Acessibilidade / Reportar erro

Carreiras vulneráveis: uma análise das demissões da mídia como um ponto de inflexão para jornalistas

Carreras vulnerables: análisis de despidos como un punto de inflexión para periodistas

Resumo

O jornalismo, como outras indústrias, foi profundamente impactado pelas transformações da era digital e do mundo do trabalho. Observa-se, porém, uma lacuna na produção acadêmica envolvendo trabalho e jornalismo. Ademais, há poucos estudos sobre demissão que abordam o fenômeno a partir de uma perspectiva ampliada, identificando como a demissão afeta a perspectiva do sujeito e força o trabalhador a refletir sobre as projeções futuras da profissão e da carreira. Assim, o objetivo deste artigo é compreender como jornalistas que vivenciaram demissões coletivas enxergam o futuro da profissão e da carreira. Neste estudo, qualitativo e exploratório, foram entrevistados 18 jornalistas, em 3 grupos focais (GF), e 1 especialista no tema. Como resultados, a demissão, ao evidenciar a vulnerabilização da carreira jornalística - em que a precarização, a desesperança em obter melhoras e o desmantelamento dos laços pessoais refletem dilemas e sofrimentos causados pela perda do sentido do trabalho - representou um ponto de inflexão na carreira dos entrevistados (DELUCA e ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016). Uma parte dos entrevistados deixou o jornalismo e a maioria dos demais planeja sair ou não tem certeza se permanecerá na profissão e responsabiliza-se pela busca de saídas. Como contribuições, este estudo aproxima e aborda simultaneamente as perspectivas micro e macro (ABBOTT, 1993), enfoque raramente encontrado nos estudos nacionais em Administração, e intersecciona temas em geral discutidos isoladamente: carreira, demissão e relações de trabalho. Além disso, contribui com os estudos de carreira, ao adotar a perspectiva do ponto de inflexão na análise da demissão, em geral centrada na vivência e nos impactos negativos nos estudos sobre o tema (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017aVACLAVIK, M. C. et al. Demissão: significados, possibilidades e reflexões a partir de uma meta-análise das publicações dos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DA ANPAD, 41., 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: Anpad, 2017a.). Por fim, expande o interesse de análise para uma ocupação externa à Administração, cuja produção tem absoluto predomínio endógeno.

Palavras-chave:
Jornalismo; Carreira; Demissão coletiva; Relações de trabalho; Grupo focal

Resumen

El periodismo ha sido profundamente impactado por las transformaciones de la era digital y del mundo del trabajo. Sin embargo, se observa que hay una brecha en la producción académica sobre trabajo y periodismo. Además, pocos estudios sobre el despido abordan el tema en términos generales, identificando cómo los trabajadores son afectados cuando se los obliga a reflexionar sobre las proyecciones futuras de profesión y carrera. Este estudio intenta comprender cómo los periodistas que vivieron un despido masivo ven el futuro de su profesión y su carrera. Cualitativa y exploratoria, esta investigación entrevistó a 18 periodistas en tres grupos focales y una especialista en el tema. Los hallazgos demuestran que el despido fue un punto de inflexión (DELUCA, ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016), porque la carrera de periodista se vuelve vulnerable, y la realidad de inseguridad laboral, desesperanza, precariedad y lazos personales dañados refleja dilemas y sufrimientos. Una parte de los entrevistados dejó el periodismo y la mayoría de los demás planea salir o no está segura si permanecerá en la profesión y se responsabiliza por encontrar salidas. Como contribuciones, este estudio acerca y aborda simultáneamente las perspectivas micro y macro (ABBOTT, 1993), lo que poco hacen los estudios nacionales en Administración, y cruza temas en general discutidos aisladamente: carrera, despido y relaciones de trabajo. Además, contribuye a los estudios de carrera con la perspectiva del punto de inflexión en el análisis del despido, en general centrada en la vivencia y sus impactos negativos en los estudios sobre el tema (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017). Por último, expande el interés del análisis a una ocupación externa a la Administración, cuya producción tiene absoluto predominio endógeno.

Palabras clave:
Periodismo; Carrera; Despido massivo; Relaciones de trabajo; Grupo focal

Abstract

Technologies of the digital era have deeply impacted the world of work and several sectors such as the news industry. Despite significant changes in newsrooms worldwide, there is a research gap in labor and journalism. Besides, few studies concerning job cuts and layoffs approach the issue broadly, identifying how redundancies affect workers and force them to think about the future of their profession and career. This article aims to understand how laid off survivors and victims see the future of their profession and career in this complex scenario. For this qualitative and exploratory research, interviews were conducted with 18 journalists, in three focus groups, and an expert in the field. Findings demonstrate that experiencing an organizational downsizing represented a turning point (DELUCA and ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016.) by evidencing that journalist’s career has become vulnerable in a context where job insecurity, hopelessness, precariousness and damaged personal ties mirror dilemmas and suffering. Some of the interviewees left journalism and most of the others either plan to leave or are not sure whether they will remain in the profession, taking responsibility for finding a way out. This article brings together micro and macro perspectives (ABBOTT, 1993ABBOTT, A. The sociology of work and occupations. Annual Review of Sociology, v. 19, p. 187-209, 1993.), an approach rarely found in Brazilian studies in Administration, and intersects topics generally discussed separately: career, redundancy and labor relations. Moreover, it contributes to career studies by using the turning point perspective to analyze layoffs, which are generally centered on the experience and its negative impacts (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.). Finally, it expands the scope of analysis to an occupation outside the Administration field, whose academic production is predominantly endogenous.

Keywords:
Journalism; Career; Media layoffs; Labor relations; Focus Group

INTRODUÇÃO

Mudanças no mundo do trabalho são reflexos de transformações econômicas, sociais, políticas e tecnológicas. O modelo tradicional de emprego, que foi regra por décadas, já não representa o modo de ganhar a vida de muitos trabalhadores (MANYIKA, LUND, BUGHIN et al., 2016MANYIKA, J. et al. Independent work: choice, necessity, and the gig economy. [s.l]: McKinsey Global Institute, 2016.). O emprego seguro, em tempo integral, com vínculo longo e estável, passa a coexistir com outras formas, marcadas pela ascensão do modelo baseado na prestação de serviços, em que os trabalhadores gerem seu labor, suas competências e sua carreira (OLTRAMARI, 2010OLTRAMARI, A. Dilemas relativos à carreira no contexto do trabalho imaterial bancário e suas repercussões às relações familiares. 2010. 57 f. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.). A flexibilização, característica desse processo, aparece no afrouxamento de vínculos trabalhistas, como contratações temporárias, remuneração por tarefas e terceirização. Além das transformações tecnológicas que provocam expressiva redução do número de postos de trabalho (RIFKIN, 1995RIFKIN, J. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995. RIFKIN, J. Sociedade com custo marginal zero. São Paulo: Makron Books , 2015., 2015SANDANO, C. Para além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo interconectado. São Carlos: UFSCar, 2015.), em cenário de intensa concorrência e incerteza econômica em nível global (ILO, 2017INTERNATIONAL LABOUR OFFICE - ILO. World employment social outlook: trends 2017. Geneva: ILO, 2017.), observa-se um número cada vez mais escasso de vagas de emprego formal e ondas de demissões coletivas cada vez mais frequentes.

Pesquisas brasileiras sobre demissão envolvem, em geral, novas formas de organização e de gestão do trabalho oriundas das mudanças na política econômica, sobretudo a partir da década de 1990 (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.a). Forçadas a se modernizar e a aumentar a qualidade diante das novas demandas dos mercados, as organizações passam a fazer uso crescente de tecnologia e a cortar mão de obra. Seguiram-se privatizações, fusões e incorporações, com forte impacto em alguns setores, como o bancário.

A maioria das pesquisas nacionais sobre demissão aborda o tema sob a perspectiva dos sujeitos, enfatizando a vivência do processo demissional, impactos e efeitos negativos, em que afloram sentimentos de inadaptação, insatisfação e angústia, além de frustração, medo, desconfiança, estresse e desamparo (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.a). Poucos artigos abordam o fenômeno sob uma perspectiva ampliada, buscando identificar como ele afeta o sujeito diante de sua profissão e carreira. Ao impor mudanças nos modos de ser e trabalhar, a demissão pode ser entendida como marco de reflexão (DELUCA e ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016.), que força o trabalhador a conjecturar sobre as projeções futuras de carreira e vida, em um contexto no qual as trajetórias se apresentam cada vez menos organizacionais e lineares e cada vez mais individuais, múltiplas e caleidoscópicas.

Nesse sentido, Lee, Huang e Ashford (2018LEE, C.; HUANG, G.-H.; ASHFORD, S. J. Job Insecurity and the changing workplace: recent developments and the future trends in job insecurity research. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, v. 5, n. 1, p. 1-25, 2018.) apontam significativa lacuna nas pesquisas envolvendo carreiras que se tornam incertas, tal como elas entendem ter ocorrido com o jornalismo, a partir de processos de downsizing ocasionados pela imposição de demandas externas (circunstâncias econômicas, mudança do padrão de consumo ou automação). Diferentemente da insegurança no trabalho, a insegurança de carreira é drasticamente mais intensa em: 1) estigma social, pois não se trata da perda de um emprego individual, mas de um setor inteiro que já não se mostra mais viável; e 2) questões de identidade, como sua perda e as reações associadas a ela e aos (novos) papéis que as pessoas precisam desempenhar para seguir na profissão (LEE, HUANG e ASHFORD, 2018LEE, C.; HUANG, G.-H.; ASHFORD, S. J. Job Insecurity and the changing workplace: recent developments and the future trends in job insecurity research. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, v. 5, n. 1, p. 1-25, 2018.).

Além disso, nota-se desatenção da produção acadêmica brasileira acerca das relações de trabalho na indústria jornalística, profundamente impactada na era digital. Ao contrário de outros setores, cujas transformações foram bem registradas na mídia, as mudanças laborais e organizacionais do jornalismo não têm espaço sequer no noticiário cotidiano: “jornalista não é notícia”, dita o senso comum da atividade. As mutações são drásticas a partir dos anos 1990, quando inovações em tecnologias de comunicação abrem novas possibilidades para a produção e o consumo de informação (FONSECA e SOUZA, 2006FONSECA, V.; SOUZA, P. O pós-fordismo na produção jornalística. Intexto, v. 2, n. 15, p. 1-18, 2006.) e têm tanto impacto na área que foram comparadas à invenção da prensa tipográfica, no século XV (FONSECA e KUHN, 2009FONTENELLE, I. A prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015.).

