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Certificados de potencial adicional de construção como mecanismo de financiamento das operações urbanas consorciadas ou como instrumento especulativo?

¿Certificados de potencial de construcción adicional como mecanismo de financiamiento para operaciones urbanas consorciadas o como instrumento especulativo?

Resumo

Este artigo apresenta as operações urbanas consorciadas (OUCs) como alianças público-privadas geradoras de valor público desenvolvidas em meio a um contexto de globalização e financeirização do mercado imobiliário, de restrições fiscais e de primazia dos interesses privados na produção do espaço urbano. Com o Estatuto da Cidade, as OUCs passam a dispor dos certificados de potencial adicional de construção (CEPACs) como principal mecanismo de financiamento. Muito contestados desde sua instituição por um possível componente especulativo de âmbito financeiro, os CEPACs - quinze anos após seus primeiros leilões - já podem ser analisados menos teoricamente e com base nos preços e volumes realizados em suas negociações. Com base nos históricos dos leilões e nas conversões das OUCs Faria Lima e Água Espraiada (ambas em São Paulo-SP), este artigo apresenta alguns avanços na reflexão sobre as possibilidades reais desse instrumento, minimizando seu caráter especulativo como correntemente previsto, e indica a necessidade de governança pública sobre as OUCs quanto à geração de valor público e à garantia do direito à cidade.

Palavras-chave:
Certificados de potencial adicional de construção; Operações urbanas consorciadas; Alianças público-privadas; Valor público; Especulação financeira

Resumen

Este artículo presenta las operaciones urbanas consorciadas (OUCs) como alianzas público-privadas que generan valor público, desarrolladas en un contexto de globalización y financiarización del mercado inmobiliario, de restricciones fiscales y primacía de los intereses privados en la producción del espacio urbano. Con el Estatuto de la Ciudad, las OUCs ahora tienen los certificados de potencial de construcción adicional (CEPACs) como su principal mecanismo de financiamiento. Muy controvertidos desde su inicio por un posible componente financiero especulativo, los CEPACs - quince años después de sus primeras subastas - ahora pueden analizarse de manera menos teórica y en función de los precios y volúmenes realizados en sus negociaciones. Con base en el historial de subastas y conversiones de las OUCs Faria Lima y Água Espraiada (ambas en São Paulo-SP), el artículo presenta algunos avances en la reflexión sobre las posibilidades reales de este instrumento, minimizando su carácter especulativo como se predice actualmente, e indica la necesidad de gobernanza pública sobre las OUCs en relación con la generación de valor público y la garantía del derecho a la ciudad.

Palabras clave:
Certificados de potencial de construcción adicional; Operaciones urbanas consorciadas; Alianzas público-privadas; Valor público; Especulación financiera

Abstract

This paper presents the urban partnership operations (OUCs) as public-private alliances that generate public value developed in the context of globalization and financialization of the real estate market, fiscal constraints and primacy of private interests in the production of urban space. With the City Statute, additional building rights certificates (CEPACs) are now the OUCs main financing mechanism. CEPACs are subject to much controversy since their establishment because of a possible speculative financial component. Fifteen years after their first auctions, they must now be analysed less theoretically and based on the prices and volumes made in their negotiations. Based on the history of auctions and conversions of the OUCs Faria Lima and Água Espraiada (both from São Paulo-SP), the paper presents advances in the reflection on the real possibilities of this instrument, minimizing its speculative feature as currently predicted, and indicates the need for public governance over OUCs in relation to the generation of public value and the guarantee of the right to the city.

Keywords:
Additional building rights certificates; Urban partnership operations; Public-private alliances; Public value; Financial speculation

INTRODUÇÃO

Grandes projetos urbanos - uma das principais práticas preconizadas pelo urbanismo contemporâneo - realizam-se no Brasil por meio das operações urbanas consorciadas (OUCs), instrumento urbanístico utilizado na transformação e promoção de melhorias estruturais de regiões degradadas e/ou ociosas das cidades, porém com forte potencial imobiliário. Tal instrumento, tendo como estratégia de financiamento parcerias econômico-financeiras entre o poder público e a iniciativa privada, caracteriza-se (a) pela equalização entre o custo total de obras e intervenções e a somatória do potencial adicional de construção criado por alteração na legislação urbana e (b) pela antecipação da receita gerada pela comercialização desse potencial, principalmente por meio da emissão de certificados de potencial adicional de construção (CEPACs).

