que se encontrarão a força e o vigor do corpo [...] O homem de bem é um atleta que tem prazer em combater nu; despreza todos esses vis ornamentos que dificultam o uso das suas forças e cuja maior parte só foi inventada para ocultar alguma deformidade. ( ROUSSEAU, 2010, p. 22ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.).

Para Rousseau, a fim de se encontrar o homem verdadeiro, é preciso desnudá-lo, livrá-lo dos despojos que foram inventados para moldar seu espírito, uniformizando-o conforme regras e costumes aceitos como os mais convenientes para o convívio social. A rudeza, e não a polidez, demonstraria de modo mais direto e sincero o homem natural e seus caracteres, anunciados “ao primeiro golpe de vista”, antes que suas paixões tivessem sido modeladas pelas artes e ciências, antes que a sua voz tivesse sido apurada numa linguagem. O autor diz a este respeito: “[...] a polidez sempre exige, o decoro ordena; sem cessar, todos seguem os usos, jamais o seu próprio gênio” ( ROUSSEAU, 2010, p. 22ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.). Em decorrência dessa adequação – forçada –, as virtudes, mas principalmente os vícios, dos homens haverão de se ocultar “sob a urbanidade tão louvada”; a confiança verdadeira será trocada pela dissimulação e pela habilidade de convencimento do mais persuasivo sobre o menos, sempre camuflada de artificiosa e despretensiosa simplicidade. Nesse sentido, Rousseau propõe: “Tal é a pureza adquirida pelos nossos costumes: é assim que nos tornamos gente de bem” ( ROUSSEAU, 2010, p. 24ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.). Ou seja, para esse pensador, o domínio completo sobre o indivíduo e sua transformação em célula do tecido social é acelerado pela ciência que estrutura e dirige as artes como instrumentos de aprimoramento dos espíritos do homem, a Retórica. Esta não quer a busca da verdade (ao contrário da Filosofia), mas do verossímil, daquilo que em cada contexto ou lugar ou tipo de discurso possa conduzir à eficácia, como propunha Quintiliano na Instituição oratória – ou seja, a retórica como ars bene dicitur (“a arte de falar bem”) ( QUINTILIANO, 1921QUINTILIANO, Marcus Fabius. Institutio oratória / trad. H. E. Butler. Livros I-III. Boston: Loeb Classical Library, 1921.), ou de dizer o que é mais adequado em cada situação. Na retórica Rousseau pôde encontrar um sistema de regras conforme o conjunto de costumes autorizados, um consuetudo, não importando se tratar da demonstração da verdade, mas de expor a opinião segundo a qual as ciências e as artes agem como máquinas para a construção de indivíduos artificiais, que se comportam como um rebanho, buscando as mesmas coisas, cultivando os mesmos gostos e valores morais e culturais, obtendo como efeito de seu afã de aperfeiçoamento em sociedade, ao contrário, a “depravação” e a corrupção de suas almas.

A fim de validar o seu argumento com uma posição universal e atemporal, Rousseau propõe que o mesmo mal se abateu em todas as civilizações antigas, do Egito à Grécia, de Roma à Constantinopla, entre outras. Assumindo as ciências e as artes como sinédoques da Retórica, ele se coloca ao lado de Sócrates e suas antigas invectivas contra a Sofística. Semelhantemente ao filósofo grego antigo, que rejeitou toda forma acessória de conhecimento ao declarar que a sua única certeza era nada saber, Rousseau busca imaginar um lugar neutro em sua argumentação contra as formas e dogmas encarecidos pelas artes e ciências de seu tempo que visam a “boa” educação do homem a fim de adequá-lo à vida em sociedade, ao contrato social. No entanto, ele se utiliza de uma prosopographia na construção de seu discurso, o que também é um recurso retórico antigo, para fazer Sócrates falar aos leitores modernos: “Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas, nem os oradores, nem os artistas, nem eu, o que é o verdadeiro, o bom e o belo. Mas, há, entre nós, esta diferença: embora essa gente nada saiba, julga saber alguma coisa; ao passo que eu, não sabendo nada, ao menos não tenho dúvida. De sorte que toda essa superioridade de sabedoria que me foi concedida pelo oráculo se reduz apenas a estar bem convencido de que ignoro o que não sei” ( ROUSSEAU, 2010, p. 27ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.).