A introdução de tecnologias digitais no jornalismo levou à “otimização do tempo e do trabalho” (FONSECA e KUHN, 2009FONSECA, V.; KUHN, W. Jornalista contemporâneo: apontamentos para discutir a identidade profissional. Intexto, v. 2, n. 21, p. 57-69, 2009., p. 58). A produção foi reestruturada a partir da intensificação laboral, com acúmulo de atividades (SOUSA, 2008SOUSA, J. P. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. Porto: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2008.), da extinção de funções e do descarte de trabalhadores que não se adaptaram à exigência de ser multitarefas (LOPES, 2011LOPES, F. Jornalismo: uma profissão em crise? Intexto, v. 1, n. 24, p. 58-72, 2011.) - de modo semelhante ao que ocorreu no setor bancário (WEBER e GRISCI, 2011WEBER, L.; GRISCI, C. Trabalho imaterial bancário, lazer e vivência de dilemas pessoais contemporâneos. Revista de Administração Contemporânea, v. 15, n. 5, p. 897-917, 2011.; NASCIMENTO, DAMASCENO e NEVES, 2016NASCIMENTO, R.; DAMASCENO, L.; NEVES, D. Between reward and suffering: the bank workers’ view of the flexibility discourse. Revista de Administração Mackenzie, v. 17, n. 4, p. 15-38, 2016.). O número de postos formais caiu e novas possibilidades de emprego instável, precário e desregulado cresceram no mercado jornalístico (FIGARO, 2013FIGARO, R. O trabalho do jornalista na abordagem do binômio comunicação e trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 11., 2013, Brasília. Anais...Brasília, DF: [s.n], 2013.). A absorção de jornalistas por empresas de internet cresceu em um primeiro momento, mas não compensou os cortes maciços de vagas na mídia tradicional (MCCHESNEY, 2012MCCHESNEY, R. Farewell to journalism?Journalism Studies, v. 13, n. 5-6, p. 682-694, 2012.).

Autores brasileiros (PEREIRA e ADGHIRNI, 2011PEREIRA, F.; ADGHIRNI, Z. O jornalismo em tempo de mudanças. Intexto, v. 1, n. 24, p. 38-57, 2011.; LOPES, 2011LOPES, F. Jornalismo: uma profissão em crise? Intexto, v. 1, n. 24, p. 58-72, 2011.), ainda que admitam alterações profundas na prática jornalística, em especial devido à dificuldade da indústria se manter lucrativa e ao advento da internet, recomendam cautela na adoção do discurso de “crise” no jornalismo, proferido por colegas norte-americanos (MCCHESNEY, 2016MCCHESNEY, R. Journalism is dead! Long live journalism? - Why democratic societies will need to subsidise future news production. Journal of Media Business Studies, v. 13, n. 3, p. 128-135, 2016.; REINARDY, 2011REINARDY, S. Newspaper journalism in crisis: burnout on the rise, eroding young journalists’ career commitment. Journalism, v. 12, n. 1, p. 33-50, 2011.). Classificar como “crise” implicaria acreditar que o modelo anterior era estável, como se a atividade e a indústria fossem imunes a inovações estruturais periódicas.

Desligamentos coletivos de jornalistas são bem documentados em países que dispõem de dados estatísticos detalhados. No Canadá, 12 mil vagas já foram eliminadas em 2 décadas (PPF, 2017PUBLIC POLICY FORUM - PPF. The shattered mirror: news, democracy and trust in the digital age. Ottawa: PPF, 2017.); em Portugal, 1,1 mil jornalistas perderam o emprego entre 2000 e 2012 (BASTOS, 2014BASTOS, H. Da crise dos media ao desemprego no jornalismo em Portugal. Revista Científica de Comunicação Social da FIAM-FAAM, v. 2, n. 2, p. 38-46, 2014.); na Austrália, 2 mil vagas foram extintas de 2011 ao início de 2017 (ALCORN, 2017ALCORN, G. Australia’s journalism is in mortal danger. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.theguardian.com/media/2017/may/04/australias-journalism-is-in-mortal-danger-politicians-should-join-the-fight-to-save-it >. Acesso em: 10 maio 2017.
https://www.theguardian.com/media/2017/m...
). Nos EUA, os cortes se intensificaram com a crise econômica de 2008 (MEYER, 2009MEYER, P. The vanishing newspaper: saving journalism in the information age. 2. ed. Columbia, MO: University of Missouri Press, 2009.) e o número de jornalistas contratados caiu de 52.600, em 2008, para 32.900, em 2015, segundo o censo anual da American Society of News Editors (ASNE). A entidade desistiu de calcular as vagas formais, por ser inviável acompanhar a velocidade das reestruturações, que, além de eliminar empregos, criam relações de trabalho que as empresas não querem revelar (ASNE, 2016AMERICAN SOCIETY OF NEWS EDITORS - ASNE. ASNE releases 2016 Diversity Survey results. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://members.newsleaders.org/diversity-survey-2016 >. Acesso em:24 março 2020.
https://members.newsleaders.org/diversit...
).

Nota-se que os pesquisadores brasileiros do tema focam o impacto das transformações em processos comunicativos (produção, distribuição e consumo de notícias). São raras as abordagens acerca da perspectiva dos trabalhadores, profundamente afetados em suas práticas laborais, capacidades exigidas, perspectivas de futuro e carreira, relações e significado do trabalho. Uma dessas exceções é a pesquisa de Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.) sobre a deterioração da qualidade de vida de jornalistas diante das mudanças no mundo do trabalho. Entretanto, ainda que aborde a ótica do trabalhador, o autor não conduz a discussão sob a perspectiva da demissão massiva, intensificada e sistêmica ocorrida no meio jornalístico (uma vez que sua pesquisa é elaborada entre 2002 e 2003, período em que esse processo ainda não havia se revelado, com tal intensidade, no Brasil). Pesquisas estrangeiras, por sua vez, revelam que jornalistas que vivenciaram demissões coletivas sofrem com insegurança e medo de arriscar (EKDALE, TULLY, HARMSEN et al., 2015EKDALE, B. et al. Newswork within a culture of job insecurity. Journalism Practice, v. 9, n. 3, p. 383-398, 2015.; REINARDY, 2011REINARDY, S. Newspaper journalism in crisis: burnout on the rise, eroding young journalists’ career commitment. Journalism, v. 12, n. 1, p. 33-50, 2011.), diminuição da identidade profissional (SHERWOOD e O’DONNELL, 2016SHERWOOD, M.; O’DONNELL, P. Once a journalist, always a journalist? Journalism Studies, v. 19, n. 7, p. 1-18, 2016.) e incapacidade de reempregar-se na área (NEL, 2010NEL, F. Laid off: what do UK journalists do next?Preston: University of Central Lancashire, 2010.), reforçando a importância da análise a partir das demissões ocasionadas pelos movimentos de downsizing para ampliar a compreensão desse processo de transformação. Os respondentes relatam satisfação no passado e, mesmo os que foram “expulsos” da atividade, revelam ter orgulho da profissão.

Surge, então, a questão de pesquisa: diante das profundas transformações que afetam o meio jornalístico nas últimas décadas, como os jornalistas enxergam o futuro de sua profissão e carreira após vivenciar um processo de demissão coletiva? Assim, na tentativa de ajudar na elucidação de algumas das lacunas expostas, este estudo tem por objetivo compreender, a partir da perspectiva de jornalistas que vivenciaram a demissão coletiva, como estes enxergam o futuro de sua profissão e carreira. Parte-se da hipótese investigativa de que a demissão é uma ruptura que, vista sob a perspectiva contextual, apresenta-se como um ponto de inflexão na carreira. Nos capítulos seguintes são apresentados o referencial teórico, que aborda as transformações no meio jornalístico e os conceitos de profissão, carreira e demissão adotados; o caminho metodológico percorrido; a apresentação, análise e discussão dos resultados, a partir dos achados em campo; e, por fim, as considerações que encerram este estudo.

AS TRANSFORMAÇÕES DO TRABALHO NO MEIO JORNALÍSTICO

O jornalismo periódico foi criado na Europa entre os séculos XVI e XVII (SOUSA, 2008SOUSA, J. P. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2008. Disponível em:<Disponível em:http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-uma-historia-breve-do-jornalismo-no-ocidente.pdf >. Acesso em: 10 maio 2017.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-p...
), sem fim lucrativo, para divulgar ideias políticas ou religiosas dos proprietários dos jornais. Com a Revolução Industrial e a redução dos custos de produção foi possível produzir em larga escala, originando sua fase comercial. Destinada ao público vasto, a imprensa vendia jornais a preços mínimos, sustentando-se pela publicidade. O jornal, como destacado por Max Weber em 1910, era uma empresa dependente de dois clientes (leitores e anunciantes) com interesses distintos ou conflitantes e consequências além das puramente comerciais (WEBER, 2002WEBER, M. Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa. Lua Nova, n. 55-56, p. 185-194, 2002.). Equilibrar-se entre dois clientes é decisivo na formação e nos rumos da indústria.

No século XIX, com a fase comercial, o jornalismo se estabeleceu como profissão. O espaço de produção passou a ser partilhado, denominado “redação”, e a representação do trabalhador se transforma de solitária em coletiva: é a coletividade que dá forma e identidade ao grupo profissional (FIDALGO, 2008FIDALGO, J. O Jornalista em construção. Porto: Porto Ed., 2008.). No século XX, o jornalismo dos países ocidentais se institucionaliza sob um modelo profissional, criando escolas, códigos de ética, padrões de licenciamento, sindicatos e associações. Com a invenção do rádio e da TV, cresce o mercado de trabalho, bem como as plataformas da imprensa e a dependência dos anunciantes (BARNHURST e NERONE, 2009BARNHURST, K.; NERONE, J. Journalism history. In: WAHL-JORGENSEN, K.; HANITZSCH, T. (Ed.). The handbook of journalism studies. New York: Routledge, 2009. p. 17-28.).