Por iniciativa de prefeituras, as OUCs criam novas dinâmicas territoriais e incidem positiva e negativamente sobre o cotidiano de moradores e usuários. Como grandes oportunidades de desenvolvimento urbano, frequentemente respondem a demandas do mercado imobiliário por novas áreas de expansão, criando condições vantajosas de negociação de áreas adicionais de construção para agentes de mercado, bem como para a atuação de seus interesses na produção do espaço nos perímetros delimitados pelo instrumento e acabam reproduzindo e até acentuando as diferenças socioeconômicas existentes no espaço urbano.

As OUCs vêm sendo planejadas em São Paulo-SP desde 1985, modificando-se em conceito e modelo ao longo do tempo e inserindo-se no arcabouço da política urbana como importante instrumento urbanístico previsto pelo Estatuto da Cidade - Lei n. 10.257/2001 (BRASIL, 2001aBRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul.2001a.). No entanto, as OUCs paulistanas têm se mostrado pouco eficazes na promoção geral do direito à cidade - estabelecido pelo Estatuto da Cidade -, na medida em que privilegiam interesses privados atuantes nos mercados imobiliário e financeiro, em detrimento de interesses genuinamente públicos.

Em São Paulo, os CEPACs foram inicialmente previstos pela Operação Urbana Faria Lima (Lei Municipal n. 11.732/1995) como mecanismo “inovador” para a arrecadação antecipada de receitas, mas só foram lançados em 2004, após regulamentação pelo Estatuto da Cidade. Desde sua proposição, os CEPACs vêm recebendo elogios e críticas que variam entre “mina de ouro” e “falso milagre”. Tecnicamente, foram apontados como um instrumento de financeirização do processo de produção do espaço urbano e de inserção de mais um componente especulativo - de caráter financeiro - sobre o potencial adicional de construção nos perímetros das OUCs.

Contados 15 anos de seus primeiros leilões e 5 OUCs com títulos registrados na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os CEPACs já podem ser analisados menos teoricamente e com base nos preços e volumes realizados em suas negociações, buscando-se questionar seu uso efetivo como instrumento financeiro especulativo. Tendo como subsídios os históricos dos leilões e das conversões de CEPACs das OUCs Faria Lima e Água Espraiada e o referencial teórico-analítico de base empírica secundária resultante de entrevistas com stakeholders (STROHER, 2019STROHER, L. E. M. Operações urbanas consorciadas: financeirização urbana sem investidores financeiros? In: SHIMBO, L.; RUFINO, B. Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. p. 113-146.), este artigo examina os resultados da comercialização desses títulos pelas OUCs paulistanas diante da ausência de estudos sobre formação, comportamento e influência dos preços dos CEPACs.

Na medida em que os CEPACs, como títulos públicos e como instrumento financeiro, supostamente trazem consigo a possibilidade de serem utilizados em negociações especulativas - e, por conta disso, a possibilidade de incidirem sobre o preço do solo nos perímetros das OUCs -, buscou-se analisar as variações nos preços e a demanda do mercado por esses títulos nos leilões públicos das OUCs Faria Lima e Água Espraiada no período de 2004 a 2018, evidenciando, ao final, a quase inexistente negociação desses títulos em mercado secundário e, por conta desse fato, minimizando seu caráter especulativo tal como correntemente previsto.

Sob uma perspectiva mais ampla, como tipo específico de aliança público-privada, as OUCs, com seus resultados positivos e negativos, podem ser analisadas sob um novo enfoque da administração pública que vai além da administração tradicional e da nova gestão pública. Denominada nova governança pública por Osborne (2006OSBORNE, S. P. The new public governance? Public Management Review, v. 8, n. 3, p. 377-387, 2006.), esse enfoque se mostra propício à análise das alianças público-privadas e do valor público por elas gerado (p. ex., MOORE, 2007MOORE, M. Criando valor público por meio de parcerias público-privadas. Revista do Serviço Público, v. 58, n. 2, p. 151-179, 2007.; BRYSON, CROSBY e BLOOMBERG, 2014BRYSON, J. M.; CROSBY, B. C.; BLOOMBERG, L. Public value governance: moving beyond traditional administration and the new public management. Public Administration Review, v. 74, n. 4, p. 445-456, 2014.; REYNAERS, 2014REYNAERS, A. M. Public values in public-private partnerships. Public Administration Review, v. 74, n. 1, p. 41-50, 2014.). Como resposta aos novos desafios impostos à atual sociedade em rede, multissetorial, de poder compartilhado, a nova governança pública prezará outros valores além da eficiência e da efetividade, tais como o valor público, a cidadania e a governança democrática e colaborativa (BRYSON, CROSBY e BLOOMBERG, 2014BRYSON, J. M.; CROSBY, B. C.; BLOOMBERG, L. Public value governance: moving beyond traditional administration and the new public management. Public Administration Review, v. 74, n. 4, p. 445-456, 2014.).

