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LEMBRANÇAS DEPOSITADAS: A CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA ORGANIZACIONAL NO EXTINTO BANCO DA LAVOURA (BANLAVOURA) DE MINAS GERAIS

DEPOSITED REMEMBRANCE: THE CONSTRUCTION OF AN ORGANIZATIONAL MEMORY AT THE EXTINCT BANCO DA LAVOURA (BANLAVOURA) DE MINAS GERAIS

RECUERDOS DEPOSITADOS: LA CONSTRUCCIÓN DE UNA MEMORIA ORGANIZACIONAL EN EL EXTINTO BANCO DA LAVOURA (BANLAVOURA) DE MINAS GERAIS

Resumos

O presente artigo discute a construção da memória organizacional a partir da análise do vídeo Memória do tempo, produzido pelo extinto Banco da Lavoura de Minas Gerais (BanLavoura) em 1960, em comemoração aos 35 anos de sua fundação. Na ação que aqui denominamos de “um exercício de futurologia”, documentos e objetos também ficaram trancados em uma urna criada para tal fim até o ano 2000, quando foi reaberta. Foi analisado o discurso organizacional registrado no vídeo Memória do tempo, que ficou trancado na urna por 40 anos, como programado no planejamento da atividade. Realizamos também a coleta e análise de entrevistas com ex-empregados do BanLavoura. A pesquisa se valeu especialmente de referenciais sobre a construção da memória e da identidade organizacional, a fim de discutir a intencionalidade que permeia a construção de certo registro sobre a memória e história, que busca representar o passado da organização. Os resultados da análise demonstraram que a gestão organizacional tinha o interesse de preservar a história e memória da organização, mas não de qualquer história e memória. Não interessava recordar os insucessos, os fracassos, as fragilidades organizacionais, tampouco visou construir uma história com base nas memórias dos empregados, já que eles pouco aparecem no material que analisamos. Interessava fazer conhecer aquilo que colaboraria para a projeção de certa identidade organizacional e de uma memória de como o passado aconteceu. Assim, a memória se faz objeto de disputa e é construída ativamente de forma a contribuir para a forma como a organização é lembrada. Só assim, seria capaz de ajudar na construção de uma boa imagem perante os trabalhadores e a sociedade. Embora o banco estudado não exista mais e, por isso, não abrigue mais uma comunidade de “lavourenses”, o trabalho permite refletir sobre esforços análogos de preservação (e construção) da memória que possam ser realizados por outras organizações.

Memória organizacional; Construção da memória; História; Artefato de memória; BanLavoura


This paper discusses the construction of organizational memory based on the analysis of the video Memória do Tempo produced in 1960 by BanLavoura de Minas Gerais. The video was produced to celebrate the 35th anniversary of the organization. As part of the action that we here call “an exercise of futurology”, documents and objects were locked with the video in an urn created for this purpose, which was opened in the year 2000, forty years after its closing. The organizational discourse registered in the movie was analyzed and so were the interviews that we conducted with BanLavoura’s former employees. The research relied on current debates founded in literature that focus on organizational identity and the construction of organizational memory. Based on those references, we discussed the intentionality that permeates the construction of certain record on memory and history, which seeks to represent the past of the organization. The result shows that organization managers intended to preserve the history and the memory of the organization, but not the complete history or any memory. Organization managers were not interested in registering failures or organizational weaknesses, or in building a history based on employees’ accounts, since they barely appear in the analyzed material. They wanted to bring to light things that could project a certain organizational identity and memories of how the past happened. Thus, memory becomes a subject of dispute and is actively constructed to help shape the way the organization is remembered. Only then, it could help to build a good organizational image before the workers and society. Although the studied bank no longer exists and therefore no longer harbors a community of “lavourenses”, this paper allows reflections on similar efforts in preserving (and constructing) a memory made by other organizations.

Organizational memory; Memory construction; History; Memory artifacts; BanLavoura.


Este artículo discute la construcción de la memoria organizacional a partir del análisis del video Memoria del tiempo, producido por lo ya extinto BanLavoura de Minas Gerais en 1960 para celebrar los 35 años de su fundación. En la actividad, que aquí llamamos “un ejercicio de futurología”, documentos y objetos también fueron encerrados en una urna creada a tal fin hasta el año 2000, cuando fue reabierta. Fue analizado el discurso organizacional grabado en la película Memoria del tiempo, que permaneció encerrado en la urna por 40 años, según lo programado en la planificación de la actividad. También se realizó la recolección y análisis de entrevistas con ex empleados del BanLavoura. La investigación se basó en especial en las referencias acerca de la construcción de la memoria y de la identidad organizacional con el fin de discutir la intencionalidad que atraviessa la construcción en un registro sobre la memoria y la historia, que busca representar el pasado de la organización. Los resultados del análisis demostraron que la administración organizacional tenía el interés de preservar la historia y la memoria de la organización, pero no de cualquier historia y memoria. No interesaba recordar los fracasos, las debilidades organizacionales, ni trató de construir una historia basada en las memorias de los empleados, ya que poco aparecen en el material analizado. El interés era saber lo que colaboraría para la proyección de cierta identidad organizacional y de una memoria de cómo ocurrió el pasado. Así, la memoria se convierte en un objeto de disputa y es construida activamente con el fin de contribuir a la forma en que la organización es recordada. Sólo así podría ayudar en la construcción de una buena imagen entre los trabajadores y la sociedad. Aunque el banco estudiado ya no existe y por lo tanto ya no abriga una comunidad de “lavourenses”, el trabajo permite reflexionar sobre iniciativas similares de conservación (y construcción) de memoria que pueden ser realizadas por otras organizaciones.

Memoria organizacional; Construcción de la memoria; Historia; Artefactos de memoria; BanLavoura


1 RESGATE DE UMA HISTÓRIA SOBRE PASSADO E FUTURO NO BANLAVOURA

Este artigo analisa informações obtidas a partir de uma fonte inusitada: um filme institucional produzido por uma instituição bancária mineira, o BanLavoura, que foi guardado por 40 anos como uma mensagem do passado ao futuro. A partir da análise desse objeto, o artigo tem como objetivo colocar em evidência a intencionalidade subjacente à produção de suportes materiais ou monumentos à memória (LifschitzLifschitz, J. A. (2014). Os agenciamentos da memória política na América Latina. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29(85), 145-225.1 1 Salientamos que Lifschitz (2014) discute a memória política no contexto pós-ditaduras na América do Sul e, assim, tem uma preocupação mais ampla do que a nossa. , 2014Lifschitz, J. A. (2014). Os agenciamentos da memória política na América Latina. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29(85), 145-225.) organizacional. Uma memória que é disputada, ainda que não seja necessariamente política nos termos que coloca Lifschitz (2014)Lifschitz, J. A. (2014). Os agenciamentos da memória política na América Latina. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29(85), 145-225., já que não participa diretamente da construção de uma esfera pública. Especificamente no caso em estudo, os efeitos potenciais do filme analisado se diluíram devido à descontinuidade do banco que o produziu que foi renomeado e vendido algumas vezes, de forma que o potencial de formação de uma comunidade de sentido se diluiu.

Desde sua criação em 1925, o BanLavoura, fundado por Clemente Faria, José Belarmino Alves Júnior e outros investidores, adotou uma postura distinta de outros bancos ao focar na concessão de crédito para pessoas que não eram ricas (Costa, 2002Costa, F. N. (2002). Origem do capital bancário no Brasil: o caso Rubi (Texto para discussão, n. 106). Campinas: IE/Unicamp.). Até então, o acesso aos serviços bancários era destinado aos grandes depositantes (as classes média e alta) e às pessoas jurídicas. De acordo com Costa (2002, p. 3)Costa, F. N. (2002). Origem do capital bancário no Brasil: o caso Rubi (Texto para discussão, n. 106). Campinas: IE/Unicamp., em 1926, por iniciativa de Clemente Faria, o banco estabeleceu um setor de pequenos depósitos que contribuiu para que, além de clientes dos setores comercial e industrial, a organização passasse a atender também a população em geral.

O banco emprestava primordialmente aos pequenos negócios e às famílias, facilitando as operações de crédito ao dispensar a apresentação de avalistas. Tornou-se assim um banco sem concorrentes na oferta de crédito pessoal, tirando o espaço ocupado anteriormente por agiotas que exploravam essa lacuna no mercado, e se posicionou, no início da década de 1960, como o maior banco privado em funcionamento no Brasil e em toda a América Latina (Costa, 2002Costa, F. N. (2002). Origem do capital bancário no Brasil: o caso Rubi (Texto para discussão, n. 106). Campinas: IE/Unicamp.).

A fonte principal de nossas análises foi produzida em 1960. Em comemoração aos 35 anos da fundação do BanLavoura, a alta gestão investiu no fortalecimento da identidade da organização com uma ação que convidava os funcionários a pensar a instituição e a sociedade dali a 40 anos, nos anos 2000, ao mesmo tempo que produziu um vídeo chamado Memória do tempo (1960)Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection). para ser visto pelos funcionários do banco no futuro. Chamamos a atenção para o fato de o exercício deixar uma mensagem implícita: de que a organização continuaria existindo durante todo esse tempo, de modo que a mensagem não perderia seu sentido – o que não aconteceu.

Assim, os empregados foram convidados a escrever e desenhar suas “visões” de como seria a vida no ano 2000 e como estaria o BanLavoura nessa época. Quanto ao vídeo Memória do tempo (1960)Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., o BanLavoura o produziu em maio de 1960 e buscava mostrar o cotidiano de trabalho nos vários departamentos da sede administrativa, as principais tecnologias da época e as tarefas operacionais. Ainda, recolheram-se fotos, documentos, cartas, troféus conquistados pelo time de futebol do banco, entre outros objetos. Todo esse conteúdo foi acomodado em um cofre, que recebeu o nome de Urna Memória do Tempo, embutido em uma das paredes da agência em funcionamento na matriz que se situava no edifício Clemente Faria, na Praça Sete de Setembro, em Belo Horizonte, onde, depois de trancado, o cofre foi selado com uma placa que instruía que ele só poderia ser aberto no dia 16 de junho do ano 2000, 40 anos após seu fechamento.