A partir dos anos 2000, a imprensa tem seu sustento abalado: a informatização e o uso da internet mudam o comportamento dos consumidores que, atraídos pela informação gratuita e abundante, forçam anunciantes a migrar para o ambiente virtual (COSTA, 2014COSTA, C. Um modelo de negócio para o jornalismo digital: como os jornais devem abraçar a tecnologia, as redes sociais e os serviços de valor adicionado. Revista de Jornalismo ESPM, v. 9, p. 51-115, 2014.). Esse fenômeno dá início à crise estrutural que leva o sistema comercial ao colapso (MCCHESNEY, 2016MCCHESNEY, R. Journalism is dead! Long live journalism? - Why democratic societies will need to subsidise future news production. Journal of Media Business Studies, v. 13, n. 3, p. 128-135, 2016.), mas não se restringe a ele. Os fatores são múltiplos e as demissões passam a ocorrer, além da questão financeira, porque as tecnologias permitem produzir com menos trabalhadores.

Acompanhando o movimento prosumer1 1 Neologismo em inglês de Alvin Toffler (1928-2016), que reuniu as palavras produtor e consumidor para indicar a dissolução das fronteiras que antes separavam esses dois sujeitos (FONTENELLE, 2015). e de co-criação (CÓRDOVA, 2016CÓRDOVA, R. Interfaces entre trabalho e consumo: uma proposta de discussão acerca das definições sobre o processo de co-criação. In: ENCONTRO NACIONAL DOS ESTUDOS DO CONSUMO, 2016, Niterói. Anais...Niterói: [s.n], 2016.), a internet derruba outro pilar do jornalismo: a distinção entre produtores (emissores) e consumidores (receptores) de informação. Tirando o monopólio das organizações, o público passa a produzir e alcançar audiências maciças. Além de abalar a base de sustento da indústria e levar a cortes de vagas (CAMPONEZ, 2009CAMPONEZ, J. Fundamentos de deontologia do jornalismo: a autorregulação frustrada dos jornalistas portugueses (1974-2007). Lisboa: Edições Almedina, 2011.), isso reduz o papel dos jornalistas e possibilita ao público questionar sua credibilidade, impelindo os jornalistas a uma crise de legitimidade.

A qualidade de vida no trabalho se deteriora, enquanto o jornalista é obrigado a se adaptar freneticamente a novas tecnologias e sua lealdade, amizade e confiança são abaladas pelo comportamento imediatista (HELOANI, 2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.). Em resposta à facilidade com que as empresas demitem, os jornalistas se alienam do grupo. Mesmo “apaixonados pelo que fazem”, alguns desistem por não suportar mais “adiar a felicidade”, como afirma Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005., p. 166).

Revela-se, assim, o complexo contexto em que ocorrem as demissões coletivas no setor, que vai além das crises financeiras. Diante das transformações na indústria e no fazer laboral e dos abalos na legitimação da atividade como função social, os jornalistas submetidos ao processo demissional estão em meio a uma conjuntura de múltiplas implicações, que afetam suas percepções sobre profissão e carreira.

PROFISSÃO, CARREIRA E DEMISSÃO COMO PONTO DE INFLEXÃO

Este estudo se apoia em Abbott (1993ABBOTT, A. The sociology of work and occupations. Annual Review of Sociology, v. 19, p. 187-209, 1993.), considerando crucial conciliar fatores micro e macro nos estudos sobre trabalho e ocupações, a partir de pesquisas empíricas com dados multiníveis, ou seja, níveis micro (informações de carreiras), meso (rede de estrutura entre carreiras e empregos) e macro (informações de nível organizacional sobre ocupações e estruturas de trabalho em conflitos e em processos).

Adota-se o conceito de profissão, com base no artigo seminal de Hughes (1937HUGHES, E. Institutional office and the person. American Journal of Sociology, v. 43, n. 3, p. 404-413, 1937.): status obtido por uma ocupação laboral que detém licença e mandato (explícito ou implícito) para sua prática, legitimada pela socialização dos membros, que compartilham visões de mundo, experiência, criam associações e códigos de valores e/ou regulamentações legais. A profissionalização, que eleva ocupação ao status de profissão, advém de reivindicações em que diferentes grupos competem para legitimamente controlar uma área (ABBOTT, 1988ABBOTT, A. The system of professions. Chicago: University of Chicago Press, 1988.).

A carreira, de acordo com Hughes (1937HUGHES, E. Institutional office and the person. American Journal of Sociology, v. 43, n. 3, p. 404-413, 1937., p. 410), pode ser vista tanto objetivamente (sequência de status e cargos claramente definidos) quanto subjetivamente (“a perspectiva dinâmica pela qual a pessoa vê sua vida como um todo e interpreta o significado de vários atributos, ações e o que lhe acontece”). A partir do aspecto subjetivo, portanto, compreende-se que direção, destino e percurso de carreira são móveis e maleáveis, pois os indivíduos se orientam com referência à ordem social e posicionados diante das instituições e da coletividade, retrospectiva e prospectivamente.

Em linha, Mayrhofer, Meyer e Steyrer (2007MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240., p. 215-217) entendem que “carreiras são sempre carreiras em contexto”, de modo que sua análise não deve restringir-se “ao movimento individual em uma corporação ou a hierarquias profissionais”, desconsiderando os fenômenos exógenos que as moldam. Assim, o modelo proposto pelos autores evidencia contextos que influenciam uma carreira individual, que incluem, por exemplo, aspectos como novas formas de trabalho e organização, socialização e virtualização.

Ademais, DeLuca e Rocha-de-Oliveira (2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016., p. 13) reforçam a importância do entendimento da carreira como um conceito não linear e em constante transformação, no qual passado, presente e futuro permanecem interligados: “embora o passado já tenha sido vivido, ele é continuamente reinterpretado. O futuro parece difuso e refletido no momento presente e nas memórias ressignificadas, o que permite reconsiderar alternativas abandonadas”. Além disso, afirmam os autores, dilemas e conflitos, quando interpretados a partir da perspectiva temporal, tornam mais visíveis os pontos de inflexão e os marcos de decisão, trazendo novas possibilidades para o entendimento das carreiras.

A discussão sobre carreiras não deve, portanto, desconsiderar os pontos de inflexão, que assumem papel central ao representar os “marcos de reflexão, normalmente decorrentes dos conflitos e dilemas vivenciados” (DELUCA e ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016., p. 12). Assim, entende-se que a demissão pode ser vista como ponto de inflexão nas carreiras. Tal ponto, aqui analisado contextualmente, representa o rompimento com a condição anterior, dificilmente recuperável, pois a perda do emprego no cenário jornalístico não é fato individual, isolado ou reversível. Além disso, as implicações que formam o contexto se mostram progressivas, isto é, a retração de postos de trabalho e a perda da base econômica da imprensa seguem avançando.

Nesse contexto, a ruptura imposta pela demissão pode conduzir os jornalistas a possibilidades de trabalho instáveis, precárias e desregulamentadas, em que um exército de reserva oscila entre demissões e inserções passageiras nas redações (FIGARO, 2013FIGARO, R. O trabalho do jornalista na abordagem do binômio comunicação e trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 11., 2013, Brasília. Anais...Brasília, DF: [s.n], 2013.). Os que voltam a se empregar estão suscetíveis a novas rupturas, diante do colapso em queda livre da indústria (MCCHESNEY, 2016MCCHESNEY, R. Journalism is dead! Long live journalism? - Why democratic societies will need to subsidise future news production. Journal of Media Business Studies, v. 13, n. 3, p. 128-135, 2016.). O jornalista, agora desalojado de seu trabalho, depara-se com os impactos das transformações sobre sua profissão e sua carreira.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A motivação inicial da pesquisa surgiu a partir de hipóteses levantadas pelas autoras, em especial devido ao fato de uma delas ser graduada em Jornalismo. Tal como aponta Flick (2009FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.), o ponto de partida de uma pesquisa pode vir do conhecimento empírico, a partir do qual são elaboradas hipóteses investigativas. Assim, antes mesmo do delineamento completo da pesquisa, realizou-se uma entrevista com uma experiente jornalista2 2 A “entrevista com especialista” é recurso metodológico apontado por Flick (2009, p. 158), onde “há um menor interesse no entrevistado como pessoa (como um todo) do que em sua capacidade de ser um especialista para um determinado campo de atividade”. , de modo a conhecer sua visão acerca do fenômeno em estudo: as transformações no jornalismo e seu impacto nas relações de trabalho. A jornalista entrevistada: a) atua na área há mais de 20 anos; b) assumiu cargos de gestão em redações; c) vivenciou a transição para o jornalismo on-line e a derrocada das redações, com os processos de demissão coletiva; e d) passou por 5 processos de demissão em massa.

A partir disso, dada a natureza qualitativa (FLICK, 2009FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.) e exploratória (GIL, 2010GIL, A. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.) deste estudo, optou-se como principal técnica de coleta de dados pela realização de grupos focais (GF), pois, segundo Silva-Júnior, Silva e Mesquita (2014SILVA, C. A precarização da atividade jornalística e o avanço da pejotização. 2014. 215 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.), sentidos e significados podem ser explorados com maior profundidade do que em entrevistas individuais. Para esses autores, a utilização dos GF é a mais indicada para abordar preocupações comuns e detalhes contextuais, levantar “opiniões, sentimentos, percepções, comportamentos acerca de temática específica” (SILVA-JÚNIOR, SILVA e MESQUITA, 2014SILVA-JÚNIOR, A.; SILVA, P. O. M.; MESQUITA, J. M. C. As dimensões teórica e metodológica do grupo focal no contexto da pesquisa qualitativa. In: SOUZA, E. M. (Ed.). Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 125-156., p. 130). Flick (2009FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.) defende a utilização dos GF no estudo de assuntos considerados tabus, como é o caso da demissão (SCHERER, VACLAVIK, CHAGAS-JÚNIOR et al., 2017VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.), como forma de amplificar a discussão a partir da capacidade coletiva de estimular respostas e lembranças de acontecimentos, para além do que ocorre com entrevistas individuais. No mesmo sentido, em linha com Gaskell (2003GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 64-89.), entende-se que, a partir da interação social que provocam, os GF propiciam reflexões coletivas ao aproximar sujeitos que coletivamente vivenciaram o downsizing.