Nesses termos, baseando-nos nessa abordagem da governança pública como um novo regime de implementação de políticas públicas e prestação de serviços públicos e como modelo de análise das políticas públicas urbanas, também procuramos inserir neste artigo a temática do valor público sobre as OUCs e sobre a comercialização dos CEPACs como seu principal instrumento de financiamento.

Além desta introdução, este artigo se divide em 5 seções. Na primeira, revisitamos as OUCs como instrumento de planejamento urbano e tipo específico de aliança público-privada e apresentamos a governança pública e o valor público como subsídios analíticos. Na segunda, apresentamos os CEPACs como principal mecanismo de viabilização das OUCs, bem como indicamos os argumentos e termos sobre a especulação do instrumento. Na terceira, após análise dos históricos dos leilões e das colocações privadas de CEPACs das OUCs Faria Lima e Água Espraiada, apresentamos alguns resultados da comercialização desses títulos pelas OUCs paulistanas, buscando refletir, a partir de dados concretos, sobre a existência de seu caráter especulativo. Na quarta, contextualizamos as OUCs e os CEPACs no processo de financeirização do espaço urbano. Por fim, na quinta, apresentamos algumas conclusões e considerações gerais acerca do possível caráter especulativo dos CEPACs e da necessidade de governança pública sobre as OUCs quanto à geração de valor público e à garantia do direito à cidade.

As operações urbanas consorciadas como instrumento de planejamento urbano e aliança público-privada

Em São Paulo, desde 1985, mais de uma dezena de operações urbanas já foram propostas tendo 4 delas chegado ao estágio de implantação: a) Operação Urbana Anhangabaú/Centro1 1 A Operação Urbana Anhangabaú, primeira a ser implantada em São Paulo, em 1991, seria expandida em 1997 como Operação Urbana Centro. No entanto, até o presente momento, esta última ainda não foi atualizada de acordo com os princípios do Estatuto da Cidade, não podendo, portanto, ser denominada OUC. , de 1991; b) OUC Faria Lima, de 1995; c) OUC Água Branca, de 1995; e OUC Água Espraiada, de 2001. Além de São Paulo, diversos outros municípios já implantaram ou estão em vias de implantar OUCs, como Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Santo André, São Bernardo do Campo e Osasco.

Segundo o Estatuto da Cidade, operação urbana consorciada é um instrumento urbanístico composto por um “conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados [que visa a alcançar, em determinada área urbana predefinida], transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (BRASIL, 2001aBRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul.2001a., art. 32, § 1º), diferenciando-se dos demais instrumentos urbanísticos na medida em que remete à transformação estrutural de todo um setor da cidade e não de um único lote.

De modo geral, as OUCs compreendem o redesenho desse setor, um conjunto de investimentos públicos e privados para a execução de obras, negociação de direitos de uso do solo, edificabilidade e obrigações de urbanização. Normativamente, as OUCs criam uma área diferenciada da ordenação geral de uso e ocupação do solo vigente - dada pelos planos diretores e leis de parcelamento, uso e ocupação do solo locais, principalmente - e definem todo um conjunto de normas urbanísticas próprias ao seu perímetro (BRASIL, 2001bBRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2001b.).

Como os grandes projetos urbanos análogos, as OUCs se caracterizam fundamentalmente por parcerias e/ou alianças público-privadas como principal meio de viabilização econômico-financeira de obras e serviços. Relações público-privadas têm sido recorrentes ao longo do desenvolvimento capitalista e da formação do Estado moderno e contemporâneo. No entanto, nos últimos 30 ou 40 anos, com a falência econômica e gerencial dos Estados de bem-estar social e nacional-desenvolvimentistas, tornou-se hegemônico um discurso com ênfase no grande potencial da iniciativa privada - com ou sem fins lucrativos - e nas parcerias público-privadas (PPPs) para a implementação mais eficiente e efetiva de políticas e prestação de serviços públicos.