Com o passar do tempo, as pessoas que participaram desse “exercício de futurologia” se afastaram da organização por vários motivos: aposentaram-se, demitiram-se, foram demitidas ou falecerem. O BanLavoura foi extinto e sucedido pelo Banco Real, cuja sede foi transferida para São Paulo (Costa, 2002Costa, F. N. (2002). Origem do capital bancário no Brasil: o caso Rubi (Texto para discussão, n. 106). Campinas: IE/Unicamp.). Posteriormente, em 1998, o Banco Real foi incorporado pelo holandês Banco ABN Amro. As novas gerações de empregados das agências de Belo Horizonte, que sucederam os empregados da década de 1960, foram perdendo o conhecimento a respeito dessa história. Poucos empregados das novas gerações de trabalhadores sabiam do cofre, e, para eles, seu conteúdo era um mistério. Afinal, o que tinha dentro dele? Joias? Um tesouro? Diamantes? Documentos comprometedores contra o governo? Ouro? O que havia de importante que não poderia ser aberto antes do ano 2000?

O mistério findou-se quando, chegada a data programada, o cofre foi aberto em uma solenidade que contou com a presença de representantes do então corpo diretor do atual banco e de antigos diretores e empregados do BanLavoura, conforme publicado em matéria do jornal Estado de Minas (Hemerson, 2000Hemerson, L. (2000, junho 17). Urna resgata história de banco. Estado de Minas, p. 25.). Dentre os diversos objetos e documentos inseridos no cofre, concentramos nossas análises no filme Memória do tempo, já que, depois da cerimônia, os originais passaram para a posse de um dos ex-diretores do banco e o museu do BanLavoura foi desativado. Também foram entrevistadas duas pessoas que trabalhavam no BanLavoura em 1960, das quais uma participou ativamente das atividades relativas à urna, e uma terceira pessoa que conhecia a história a partir da sua experiência numa das organizações que sucedeu o BanLavoura. Assim, valemo-nos tanto da análise do filme quanto dos discursos presentes nas entrevistas realizadas.

Valendo-nos desses dados e visando atender ao objetivo proposto, discutimos a identidade das organizações e as ligações que esta mantém com a história e a memória, que são construídas a partir da interação de diversas forças individuais e sociais. Apresentamos também o percurso metodológico do trabalho, seguido pela análise dos dados selecionados a partir do material colhido do filme e de entrevistas realizadas. Nas conclusões deste trabalho, reiteramos a importância de estudar a construção da memória das organizações como algo intencional, mas sujeito a contingências temporais, e apontamos a relevância deste trabalho para a área de estudos organizacionais.

2 A PROJEÇÃO DA IDENTIDADE NA CONSTRUÇÃO DA REPUTAÇÃO ORGANIZACIONAL

Caldas e Wood (1997)Caldas, M. P., & Wood, T. J. (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17. localizam temporalmente o surgimento de conceitos sobre a identidade na Antiguidade Clássica, em que figurava, por exemplo, como um dos axiomas dos estudos de lógica. Ainda segundo esses autores, no que se refere à filosofia clássica, atribui-se a Heráclito o estabelecimento do conceito de que a identidade estaria associada à ideia de permanência, singularidade e unicidade do que constitui a realidade das coisas. Ao longo do tempo, novos conceitos sobre identidade surgiram e se desenvolveram em diferentes áreas do conhecimento, como a sociologia, psicologia e psicanálise, e também nos estudos organizacionais, em que as abordagens sobre identidade estão sendo aplicadas não apenas a indivíduos, como também a grupos sociais, como instituições religiosas, agremiações e empresas (Caldas & Wood, 1997Caldas, M. P., & Wood, T. J. (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17.). Para Souza e Carrieri (2012, p. 42)Souza, M. M., & Carrieri, A. P. (2012). Identidades, práticas discursivas e os estudos organizacionais: uma proposta teórico-metodológica. Cadernos Ebape.BR, 10(1), 40-64.: “A perspectiva da identidade tem se modificado, de núcleo autônomo, permanente e constante, para uma perspectiva dinâmica, de processo em construção”.

A identidade organizacional é influenciada pela visão de mundo dos diversos atores e é resultante da representação compartilhada pelos membros das organizações, bem como daqueles que com ela também interagem. Para Saraiva, Carrieri, Enoque e Gandolfi (2010, p. 184)Saraiva, L. A. S., Carrieri, A. P., Enoque, A. G., & Gandolfi, P. E. (2010). Identidade nas organizações: uma questão polêmica em curso. In A. P. Carrieri, L. A. S. Saraiva, A. G. Enoque & P. E. Gandolfi (Orgs.). Identidade nas organizações (pp. 183-186). Curitiba: Juruá., essa perspectiva

[...] corrobora com a visão de que a identidade organizacional pode ser percebida também pela afinidade do empreendimento, ou seja, a missão, o propósito ou o objetivo comum que reúne todos os membros da organização. Nesse sentido a identidade é um processo de construção social, cujos significados são socialmente compartilhados por todos os atores sociais.

Nesse processo de construção social, na perspectiva de Caldas e Wood (1997)Caldas, M. P., & Wood, T. J. (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17., a identidade organizacional compreenderia a percepção compartilhada de seus membros sobre o que é central, distintivo e duradouro no âmbito organizacional. A centralidade está relacionada com a percepção do que é a essência da organização. A distintividade registra as características que diferem uma organização das outras. Por fim, a durabilidade remete à capacidade organizacional de se sustentar ao longo do tempo. Esse conjunto de elementos diferencia as organizações e possibilita que se lhes possa atribuir uma identidade, embora seja importante ressaltar que essa identidade é fluida e, portanto, está em constante mudança, pois a construção social de que é fruto é dinâmica e as percepções que constroem essa identidade se modificam ao longo do tempo sob a influência de novos contextos (Caldas & Wood, 1997Caldas, M. P., & Wood, T. J. (1997). Identidade organizacional. Revista de Administração de Empresas, 37(1), 6-17.; Almeida, 2005Almeida, A. L. C. (2005). A influência da identidade projetada na reputação organizacional. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.; Souza, Carrieri, & Faria, 2009Souza, M. M. P., Carrieri, A. P., & Faria, A. A. M. (2009). A projeção da identidade organizacional: um estudo da identidade de uma ferrovia privatizada. In A. P. Carrieri, L. A. S. Saraiva, T. D. Pimentel & P. A. G. Souza-Ricardo (orgs.) Análise do discurso em estudos organizacionais (pp. 249-275). Curitiba: Juruá.; Saraiva et al., 2010Saraiva, L. A. S. (2009). Mercantilização da cultura e dinâmica simbólica local: a indústria cultural em Itabira, Minas Gerais. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.; Souza & Carrieri, 2012Souza, I. D. S., & Takahashi, V. P. (2012). A visão de futuro por meio de cenários prospectivos: uma ferramenta para a antecipação da inovação disruptiva. Future Studies Research Journal: Trends and Strategies, 4(2), 102-132.).

Carrieri, Paula e Davel (2008)Carrieri, A. P., Paula, A. P. P., & Davel, E. (2008, abril/junho). Identidade nas organizações: Múltipla? Fluida? Autônoma? Organizações & Sociedade, 15(45), 127-144. defendem que a temática da identidade deve ser estudada por várias vias teóricas e epistemológicas, pois estudar a identidade apenas por um de seus prismas limita a percepção em torno dos fenômenos a ela associados, visto que esse campo de pesquisa é complexo, multidimensional e pluridisciplinar. No intuito de demonstrar a importância e validade de sua proposta, os autores apresentam a identidade sob a ótica de três abordagens distintas: multiplicidade, fluidez e autonomia.

No que se refere à multiplicidade da identidade, Carrieri et al. (2008, p. 132)Carrieri, A. P., Paula, A. P. P., & Davel, E. (2008, abril/junho). Identidade nas organizações: Múltipla? Fluida? Autônoma? Organizações & Sociedade, 15(45), 127-144. contrapõem duas visões antagônicas, a holográfica e a ideográfica: “Pela primeira, a identidade existente e predominante seria a da alta administração, e ela percorreria toda a organização, podendo ser evidenciada em qualquer parte desta”. Essa perspectiva permite ver uma identidade “organizacional”, patrocinada pela alta gerência, objetivando sustentar uma identidade homogênea, duradoura e única, de forma que ela – essa “identidade organizacional” – represente integralmente os diversos sujeitos organizacionais. Já na perspectiva ideográfica, a identidade é considerada múltipla. Os indivíduos construiriam sua identidade por meio de suas experiências a partir das interações com outros sujeitos. Ao mesmo tempo que eles têm uma identidade individual, fragmentada, constroem uma identidade grupal, de forma que possam se identificar e melhor interagir com os membros dos grupos de sua interação. A identidade seria, nessa visão, complexa, multifacetada e sujeita a transformações contingenciais.

É nesse contexto contingencial que a identidade como produto de mudanças pode ser estudada no que se refere à sua fluidez. A identidade está sujeita, nessa perspectiva, a mudanças contínuas decorrentes dos processos de ajuste e reconstrução a que se submete perpetuamente. Isso não se aplica somente à identidade individual, já que a identidade nas organizações pode ser entendida como resultado contextual e temporário de um processo interminável de reconstrução (Carrieri et al., 2008Carrieri, A. P., Paula, A. P. P., & Davel, E. (2008, abril/junho). Identidade nas organizações: Múltipla? Fluida? Autônoma? Organizações & Sociedade, 15(45), 127-144.).

Como apontam Schultz e Hernes (2013)Schultz, M., & Hernes, T. (2013). A temporal perspective on organizational identity. Organization Science, 24(1), 1-21., a identidade organizacional pode ser vista como um processo em permanente construção, que se calca também na memória revisitada e reinterpretada, acessada a partir de diversas fontes (orais, materiais ou textuais, por exemplo). O fortalecimento da identidade organizacional pode trazer impactos nos indivíduos que podem ser seduzidos pela possibilidade de projetarem suas identidades nas organizações.