Foram entrevistadas 18 pessoas em 3 GF, entre abril de 2017 e abril de 2018, em Porto Alegre-RS. A intenção de dividir os entrevistados em 3 turmas encontra amparo em Morgan (1996MORGAN, D. Focus groups. Annual Review of Sociology, v. 22, p. 129-152, 1996.), que aconselha fazer grupos menores quando os tópicos têm carga emocional e geram alto nível de envolvimento. Assim, optou-se por convidar até 8 pessoas em cada sessão.

A condução da pesquisa seguiu os preceitos operacionais apontados por Silva-Júnior, Silva e Mesquita (2014SILVA, C. A precarização da atividade jornalística e o avanço da pejotização. 2014. 215 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.):

  1. Roteiro: 7 questões3 3 As questões inicialmente apresentadas aos entrevistados foram: 1) Qual foi o impacto da demissão na sua vida? Como você vivenciou o processo de demissão? 2) Como você percebe, desde o momento que ingressou no jornalismo, as transformações na profissão ao longo do tempo? 3) Como você avalia o impacto do fator tecnologia na sua profissão (positivo ou negativo)? 4) Como você fazia seu trabalho antes da era digital e como faz hoje? 5) Como você entende que a tecnologia afeta o emprego e o trabalho, de modo geral? 6) Como você enxerga o futuro da profissão de jornalista e como se vê no futuro? 7) Como o jornalista defende o valor de sua profissão? abertas iniciais guiaram o processo. Durante as reuniões, outras perguntas foram feitas para aprofundar ou esclarecer algum tópico.

  2. Seleção dos participantes: seguiu-se o princípio da homogeneidade, com critérios estabelecidos a priori - ser jornalista de formação e ter vivenciado um processo de demissão coletiva em meio jornalístico. Como há dissenso na literatura sobre o número ideal de participantes (SILVA-JÚNIOR, SILVA e MESQUITA, 2014SILVA-JÚNIOR, A.; SILVA, P. O. M.; MESQUITA, J. M. C. As dimensões teórica e metodológica do grupo focal no contexto da pesquisa qualitativa. In: SOUZA, E. M. (Ed.). Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 125-156.), considerou-se fundamental permitir que todos pudessem expressar-se sem dispersões ou conversas paralelas - problemas comuns em grupos maiores. Dos 24 contatados a partir da rede de relacionamentos das pesquisadoras, 18 compareceram. Divididas em 3 grupos (detalhes na Tabela 1), 6 pessoas participaram da primeira sessão (de 1 hora e 54 minutos); 5 da segunda (de 2 horas e 15 minutos); e 7 da terceira (de 2 horas e 8 minutos).

  3. Condução: como uma das moderadoras também é jornalista, a integração foi facilitada (não apenas pelo processo de acesso e comunicação, mas também pelo sentimento de empatia com as situações vivenciadas e narradas pelos entrevistados). Além disso, o fato dos participantes se conhecerem, por causa de experiências profissionais prévias, contribuiu para criar um ambiente confortável para todos se expressarem. As moderadoras buscaram interagir com o grupo, explorando todas as questões do roteiro, porém, permitindo que os integrantes seguissem “seu próprio movimento” (SILVA-JÚNIOR, SILVA e MESQUITA, 2014SILVA-JÚNIOR, A.; SILVA, P. O. M.; MESQUITA, J. M. C. As dimensões teórica e metodológica do grupo focal no contexto da pesquisa qualitativa. In: SOUZA, E. M. (Ed.). Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 125-156., p. 148).

  4. Análise e interpretação dos dados: a partir das vivências narradas pela especialista (que remeteu às grandes mudanças no jornalismo, vivenciadas ao longo de sua trajetória profissional, e à temporalidade da carreira) e da pré-análise do material obtido por meio dos GF (transcrição das gravações e leitura integral), delimitou-se o caminho da análise: a utilização da demissão como ponto de inflexão em uma perspectiva temporal de passado, presente e futuro. Tal decisão se ampara em DeLuca e Rocha-de-Oliveira (2016BALARAM, B.; WARDEN, J.; WALLACE-STEPHENS, F. Good gigs: a fairer future for the UK´s gig economy. London: RSA/Mangopay, 2017.), que defendem a utilização desse recurso metodológico nos estudos sobre carreira. Os autores entendem que essa abordagem “permite que o pesquisador veja as mudanças ao longo do tempo e possibilite a visão de transformação em um sentido mais amplo” (DELUCA e ROCHA-DE-OLIVEIRA, 2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016., p. 13). Assim, considerando a demissão um ponto de inflexão para a análise da carreira jornalística, as falas foram divididas e articuladas em 3 categorias principais, identificadas pela temporalidade dos fatos narrados: o antes, que remete ao passado prévio às vivências dos processos de demissão em massa; o depois, que remete aos acontecimentos vivenciados logo após as ondas de desligamento e que se estende até o tempo presente; e, a partir dessas imposições, a projeção de futuro, pelas lentes dos entrevistados, para a carreira jornalística, tanto individual como coletivamente.

Tal como são as pesquisas qualitativas, as autoras desta pesquisa se depararam com um universo de significados, tanto no momento da coleta dos dados quanto no momento posterior, de análise. Decidiu-se, portanto, a partir da estruturação das categorias de análise, pela utilização da análise de conteúdo, em especial pela descoberta do que estava por trás dos conteúdos manifestos (GOMES, 2001GOMES, R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2001. p. 67-80.). O exercício da representação simplificada dos dados brutos (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Ed. 70, 2016.) foi realizado a partir do procedimento “por caixas”, no qual o conteúdo é repartido em categorias pré-determinadas, na medida em que os dados vão sendo encontrados (BARDIN, 2016, p. 149). Assim, o conteúdo das falas, gravado e transcrito, foi: a) debatido coletivamente entre as autoras, a partir de muita reflexão, de modo a buscar os significados presentes nos dados; e b) sistemático, seguindo os preceitos de exaustividade, homogeneidade e pertinência (BARDIN, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Ed. 70, 2016.).

Os preceitos éticos em pesquisa com seres humanos foram observados e os participantes receberam e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Tabela 1
Características dos entrevistados

APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Em linha com o pressuposto teórico adotado por DeLuca e Rocha-de-Oliveira (2016DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016.) para os estudos sobre carreira, este artigo busca compreender, a partir da perspectiva de jornalistas que vivenciaram a demissão coletiva, como estes enxergam o futuro de sua profissão e carreira diante das transformações que se impõem. Desse modo, as falas se apresentam situadas cronologicamente em: a) antes das demissões em massa; b) depois dos desligamentos coletivos; e c) projeções futuras para a carreira e a profissão.

Antes da demissão: tolerância e acolhimento

Para compreender como os respondentes relembram detalhes da vida profissional, é importante frisar que as narrativas se referem ao período anterior à primeira demissão coletiva citada pelos entrevistados, em dezembro de 2012. Note-se que, no início dos anos 2000, os portais de internet brasileiros, nascidos na virada do século, estruturaram melhor suas redações e práticas profissionais (FERRARI, 2002FERRARI, P. Usabilidade e exercício de jornalismo dentro do formato portal no Brasil. 2002. 239 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.), tornando-se um mercado novo e promissor.

A satisfação com a atividade no passado é comum à maioria dos respondentes, com duas exceções (Antônio, Carla). Perpassam pelas falas experiências laborais em que se mencionam assédio moral, jornadas longas e horários insalubres, mas tais experiências são amenizadas ou toleradas diante de fatores como acolhimento, vivência coletiva, ambiente de liberdade e expressão profissional, evidenciando o sentido do trabalho e seu significado.

Aurora, por exemplo, afirma que ter entrado na empresa onde trabalhou era a realização de um sonho, devido à possibilidade de crescimento. Bia, por outro lado, sofreu “assédio moral constante” em seu início profissional e questionou se continuaria em um “lugar horrível, com pessoas assustadoras”. Sua percepção mudou com a alteração da chefia para outra “melhor, mais qualificada, mais aberta ao diálogo”, com a qual sentia afinidade e recebia incentivo para fazer “coisas diferentes e interessantes”. Bruno, por sua vez, descreve o passado como “um momento encantado” em que chegou o mais próximo da realização:

[...][Era] uma liberdade espetacular que eu nunca tinha visto desde então. Não encontrava assunto tabu, coisa que eu trabalhei em mais de um veículo e existem vários... E uma equipe que se dava muito bem. A gente tinha plena satisfação de ir para o trabalho, por mais que fosse desgastante.

Apesar da jornada exaustiva, Bruno “achava ótimo”, porque convivia com pessoas de quem gostava e com quem criou laços pessoais e afetivos. A narrativa de Aurora também revela forte empatia entre o grupo de colegas. A razão, ela suspeita, era o fato das vidas laboral e pessoal terem se misturado: “nossas relações [pessoais] estavam todas lá”. Ela exemplifica que se um deles não recebia uma esperada promoção, todos se desapontavam.

Quanto ao trabalho executado, os entrevistados afirmam que ora faziam coberturas socialmente relevantes, o que os orgulhava e permitia que exercitassem sua criatividade e liberdade informativa, ora precisavam publicar material cuja única função era atrair audiência. A gratificação pelo trabalho relevante compensava o desagrado de fazer o que não apreciavam. João, exemplo, não se importava em trabalhar muitas horas além do acordo contratual quando trabalhou em uma revista de São Paulo, porque sabia que “ia escrever um texto incrível, que ia dar repercussão, que ia ficar super bem feito, que as pessoas iam ler, iam comentar”.

Chamam a atenção nos relatos desse período os momentos fraternos, isto é, o acolhimento nas relações cotidianas com reconhecimento e valorização do trabalho realizado, que tornavam tolerável o desgaste das jornadas intensas. São sobre esse momento as menções mais otimistas, carregadas de histórias, em que a construção de carreira parecia possível, sem o receio de demissões e precarização.