O Discurso

Veremos a adoção dessa neutralidade no campo da argumentação aplicada ainda de modo mais contundente no Emílio, ou da Educação (1762). Apesar de, em muitas das passagens da obra ( ROUSSEAU, 1999ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), serem claras as referências tomadas de outros autores, anteriores e contemporâneos, como Locke, Fenelon, Condillac, Montaigne, Rollin, Fleury e de muitos outros, Rousseau afirma logo no prefácio do livro: “Não é sobre as ideias dos outros que escrevo [...] é sobre as minhas. Não vejo da mesma forma que os demais; faz tempo que me reprovam [...]” ( ROUSSEAU, 1999, p. 5ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). A posição autodeclarada de neutralidade em relação às referências teóricas alheias é a condição precípua para uma reflexão que se constrói como uma espécie de nova maiêutica, inspirada na antiga forma dialógica desenvolvida por Sócrates para “conduzir” seus discípulos à verdade através de um jogo de perguntas simples e respostas. Se a verdade ou o conhecimento do que se é já está presente em cada um desde a sua origem, não cabe a um mestre demonstrar de antemão seu arsenal de informações, a sua erudição ou superioridade intelectual, incluindo o seu acervo bibliográfico. Antes, ele deve se comportar como um corifeu, como Sócrates se comportara (ou o tutor do jovem Emílio). Além disso, Rousseau está dizendo claramente que as ideias e opiniões daqueles que o cercam, tanto dos que o elogiam quanto dos que o censuram, não têm o poder de balizar-lhe ou afetar-lhe o pensamento. O problema comum de toda a teoria educacional disponível em seu tempo, em sua visão, consistia na busca de fazer com que o método correspondesse positivamente a um efeito pré-determinado, seja modelando o indivíduo para ser um bom cidadão, seja um humanista, um cristão, um cavalheiro etc. Para Rousseau, a criança não deveria ser encaminhada a se tornar outra coisa além aquilo que ela deve ser por sua natureza. Por isso, ele declara: “Viver é o ofício que eu quero lhe ensinar. Saindo de minhas mãos ela não será, reconheço, nem magistrado, nem soldado, nem sacerdote; antes de tudo ela será um homem” ( ROUSSEAU, 1999, p. 14ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). Esse desejo, contudo, não significa a vontade de afastar a criança do meio social onde nasceu e vive, ou ainda a tentativa de fazer-lhe escapar à realidade na qual esteja inserida. Ela, na verdade, deve ser preparada para se contrapor a todo poder que a obrigue a se moldar de acordo com uma convenção exterior, que não expressa nada de substancialmente fundamental para a sua vida. Em termos mais diretos, a criança deve aprender a se defender contra a sociedade, vista sempre como corrupta. Para Rousseau, o modelo tradicional de educação deve ser questionado por conta da falência da positividade humanista. Em algum momento, após ter se formado em contato com a natureza, e convivido em harmonia com ela e com seus semelhantes, o homem viu crescer a necessidade de apartar-se daquela. Em decorrência disso, cresceu nele também uma paixão desmesurada pelo poder e pela adoção de formas para submeter os seus semelhantes. Para Rousseau as instituições que deveriam corrigi-la e contê-la tornaram-se cúmplices para a sua manutenção e amplificação. As ciências nasceram do desejo de se proteger, as artes, do afã de brilhar, e a filosofia, da vontade de dominar. Não é verdade absoluta, portanto, que todo homem educado para ser um humanista sempre zelará pelo bem comum. A conclusão, adiantada no Discurso de 1750 (e no de 1755), é reafirmada no Emílio. Toda e qualquer tentativa de definição a priori do que seja uma essência humana, sua finalidade e objetivos sociais, ficou sujeita às formas de controle, dominação e dissimulação da verdade impostas pelas ciências e pelas artes, porquanto essas se habilitariam antes como meios sempiternos de representação das elites no poder, e menos como formas a serviço da liberdade de todos os homens.