Carrieri et al. (2008)Carrieri, A. P., Paula, A. P. P., & Davel, E. (2008, abril/junho). Identidade nas organizações: Múltipla? Fluida? Autônoma? Organizações & Sociedade, 15(45), 127-144. asseveram que a identidade organizacional é importante na construção da identidade individual, embora a última não possa se subsumir à primeira. Esses autores apontam que não necessariamente o sentimento de pertencimento a uma organização é algo negativo e salientam que o problema está no risco de o indivíduo se desestruturar como sujeito, na medida em que suporta sua identidade na organização.

Em relação à identidade projetada, Almeida (2005, p. 46)Almeida, A. L. C. (2005). A influência da identidade projetada na reputação organizacional. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. estabelece que ela

[...] inclui a identidade corporativa, considerada como a tradução visual do que é a organização, mas também incorpora todo o discurso da alta gerência, sobre o que é a organização, que pode ser expresso através de folhetos institucionais, cdrom, homepage, jornais e/ou revistas internos, palestras, intranet, matérias veiculadas na imprensa, anúncios, campanhas promocionais e institucionais dentre os vários meios e ações de comunicação adotados pela organização como forma de se posicionar interna e externamente.

A identidade projetada, sob essa perspectiva, é formulada e divulgada pela alta gerência, utilizando-se dos recursos de comunicação disponíveis, para criar uma identidade coletiva da organização (Almeida, 2005Almeida, A. L. C. (2005). A influência da identidade projetada na reputação organizacional. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.). Dessa forma, a projeção da identidade organizacional visa atender aos interesses da alta gestão de criar, manter e fazer prosperar uma imagem positiva da organização, preservando-lhe os interesses por meio de uma reputação ilibada. Há, portanto, um vínculo entre a identidade e a reputação organizacional. Sobre esse vínculo, Almeida (2008, p. 31)Bosi, E. (1979). Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz. salienta que

[...] a identidade interfere na imagem e reputação e, por sua vez, imagem e reputação interferem na construção e manutenção da identidade. Esse é um processo contínuo e cíclico, em que a organização deve buscar um alinhamento entre as percepções internas e externas, de forma a consolidar uma reputação sustentada ao longo dos anos.

E nesse processo, como apontam Anteby e Molnár (2012)Anteby, M., & Molnár, V. (2012). Collective memory meets organizational identity: remembering to forget in a firm's rhetorical history. Academy of Management Journal, 55(3), 515-540., a produção de uma memória coletiva é parte importante da construção de uma identidade organizacional, que, por sua vez, também influencia no processo de construção da memória. Na história de uma firma, escolher o que lembrar e o que esquecer envolve decisões conscientes e inconscientes (Anteby & Molnar, 2012Anteby, M., & Molnár, V. (2012). Collective memory meets organizational identity: remembering to forget in a firm's rhetorical history. Academy of Management Journal, 55(3), 515-540.), que são reforçadas por diversas formas de registro que podem se tornar monumentos (Le Goff, 2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp.) evocativos para que certas narrativas sejam reforçadas. Le Goff (2003, p. 29)Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp. vê a memória como “essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o passado vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado”.

Com base em Pollak (1989)Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15., é possível afirmar que a memória nunca é reflexo do vivido, mas sempre um processo de releitura de fatos interpretados que podem ser compartilhados a partir de diversas formas narrativas compartilhadas por um grupo. O autor aponta que a memória é permanentemente reconstruída a partir do presente, sempre revisitando e ressignificando eventos, objetos e ações que se desenrolaram ou representam um passado.

Howard-Grenville, Metzger e Meyer (2013)Howard-Greenvile, J., Metzger, M. L., & Meyer, A. D. (2013). Rekindling the flame: processes of identity resurrection. Academy of Management Journal, 56(1), 113-136. apontam que diversas marcas se utilizaram da estratégia de reviver – e reconstruir – memórias a fim de se valer de uma identidade que se enfraqueceu ao longo do tempo. Os autores colocam que o resgate de uma identidade enfraquecida pode fornecer um novo senso de orientação para a organização. Como um processo intencional e conduzido por interessados, essa revisão de elementos buscados no passado “de glórias” fornece uma estratégia à parte para organizações ao longo do tempo. Dessa maneira, o caso estudado foi um investimento com potenciais de impactar no futuro da organização. Contudo, a descontinuidade do BanLavoura reduziu drasticamente o potencial da abertura da urna para o reavivamento de memórias.

O filme Memória do tempo (1960)Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection). possibilita o resgate e a reconstrução da memória, operação que deve ser vista como um processo constante, muito mais do que como um ponto de chegada (Ketelaar, 2005Ketelaar, E. (2005). Sharing: collected memories in communities of records. Archives and manuscripts, 33(1), 44-61.). Não permitiu, contudo, pois a validade social desse artefato de memória, entendido aqui como um objeto (nesse caso, o vídeo) capaz de reter certas informações e transmiti-las a novas audiências, seja de forma latente ou manifesta. A ideia de artefatos de memória foi tratada por Lopes (2002)Lopes, L. C. (2002). Artefatos de memória e representações nas mídias. Ciberlegenda, 7, 1-11. especialmente em relação a conteúdos da mídia e tem semelhanças com a ideia de enquadramentos discursivos, mas é trazida aqui para denominar como entendemos o vídeo que analisamos.

Como artefato de memória dedicada a pessoas que estão fora do grupo, o filme obedece à lógica de construir uma narrativa mais asséptica, eliminando informações que poderiam abalar a imagem do grupo ou que são consideradas desinteressantes para membros externos. Ainda que o BanLavoura não exista mais como grupo capaz de atribuir sentidos ao artefato resgatado, o objeto legado permanece compreensível e agente construtor de uma memória que tem menos importância simbólica do que teria caso o banco ainda existisse (Ketelaar, 2005Ketelaar, E. (2005). Sharing: collected memories in communities of records. Archives and manuscripts, 33(1), 44-61.), mas que não deixa de atuar na elaboração de uma memória sobre a instituição. Embora não produza efeito direto em uma comunidade de “lavourenses”, a inexistência destes permite olhar tudo com maior estranhamento.

3 HISTÓRIA, MEMÓRIA E SUAS INTERFACES COM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

A aproximação com a história pode contribuir significativamente para a administração ao emprestar suas teorias e métodos para o levantamento e a análise de fenômenos organizacionais. Gomes e Santana (2010, p. 2)Gomes, A. F., & Santana, W. G. P. (2010). A história oral na análise organizacional: a possível e promissora conversa entre a história e a administração. Cadernos Ebape.BR, 8(1), 1-18. salientam que “o diálogo História-Administração pode trazer um novo olhar para os estudos organizacionais ao contemplar as ‘vozes’ do ‘passado’ ou dos ‘esquecidos’”. Para Costa, Barros e Martins (2010, p. 289)Costa, A. S. M., Barros, D. F., & Martins, P. E. M. (2010). Perspectiva histórica em administração: novos objetos, novos problemas, novas abordagens. Revista de Administração de Empresas, 50(3), 288-299.:

A ideia é que a pesquisa histórica contribua para fundamentar pesquisadores que buscam novos olhares e estejam comprometidos com outras epistemologias, expandindo as possibilidades de análise e teorização acerca do espaço organizacional, entendido aqui não como um espaço físico, mas como um campo objeto de estudo da análise organizacional e de sua dinâmica.

Assim, refletir sobre o passado organizacional permite lançar um novo olhar sobre a história das organizações e mesmo da administração, como mostram Barros, Cruz, Xavier, Carrieri e Lima (2011)Barros, A., Cruz, R., Xavier, W., Carrieri, A., & Lima, G. (2011). Apropriação dos saberes administrativos: um olhar alternativo sobre o desenvolvimento da área. Revista de Administração Mackenzie, 12(5), 43-67. ou Vizeu (2010)Vizeu, F. (2010). Recontando a (velha) história: reflexões sobre a gênese do management. Revista de Administração Contemporânea, 14(5), 780-797.. Assim, é possível visitar ou construir narrativas a partir de informações que possam ter se perdido ou não ter sido convenientemente exploradas, como é o caso da pesquisa a que se refere este trabalho, que resgatou para o meio acadêmico uma interessante atividade organizacional que permanecia esquecida na memória e desconhecida no tempo. Resgates dessa natureza poderão ser profícuos se o objeto de estudo for o cotidiano organizacional e aqueles que o praticavam.

Gomes e Santana (2010)Gomes, A. F., & Santana, W. G. P. (2010). A história oral na análise organizacional: a possível e promissora conversa entre a história e a administração. Cadernos Ebape.BR, 8(1), 1-18. relembram que, até o início do século XX, a construção e a reconstrução da história se pautavam em documentos tidos como reprodutores da realidade, predominantemente os escritos. Com o surgimento da Escola dos Annales, a partir da década de 1920, desenvolve-se uma nova forma de fazer história, criando novos conceitos, abordagens e métodos. Os Annales transcendem a atitude tradicional de compreender o presente pelo passado ao reconhecerem que se descobre o passado pelo presente (Le Goff, 2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp.). A análise do passado é feita por meio do presente e sobre as influências do presente, em que se situa o pesquisador (Le Goff, 2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp.). Sobre os Annales, Gomes e Santana (2010, p. 4)Gomes, A. F., & Santana, W. G. P. (2010). A história oral na análise organizacional: a possível e promissora conversa entre a história e a administração. Cadernos Ebape.BR, 8(1), 1-18. informam o seguinte:

O grupo dos Annales passou a ser denominado, mais tarde, de “nova história”, dedicando-se, sobretudo, à história do cotidiano e das mentalidades. Os historiadores desse grupo apontaram a necessidade de a História se dedicar menos aos acontecimentos, aos heróis e à cronologia dos fatos.