O ambiente acolhedor começa a se desintegrar quando surgem boatos sobre possíveis demissões. Relações de trabalho deterioradas em ambientes de insegurança e incerteza (EKDALE, TULLY, HARMSEN et al., 2015EKDALE, B. et al. Newswork within a culture of job insecurity. Journalism Practice, v. 9, n. 3, p. 383-398, 2015.), e condições precárias, em meio às quais o jornalista deve produzir mais em menos tempo, com menos recursos e com menos colegas (BASTOS, 2015BASTOS, H. Ciberjornalismo, jornalismo e democracia. Media & Jornalismo, n. esp., p. 93-105, dez. 2015.), surgem nas falas sobre a época após as demissões, abordadas a seguir.

A demissão como ponto de inflexão: rupturas, desamparo e precarização

Neste momento, as percepções dos respondentes sob as perspectivas individual e contextual aparecem simultânea ou complementarmente, indistinguíveis na lógica das narrativas. Indissolúveis em pesquisas de organizações e de carreiras (MAYRHOFER, MEYER e STEYRER, 2007MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240.), aspectos micro e macro permeiam as falas, que se situam a partir de 2012, quando as demissões coletivas no setor se pronunciam no Brasil (SPAGNUOLO, 2015SPAGNUOLO, S. A conta dos passaralhos. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2And6CA >. Acesso em:10 maio 2017.
http://bit.ly/2And6CA...
). Foram afetados desde trabalhadores de jornais e revistas, que perdiam leitores para a internet, até os de portais noticiosos, que perdiam receita publicitária para redes sociais e sites de busca (COSTA, 2014COSTA, C. Um modelo de negócio para o jornalismo digital: como os jornais devem abraçar a tecnologia, as redes sociais e os serviços de valor adicionado. Revista de Jornalismo ESPM, v. 9, p. 51-115, 2014.). Os entrevistados relatam processos demissionais mal conduzidos, em que a falta de transparência fortaleceu boatos, gerou angústias e amplificou o sofrimento.

Dos 18 entrevistados, 8 estão empregados como jornalistas (videTabela 1). Cinco não conseguiram emprego formal e atuam como freelancer (termo com o qual os entrevistados também se referem a emprego temporário). Fabiana e Antônio desistiram do jornalismo e seguem carreira em outras profissões. Elena, Diego e Gil atuam em atividades da comunicação social não jornalística (assessoria de imprensa e publicidade), sendo que os primeiros desejam se afastar mais da profissão de origem e Gil planeja seguir atuando em áreas próximas, usando a “expertise acumulada” no jornalismo para “pensar em produtos de comunicação”.

Dentre os que deixaram a comunicação social, Antônio se empregou em uma cervejaria artesanal logo após seu desligamento e, em 2017, abriu sua marca própria de cervejas. Fabiana teve 2 experiências como freelancer e, na segunda, percebeu no início que não suportaria conviver com a chefe, que era a “definição de assédio moral”. No dia que soube da demissão de 20 ex-colegas, decidiu prestar vestibular para Direito. Ela faz o curso e estagia na área, que admite “não amar”, mas “tem mais perspectiva do que no jornalismo”. A escolha de Fabiana ecoa a pesquisa de Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.), que constatou que a maioria dos jornalistas que desejam mudar de atividade pretende migrar para a área jurídica.

Bia, que fez acordo para ser desligada após testemunhar duas demissões coletivas, rejeitou a proposta de trabalho de um grande jornal que exige longas jornadas. Ela atua em um site pequeno, trabalha poucos finais de semana, tem uma equipe coesa e orgulha-se do conteúdo produzido:

Não acho que [atuar no jornalismo] vai ser pra vida inteira, mas ainda me faz feliz, ainda me faz ter tesão de trabalhar, sabe? Às vezes é uma droga, mas têm dias que sai uma pauta incrível [...] e tu pensa “nossa, como é bom poder fazer isso” (Bia).

Um dos entrevistados por Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005., p. 165) classificou o jornalismo como “uma fábrica de loucos”. Também extrema é a metáfora de Bruno: “é um moedor de carne”. Bruno não queria voltar à profissão após ser demitido e chegou a prestar concurso para a Polícia Federal, apenas pelo desejo de estabilidade, mas sem aprovação e sem trabalhar por mais de 1 ano, retornou ao jornalismo. É o mesmo caso de Aurora, que, após 2 anos prestando concursos, viu-se obrigada a voltar ao mercado como freelancer, “sem vontade nenhuma”. Ingressar na carreira pública também é visto como alternativa por César. Ele se reempregou após ser demitido, mas, descontente com os rumos do jornalismo, estuda para concursos.

As opiniões convergem, ainda, quanto ao tipo de vaga disponível e ao achatamento salarial - para trabalhar “horrores e ganhar super pouco”, resume Diana. A tendência é demitirem trabalhadores com maior experiência e melhores salários, afirma Edu, que faz o chamado “freela” em uma empresa ganhando menos do que recebia 6 anos antes como empregado. As organizações empregam uma “gurizada” pelo piso salarial, o que “vão ganhar durante 10 anos, 15 anos da vida deles”, diz. Os grupos focais 2 e 3 identificam nas empresas uma tendência de demitir os mais experientes. Para eles, a prática enfraquece as redações, elimina a memória, tira a referência dos mais jovens e impede que os remanescentes criem perspectiva de continuar na atividade. “Eu quero melhorar para ser como essa pessoa, mas se essa pessoa foi demitida ontem, para onde eu olho?”, questiona-se João. Helena, por sua vez, avalia que os colegas mais velhos, que não tinham “vida fora do jornal”, estão desamparados. Ela encontrou um antigo chefe, “na faixa dos 50 anos”, vivendo do dinheiro da rescisão tempos depois de ser demitido porque não conseguia se reempregar. “O que a pessoa vai fazer? Uma pessoa que quer ser jornalista com essa idade e com essa transição do jornalismo?”. Edu, por sua vez, diz que se entristece ao ver colegas atuando como motoristas de aplicativo. “Nada contra! Só que é muito jornalista que tu vê que o cara não consegue mais uma vaga… e ele virou só motorista de Uber”.5 5 Destaca-se que, ao longo da realização desta pesquisa, uma das autoras foi atendida por um motorista de aplicativo que é jornalista. Ele é repórter de um jornal e buscou a atividade como complementação de renda, porque as oportunidades que tinha antes, de fazer “freelas” nas horas vagas, desapareceram. .

Diana, Edu e João percebem uma crescente intensificação do trabalho nos últimos anos. João, que não se importava em trabalhar mais no passado, porque o tempo se revertia em matérias que o orgulhavam, considera que as demissões fazem os remanescentes terem de trabalhar em velocidade incompatível com a qualidade. “A chance de errar é muito grande, porque são muitas tarefas em pouco espaço de tempo” e cada vez menos o profissional consegue “fazer matérias legais e relevantes”.

Além da redução das vagas e do achatamento de salários, eles observam que o aumento da carga de trabalho e o acúmulo de funções foram naturalizados. Edu diz ter visto até cinegrafista servindo de motorista de equipe jornalística. As empresas adotam cada vez mais uma “postura de exploração do trabalho”, avalia Joaquim, “buscado tirar o maior nível de produtos possível, de produção possível, de todos os seus profissionais”, completa.

A velocidade das mudanças na indústria jornalística, instável, influenciada por muitas variáveis e suscetível a alterações bruscas de foco, atordoa os entrevistados. Para Gil, a indústria almeja no máximo sobreviver, porque o mercado está confuso, o consumo mudou e as empresas não sabem o que fazer, “elas estão perdidas”. Segundo Bruno, é difícil acreditar em uma estratégia quando há tantos sinais contraditórios em sequência:

A empresa, em um ano, foca em uma coisa: dá errado. Daí, no outro, foca rigorosamente pro outro lado! Então tu vê um pouco de atitudes erradas das empresas porque elas não encontraram ainda um modelo de negócios sustentável no jornalismo. Isso vale para empresas e profissionais.

Narrativas de rupturas e desamparo que levam à desesperança marcam tanto o período pouco antes das demissões quanto depois delas. Evidenciam-se sentimentos ambíguos de atração, indicadas pelas manifestações de apreço e respeito pela profissão, e repulsa, com o desejo de fugir dela. As mudanças provocadas pela demissão reforçam o sofrimento, em especial devido ao desmantelamento dos laços afetivos das relações pessoais que permitiam suportar aspectos negativos e à falta de perspectiva de encontrar um emprego que proporcione um futuro na profissão, haja vista que os mais velhos e experientes são desligados pelas empresas. Seguiram-se transformações de ordem estrutural que remetem a sucessivos processos de precarização e afetam o trabalho jornalístico e a vontade de nele permanecer. O item seguinte busca evidenciar como os entrevistados lidam com as perspectivas, suas e do jornalismo, diante de tantos dilemas.

Em busca de saídas: projeções para a continuidade no/do jornalismo

Ao projetar o futuro, as perspectivas dos entrevistados quanto à construção de carreira (HUGHES, 1937HUGHES, E. Institutional office and the person. American Journal of Sociology, v. 43, n. 3, p. 404-413, 1937.) devem ser vistas a partir do entendimento contextual de Mayrhofer, Meyer e Steyrer (2007MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240.). Para Bia, o enfrentamento com o futuro despertado pela demissão trouxe questões sem resposta:

Eu quero continuar fazendo jornalismo? Que caminho dá pra seguir? Pra onde é que eu vou? O que eu faço?