No Brasil, um processo de substituição da atuação do Estado pela iniciativa privada, por meio de concessão de serviços públicos e de privatização de órgãos e empresas estatais em diversos setores da economia, teve início no final da década de 1980, intensificou-se na década de 1990 e perdura até os dias de hoje2 2 Da mesma forma que a iniciativa privada foi ganhando espaço por meio da privatização e concessão de diversas atividades econômicas nesse período, o terceiro setor também vem cada vez mais exercendo diversos serviços de caráter social nas áreas da saúde, educação, esporte, cultura etc., culminando o processo com a instituição do Marco Legal do Terceiro Setor (Lei n. 9.790/1999), substituído recentemente pelo Novo Marco Regulatório (Lei n. 13.019/2014). . A Lei das Concessões (Lei n. 8.987/1995), o Programa Nacional de Desestatização (Lei n. 9.491/1997) e, posteriormente, a Lei das PPPs - Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004BRASIL. Lei n. 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 31 dez. 2004.) -, assim como a criação de agências reguladoras e de diversos programas de nível estadual, têm sido fundamentais para uma maior atuação do setor privado em projetos de infraestrutura e de serviços públicos. As OUCs, por sua vez, são parte inerente desse processo, mais especificamente no que se refere à inserção da iniciativa privada na implementação da política urbana e do Estatuto da Cidade.

Alianças público-privadas ou PPPs (tais como designadas pela Lei das PPPs) podem tomar as mais diversas formas. Graddy e Ferris (2007GRADDY, E. A.; FERRIS, J. M. Public-private alliances: why, when, and to what end?In: VERMA, N. (Ed.). Institutions and planning. Oxford: Elsevier, 2007. p. 175-185.) - trabalhando os conceitos de alianças público-privadas e/ou intersetoriais que podem envolver os setores público e privado (com e sem fins lucrativos) - apontam as diferenças em estrutura de governança, natureza e extensão da integração entre os entes parceiros. Para esses pesquisadores, as alianças variarão desde contratos de mercado até fusões entre organizações, podendo, entre esses extremos, assumir as formas de contrato de colaboração, aliança de capital, aliança sem negociação de ações, com compartilhamento de recursos, expertise e administração ou, ainda, formação de joint ventures.

Ribeiro e Prado (2010RIBEIRO, M. P.; PRADO, L. N. Comentários à Lei de PPP: parceria público-privada. Fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2010.), comentando a Lei das PPPs, apontam a grande amplitude que a expressão em língua inglesa public-private partnership tem, podendo abranger: a) sociedades de economia mista; b) associação entre empresas estatais e empresas privadas como consórcios ou joint ventures; c) privatização sob alienação ou venda de ativos de bens públicos; d) participação de entes públicos no capital de empresas privadas; e) contratos de operação e manutenção; f) contratos para implementação de projetos de infraestrutura; g) concessões, licenças e franquias; h) contratos de terceirização etc. Segundo o BID (2015)BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO - BID. O investimento em infraestrutura no Brasil: parcerias público-privadas e operações urbanas consorciadas. Brasília, DF: BID, 2015., a essa lista poderiam ser acrescidos instrumentos de parcerias com organizações da sociedade civil, convênios ou acordos de cooperação técnica, comercialização de títulos públicos e também as OUCs.