Essa nova perspectiva de estudo da história, com foco de estudo na sociedade e nos grupos organizados (Le Goff, 2003Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp.), favoreceu sua aproximação com a administração. Costa et al. (2010)Costa, A. S. M., Barros, D. F., & Martins, P. E. M. (2010). Perspectiva histórica em administração: novos objetos, novos problemas, novas abordagens. Revista de Administração de Empresas, 50(3), 288-299. salientam que, a princípio, os estudos se focavam nas histórias empresarial e da gestão. A esse respeito, Costa e Saraiva (2011, p. 1768)Costa, A., & Saraiva, L. (2011). Memória e formalização do passado nas organizações. Revista de Administração Pública, 45(6), 1761-1780. salientam que os relatos históricos sobre as organizações tendiam a “engrandecer os feitos do passado, a narrar de forma épica as dificuldades dos anos iniciais, a romantizar a atuação dos líderes em períodos-chave”. Buscava-se, portanto, legitimar as histórias das organizações como oficiais e definitivas dos fatos, desconsiderando-se a possível existência de várias outras versões (Costa & Saraiva, 2011Costa, A., & Saraiva, L. (2011). Memória e formalização do passado nas organizações. Revista de Administração Pública, 45(6), 1761-1780.). Posteriormente, surgiram estudos enfatizando outros aspectos da história organizacional, cuja abordagem, diferente das anteriores,

[...] concentra-se em conceitos e concepções provenientes da teoria organizacional e das ciências sociais e humanidades. Seu foco de pesquisa é mais abrangente, englobando não somente estudos sobre o passado/futuro das organizações, mas estudos acerca do sentido do passado/futuro para as organizações; estudos dos processos organizacionais por trás das histórias corporativas oficiais e as razões para que essas histórias sejam escolhidas e não outras. Em última análise, a ideia é historicizar as organizações contemplando as dimensões e clivagens de poder (Costa et al. 2010Costa, A. S. M., Barros, D. F., & Martins, P. E. M. (2010). Perspectiva histórica em administração: novos objetos, novos problemas, novas abordagens. Revista de Administração de Empresas, 50(3), 288-299., p. 295).

No entanto, essa abordagem histórica das organizações apresenta um significativo desafio. Sobre a dimensão desse desafio, Costa e Saraiva (2011, p. 1762)Costa, A., & Saraiva, L. (2011). Memória e formalização do passado nas organizações. Revista de Administração Pública, 45(6), 1761-1780. afirmam o seguinte:

A dimensão do desafio se conecta ao fato de que, em uma área que pretende aprofundar o que jaz sobre o funcionamento da administração, a discussão da memória ocorre dentro de uma perspectiva de memória social e coletiva, algo ainda pouco levada a cabo. Como não há apenas uma memória, é preciso resgatar outros registros quase inexistentes, silenciosos, não óbvios, mas, também, legítimos.

Nessa perspectiva, quando se pretende reconstruir a história organizacional a partir de outros olhares, contrariando e criticando as abordagens tradicionais que contam e recontam a história unicamente a partir da visão da alta gestão, dificilmente se poderá valer de documentos formais em tal reconstrução, pela inexistência de tais documentos. Nesse âmbito, a memória é o instrumento primordial para a reconstrução da história organizacional.

Contudo, as memórias também são construídas e reconstruídas ao longo do tempo. Le Goff (2003, p. 419)Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp. retrata a memória da seguinte forma:

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.

Le Goff (2003)Le Goff, J. (2003). História e memória (5a ed.). Campinas: Unicamp. aponta que as teorias que abordavam o processo de atualização da memória como algo mecânico foram abandonadas e deram lugar a teorias que consideram a complexidade da atividade mnemônica do cérebro e do sistema nervoso. As novas abordagens sobre o processo de memória consideram que não somente a ordenação de vestígios é fruto da memória humana, mas também esses vestígios são submetidos a releituras. Novos conhecimentos podem alterar o que se sabia e modificar a memória que se tem sobre algo. Lembramos que nenhum diálogo a respeito do passado e do presente é neutro, uma vez que sua expressão se dá sob a influência de um sistema de valores: “Isto significa que a memória, quando formalizada, torna possível uma (re)elaboração do mundo, transformando e sustentando realidades existentes” (Costa & Saraiva, 2011Costa, A., & Saraiva, L. (2011). Memória e formalização do passado nas organizações. Revista de Administração Pública, 45(6), 1761-1780., p. 1763).

Figueiredo (2009, p. 17)Figueiredo, M. C. (2009). Da memória dos trabalhadores à memória Petrobras: a história de um projeto. Dissertação de mestrado, Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. salienta que “a memória ajuda as pessoas a encarar as suas trajetórias de vida com todas as nuances, ‘desvios’ ou problemas, criando uma coerência nesse passado e a pensar em um projeto de vida futura, pois permite desenhar um passado para dar-lhe suporte”. O mesmo vale em certa medida para as organizações que, especialmente por meio das ações da alta gestão, podem escolher guardar certas lembranças e se desfazer de outras, num processo que permite a construção de uma memória coerente com a imagem que se deseja projetar.

Tanto quanto o pesquisador visita o passado a partir do presente, os sujeitos também o fazem quando acessam suas memórias e atribuem novos significados a elas. A escrita e a oralidade, bem como filmes e fotografias, são instrumentos de armazenamento e transmissão da memória por meio de discursos. Ao resgatar as memórias transmitidas nos discursos, o pesquisador deve considerar o contexto e o “lugar” de produção desses discursos para compreender a releitura que carregam.

Para Ribeiro (2003, pp. 9-10)Ribeiro, E. M. (2003, julho/dezembro) Agregação e poder rural nas fazendas do baixo Jequitinhonha mineiro. Unimontes Científica, 5(2), 1-17., trabalhar as lembranças é difícil, mas também importante:

Seu recorte e organização, a relevância dos acontecimentos dentro da narrativa busca alcançar um determinado efeito, pois ela não é uma massa fixa, mas uma matéria moldável, plástica, que [...] pode ser refeita no momento, desfeita daquela ordem que se apresentara em outra ocasião, reformada para alcançar em certo ouvinte um determinado efeito. Lembrança tem uma qualidade diferente do documento escrito: a matéria da memória já é sutil na própria locução e seleção; não é estável como a matéria impressa e a imagem [...].

Pesquisar a história e a memória no âmbito organizacional possibilita conhecer outras versões da história empresarial, evidenciadas pelo resgate das “memórias esquecidas”, “memórias subterrâneas”, “memórias clandestinas”, “memórias vergonhosas” e “memórias proibidas” (Costa & Saraiva, 2011Costa, A., & Saraiva, L. (2011). Memória e formalização do passado nas organizações. Revista de Administração Pública, 45(6), 1761-1780.), que a gestão organizacional se esforça em esconder e fazer esquecer, a fim de perpetuar, apenas, as memórias que considera “limpas” e, portanto, incapazes de ferir sua reputação. Mas também permite olhar criticamente para as escolhas delineadas a fim de tornar certos artefatos e objetos como monumentos à memória desejada, que seria coerente com a identidade projetada. É esse o percurso que acreditamos ser possível observar na análise do filme e das entrevistas que realizamos. O filme Memória do tempo (1960)Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., que pode ser entendido como um monumento ao passado do BanLavoura e como um artefato que visava projetar certa identidade sobre o futuro, está repleto de delineamentos que mostram como o banco do passado gostaria de ser visto e lembrado no futuro ou que memória que se deveria guardar.

Schultz e Hernes (2013)Schultz, M., & Hernes, T. (2013). A temporal perspective on organizational identity. Organization Science, 24(1), 1-21. apontam para a necessidade de considerar não apenas o futuro como incerto, mas também o potencial que a memória tem de delinear possíveis desenvolvimentos para a identidade organizacional. Acreditamos que o vídeo analisado teria imenso potencial de fortalecer e revigorar certa memória da organização, sendo capaz inclusive de influenciar seus rumos futuros. Esse efeito foi observado por Schultz e Hernes (2013)Schultz, M., & Hernes, T. (2013). A temporal perspective on organizational identity. Organization Science, 24(1), 1-21. quando apontam para a importância simbólica da descoberta de uma carta assinada pelo fundador de uma grande empresa. Contudo, e esse é mais um ponto que reforça a memória como um processo em construção, uma vez que a comunidade na qual o vídeo ressoaria já havia se dissolvido, ele passa a ser apenas um artefato a evocar o passado, provocando rememorações em indivíduos isoladamente, sem criar uma comunidade de memória capaz de se apropriar do conteúdo do vídeo (como notamos nas entrevistas).

4 ESCOLHAS METODOLÓGICAS

Nesta pesquisa, foram adotados dois métodos distintos de coleta de dados: pesquisa documental e entrevista. A pesquisa documental foi o método de coleta principal desta pesquisa, e o documento analisado, o filme Memória do tempo (1960)Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection).. O filme foi produzido pelo Departamento de Expansão (DEX), do BanLavoura, em maio de 1960, e tinha a finalidade de transmitir a imagem do banco para as gerações futuras. A ideia de fazer um exercício de futurologia criando a Urna Memória do Tempo fez parte das comemorações dos 35 anos do BanLavoura. Esse filme permaneceu inédito até o ano 2000, pois não foi transmitido aos empregados da época.

O vídeo analisado tem 29 minutos e é a versão completa retirada do cofre do extinto BanLavoura. Apresentou-se essa versão em um treinamento para gerentes do Banco Real – ABN Amro Real – (por volta de 2001), mas não foi disponibilizada para eles e continuou guardada na organização. Apenas em 2007, uma versão editada desse vídeo – compactada em cinco minutos – voltou a ser transmitida em um evento com os gerentes gerais de todo o Brasil. Após o evento, cada um dos gerentes gerais recebeu um DVD do evento em que esse vídeo compacto estava também gravado. Foi a esse DVD que um dos autores deste texto teve acesso num primeiro momento. A principal diferença da versão reduzida em relação à completa é o corte da apresentação de vários departamentos e dos respectivos chefes da época.

Os demais documentos e objetos retirados da Urna Memória do Tempo não puderam ser pesquisados, pois o paradeiro deles é ignorado, conforme informações obtidas com empregados da área de gestão de pessoas do Banco Santander, atual sucessor do BanLavoura. Cabe lembrar que, em 2000, quando a urna foi aberta, o sucessor do BanLavoura era o ABN Amro Real. Além disso, não localizamos nenhum material escrito na década de 1960 que tratasse da urna, embora os entrevistados nos tenham informado que o BanLavoura possuía uma revista de circulação interna, chamada Revista BanLavoura, que registrava os principais acontecimentos organizacionais e também trazia alguns registros sobre os funcionários. As revistas eram guardadas no museu2 2 A existência de um museu do BanLavoura, que posteriormente se tornaria o museu do Banco Real, pelo menos até os anos 2000, mostra que era dada importância a essa forma de manutenção da memória. É possível que tal acervo ainda exista em mãos de particulares ou em posse do banco, ainda que seu paradeiro seja ignorado pelos entrevistados e por outras pessoas do banco interrogadas em Belo Horizonte e São Paulo. do banco, em Belo Horizonte, material que se perdeu após a desativação do espaço.