As projeções dos entrevistados, em especial Bia, Diana, Diego e Edu, aludem a medo, insegurança e desesperança. Bruno nota a frequência das palavras “violência”, “escravidão”, “escape”, “cair” e “libertar” nas falas dos colegas. Para Bia, o jornalista passa a conviver com essas sensações quando pensa no futuro, pois se encontra desamparado e desprovido de garantias enquanto freelancer e, como funcionário, vive ameaçado por demissões: “a estabilidade, no jornalismo, não está na CLT [...] não está no ‘pejota’6 6 Referência a jornalistas que criam pessoas jurídicas (PJ) para prestar serviços a empresas de comunicação. ; ela não está no freela. Ela não existe!”. No mesmo sentido segue a análise de Gil, para quem “a angústia da incerteza” um é “denominador comum” do empregado, que pode ser demitido a qualquer momento, e do freelancer, que não sabe se vai ter trabalho. Soma-se a isso a insatisfação salarial: “tu olha as pessoas no teu entorno, no teu convívio, o quanto elas evoluíram financeiramente, às vezes, até na carreira mesmo, alcançaram cargos e tal. E você está lá, sem esperança alguma”, resume Elena. Para Joaquim, a adaptação do modelo de negócio para a nova realidade virtual impacta diretamente os trabalhadores, exige mais e não dá retorno financeiro, como aumento de salários, nem tranquilidade ou melhores condições de trabalho.

A desesperança e a frustração permitem entender por que a alternativa vislumbrada é sair do jornalismo, como fizeram 5 entrevistados. Projetam deixar a atividade tanto quem atua como freelancer, como Carla e Edu, quanto quem está empregado na área, como Bruno, César, Gisela e João. Edu justifica: “preciso achar outra coisa pra ganhar dinheiro. Nada contra o jornalismo”. Elena e Diego repetem a mesma expressão: “mudar completamente”, indicando que assessoria de imprensa e publicidade não lhes parece longe o bastante do jornalismo. Para Diana, “a escravidão não se limita só aos veículos de comunicação”. Assim como Aurora, Heitor, Joaquim, ela está entre a minoria dos 4 entrevistados que se vê na profissão no futuro. Bia, Gabriela e Helena têm dúvidas sobre seguir ou não na atividade.

O pessimismo com a instabilidade do cenário também marca as projeções para o futuro amplo da profissão. Para Edu, todos sabem que “o modelo de negócio está em crise”, mas nada realmente novo surge quando as empresas tentam inovar: “tem de ter uma virada aí que não está acontecendo”. Ao mesmo tempo em que veem o contexto macro impondo transformações, percebem que o jornalismo não se transforma o suficiente para sobreviver.

Entre as dificuldades que estão além da volição dos sujeitos, Bruno prevê mais modelos de freelancers, relações laborais precarizadas e atuação sem vínculos trabalhistas. Pessimista, Diana entende que as redações repletas de funcionários tendem a desaparecer, dando espaço a “pejotas” remunerados pelos cliques recebidos em suas matérias.

Para Aurora, é “desesperador viver somente o agora”. Ela acredita que empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mesmo com jornadas exaustivas, conseguem pensar no futuro mais do que autônomos: “meus amigos que vivem de freela, eles [apenas] sobrevivem [...] Quem tem freela, não tem plano”. Se essa tendência for irreversível, mais tentada Aurora fica a sair do jornalismo,

[...] porque tu não está investindo [na carreira], tu não faz nada que vá dar um resultado um pouco mais adiante. Tu vai seguir fazendo só isso e isso não vai te levar a lugar nenhum.

Além de intensificar o trabalho e mudar a forma de realizá-lo, as novas tecnologias fazem as habilidades requeridas aumentarem. Para Edu, o jornalista precisa ampliar seu escopo: “tu não tem de formar só jornalista, tu tem de formar o cara que entenda de produto, que saiba vender”. Além disso, afirma, é preciso conhecer programação para não ficar sujeito aos desenvolvedores de sites nem à imposição dos algoritmos das redes sociais. Diana adiciona a necessidade de entender de gestão e empreendedorismo.

Para permanecer no jornalismo é preciso buscar contrato de trabalho, com jornadas intensas, pouca liberdade de expressão e baixas chances de crescimento; ou aceitar as relações sem vínculo trabalhista, incertas e precárias, do trabalho freelance. As falas mostram que a incerteza sobre o futuro do jornalismo é indissociável das perspectivas da própria carreira na profissão. Enquanto falam em sair da atividade, os entrevistados também refletem sobre possíveis caminhos, baseados na crença no valor e na importância social da profissão, reforçando sua ambiguidade e seus dilemas.

Carreiras vulneráveis: para além da discussão sobre demissão

Vulnerável é o “sujeito a ser atacado, derrotado, prejudicado ou ofendido” (HOUAISS e VILLAR, 2001HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.). Já decorreram décadas desde que Dejours (2011DEJOURS, C. Avant-propos para a edição brasileira. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 17-36., p. 16) afirmou que as populações que trabalham parecem “mais vulneráveis hoje do que no passado”. No hoje do futuro, o pessimismo dos entrevistados remete à fragilidade das relações laborais. Ao ressoar na coletividade, as mutações do jornalismo e a falta de perspectivas melhores afetam os trabalhadores e suas carreiras, tornando-os suscetíveis à precarização e ao desamparo (FIGARO, 2013FIGARO, R. O trabalho do jornalista na abordagem do binômio comunicação e trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 11., 2013, Brasília. Anais...Brasília, DF: [s.n], 2013.; BASTOS, 2014BASTOS, H. Da crise dos media ao desemprego no jornalismo em Portugal. Revista Científica de Comunicação Social da FIAM-FAAM, v. 2, n. 2, p. 38-46, 2014., 2015BASTOS, H. Ciberjornalismo, jornalismo e democracia. Media & Jornalismo, n. esp., p. 93-105, dez. 2015.; EKDALE, TULLY, HARMSEN et al., 2015EKDALE, B. et al. Newswork within a culture of job insecurity. Journalism Practice, v. 9, n. 3, p. 383-398, 2015.; SHERWOOD e O’DONNELL, 2016SHERWOOD, M.; O’DONNELL, P. Once a journalist, always a journalist? Journalism Studies, v. 19, n. 7, p. 1-18, 2016.; PPF, 2017PUBLIC POLICY FORUM - PPF. The shattered mirror: news, democracy and trust in the digital age. Ottawa: PPF, 2017.). A constatação encontra amparo em Lancman (2011LANCMAN, S. O mundo do trabalho e a psicodinâmica do trabalho. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011. p. 25-36.), que já apontava a instabilidade das novas relações de trabalho que se desenhavam. Esse fenômeno complexo - que soma desesperança, impossibilidade de planejamento, perda do sentido do trabalho, saída forçada da profissão, bem como seus dilemas e seus conflitos - é denominado carreiras vulneráveis.

Construir e manter uma carreira na profissão parece algo distante nas vivências dos entrevistados, cujas falas indicam, sobretudo, dois aspectos imbricados e simultâneos. O primeiro reflete dilemas individualizados: diante de laços rompidos e desesperança, os trabalhadores buscam opções para continuar na profissão ou para encontrar espaço em suas vidas para investir na transição. O segundo se refere ao contexto jornalístico, em que profissão, mercado e indústria enfrentam mutações de diversas ordens.

Dentre os principais resultados encontrados, notou-se que a precarização é vista como inerente. Ela não se limita, porém, a vínculos e direitos trabalhistas, estendendo-se também em outro sentido: sobre condições de trabalho e relações pessoais, suporte essencial para enfrentar assédio moral, longas jornadas e horários insalubres. É sabido que a descontinuidade imposta por contratos informais atrapalha as relações duradouras, impede a criação de laços, afeta a sensação de acolhimento e pertencimento e aliena do grupo (HELOANI, 2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.).

Os entrevistados evidenciaram a importância das relações pessoais e do fazer prazeroso proporcionado pela liberdade de expressão em aspectos que atribuíam sentido e significado ao trabalho. Sua dissolução impele a repensar o futuro profissional. Tanto que muitos dos que seguem na profissão desejam deixá-la, por verem poucas perspectivas nesse cenário, em que as empresas lutam para se adaptar às mudanças que subverteram sua lógica de sustentação. As tentativas de adaptar-se são sempre individuais, não sendo consideradas soluções coletivas, como também verificado por Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.). A decisão de sair recai sobre o sujeito, mas a construção de novos caminhos na carreira é repleta de dificuldades e dilemas.

Outro resultado comum à pesquisa de Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.) são as contradições que marcam os discursos dos jornalistas sobre sua profissão. As falas, ora desesperançosas, ora de apreço, indicam que o abandono da profissão não ocorreria se as previsões fossem otimistas, uma vez que a insegurança está não só no risco da perda do emprego, mas na falta de prognóstico de encontrar um trabalho decente. Assim, sujeitos à derrota, os trabalhadores e suas carreiras se confrontam com a vulnerabilidade inevitável.

Mesmo que tentem esboçar possíveis caminhos para o jornalismo, os entrevistados são pessimistas, ao considerar os desafios de uma indústria cujas mutações continuam no gerúndio. A indefinição amplia a angústia e o sofrimento com os dilemas que se impõem. Os resultados desta pesquisa possibilitam uma aproximação com a indústria bancária (estudada mais numerosamente), que sofreu grandes reestruturações, inclusive tecnológicas. Demissões coletivas, instabilidade e insegurança, junto com o culto à urgência e à eficácia, levaram à precarização do trabalho e a práticas que geram sofrimento, desamparo e adoecimento entre os bancários (LINHARES e SIQUEIRA, 2014LINHARES, A.; SIQUEIRA, M. Vivências depressivas e relações de trabalho: uma análise sob a ótica da psicodinâmica do trabalho e da sociologia clínica. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 719-740, 2014.; NASCIMENTO, DAMASCENO e NEVES, 2016NASCIMENTO, R.; DAMASCENO, L.; NEVES, D. Between reward and suffering: the bank workers’ view of the flexibility discourse. Revista de Administração Mackenzie, v. 17, n. 4, p. 15-38, 2016.; WEBER e GRISCI, 2011WEBER, L.; GRISCI, C. Trabalho imaterial bancário, lazer e vivência de dilemas pessoais contemporâneos. Revista de Administração Contemporânea, v. 15, n. 5, p. 897-917, 2011.).