Rousseau não pretendeu fazer uma crítica específica, no que concerne às Belas Artes, ao sistema vigente. Ele se utiliza de lugares comuns e exemplos, principalmente achados na História natural, de Plínio o Velho, também muito lido e repetido pelas academias de arte até pelo menos finais do século XIX, para propor oposições que contestem as artes como instrumentos de correção ou aperfeiçoamento moral. Numa dessas oposições, Rousseau propõe o luxo como um efeito buscado pelas artes de todos os tempos e, semelhantemente à posição de Plínio, como um de seus grandes males. Numa outra, o autor faz menção ao desejo de aplausos fáceis por parte dos artistas, o que os levaria a compor obras comuns, para serem apenas admiradas durante o seu tempo de vida em detrimento de outras, com valor universal. Outro lugar comum é usado aqui, também retórico, na medida em que nos faz lembrar de um tempo áureo, de outrora, em que a simplicidade reinava e no qual os homens olhavam para a “bela margem de um rio, ornada exclusivamente pelas mãos da natureza”. Novamente, como referido, reaparece o antigo tópos segundo o qual a Natureza supera a arte em seus produtos. Contudo, Rousseau cola a essa natureza os primeiros homens, livres do luxo e indiferentes às escolhas alheias. Num trecho do Discurso, ele diz: “Enquanto as comodidades da vida se multiplicam, as artes se aperfeiçoam e o luxo se estende, a verdadeira coragem se enerva, as virtudes militares se dissipam; e é ainda a obra das ciências e de todas as artes que se exercem à sombra dos gabinetes” ( ROUSSEAU, 2010, p. 36ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.). Para o autor, a cultura das ciências corrompe as qualidades guerreiras e morais; nesse ponto de seu discurso, aparece o mote da educação de “vossos filhos”, que não deve ser preenchida por julgamentos insensatos e efêmeros. As crianças devem aprender o “o que devem fazer sendo homens e não o que devem esquecer” ( ROUSSEAU, 2010, p. 37ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.). Contrário a toda educação que tem seu princípio baseado na autoridade, Rousseau sugere que as artes que vicejam em nossos jardins e galerias (museus) são modelos de “más ações”, cuidadosamente tirados das mitologias antigas e expostos aos olhos das crianças, a fim de despertar-lhes a curiosidade antes mesmo de saberem ler. Vem daí a noção, falsa e abusiva, da prodigalidade de alguns homens em detrimento da inferioridade de outros; alguns nascem mais poderosos, outros menos.

Poderíamos prosseguir com outros exemplos, acolhidos dos Discursos, sobre a incapacidade das ciências e das artes em aprimorar a conduta humana. Nesse ponto, contudo, já deve ter chamado a atenção uma aparente contradição (entre outras): O objetivo de nosso artigo é analisar uma pintura que retrata duas crianças, dois meninos, feita de acordo com os princípios das Belas Artes, ou seja, segundo os mesmos princípios que Rousseau contestou, julgando-os inadequados para educação de crianças e jovens. Güell encomendou uma pintura a Antonio María Esquivel que, aparentemente, para atender a orientação liberal do amigo, invocou elementos da filosofia de Rousseau, antiartística e antiacadêmica, na composição dos retratos de seus filhos, misturando-os ainda a referências da mitologia ou da cultura greco-romana.