A entrevista foi empregada como técnica secundária no levantamento de dados, e sua utilização objetivou levantar dados sob a ótica dos ex-empregados do BanLavoura, de forma a complementar os dados já obtidos no filme. Muitos dos funcionários que trabalhavam no BanLavoura em 1960 faleceram ou são desconhecidos pelos atuais funcionários do Banco Santander, o que limitou a possibilidade de entrevistas.

As entrevistas realizadas foram de curta duração, porque os interrogados pareciam não ter dado importância ao conteúdo do cofre à época em que a atividade foi realizada, embora tenham se emocionado ao ver o filme. Várias das pessoas que são identificadas no vídeo já faleceram, o que nos foi informado tanto por entrevistados quanto por funcionários que trabalharam no Banco Real. Dos entrevistados, um era gerente administrativo em uma agência do interior e foi transferido para o departamento de recursos humanos em Belo Horizonte logo após o fechamento da urna. Outro era um funcionário do nível operacional que trabalhava na matriz na época do fechamento da urna. Uma terceira entrevistada era gerente administrativa do Banco Real que, embora não tenha trabalhado no Banco da Lavoura, conhecia bem a história. Consideramos sua entrevista importante, pois pudemos ouvir alguém falar sobre o mistério que a urna representava para os empregados do Banco Real. Tentamos encontrar novas pessoas a partir desses três entrevistados (que foram identificados por funcionários do Banco Santander), mas eles não souberam indicá-las. Salientamos que essas restrições não impediram a realização da pesquisa, tendo em vista que a qualidade dos relatos coletados forneceu informações suficientes para a realização deste trabalho.

Este artigo foi escrito sob a perspectiva da abordagem qualitativa, em que se empregou a corrente denominada por Saraiva (2009)Saraiva, L. A. S. (2009). Mercantilização da cultura e dinâmica simbólica local: a indústria cultural em Itabira, Minas Gerais. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. de análise francesa do discurso (AFD) como técnica para a análise dos dados obtidos do filme e das entrevistas. Saraiva (2009, p. 90)Saraiva, L. A. S. (2009). Mercantilização da cultura e dinâmica simbólica local: a indústria cultural em Itabira, Minas Gerais. Tese de doutorado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. define a AFD como

[...] um conjunto de instrumentos metodológicos que sistematizam a abordagem de textos diversos usada na busca por uma melhor compreensão de um discurso, de aprofundar suas características gramaticais às ideologias e outras, além de extrair os aspectos mais relevantes.

Quanto ao filme, selecionamos algumas de suas imagens e as introduzimos neste texto. Como as imagens também constituem signos e expressam um discurso, serão analisadas em conjunto com as narrativas verbais que lhes estão associadas, na perspectiva da AFD.

5 UM OLHAR DO PRESENTE SOBRE O PASSADO: O BANLAVOURA EM 1960

No que se refere ao processo enunciativo, o filme Memória do tempo foi filmado em preto e branco (P&B), de acordo com o padrão tecnológico da época, que, também, não captava o som dos ambientes e das pessoas filmados. À filmagem foi incorporada a voz de um narrador que apresenta aos espectadores as informações relativas às cenas filmadas. O filme é um documento oficial, o discurso verbalizado pelo narrador representa o discurso da gestão da organização à época e é nessa condição de produção discursiva que ele foi analisado.

O texto estampado na Figura 2, imagem inicial do filme, e transcrito no fragmento discursivo (1) deixa claro o objetivo do filme: transmitir ao futuro a imagem da organização. Busca-se construir com espectador uma imagem positiva da organização. Para isso, é atribuída à organização a qualidade de possuir “um espírito animador” que contribui para seu desenvolvimento. Esse fetichismo no discurso da gestão organizacional tem a finalidade de conferir à empresa uma “personalidade”, embora esta fosse “coletiva”, visto que socialmente construída por todos que interagem com a organização.

Figura 1
CENA DE ABERTURA DO FILME (I)
Figura 2
CENA DE ABERTURA DO FILME (II)

Porém, o fato de ser uma construção social não impede que o discurso elaborado tente direcionar essa imagem em construção para aquela que melhor represente os interesses da alta gestão. O emprego dos léxicos “entusiasmo” e “dedicação” auxiliam a enaltecer a organização, como personagem coletivo, e seus stakeholders, com características que induzem a formação conceitual de uma imagem inovadora e competitiva.

(1) Êste filme, que idealizamos para transmitir ao futuro a imagem do Banco da Lavoura em 1960, reflete também o espírito animador de seu desenvolvimento, manifestado no entusiasmo e na dedicação de quantos, por qualquer forma, cooperaram conosco para realizá-lo (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

Na Figura 2, é apresentada a finalidade da realização o vídeo, que se destina a ser depositado na Urna Memória do Tempo, como já exposto anteriormente. Sua localização temporal e cronológica aponta 1960, quando foi lacrada a urna, como o ano de sua produção. Também é explicitada a finalidade da urna como uma das atividades de comemoração ao aniversário de 35 da fundação do BanLavoura. A comemoração do aniversário da organização é um ritual de exaltação do sucesso organizacional ao longo de sua trajetória. A comemoração é, portanto, mais uma forma de enaltecer a imagem da organização como empreendimento de sucesso.

(2) Aqui era a sede de nosso banco em 1960. Um edifício considerado por muito tempo como o mais belo e mais arrojado da cidade. Funcionavam nele a administração geral e a filial de Belo Horizonte (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

O fragmento discursivo (2) salienta as características distintivas da organização relacionadas à sua infraestrutura. O edifício (Figura 3), que desempenha o papel de uma figura discursiva, é apontado como tendo sido o “mais belo” e “mais arrojado” da cidade por um longo período. Os léxicos empregados induzem os espectadores do filme ao pressuposto de que o BanLavoura possuía um dos melhores edifícios comerciais da cidade, o que pode significar que tenham, nesse quesito, uma infraestrutura que os coloca em destaque entre seus concorrentes. O uso do termo “arrojado” demonstra o interesse do banco em relacionar à sua imagem uma característica associada à modernidade, o que pode ser verificado, também, na análise da Figura 3, que demonstra que não havia naquela época edifícios tão altos e modernos circundando a sede do BanLavoura. O edifício tinha uma escultura metálica do Caduceu de Mercúrio incrustado em uma de suas fachadas, o que o diferencia arquitetonicamente. Sua localização privilegiada no principal cruzamento da cidade de Belo Horizonte, entre as avenidas Afonso Pena e Amazonas, local de grande circulação popular, ajudava a dar destaque ao edifício.

Figura 3
EDIFÍCIO CLEMENTE DE FARIA

Outro aspecto relevante do fragmento discursivo (2) é o fato de que o narrador, embora tenha gravado sua narrativa em 1960, narre as imagens no tempo verbal do pretérito. A linguagem foi estruturada de forma a parecer que ele fala do presente (tempos atuais) sobre o passado (o ano de 1960). Ao dizer “Aqui era a sede de nosso banco em 1960”, sua colocação traz implícito o pressuposto de que, no futuro, a sede não seria mais naquele lugar. Como a sede do banco foi, de fato, transferida para a cidade de São Paulo no início da década de 1970, o recurso linguístico empregado permite que se pressuponha que a alta gestão já planejava transferir a sede do banco e, portanto, sabia que, em 2000, o edifício não abrigaria mais sua matriz.

(3) O nosso banco foi o primeiro a introduzir maquinas IBM, conhecidas pelo nome de holerite. Essa era a máquina mais querida de todo o banco, e havia uma razão especial para isso: fazia a nossa folha de pagamento (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

(4) As máquinas que lhes mostraremos agora eram consideradas aperfeiçoadíssimas naquela época (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection).).

O léxico “primeiro”, expressado no fragmento discursivo (3), busca novamente caracterizar uma imagem positiva à organização, atribuindo-lhe um perfil inovador e pioneiro ao introduzir máquinas cuja tecnologia era avançada na época (Figura 4), conforme se buscou destacar no fragmento discursivo (4), ao se empregar o superlativo como recurso de linguagem no léxico “aperfeiçoadíssimas”. A Figura 4 demonstra máquinas de grande porte que faziam impressões e outras tarefas que, nos dias atuais, consideramos simples, no sentido de que são realizadas facilmente por equipamentos computadorizados muito menores e mais eficientes. Ainda no fragmento (3), verifica-se a presença do humor como estratégia discursiva para criar uma relação com o espectador-modelo (empregados do banco). Isso se dá na afirmativa: “Essa era a máquina mais querida de todo o banco, e havia uma razão especial para isso: fazia a nossa folha de pagamento”.

Figura 4
MÁQUINAS IBM

É evidenciado, em uma das narrativas do filme, como transcrito no recorte discursivo (5), que, em 1960, o banco realizava filmes de treinamento, sendo os atores os próprios empregados do banco (Figura 4). Esse recurso de envolver os próprios empregados na realização de filmes de treinamento pode ser considerado como uma estratégia de construção da memória na organização. Mas não será qualquer empregado que representará papéis nos filmes de treinamento. No que se refere ao fragmento discursivo (5), o principal ator é o chefe do serviço de estatística do BanLavoura, Luiz Montanari. Portanto, um gestor. Nota-se, na Figura 5, que ele ocupa uma mesa ampla e organizada. Apresenta-se de cabelo bem cortado e sem barba, embora faça uso do bigode. Veste-se formalmente, utilizando-se de terno e gravata. Sua figura corresponde esteticamente ao que se espera de um gestor bancário da década de 1960, embora esse estilo de apresentação pessoal ainda seja característico das organizações mais formais como os bancos.

Figura 5
LUIZ MONTANARI

(5) O chefe do serviço de estatística, Sr. Luiz Montanari, que entre outras façanhas, era o principal ator dos filmes de treinamento realizados pelo DOT (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection).).