A autorresponsabilização pelos desdobramentos das mudanças aparece na busca pela superqualificação: são múltiplas as demandas por habilidades externas ao jornalismo, como programação, vendas, empreendedorismo e gestão. Crítico da ideia de tomar tarefas que não são suas para “salvar” o sentido da profissão, Sandano (2015SANDANO, C. Para além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo interconectado. São Carlos: UFSCar, 2015.) recomenda o oposto: deve-se reafirmar o significado do jornalismo no século XXI, recuperar sua função cognitiva e sua capacitação epistemológica7 7 Segundo o autor, a capacitação epistemológica do jornalismo é o “aprendizado de narrar a dor e a humilhação, desejos e perspectivas de pessoas diferentes de nós”, o que requer “altruísmo” a ser desenvolvido por “uma capacitação empática para interpretar (ler) o mundo e estar aberto ao diferente” (SANDANO, 2015, p. 171-173). . Quando jornalistas, imersos em indefinições, propõem adquirir habilidades de profissões alheias, é a própria identidade profissional que se dissolve.

Enquanto a profissão se transforma, desesperança e pessimismo desbotam seu sentido. No contexto em que as carreiras se desenham (MAYRHOFER, MEYER e STEYRER, 2007MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240.), as previsões elaboradas pelos entrevistados refletem o mundo do trabalho, as tecnologias e a imprensa como negócio. O futuro sobre o qual o trabalhador faz planos é uma projeção das condições presentes: um processo irreversível que corta vagas, precariza relações e intensifica o trabalho. O prazer laboral diminui diante de outras esferas fundamentais (como remuneração, segurança, qualidade de vida), que agora faltam à profissão. E, se a falta de sentido é um dos gatilhos que acionam os mecanismos de defesa contra o sofrimento (SZNELWAR, 2011SZNELWAR, L. Sobre estes textos da psicodinâmica do trabalho, algumas reflexões. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011. p. 37-45.), os laços enfraquecidos da organização do trabalho baseada no freelancing também prejudicam o estabelecimento de estratégias coletivas de enfrentamento, tão caras a Dejours (2011DEJOURS, C. Avant-propos para a edição brasileira. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 17-36.).

Nesse quadro, parece inevitável aos respondentes ou ser expulsos da profissão que escolheram (seja em demissões coletivas, seja porque, acreditam, os mais velhos são sempre demitidos) ou deixar voluntariamente o jornalismo. Para Heloani (2005HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.), os jornalistas que persistem na atividade o fazem por amar e fetichizar a profissão, enquanto outros buscam saídas por não suportarem mais adiar a felicidade.

Quem tenta resistir na atividade, segundo os respondentes, é submetido a condições precárias e opressivas e assiste à retração contínua do mercado, o que impede o prognóstico de um futuro melhor e força o trabalhador a deixar a profissão. Segundo Lancman (2011LANCMAN, S. O mundo do trabalho e a psicodinâmica do trabalho. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011. p. 25-36., p. 28), “o fim do trabalho estável traz consigo a perda da esperança, do sonho de ascensão e de progresso social por meio do trabalho”. A vulnerabilidade, cedo ou tarde, atingirá o jornalista. Está em andamento um “colapso” irreversível que ameaça a própria democracia, já que um de seus pilares é a imprensa forte, livre e independente (MCCHESNEY, 2016MCCHESNEY, R. Journalism is dead! Long live journalism? - Why democratic societies will need to subsidise future news production. Journal of Media Business Studies, v. 13, n. 3, p. 128-135, 2016., p. 2).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa partiu da contextualização histórica e espacialmente situada da demissão coletiva vivenciada pelos respondentes para abordar como eles foram impactados pelo fenômeno. O entendimento de que indivíduos e contextos devem ser simultaneamente enfocados advém dos conceitos de profissão e carreira adotados (HUGHES, 1937HUGHES, E. Institutional office and the person. American Journal of Sociology, v. 43, n. 3, p. 404-413, 1937.; ABBOTT, 1988ABBOTT, A. The system of professions. Chicago: University of Chicago Press, 1988.; MAYRHOFER, MEYER e STEYRER, 2007MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240.).

Portanto, em conjuntura multifatorial, a demissão coletiva se evidenciou como ponto de inflexão que desalojou profissionais de seu meio, como sintoma extremo de mutações que parecem inevitáveis. Por isso, pode auxiliar a compreensão desse fenômeno analisar como jornalistas projetam suas carreiras a partir da realidade desvelada pelo processo de demissão coletiva. Desse modo, esta pesquisa contribui, primeiro, ao interseccionar temas em geral discutidos isoladamente: carreira, demissão e relações de trabalho. Em segundo lugar, ao partir do entendimento da demissão como ponto de inflexão, busca ampliar essa discussão, comumente centralizada na vivência do processo demissional (VACLAVIK, PITHAN, AVILA et al., 2017VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.a). Terceiro, ao utilizar a perspectiva do ponto de inflexão, também contribui para os estudos sobre carreira, tal como defendem DeLuca e Rocha-de-Oliveira (2016BASTOS, H. Ciberjornalismo, jornalismo e democracia. Media & Jornalismo, n. esp., p. 93-105, dez. 2015.). Ademais, reforça-se que, em Administração, uma vez que os estudos sobre carreira têm absoluto predomínio endógeno (VACLAVIK, PITHAN, SCHERER et al., 2017SCHERER, L. A. et al. Demissão: precisamos falar sobre isso! Uma análise sob a perspectiva organizacional. In: ENCONTRO DA ANPAD, 41., 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: Anpad, 2017.b), este artigo traz uma quarta contribuição ao propiciar a expansão da análise a partir do campo jornalístico, em perspectiva que pouco interessa ao jornalismo: a do trabalhador (CHARRON e DE BONVILLE, 2016CHARRON, J.; DE BONVILLE, J. Natureza e transformação do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2016.).

Como quinta e última contribuição, também busca auxiliar no preenchimento de uma lacuna ao pesquisar, sob as perspectivas micro e macro (ABBOTT, 1993ABBOTT, A. The sociology of work and occupations. Annual Review of Sociology, v. 19, p. 187-209, 1993.), uma atividade intensamente afetada pelas transformações atuais e imersa em um cenário intrincado, instável e imprevisível, raramente presente nos estudos nacionais em Administração. Ressalta-se o entendimento de que a área, com seu aspecto multidisciplinar e presente nos mais diversos ramos de atuação, deve preocupar-se, lato sensu, com os desdobramentos dos assuntos que estuda - dentre eles carreira, demissão e relações de trabalho, temas que este artigo se propõe a interseccionar a partir das perspectivas micro e macro.

Para estudos futuros, sugere-se aprofundar análises dos impactos das transformações do jornalismo sobre os trabalhadores brasileiros desse segmento, tal como ocorreu com os bancários, com amostras maiores de entrevistados e de outras regiões do país. Além disso, pesquisas que envolvam estudantes de jornalismo, nativos da informação digital, podem trazer novas perspectivas. Devido ao recorte de sujeitos que tiveram a vivência extrema da demissão, é possível ter havido tendências ao pessimismo. Pesquisas comparativas que não estejam centralizadas no ponto de inflexão da demissão e no resgate da memória, como neste estudo, podem somar ao entendimento do fenômeno. Tais sugestões vêm de encontro às limitações deste estudo, realizado com 18 jornalistas em 1 região específica.

A preocupação de que a entrada massiva da tecnologia no ambiente laboral afete os empregos e o número de postos disponíveis não é recente. Entretanto, diante de um quadro em que se disseminam práticas cada vez mais precarizadas, a exemplo das características da organização do trabalho na gig economy, soa adequado evocar Balaram, Warden e Wallace-Stephens (2017BALARAM, B.; WARDEN, J.; WALLACE-STEPHENS, F. Good gigs: a fairer future for the UK´s gig economy. London: RSA/Mangopay, 2017.): em um momento em que se percebem desigualdades sociais e temores crescentes sobre o impacto da tecnologia no mundo do trabalho, é necessário reforçar um movimento que retome perguntas básicas sobre o que é necessário para desfrutar de um padrão de vida decente, em sentido amplo. Dado seu caráter exploratório, este artigo, menos que concluir, propôs-se a levantar questões acerca das relações de trabalho contemporâneas que não se limitam à atividade jornalística, na esperança de que se construam caminhos alternativos que, de fato, possam extrair as vantagens da tecnologia.