A Retórica

A própria filosofia de Rousseau teve de vencer essa contradição: desenvolver-se numa linguagem acadêmica, mas contestadora institucionalmente, como dissemos, contradogmática e antiacadêmica. Novamente, a resposta para explicar essa aparente contradição se encontra na Retórica. Quintiliano dizia que nos tribunais antigos muitas vezes os oradores se utilizavam de imagens para auxiliar ou corroborar as suas argumentações verbais; elas eram chamadas de “indicações”. Para Quintiliano o uso desses desenhos ou imagens era a prova cabal da ineficácia do discurso e da imperícia do orador. Isso porque era possível ao discurso usar de efeitos internos à própria linguagem para apresentar imagens plásticas aos olhos do ouvinte (e do leitor) sem recorrer a figuras ou desenhos visuais, físicos. Esses efeitos eram chamados pelos antigos gregos de écfrases, descrições. Eles tinham a capacidade de dotar o discurso de enargeia ou evidentia, segundo Quintiliano ( 1921, p. 29–32QUINTILIANO, Marcus Fabius. Institutio oratória / trad. H. E. Butler. Livros I-III. Boston: Loeb Classical Library, 1921.), de pôr diante dos olhos da imaginação qualquer coisa, existente ou não, sem a necessidade de se recorrer a imagens geradas pelas artes do desenho, da pintura etc. De um ponto de vista simples, o orador propôs a completa autonomia do discurso em relação a qualquer outro sistema de representação, e era isso o que ele entendia ser o propósito maior da Retórica, como dissemos anteriormente – ou seja, a busca de uma eficácia total do discurso. Inversamente, ao longo do tempo as artes buscaram emular a retórica, fazendo uso de suas estratégias, lugares comuns e produzindo-se de modo homólogo ao discurso falado e escrito.

Também o discurso de Rousseau é retórico, fazendo uso de uma posição de neutralidade ou de anteposição (que também é retórica) para se insurgir contra qualquer sentimento ou argumentação que não tenha a sua origem na experiência ou na própria natureza. Entretanto, como posição enunciativa do discurso, a neutralidade é um efeito da linguagem que, por sua vez, é uma ciência não natural, aprendida com outros homens. Para resolver essa primeira contradição, Rousseau tentou superar a diferença entre o conhecimento natural e o conhecimento adquirido, escalando a educação em três partes. No Emílio, ele diz:

Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos nos é dado pela educação. O desenvolvimento interno de nossas faculdades e órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e a aquisição de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas. Assim cada um de nós é formado por três tipos de mestres. [...] Ora, dessas três educações diferentes, a da natureza não depende de nós; a das coisas, só em alguns aspectos. A dos homens é a única de que somos realmente senhores [...] ( ROUSSEAU, 1999, p. 8–9ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.)

Rousseau viu a educação dada pela natureza e pelas coisas como passiva e parcialmente passiva. Ele afirma a primeira como natureza, mas não como um mero “hábito”: por exemplo, a inclinação natural de uma planta, a qual, se não contrariada, impedida ou forçada a outra inclinação por força de um agente externo, apenas responderá passivamente à sua orientação vertical, a sua seiva não se alterará, nem o fluxo de sua direção. Mas os homens, diferentemente das plantas, moldam-se pela educação. Das três partes ou tipos, apenas a educação dada pelos homens é ativa, “a única da qual somos senhores”, isto é, a única que pode pré-determinar um “alvo”, um escopo a ser alcançado, a única na qual a linguagem, que permite aos homens se comunicarem uns com os outros, pode ser ensinada. Rousseau diz ainda sobre a educação conforme a natureza: “[...] uma vez que a educação é uma arte, é quase impossível que ela tenha êxito, já que o concurso necessário a seu sucesso não depende de ninguém” ( ROUSSEAU, 1999, p. 9ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). Do alvo sugerido, apenas podemos “nos aproximar mais ou menos”. Isso pode ocorrer quando as três educações concorrerem numa mesma direção, e se as duas secundárias não caminharem em direções opostas à primeira. Para Rousseau, esse concurso unidirecional é muito difícil (novamente se manifesta a tópica antiga pela qual isso era possível ou conquistado com maior facilidade). Mas quando o alinhamento entre as três não se dá de modo conveniente, é necessário se optar por tentar “fazer um homem ou um cidadão”. Rousseau então declara a sua preferência: “O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com um seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social” ( ROUSSEAU, 1999, p. 11ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.).