(6) O Professor Pierre Weill, chefe do Departamento de Orientação e Treinamento, exibe aqui os símbolos que sintetizavam nosso programa de treinamento. O homem, educado, ganha tempo e dinheiro, mesmo no ano 2000 (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

O fragmento discursivo (6) apresenta outro importante personagem, Pierre Weill, responsável pela área de recursos humanos da organização, que se tornou posteriormente um importante acadêmico em campos da psicologia, sendo considerado um progressista e já reconhecido como tal à época do vídeo (Psicologia Ciência e Profissão, 2005Psicologia Ciência e Profissão (2005). Pierre Weil. Psicologia Ciência e Profissão, 25(4), 660.), o que poderia reforçar sua presença como parte da construção da imagem de uma organização moderna. A exemplo do que ocorreu no fragmento (5), notamos que somente os personagens hierarquicamente mais importantes são nomeados e filmados em destaque no vídeo, o que corrobora o argumento de que, quando se busca preservar a memória e história organizacional, busca-se construir uma narrativa específica e que atenda aos interesses de construção de uma imagem organizacional.

A seleção lexical (6) demonstra que havia, naquela época, um departamento especializado em orientar e treinar os empregados. O texto explicita uma frase que representa bem o tema discursivo da eficiência organizacional como finalidade das atividades relacionadas ao treinamento e desenvolvimento de pessoas no BanLavoura. Trata-se da sentença “O homem, educado, ganha tempo e dinheiro, mesmo no ano 2000”. Essa frase reflete o discurso da eficiência dos treinamentos em preparar os indivíduos para o trabalho em conformidade com os interesses da gestão organizacional. Podemos relacionar o léxico “educado” a conhecimento; “tempo” a eficiência e produtividade; e “dinheiro” a lucratividade (Figura 6). A expressão “mesmo no ano 2000” evidencia a ideia de que a frase é uma máxima capitalista não vulnerável ao tempo.

Figura 6
PIERRE WEILL (CHEFE DO RH)

(7) Todos os novos funcionários do banco faziam, obrigatoriamente, um curso de 20 dias, denominado Curso de Introdução ao BanLavoura. As aulas visavam familiarizar os novos lavourenses com todos os métodos de trabalho e trazer-lhes informações sobre o novo emprego (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

(8) Isto não era uma agência bancária comum, embora assim fosse em 1960. Aqui os novos lavourenses faziam estágio a fim de serem treinados para o trabalho em agências (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection).).

Ainda sobre o uso do léxico “educação” no recorte (6), questionamos a que educação o texto se refere. Esse esclarecimento pode ser obtido pela análise linguística dos fragmentos (7) e (8), que demonstram o papel relevante que os treinamentos tinham na organização em 1960. Desde o ingresso na organização, os empregados eram submetidos a um processo de “aculturamento” e “moldagem”. O fragmento (8) aprofunda essa questão informando que o banco possuía uma “agência” fictícia de treinamento, chamada de Agência Escola, conforme nos esclareceu posteriormente a entrevistada 3, que treinava os empregados nas tarefas cotidianas das verdadeiras agências para que já conhecessem suas atividades quando assumissem seus cargos. A educação a que se refere o fragmento

(6) não é, portanto, a educação escolar ou acadêmica. Mas, sim, uma educação relacionada ao trabalho. A organização irá, por meio de seus treinamentos, não apenas ensinar o trabalho e as tarefas a ele relacionados, mas como esse trabalho deve ser realizado, a que tempo, com que qualidade.

(9) O Zulu, aeronave adquirida pelo banco, e que transportava administradores e funcionários de nossas casas, é bem um símbolo dessa mentalidade avançada e pioneira (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

O discurso associa a organização à sua aeronave (Figura 7), que representava um símbolo do progresso tecnológico da época. Assim, é atribuída à organização uma mentalidade avançada e pioneira. Se, no início do filme, a imagem positiva que a gestão organizacional queria transmitir destacou a sua infraestrutura, representada pelo edifício-sede e pelos e maquinários, elabora-se agora uma representação progressista. Além da aeronave, a imagem (Figura 7) demonstra que o BanLavoura possuía um hangar no aeroporto. Embora na narração nada se comente sobre o hangar, a filmagem explicita ao espectador sua existência e o apresenta como uma figura representativa do poder da organização.

Figura 7
AERONAVE ZULU

(10) Dr. José Belarmino Alves Jr, diretor-presidente de nosso banco, gozava da reputação de eminente jurista, tendo um passado de vida pública dos mais honrosos. Um fotógrafo, por sua vez, colhia dele uma pose. Justamente para ser guardada na Urna Memória do Tempo (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

Na seleção lexical (10), verifica-se a exaltação da personalidade e competência de seu diretor-presidente, fundador do BanLavoura junto com Clemente Faria. A narrativa transcrita no fragmento (10) e a imagem apresentada na Figura 8 demonstram que a criação da Urna Memória do Tempo foi, de fato, uma iniciativa da alta gestão e, dessa forma, uma atividade formal, com a finalidade organizacional de preservar parte de sua memória e, ao fazê-lo, atribuir à sua imagem as características organizacionais que lhe interessavam. A exaltação das qualidades pessoais desse executivo faz parte dos rituais de mitificação dos fundadores nas organizações, que são convenientemente transformados em heróis (Cavedon, 1988Cavedon, N. R. (1988). As manifestações rituais nas organizações e a legitimação dos procedimentos administrativos. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.).

Na imagem (Figura 8), nota-se que sua sala de trabalho é ampla e requintada. Na parede atrás de sua mesa, destaca-se uma grande pintura ou peça de tapeçaria (não é possível distinguir). Em sua mesa, há dois grandes aparelhos telefônicos, encadernações e objetos, que reforçam a imagem do executivo atarefado e comprometido com seu trabalho.

Figura 8
JOSÉ BELARMINO ALVES JR.

Conforme informa Cavedon (1988)Cavedon, N. R. (1988). As manifestações rituais nas organizações e a legitimação dos procedimentos administrativos. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil., ao dissertar sobre o “mito do fundador”, a mitificação somente se consolida após a morte do “herói”, quando os aspectos relevantes de sua vida e morte colaborarão na sua transfiguração em um mito. Essa mitificação do fundador atende aos interesses de perpetuação da história e memória organizacional. Diferentemente de José Belarmino Alves Jr., o fundador que presidia o BanLavoura em 1960, Clemente de Faria havia falecido alguns anos antes e, portanto, era suscetível à mitificação. No fragmento discursivo (11), esse personagem surge e é possível perceber sinais de sua mitificação. O fragmento (11) é uma homenagem aos mortos, apontados como “a verdadeira herança gravada na Memória do Tempo”, responsáveis pelo engrandecimento da organização. De todos os mortos, Clemente é o único nomeado, o que lhe confere distinção. O discurso é sutil na homenagem a Clemente de Faria, pois, quando diz “Tudo o que hoje somos devemos aos que nos precederam. E entre esses está Clemente de Faria”, homenageiam-se todos os mortos, embora com destaque à figura de Clemente de Faria. Essa distinta homenagem, parte comum nos rituais de mitificação dos fundadores, é ainda mais marcante e evidente quando associamos o texto com sua respectiva imagem (Figura 9). Nela se destaca um busto de Clemente de Faria – a confecção de bustos também faz parte desse ritual (Cavedon, 1988Cavedon, N. R. (1988). As manifestações rituais nas organizações e a legitimação dos procedimentos administrativos. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.) – instalado na entrada da agência matriz e, portanto, visível a todos aqueles que interagiam com a organização.

Figura 9
BUSTO DE CLEMENTE DE FARIA

(11) Mas, não são apenas esses feitos lavourenses o que legamos de mais precioso e cálido. A verdadeira herança gravada na Memória do Tempo é o silêncio dos que ficaram no passado, deixando o indelével patrimônio de seu trabalho diluído no sustentáculo dessa obra gigantesca. Tudo o que hoje somos devemos aos que nos precederam. E entre esses está Clemente de Faria (Memória do tempo, 1960Memória do tempo (1960). Direção: Banco da Lavoura de Minas Gerais S/A. Filme (30 min), son., P&B (Blackhawh Films Collection)., grifo nosso).

O fragmento (11) encerra o percurso semântico do discurso da gestão organizacional registrado no filme. Se antes foi destacada a eficiência organizacional do BanLavoura, representada por infraestrutura, emprego de tecnologia, abertura à inovação e características pessoais de seu principal executivo, agora se exaltam os empregados mortos, caracterizados como “a verdadeira herança gravada na Memória do Tempo”. A localização temporal chama a atenção nessa homenagem. Quando o narrador cita o “silêncio dos que ficaram no passado”, ele não se refere apenas aos já falecidos em 1960. Ele fala, também, daqueles que não sobreviveram à abertura da urna no ano 2000. Afinal, como já demonstrado anteriormente, o narrador utiliza do recurso linguístico de falar do passado a partir do presente. Ele narra como se sua localização temporal fosse o ano 2000, embora, de fato, estivesse em 1960. A seleção lexical “Tudo o que hoje somos devemos aos que nos precederam” caracteriza bem a difusão de crenças a que se refere Cavedon (1988)Cavedon, N. R. (1988). As manifestações rituais nas organizações e a legitimação dos procedimentos administrativos. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. sobre os ritos organizacionais propagados pela gestão, que objetivam criar e perpetuar, na história e memória, uma pretensa identidade organizacional3 3 A identidade organizacional, vista como algo monolítico, é irreal. Como coletivo, as organizações são formadas pelas identidades individuais dos diversos sujeitos que as constituem, de forma que não há uma identidade única que possa representá-la. A identidade projetada pela gestão organizacional é uma imagem idealizada. .