REFERÊNCIAS

  • ABBOTT, A. The system of professions. Chicago: University of Chicago Press, 1988.
  • ABBOTT, A. The sociology of work and occupations. Annual Review of Sociology, v. 19, p. 187-209, 1993.
  • ALCORN, G. Australia’s journalism is in mortal danger. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.theguardian.com/media/2017/may/04/australias-journalism-is-in-mortal-danger-politicians-should-join-the-fight-to-save-it >. Acesso em: 10 maio 2017.
    » https://www.theguardian.com/media/2017/may/04/australias-journalism-is-in-mortal-danger-politicians-should-join-the-fight-to-save-it
  • AMERICAN SOCIETY OF NEWS EDITORS - ASNE. ASNE releases 2016 Diversity Survey results. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://members.newsleaders.org/diversity-survey-2016 >. Acesso em:24 março 2020.
    » https://members.newsleaders.org/diversity-survey-2016
  • BALARAM, B.; WARDEN, J.; WALLACE-STEPHENS, F. Good gigs: a fairer future for the UK´s gig economy. London: RSA/Mangopay, 2017.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Ed. 70, 2016.
  • BARNHURST, K.; NERONE, J. Journalism history. In: WAHL-JORGENSEN, K.; HANITZSCH, T. (Ed.). The handbook of journalism studies. New York: Routledge, 2009. p. 17-28.
  • BASTOS, H. Da crise dos media ao desemprego no jornalismo em Portugal. Revista Científica de Comunicação Social da FIAM-FAAM, v. 2, n. 2, p. 38-46, 2014.
  • BASTOS, H. Ciberjornalismo, jornalismo e democracia. Media & Jornalismo, n. esp., p. 93-105, dez. 2015.
  • CAMPONEZ, J. Fundamentos de deontologia do jornalismo: a autorregulação frustrada dos jornalistas portugueses (1974-2007). Lisboa: Edições Almedina, 2011.
  • CHARRON, J.; DE BONVILLE, J. Natureza e transformação do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2016.
  • CÓRDOVA, R. Interfaces entre trabalho e consumo: uma proposta de discussão acerca das definições sobre o processo de co-criação. In: ENCONTRO NACIONAL DOS ESTUDOS DO CONSUMO, 2016, Niterói. Anais...Niterói: [s.n], 2016.
  • COSTA, C. Um modelo de negócio para o jornalismo digital: como os jornais devem abraçar a tecnologia, as redes sociais e os serviços de valor adicionado. Revista de Jornalismo ESPM, v. 9, p. 51-115, 2014.
  • DEJOURS, C. Avant-propos para a edição brasileira. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 17-36.
  • DELUCA, G.; ROCHA-DE-OLIVEIRA, S. Inked careers: tattooing professional paths. Brazilian Administration Review, v. 13, n. 4, p. 1-18, 2016.
  • EKDALE, B. et al. Newswork within a culture of job insecurity. Journalism Practice, v. 9, n. 3, p. 383-398, 2015.
  • FERRARI, P. Usabilidade e exercício de jornalismo dentro do formato portal no Brasil. 2002. 239 f. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
  • FIDALGO, J. O Jornalista em construção. Porto: Porto Ed., 2008.
  • FIGARO, R. O trabalho do jornalista na abordagem do binômio comunicação e trabalho. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 11., 2013, Brasília. Anais...Brasília, DF: [s.n], 2013.
  • FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
  • FONSECA, V.; KUHN, W. Jornalista contemporâneo: apontamentos para discutir a identidade profissional. Intexto, v. 2, n. 21, p. 57-69, 2009.
  • FONSECA, V.; SOUZA, P. O pós-fordismo na produção jornalística. Intexto, v. 2, n. 15, p. 1-18, 2006.
  • FONTENELLE, I. A prosumption: as novas articulações entre trabalho e consumo na reorganização do capital. Ciências Sociais Unisinos, v. 51, n. 1, p. 83-91, 2015.
  • GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 64-89.
  • GIL, A. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
  • GOMES, R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes , 2001. p. 67-80.
  • HELOANI, R. Vivendo no limite: quem são nossos formadores de opinião? Revista USP, n. 65, p. 148-168, 2005.
  • HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
  • HUGHES, E. Institutional office and the person. American Journal of Sociology, v. 43, n. 3, p. 404-413, 1937.
  • INTERNATIONAL LABOUR OFFICE - ILO. World employment social outlook: trends 2017. Geneva: ILO, 2017.
  • LANCMAN, S. O mundo do trabalho e a psicodinâmica do trabalho. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011. p. 25-36.
  • LEE, C.; HUANG, G.-H.; ASHFORD, S. J. Job Insecurity and the changing workplace: recent developments and the future trends in job insecurity research. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, v. 5, n. 1, p. 1-25, 2018.
  • LINHARES, A.; SIQUEIRA, M. Vivências depressivas e relações de trabalho: uma análise sob a ótica da psicodinâmica do trabalho e da sociologia clínica. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 719-740, 2014.
  • LOPES, F. Jornalismo: uma profissão em crise? Intexto, v. 1, n. 24, p. 58-72, 2011.
  • MANYIKA, J. et al. Independent work: choice, necessity, and the gig economy. [s.l]: McKinsey Global Institute, 2016.
  • MAYRHOFER, W.; MEYER, M.; STEYRER, J. Contextual issues in the study of careers. In: H. GUNZ; PEIPERL, M. (Org.). Career studies. California: Sage Publications, 2007. p. 215-240.
  • MCCHESNEY, R. Farewell to journalism?Journalism Studies, v. 13, n. 5-6, p. 682-694, 2012.
  • MCCHESNEY, R. Journalism is dead! Long live journalism? - Why democratic societies will need to subsidise future news production. Journal of Media Business Studies, v. 13, n. 3, p. 128-135, 2016.
  • MEYER, P. The vanishing newspaper: saving journalism in the information age. 2. ed. Columbia, MO: University of Missouri Press, 2009.
  • MORGAN, D. Focus groups. Annual Review of Sociology, v. 22, p. 129-152, 1996.
  • NASCIMENTO, R.; DAMASCENO, L.; NEVES, D. Between reward and suffering: the bank workers’ view of the flexibility discourse. Revista de Administração Mackenzie, v. 17, n. 4, p. 15-38, 2016.
  • NEL, F. Laid off: what do UK journalists do next?Preston: University of Central Lancashire, 2010.
  • OLTRAMARI, A. Dilemas relativos à carreira no contexto do trabalho imaterial bancário e suas repercussões às relações familiares. 2010. 57 f. Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
  • PEREIRA, F.; ADGHIRNI, Z. O jornalismo em tempo de mudanças. Intexto, v. 1, n. 24, p. 38-57, 2011.
  • PUBLIC POLICY FORUM - PPF. The shattered mirror: news, democracy and trust in the digital age. Ottawa: PPF, 2017.
  • REINARDY, S. Newspaper journalism in crisis: burnout on the rise, eroding young journalists’ career commitment. Journalism, v. 12, n. 1, p. 33-50, 2011.
  • RIFKIN, J. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995. RIFKIN, J. Sociedade com custo marginal zero. São Paulo: Makron Books , 2015.
  • SANDANO, C. Para além do código digital: o lugar do jornalismo em um mundo interconectado. São Carlos: UFSCar, 2015.
  • SCHERER, L. A. et al. Demissão: precisamos falar sobre isso! Uma análise sob a perspectiva organizacional. In: ENCONTRO DA ANPAD, 41., 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: Anpad, 2017.
  • SHERWOOD, M.; O’DONNELL, P. Once a journalist, always a journalist? Journalism Studies, v. 19, n. 7, p. 1-18, 2016.
  • SILVA, C. A precarização da atividade jornalística e o avanço da pejotização. 2014. 215 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
  • SILVA-JÚNIOR, A.; SILVA, P. O. M.; MESQUITA, J. M. C. As dimensões teórica e metodológica do grupo focal no contexto da pesquisa qualitativa. In: SOUZA, E. M. (Ed.). Metodologias e analíticas qualitativas em pesquisa organizacional: uma abordagem teórico-conceitual. Vitória: Edufes, 2014. p. 125-156.
  • SOUSA, J. P. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2008. Disponível em:<Disponível em:http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-uma-historia-breve-do-jornalismo-no-ocidente.pdf >. Acesso em: 10 maio 2017.
    » http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-uma-historia-breve-do-jornalismo-no-ocidente.pdf
  • SOUSA, J. P. Uma história breve do jornalismo no Ocidente. Porto: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2008.
  • SPAGNUOLO, S. A conta dos passaralhos. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2And6CA >. Acesso em:10 maio 2017.
    » http://bit.ly/2And6CA
  • SZNELWAR, L. Sobre estes textos da psicodinâmica do trabalho, algumas reflexões. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. I. (Org.). Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2011. p. 37-45.
  • VACLAVIK, M. C. et al. Demissão: significados, possibilidades e reflexões a partir de uma meta-análise das publicações dos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DA ANPAD, 41., 2017, São Paulo. Anais... São Paulo: Anpad, 2017a.
  • VACLAVIK, M. C. et al. Carreira: um panorama das abordagens sobre o tema nos eventos da Anpad nos últimos vinte anos. In: ENCONTRO DE GESTÃO DE PESSOAS E RELAÇÕES DE TRABALHO, 6., 2017, Curitiba. Anais... Curitiba: Anpad, 2017b.
  • WEBER, M. Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa. Lua Nova, n. 55-56, p. 185-194, 2002.
  • WEBER, L.; GRISCI, C. Trabalho imaterial bancário, lazer e vivência de dilemas pessoais contemporâneos. Revista de Administração Contemporânea, v. 15, n. 5, p. 897-917, 2011.
  • 1
    Neologismo em inglês de Alvin Toffler (1928-2016), que reuniu as palavras produtor e consumidor para indicar a dissolução das fronteiras que antes separavam esses dois sujeitos (FONTENELLE, 2015).
  • 2
    A “entrevista com especialista” é recurso metodológico apontado por Flick (2009, p. 158), onde “há um menor interesse no entrevistado como pessoa (como um todo) do que em sua capacidade de ser um especialista para um determinado campo de atividade”.
  • 3
    As questões inicialmente apresentadas aos entrevistados foram: 1) Qual foi o impacto da demissão na sua vida? Como você vivenciou o processo de demissão? 2) Como você percebe, desde o momento que ingressou no jornalismo, as transformações na profissão ao longo do tempo? 3) Como você avalia o impacto do fator tecnologia na sua profissão (positivo ou negativo)? 4) Como você fazia seu trabalho antes da era digital e como faz hoje? 5) Como você entende que a tecnologia afeta o emprego e o trabalho, de modo geral? 6) Como você enxerga o futuro da profissão de jornalista e como se vê no futuro? 7) Como o jornalista defende o valor de sua profissão?
  • 4
    Jornalista autônomo que se autoemprega em diferentes empresas ou guia seus trabalhos por projetos, “captando e atendendo seus clientes de forma independente” (SILVA, 2014, p. 33-34), podendo passar longos períodos sem contratação formal. É um modelo comum no segmento de mídia em geral.
  • 5
    Destaca-se que, ao longo da realização desta pesquisa, uma das autoras foi atendida por um motorista de aplicativo que é jornalista. Ele é repórter de um jornal e buscou a atividade como complementação de renda, porque as oportunidades que tinha antes, de fazer “freelas” nas horas vagas, desapareceram.
  • 6
    Referência a jornalistas que criam pessoas jurídicas (PJ) para prestar serviços a empresas de comunicação.
  • 7
    Segundo o autor, a capacitação epistemológica do jornalismo é o “aprendizado de narrar a dor e a humilhação, desejos e perspectivas de pessoas diferentes de nós”, o que requer “altruísmo” a ser desenvolvido por “uma capacitação empática para interpretar (ler) o mundo e estar aberto ao diferente” (SANDANO, 2015, p. 171-173).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2018
  • Aceito
    21 Ago 2018
Fundação Getulio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas Rua Jornalista Orlando Dantas, 30 - sala 107, 22231-010 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel.: (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosebape@fgv.br