A educação trazida por outros homens, bem como a experiência exercitada pela apreensão das coisas dizem respeito à aquisição das regras da linguagem e das técnicas discursivas tanto quanto à adaptação dessas aos fins que se deseja alcançar. Se a retórica tem a ver com a eficácia do discurso, e se no caso da argumentação filosófica de Rousseau essa eficácia diz respeito à censura e não aceitação de qualquer conhecimento pré-determinado ou qualquer opinião diferente ou discordante de suas asserções, logo, o seu discurso pode assumir a posição de neutralidade ou de afastamento da dóxa, a opinião costumeira, criticando-a e, ao mesmo tempo, reclamando a sua singularidade e originalidade. Seria possível assim, dentro de uma posição acadêmica (e usando dos exemplos e estratégias ensinados na academia) fazer a oposição à mesma instituição, criticando-a segundo as suas próprias regras, chicoteando-a, por assim dizer, com seu próprio chicote. Rousseau propõe no Emílio que educar uma criança não pressupõe “ensiná-la a suportar as dificuldades (da vida), mas de exercitá-la para senti-las” ( ROUSSEAU, 1999, p. 15ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.). Não se trata, outrossim, de destruir a academia e as instituições, ou de se vitimar ante a elas, assim como de buscar uma nova linguagem, de comportar-se como um desconhecido, um bárbaro ou selvagem, mas de limitar-lhes o poder sobre as nossas vidas. Educar é menos conservar para a vida, “impedi-los (nossos filhos) de morrer” ( ROUSSEAU, 1999, p. 15ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), diz Rousseau, e mais estimulá-los a viver, o que implicaria também uma autonomia quanto ao uso da linguagem, que não deveria ser apenas o exercício da mera repetição de clichês que dissimulam os verdadeiros sentimentos do sujeito enunciador. Ser livre para viver pressupõe ser livre para se expressar, para falar. Por isso, no proêmio do Discurso publicado em 1750, Rousseau, ao construir a costumeira captatio benevolentia, afirma não buscar acolher os aplausos alheios, mesmo sabendo que seus argumentos contrariavam a maioria de seus semelhantes, e mesmo que depois disso tenha ainda sido agraciado com um prêmio pela Academia de Dijon. A retórica lhe permite ser antiacadêmico dentro de um círculo estreito e acadêmico, com regras e preceitos compartilhados pela sua audiência. Dito de outro modo, Rousseau precisou utilizar de recursos linguísticos, de imagens e lugares comuns retóricos – referências colhidas graças a uma erudição que eram sabidas ou faziam parte da cultura de seus leitores e ouvintes – para construir um discurso que pudesse contrariar as certezas usuais. Não há maneira de se tornar polêmico se o outro não fala a sua língua, se não participa de seu círculo de erudição. Há uma interessante paridade entre o processo de aprendizagem natural defendido para o Emílio, por exemplo, e o modo como Rousseau constrói o seu discurso para a apresentação de seu texto. Ele sempre parte de exemplos gerais – “na ordem social”, “todos os homens”, “da condição humana” – para exemplos mais específicos, “de um homem”, “de uma certa condição”, “do meu aluno”; também há o uso amplo do recurso de écfrases, ou seja, da produção de imagens textuais que produzem no leitor a impressão de estar diante de um depoimento baseado numa experiência vivida.