6 DE VOLTA AO PASSADO: A VISÃO DOS EX-EMPREGADOS

Se, por um lado, a iniciativa de realizar o exercício de futurologia atendeu aos interesses da organização, por outro, nem todos os empregados valorizaram tal iniciativa, como se percebeu no depoimento do entrevistado 1. Desde o contato inicial para o agendamento da entrevista, esse colaborador da pesquisa foi muito enfático em dizer que não tinha praticamente nada a dizer e que sua entrevista demoraria apenas dois minutos. A forma de se expressar e o comportamento gestual desse entrevistado sinalizavam que, para ele, o exercício de futurologia não passou de uma “bobagem”, como pode ser observado no fragmento discursivo (12). Nele, como nos outros trechos de entrevistas, as imprecisões gramaticais típicas da fala só foram mantidas quando de interesse da análise realizada.

(12) [...] o negócio é o seguinte, a entrevista minha será de dois minutos. A única coisa que eu sei do banco é que, numa época, o Dr. Aloysio mandou falar: “Olha, nós vamos fazer uma urna aqui no subsolo e... no subsolo, cada funcionário vai colocar um bilhete... o que seria o Banco da Lavoura no ano 2000”. Então cada um colocou umas bobagens lá... inclusive na época eu pus que o banco seria vendido para o Rockfeller. Naquela época, já estavam falando que iriam vender para o Rockfeller e tal. Foram essas bobagens. [...] aqueles jornais que circulavam aqui em Belo Horizonte, se tinha alguma coisa do banco, colocava lá e, depois, fechou-se a urna. Quando foi no ano 2000, aí Dr. Aloysio mandou eu e Zé Afonso abrir, daí tá escrito aí o texto [o entrevistado se refere à reportagem do jornal Estado de Minas, Figura 1] que nós abrimos a urna do Banco da Lavoura no ano 2000... então é só isso que eu sei (entrevistado 1).

Nesse fragmento (12), o entrevistado utiliza o léxico “bobagens” expressando-o duas vezes. Esse léxico sintetiza sua opinião sobre a urna e seu conteúdo. Em outro fragmento discursivo (13), em que o entrevistado 1 informa sobre a solenidade de abertura da urna no ano 2000, na qual participou como convidado do Dr. Aloysio Faria, filho do fundador Clemente de Faria e principal executivo e acionista do antigo Banco Real, novamente fica evidente a pouca importância atribuída à atividade, contrariando o discurso organizacional proferido no filme. A expressão “não me interessava” se destaca nessa narrativa e está associada ao fato de esses antigos funcionários do BanLavoura conhecerem, desde 1960, o conteúdo da urna, embora não completamente. Como evidenciado no fragmento (13), os próprios “proprietários” da memória não estavam interessados no conjunto de artefatos da urna retirados da urna e na sua futura destinação. Esse desinteresse é explicado pelo entrevistado 1 quando diz: “a gente já sabia o que era, não me interessava...”.

Outro dado importante que figura no fragmento (12) diz respeito à narrativa: “Então cada um colocou umas bobagens lá... inclusive na época eu pus que o banco seria vendido para o Rockfeller. Naquela época, já estavam falando que iam vender para o Rockfeller e tal”. Dos três entrevistados nesta pesquisa, o entrevistado 1 foi o único que participou da colocação de documentos e objetos na urna. Como já afirmamos, um dos objetivos da atividade era pensar o futuro, atividade que contou com a participação de funcionários alocados na matriz. Essa atividade caracteriza-se como uma prospecção de cenários, tal qual descrevem Silva, Spers e Wright (2012)Silva, A. T. B., Spers, R. G., & Wright, J. T. C. (2012). A elaboração de cenários na gestão estratégica das organizações: um estudo bibliográfico. Revista de Ciências da Administração, 14(32), 21-34. e Souza e Takahashi (2012)Souza, I. D. S., & Takahashi, V. P. (2012). A visão de futuro por meio de cenários prospectivos: uma ferramenta para a antecipação da inovação disruptiva. Future Studies Research Journal: Trends and Strategies, 4(2), 102-132., em que as organizações tentam antever os potenciais cenários futuros no intuito de elaborar estratégias adequadas à sua sobrevivência. Em sua prospecção, pode-se dizer que o entrevistado 1 praticamente acertou o cenário que vislumbrou. Embora o banco não tenha sido vendido para o Rockfeller, em 1998 foi vendido para outro grande grupo estrangeiro: o holandês ABN Amro Bank. Nota-se, em sua fala, que, em 1960, os empregados já especulavam que o banco seria vendido.

(13) [...] a abertura no ano 2000, o Dr. Aloysio veio aqui, reuniu alguns funcionários, aí chamou uma firma pra abrir a urna, que era bem fechada [...] eu só fiquei naquela hora também, depois fui embora mesmo... não me interessava nada, nem sabia o que era muito dos papelzinhos, das coisas... então eu fui embora e nem... nem... nem vi o final, a hora em que ela foi limpa também não... eu já fui embora, a gente sabia o que era, não me interessava... talvez ia sair jornal, sair bilhete, um punhado de coisa, mas eu não [nesse momento, o entrevistado bate as mãos uma na outra realizando o gesto característico de não se importar com o assunto]... daí eu não sei o que fizeram, se o Dr. Aloysio pôs num saco lá, um trem qualquer e levou... isso aí eu também não sei falar nada (entrevistado 1).

Na ocasião da realização das entrevistas, ao confirmar que os entrevistados desconheciam o filme, um dos autores que atuaram como entrevistador, nos momentos finais das entrevistas, reproduzia-lhes o vídeo (em arquivo digital) por meio de um notebook. A existência do filme chegou a causar desconfiança nos entrevistados, provavelmente por uma dificuldade em situar o ano de 1960 na memória. O entrevistado 1 nos disse: “Não! ... ah não existia nada disso aí não ... não existia filme naquela época não!”. De acordo com o entrevistado 2: “Ah não. Devia ter foto só [dentro da urna]. Naquela época não tinha vídeo. Não tinha vídeo, não. Mesmo máquina de filmar era difícil ter. Quem tinha era filmadora mesmo, empresa que produzia para o cinema”. Os entrevistados não recordaram de imediato que já em 1960 o BanLavoura produzia os próprios vídeos de treinamento, tendo empregados como atores.

Durante a apresentação do filme, foi possível perceber o afloramento das emoções dos entrevistados ao revisitarem o passado, bem como a recuperação de memórias perdidas ou pouco lembradas. Se antes o entrevistado 1 não se recordava de que naquela época já existiam filmagens na organização, ao ver o filme ele nos revelou que, em um dos andares, o BanLavoura possuía um cinema privado destinado à exibição de filmes aos empregados nos momentos de lazer. Enquanto as imagens do filme iam sendo apresentadas, os entrevistados faziam comentários sobre as lembranças que surgiam. Falaram de atividades realizadas nos departamentos, das máquinas, de acontecimentos e, principalmente, das pessoas que foram capazes de reconhecer. Discretas lágrimas foram percebidas nos olhos dos entrevistados, evidenciando que o filme cumpriu seu papel de monumento à história e memória organizacional. Após a transmissão do vídeo, notamos que os entrevistados se tornaram mais receptivos à pesquisa e mais dispostos a rememorar o passado e compartilhar suas impressões.

O entrevistado 1, que antes não atribuía importância à urna, mudou perceptivelmente de postura após assistir às imagens do passado. Quando questionado se havia gostado do filme, o entrevistado 1 declarou: “Demais! Nossa Senhora! Uma recordação... dá vontade até de chorar”. No que se refere ao entrevistado 1, se a urna, como um todo, não foi capaz de criar um vínculo forte entre ele e o passado vivido na organização, o vídeo cumpriu esse papel e trouxe uma memória, vinculando-o novamente à narrativa apresentada.

O entrevistado 2, no fragmento discursivo (14), afirma que mesmo os empregados que criticavam a ideia de criar a urna e guardar documentos e objetos nela achavam, de alguma forma, algo de interessante nela.

(14) Desde aqueles funcionários que eram assim meio contra, você sabe que toda empresa tem, não é? Mesmo aqueles achavam interessante a ideia. Tem uns que falavam, mesmo quem não tinha muito prestígio ainda no banco, que estavam assim meio encostados, mesmo assim eles falavam: “Eu quero ver o dia que abrir, porque meu nome está lá. Meu nome está lá”. O meu também devia estar (entrevistado 2).

Esse interesse, possivelmente, pode estar relacionado ao desejo de “vencer” o tempo e estar vivo para testemunhar um acontecimento futuro, como se pode observar no fragmento: “Eu quero ver o dia que abrir, porque meu nome está lá. Meu nome está lá”. Afinal, para muitos, o prazo de 40 anos era significativo. Os léxicos “meio contra” e “encostados”, utilizados pelo entrevistado 2, refletem o discurso organizacional da eficiência e do engajamento dos empregados em relação às atividades da empresa. Ser “meio contra” está relacionado a uma postura crítica, observada naqueles que questionam normas, procedimentos e decisões organizacionais, e não se enquadram completamente no perfil desejado pelas organizações.

Se, para os empregados do BanLavoura que participaram do exercício de futurologia, a urna, naturalmente, não despertava curiosidade a respeito de seu conteúdo, o mesmo não ocorreu com os novos empregados admitidos nos anos posteriores, conforme se verifica no fragmento (15).

(15) De modo geral tinham pelo menos curiosidade. Bastante curiosidade, os novatos: “O que tem aí dentro? Que dia que vai abrir?”. Tinham curiosidade sim (entrevistado 2).

A curiosidade sobre a urna e as especulações sobre o conteúdo mexiam com a imaginação dos empregados que ingressaram na organização nas décadas de 1980 e 1990, entre os quais um dos autores deste artigo, que trabalhou no Banco Real entre 1992 e 2010 e vivenciou essa curiosidade que a urna e seu misterioso conteúdo despertavam antes de sua abertura. Entre os diversos palpites, havia aqueles que exacerbavam o que se espera de um exercício comum de futurologia, tais como “dinheiro”, “ouro” e “joias”, como narrado nos fragmentos discursivos (16) e (17), pois, como informa a entrevistada 3, “a imaginação do povo é bem... fértil”.

(16) Ah! Comentavam [sobre a urna]. As pessoas queriam saber o que tinha lá dentro. Se tinha moedas da época, se tinha joias, sei lá... carta de fundação do banco, especulavam de tudo: “O que será que tinha lá dentro?”. Retrato... Todo mundo falava, mas ninguém sabia na realidade o que era. Quem sabia era as pessoas que fecharam. Acho que, na época, o Dr. Aloysio que era o dono do banco. Mas assim saber mesmo o que tinha lá dentro... sabiam que tinha documentos, mas que tipo de documentos? (entrevistada 3).