Não se trata de repetir mandamentos aprendidos num manual sobre educação, mas de uma exposição arrazoada, a partir de pequenas teses e exemplos incisivos, que vão sendo alimentadas por perguntas cujas respostas já se encontram mais ou menos induzidas para uma mesma conclusão lógica, como a buscar gradualmente, passo a passo, a concordância do leitor e, assim, a sua anuência com a tese geral. No proêmio do Discurso de 1750, Rousseau diz: “O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para purificar ou para corromper os costumes? Eis o que se trata de examinar. Que partido devo tomar nessa questão? Aquele, senhores, que convém a um homem de bem que nada sabe e que como tal não se estima menos” ( ROUSSEAU, 2010, p. 19ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.). É como se declarasse, na condição de humildade que a captatio benevolentia requer: – falo aqui como um homem comum! Mas não só. Rousseau aparentemente quer dizer também: – falo aqui a partir de minha própria experiência, que considero mais valiosa do que os exemplos ensinados e repetidos mecanicamente dentro das academias.

A Pintura

Uma posição muito diferente pode ser pensada para a pintura de Esquivel. O artista, como referido, teve uma sólida formação acadêmica, iniciada em Sevilha e concluída em Madri na Academia San Fernando, da qual se tornou membro e professor. E não é sensato pensar que ao representar os filhos de Güell, a partir de referências da obra de Rousseau, o pintor assumiria uma posição antiacadêmica, o que contrariaria os preceitos praticados para o gênero do retrato naquele momento na arte espanhola. Não temos em Esquivel nada que possa assemelhá-lo a um dissenso das práticas acadêmicas, como o observado nas últimas obras de Goya, por exemplo, embora como este, tenha assimilado os preceitos da pintura de Velázquez, Murilo, de Anton Raphael Mengs, de franceses como Poussin, e de muito da pintura italiana dos séculos XVI e XVII. O mais apropriado seria pensar, como hipótese, que o pintor em respeito à sua amizade por Güell tenha exposto alguns dos preceitos rousseunianos estritamente dentro das convenções acadêmicas para o retrato enquanto gênero, reafirmando-as assim, ao invés de questioná-las, como o faz Rousseau nos Discursos e no Emílio de um modo generalizado contra as ciências. Um ano depois de pintar Los Niños, Esquivel produziu outra pintura sob encomenda, La Virgen María, el niño Jesús y el Espíritu Santo con ángeles en el fondo (Museu do Prado). A posição das pernas e a atitude do menino Jesus é semelhante à figura de Raimundo Roberto; as carnações e o tratamento de luz, vinda de lugar nenhum, também é muito semelhante, assim como a estruturação das paixões de todas as figuras de acordo com as regras acadêmicas e os preceitos da arte greco-romana ou suas revivescências. Há também que se considerar que as ideias rousseunianas não eram então mais avassaladoras, capazes de abalar as instituições que atacava. Não houve nem mesmo no tempo de Rousseau uma aversão rigorosa contra suas ideias. Lembramos que no proêmio do Discurso, Rousseau já alertava para essa contradição: receber um prêmio da Academia por um ensaio que justamente a vitupera.

Na idade de Esquivel e Güell, pode-se presumir que as ideias sobre a educação natural de Rousseau já estavam sedimentadas e incorporadas ao círculo de pensamento oficial, por mais que isso possa parecer contraditório. Esquivel, assim como seu amigo letrado Güell, são nesse momento leitores interessados de Rousseau, ou seja, de um sistema filosófico e político que já se encontra estabelecido e pronto para ser citado parcial ou integralmente. Como leitor, Esquivel soube produzir uma pintura delicada abordando, como já referido, as principais características visíveis do pensamento rousseuniano: as poses dos meninos, suas vestes, os animais, cachorro e pintassilgos que os acompanham, além de uma alusão explícita, a estampa da palavra liberdade na fivela da coleira do cachorro. Mas há outros elementos na pintura que não são visíveis e aparentemente foram lembrados pelo pintor no momento de construir o seu discurso sob a forma de pintura. No Ensaio sobre a origem das línguas (datado de 1759, segundo Petitain), Rousseau se propôs a abordar um tema que é de fundamental importância para as artes enquanto meio de comunicação e expressão de ideias a outrem – notadamente, a música. Logo no primeiro capítulo, Rousseau diz:

A palavra distingue o homem dentre os animais: a linguagem distingue as nações entre si; somente se sabe de onde é um homem após ele ter falado [...] No momento em que um homem foi reconhecido por um outro como um ser sensível, pensante e semelhante a ele, o desejo ou a necessidade de comunicar-lhe os próprios sentimentos e os próprios pensamentos fez com que procurasse os meios de fazê-lo. ( ROUSSEAU, 2003, p. 99ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas / trad. Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Unicamp, 2003.)

Rousseau então afirma que os meios que o homem tem para expressar-se são os sentidos, delimitando a ação sobre os outros homens basicamente pelo movimento ou gesto e pela voz. O gesto, considerado o mais fácil e imediato, depende pouco de convenções. Aqui Rousseau faz uma conjectura que atende diretamente à arte da pintura: “[...] pois é maior o número de objetos que impressionam os nossos olhos do que o dos que impressionam nossos ouvidos e as formas têm uma variedade maior do que os sons; elas são também mais expressivas e dizem mais em menor tempo” ( ROUSSEAU, 2003, p. 100ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas / trad. Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Unicamp, 2003.). Após fazer essa introdução, Rousseau declara que não é do gesto ou dos movimentos do corpo do que pretende falar; para ele, “nossos gestos nada mais significam além de nossa inquietação natural” ( ROUSSEAU, 2003, p. 100ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas / trad. Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Unicamp, 2003.). A sua intenção é propor uma interpretação que se alinhe às invectivas contra a existência de uma língua adâmica e universal. Em especial, interessa-lhe as ideias desenvolvidas por Condillac em seu Ensaio sobre o conhecimento humano (1746), o qual descreve o desenvolvimento ou evolução da mente humana a partir de estágios simples e diretamente ligados a fenômenos biológicos.

O desenvolvimento de “ideias simples” (originadas em percepções simples) em “ideias complexas”, resultantes da reunião de várias percepções, parece ser também o princípio para a explicação da evolução biológica da língua, desde que houvesse motivações fortes ou poderosas o suficiente para mover os homens das formas mais espontâneas de comunicação para as mais complexas. Nesse contexto, Rousseau desenvolverá a sua reflexão sobre a evolução da vida humana, da linguagem e da música. No entanto, o motivo de fundo para seu ensaio é a crítica, compartilhada pelos enciclopedistas, a Rameau. A arte de escrever se desenvolverá, por estágios, tornando-se absolutamente independente da arte de falar, tendo seus próprios códigos e convenções. Rousseau contraditoriamente entende a evolução da língua – e paralelamente, da música – como um sistema que se distancia da natureza, embora continue a defender a educação natural como a matriz de todo o conhecimento válido. A pintura de Esquivel, não dispondo da possibilidade de uso dos códigos linguísticos complexos, recuará para a primeira instância descrita por Rousseau, a das gestualidades, i attegiamenti para os italianos. Os meninos estão mudos; apenas nos fitam, confortáveis em seu elemento ou lugar, e a única palavra a fazer menção à filosofia rousseauniana está inscrita na coleira do cachorro que, pela sua própria natureza, é incapaz de falar ou escrever. Obviamente, antes de que qualquer tentativa de representação dos preceitos de Rousseau pudesse interferir na construção do retrato, há a presença da tópica antiga segundo a qual a poesia é pintura cega, e a pintura, vice-versa, é poesia muda Isso quer dizer que se a pintura, com seus próprios meios e materiais, pode se comportar homologamente à poesia, também pode fazê-lo em relação à filosofia, e mais particularmente, como comentários, ao pensamento de Rousseau. À pintura é permitido também, de modo alusivo, aproximar-se da música, dando a ver à imaginação do espectador os movimentos, ritmos e sons que comporiam a cena natural na ausência de seu homólogo imitativo. Porque, ao contrário da arte que se produzirá depois, no século XX, e daí em diante, o quadro nesse momento não era entendido como a destinação final da representação, mas seu ponto de partida.