(17) O que o pessoal mais comentava era dinheiro. Ou barras de ouro. O banco chegou uma época, não sei se você lembra, que negociava barra de ouro. O banco vendia barra de ouro. Então assim, uns falavam que tinha barra de ouro; outros: “Será que tem joias da mulher do Dr. Aloysio?”. Então era um monte de coisas, porque a imaginação do povo é bem... fértil (entrevistada 3).

Durante as coletas de depoimentos, os entrevistados, espontaneamente, referiam-se a um museu criado pelo banco em um dos andares da matriz de Belo Horizonte. Nesse museu, eram guardados documentos e objetos relativos ao cotidiano organizacional, como se verifica no recorte discursivo (18). Os depoimentos espontâneos dos entrevistados sobre o museu permitem que se conclua que ele foi um importante instrumento para a guarda de uma parcela da história e memória organizacional. Segundo a fala do entrevistado 2 no fragmento (19), lá estava a história do banco.

Como informa o entrevistado 1 (20), quando o banco foi “perdido” – é interessante observar que o entrevistado não emprega o verbo vender – para o Banco ABN Amro, o museu foi extinto. É possível que uma mudança realizada pelo Banco Central na forma de avaliar a capacidade financeira dos bancos tenha influenciado no fechamento do museu. Passou a ser mais interessante para os bancos aumentar o capital disponível para a oferta de crédito do que manter investimentos em ativos imobilizados. Assim, muitos bancos venderam imóveis, geralmente fazendo contratos de locação de longo prazo com os novos proprietários das edificações de forma que continuavam a ocupar os mesmos pontos comerciais em que já estavam instalados. Fomos informados por empregados do Banco Santander em Belo Horizonte que o edifício Clemente de Faria, onde funcionou a matriz do BanLavoura e, também, o museu, não pertencia mais ao grupo e que este não ocupava mais os andares onde, antigamente, funcionaram departamentos do BanLavoura e Banco Real.

Não sabemos se o museu foi fechado antes ou depois da venda do edifício e se seu fechamento está diretamente relacionado a essa venda. Um empregado do Banco Santander, que trabalhava no Banco Real de Belo Horizonte na época da desativação do museu, informou que o acervo foi transferido para o museu mantido pelo Banco Real na cidade de São Paulo. Quando procuramos informações sobre esse acervo, fomos informados que o Banco Santander mantém um museu em São Paulo, mas seu acervo não contém materiais do BanLavoura ou Banco Real que se encontram em local ignorado.

Assim, se o fechamento do museu de Belo Horizonte pode ser explicado por razões econômicas, o desaparecimento do acervo na gestão do Banco Santander talvez se relacione a interesses estratégicos de fortalecimento de sua própria “identidade organizacional”, de forma que não interessava a manutenção de monumentos que remetessem à memória da organização adquirida e cuja marca de renome e prestígio (Banco Real) foi extinta. Nos casos de a incorporação de uma empresa por outra buscar substituir o vínculo afetivo dos empregados por ligações à nova organização pode fazer parte da estratégia da gestão. Mas, nesse processo, é quase inevitável que ocorram perdas e desinvestimentos emocionais.

Talvez por essa razão o entrevistado 1 tenha escolhido o léxico “perderam” ao se referir à venda da organização.

(18) Inclusive, da minha seção eu pus lá no museu, da minha seção pra ficar no museu... o que é que eu pus lá, gente?... não sei se foi um grampeador... daqueles antigos... é que tudo é antigo... aqueles copo da lavourinha, lavoura... tudo que tinha antigamente (entrevistado 1).

(19) Esse museu funcionava ali na... se eu não me engano, era ali na Praça Sete mesmo. Se não me engano, era no quarto andar. Tinha de tudo, não é? Tinha a história do banco, revistas do banco (entrevistado 2).

(20) [...] e depois que perderam o banco, eles acabaram com o museu (entrevistado 1).

Apesar de não sabermos exatamente o que o museu do BanLavoura guardava, podemos afirmar que seu fechamento encerra a possibilidade de uma análise sobre os sentidos de tal espaço, ainda que seus itens possam ser recuperados em algum lugar. Isso ocorre porque o museu não é apenas as coisas que guarda, mas também a forma como elas são dispostas, na medida em que constroem uma narrativa.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, discutimos o uso de um artefato de memória como ferramenta para a construção de uma identidade organizacional e de produção da própria memória. Segundo Bosi (1979)Bosi, E. (1979). Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz., usar a memória como fonte de pesquisas faz com que pesquisados e pesquisadores trabalhem na reconstrução de um passado (recente ou remoto) e possam refazer, repensar e reelaborar com o olhar de hoje as experiências do passado. Para a administração e para o gestor, pensar o hoje como construção de um passado, de uma narrativa de um passado, é muito importante para que se entenda que o presente é resultado das ações e decisões de um passado (remoto ou não).

Trabalhar a memória como narrativas, individuais e coletivas, é fonte de conhecimento do presente. Para a gestão das organizações, desprezar o passado é descartar a construção do presente, perdendo assim elementos que permitam compreendê-lo. Decisões e ações se equilibram sobre elementos passados que frequentemente são desprezados pelo anacronismo do olhar dos gestores que operam em um contexto construído por elementos que ignoram.

Assim, buscando pela memória (lembranças) um fato acontecido em um banco, observamos que, para compreender a produção dos artefatos de memória, a intencionalidade subjacente a essa ação e a lógica de elaboração dos discursos são elementos centrais. No caso que analisamos, a alta administração do BanLavoura legou ao futuro uma narrativa capaz de enquadrar interpretações sobre a organização. A preservação de objetos que permitissem a manutenção de certa memória era preocupação da alta administração do banco, que manteve um museu para preservar documentos, publicações e objetos que ilustravam uma visão da organização. A análise do discurso no filme Memória do tempo demonstrou o interesse da alta gestão em transmitir uma imagem positiva do BanLavoura, atribuindo-lhe características idiossincráticas que se queria lembradas. Logo, quando se fala em preservar a história e memória de uma organização, não se trata de qualquer história e memória. Há memórias e histórias a serem lembradas e outras a serem esquecidas. À gestão não interessa recordar insucessos, fracassos ou fragilidades organizacionais, e sim fazer conhecer aquilo que pode colaborar para a projeção de uma identidade organizacional impecável, ilibada. Ou seja, não se trata de um simulacro do passado ou de uma narrativa histórica isenta, mas de uma ação interessada e construída para gerar efeitos no futuro.

É relevante notar que a visão dos empregados sobre o futuro, que havia sido preservada na urna, perdeu-se pouco depois da abertura desta, tendo ficado como vestígio da experiência apenas o vídeo, agora disponível ao público em geral. Assim, também os documentos guardados se perderam, restando apenas o vídeo produzido como um artefato de memória. Mas não qualquer memória, e sim aquela que se queria projetar. Ressaltamos esse ponto para reiterar que tais exercícios não podem ser vistos apenas pela narrativa explicitada.

Embora a realização de um exercício de futurologia seja, em essência, uma atividade simples, sua realização por parte de uma grande organização é algo inusitado, o que justifica o estudo dessa atividade organizacional no meio acadêmico. Ainda mais pela relevância da organização que o elaborou, que, à época, era o maior banco da América Latina. Defendemos que os conteúdos de exercícios dessa natureza podem ser importantes fontes de pesquisas e contribuir para a construção de uma narrativa sobre a organização e para a compreensão da elaboração de sua imagem projetada.

O fato de o museu criado pelo BanLavoura ter sido fechado após a venda do Banco Real a um grupo estrangeiro simboliza o interesse seletivo dos gestores organizacionais em preservar apenas certas histórias e memórias. O mesmo se conclui em relação ao paradeiro dos documentos e objetos que faziam parte da Urna Memória do Tempo e nela permaneceram por 40 anos. O desinteresse pela iniciativa da administração do BanLavoura pode estar relacionado à falta de vínculo entre os novos incorporadores e a antiga organização, bem como à dificuldade de significar as memórias guardadas. Entretanto, para aqueles que fizeram parte da alta gestão do BanLavoura e idealizaram a Urna Memória do Tempo, como Aloysio Faria, a importância do feito permaneceu significativa. Que afirmou a Hemerson (2000, p. 25)Hemerson, L. (2000, junho 17). Urna resgata história de banco. Estado de Minas, p. 25. em entrevista concedida na cerimônia de abertura da urna: “Esse é um momento gratificante. Uma oportunidade de um retrospecto de momentos felizes por termos conseguido fazer o que fizemos”.

O vídeo analisado convida a relembrar um passado e opera na construção de uma memória. O resgate de um pedaço de história e o estudo desse acontecimento sob a perspectiva da administração demonstram que pesquisas pautadas na história e memória organizacional são importantes para uma melhor compreensão do cotidiano organizacional e suas múltiplas possibilidades de estudo e análise, de modo a contribuir para o avanço do conhecimento na área de estudos organizacionais.

  • 1
    Salientamos que Lifschitz (2014)Lifschitz, J. A. (2014). Os agenciamentos da memória política na América Latina. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29(85), 145-225. discute a memória política no contexto pós-ditaduras na América do Sul e, assim, tem uma preocupação mais ampla do que a nossa.
  • 2
    A existência de um museu do BanLavoura, que posteriormente se tornaria o museu do Banco Real, pelo menos até os anos 2000, mostra que era dada importância a essa forma de manutenção da memória. É possível que tal acervo ainda exista em mãos de particulares ou em posse do banco, ainda que seu paradeiro seja ignorado pelos entrevistados e por outras pessoas do banco interrogadas em Belo Horizonte e São Paulo.
  • 3
    A identidade organizacional, vista como algo monolítico, é irreal. Como coletivo, as organizações são formadas pelas identidades individuais dos diversos sujeitos que as constituem, de forma que não há uma identidade única que possa representá-la. A identidade projetada pela gestão organizacional é uma imagem idealizada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2013
  • Aceito
    12 Set 2014
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