A pintura é uma espécie de janela para a fantasia, para se acessar o olhar intelectual do juízo. Desse modo, o conjunto de preceitos e normas usados para a construção do retrato, advindos da sólida formação acadêmica de Esquivel, tornam-se os principais dispositivos a contrariar as premissas do pensamento de Rousseau sobre a educação natural e a liberdade, ainda que o pintor tenha tentado convertê-las como temas para agradar o seu amigo. Os meninos, travestidos de jovens selvagens, estão prontos para a educação que os incluirá em seu lugar de mérito na sociedade oitocentista, de acordo com a sua ascendência aristocrática e, ao mesmo tempo, com a posição republicana de seu pai. A propósito de uma situação semelhante, Rousseau propôs no Emílio um conselho controverso:

O pobre não precisa de educação; a de sua condição é obrigatória, não poderia ter outra. Pelo contrário, a educação que o rico recebe por sua condição é a que menos lhe convém, tanto para ele mesmo quanto para a sociedade. De resto, a educação natural deve tornar um homem próprio para todas as condições humanas; ora é menos razoável educar um pobre para ser rico do que um rico para ser pobre [...] ( ROUSSEAU, 1999, p. 30–31ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.)

A pintura retratando os meninos cumpre assim de forma adequada a apresentação de alguns preceitos da retórica rousseauniana, pois, antes de tudo, a pintura é um discurso retórico. Mas aos nossos olhos atuais, a arte de Antonio María Esquivel Suarez y Urbina pode parecer um pouco frívola ou pouco apaixonada. Não se trata evidentemente de um selvagem pintando, e a natureza como mestra ou matriz do conhecimento está ali presente como um lugar-comum longevo que sobreviveu nas Academias (basta lembrarmos que em seu tempo Vasari chamava a pintura decorrente desse lugar-comum de maniera greca antica). Em seus Discursos, Rousseau anteviu uma possibilidade horrível de atuação para os artistas egressos dessas instituições. Ele diz:

[...] chegou a hora em que cairá de vossas mãos o pincel destinado a aumentar a majestade dos nossos templos com imagens sublimes e santas ou será prostituído para ornar de pinturas lascivas os painéis de uma carruagem. E tu, rival de Praxíteles e dos Fídias; tu cujo cinzel os antigos teriam empregado em lhes fazer deuses capazes de desculpar a nossos olhos sua idolatria; inimitável Pigal, tua mão terá de escolher entre diminuir a barriga de um estafermo ou permanecer ociosa. ( ROUSSEAU, 2010, p. 35ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.)

A estas opções, Antonio María Esquivel preferiu ilustrá-lo.

Notas

Referências

  • DONI, Anton Francesco. Disegno del Doni, partito in più ragionamenti, ne quali si tratta della scoltura et pittura; de colori, de getti, de modegli, con molte cose appartenenti a quest’arti: & si termina la nobiltà dell’una et dell’altra professione con historie, esempi, et sentenze & nel fine alcune lettere che trattano della medesima matéria. Veneza: Gabriel Giolito di Ferrari, 1549.
  • ECO, UMBERTO. Arte e beleza na estética medieval / trad. de Antônio Guerreiro. 2 ed. Lisboa: Presença, 2000.
  • OSSORIO Y BERNARD, Manuel. Ensayo de un catálogo de periodistas españoles del siglo XIX. Madri: Imprenta y litografía de J. Palacios, 1903.
  • QUINTILIANO, Marcus Fabius. Institutio oratória / trad. H. E. Butler. Livros I-III. Boston: Loeb Classical Library, 1921.
  • RIPA, Cesare (ed.). Iconologia. Piero Buscaroli. Prefácio de Mario Praz. Milão: TEA, 1991.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou, da Educação / trad. Roberto Leal Ferreira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas / trad. Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Unicamp, 2003.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes & Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens / trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010.
  • 1
    As traduções de trechos em idiomas estrangeiros são de nossa autoria.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2023
  • Aceito
    29 Jun 2023
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