À vista dessas muitas possibilidades, uma consolidação do conceito de alianças público-privadas englobaria uma grande quantidade de acordos que se dão em torno de projetos de interesse comum, projetos tais que permitem ao Estado compartilhar ou transferir a entes privados a responsabilidade pela realização de algumas de suas funções, sob o argumento de maior eficiência e efetividade3 3 Diferentemente, stricto sensu, as PPPs regidas pela Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004) são, segundo Aragão (2005, p. 18), contratos de longo prazo “de delegação de construção, ampliação, reforma ou manutenção de determinada infraestrutura e da gestão da totalidade ou parte das atividades administrativas prestadas por seu intermédio, [...] arcada total ou parcialmente pelo Estado, fixadas em razão da quantidade ou qualidade das utilidades concretamente propiciadas pelo parceiro privado à Administração Pública ou à população”. . Nesse sentido, entende-se as OUCs e os CEPACs como uma categoria específica de aliança público-privada ou PPP lato sensu distinta, já que a adesão da iniciativa privada (proprietários, incorporadores, investidores etc.) por meio dos títulos (ou de outorga onerosa) é facultativa e, portanto, não formalizada4 4 A PPP criada para a administração da OUC da Região do Porto do Rio (Porto Maravilha), no Rio de Janeiro, é um caso específico que se sobrepõe aos instrumentos urbanísticos ordenados pelo Estatuto da Cidade. Isso posto, ainda que as OUCs se diferenciem, em princípio, das demais alianças público-privadas, nada impede que outros arranjos sejam criados para o desenvolvimento e a implementação de obras e serviços previstos nos programas de intervenção das primeiras. .

De toda forma, tanto as OUCs quanto outras alianças público-privadas e PPPs vêm recebendo críticas de diversas instituições, setores sociais e pesquisadores no mundo todo, de que elas não são a resposta para as restrições financeiras do setor público nem entregam melhores serviços, mas, ao contrário, são uma modalidade custosa e ineficiente para financiar a infraestrutura, bem como para desviar investimentos dos governos de outros serviços públicos. Sustentam, ainda, que as empresas, ao fazer investimentos, buscam o máximo retorno possível ao mesmo tempo que buscam minimizar seus riscos, o que seria incompatível com os objetivos próprios dos serviços públicos (LETHBRIDGE, 2014LETHBRIDGE, J. Exposing the myths around public-private partnership. A PSIRU Briefing for EPSU. 2014. Disponível em:<Disponível em:http://www.psiru.org/sites/default/files/2015-01-PPP-EPSUPPPbriefingfinal.pdf >. Acesso em: 22 ago. 2017.
http://www.psiru.org/sites/default/files...
; HALL, 2015HALL, D. ¿Por qué las asociaciones público-privadas no funcionan?. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.world-psi.org/es/publicacion-por-que-las-asociaciones-publico-privadas-apps-no-funcionan >. Acesso em: 22 ago. 2017.
http://www.world-psi.org/es/publicacion-...
).

Tais críticas tornam pertinente o uso da abordagem da governança pública na análise das OUCs e das demais alianças público-privadas, assim como do valor público que elas geram ou podem vir a gerar e como tal valor é apropriado pelas diversas partes. A governança pública, posterior à administração pública tradicional e à nova gestão pública, é apresentada como um novo regime de implementação de políticas públicas e prestação de serviços públicos, direcionado e coordenado por entes públicos e centrado na capacidade de avaliação e monitoramento das políticas e serviços, na efetividade de seus resultados, na transparência durante a aplicação de recursos e no compartilhamento dessas informações com agentes diversos. Para Greve e Hodge (2010GREVE, C.; HODGE, G. Public-private partnerships and public governance challenges. In: OSBORNE, S. P. (Org.). The new public governance? Emerging perspectives on the theory and practice of public governance. New York: Routledge, 2010. p. 149-162.), a governança pública contribui com as alianças público-privadas na medida em que a primeira enfatiza a dispersão da autoridade e da responsabilidade entre os vários atores públicos e privados, ainda que apresentem diversos desafios - que são válidos no caso das OUCs -, tais como o gerenciamento de interesses antagônicos dos setores público, privado e sociedade civil, a complexidade da modelagem dos projetos, os prazos de implantação etc.

O valor público, como categoria analítica das OUCs e das alianças público-privadas em geral, adiciona um componente complementar à modelagem econômico-financeira baseada unicamente na relação custo-benefício (value for money). Para Benington (2011BENINGTON, J. From private choice to public value? In: BENINGTON, B.; MOORE, M. (Org.). Public value: theory and practice. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011. p. 31-51.), o valor público se define por dois aspectos: a) pelo valor do “público” (em termos de produtos e serviços); e b) pelo valor adicionado à esfera pública (em termos de amplo interesse público e de longo prazo). Tal conceito considera os custos e benefícios para além dos valores monetários, internalizando princípios de equidade, justiça, transparência, participação e cidadania, mas também capacidade operacional, eficiência e efetividade. Moore (2007MOORE, M. Criando valor público por meio de parcerias público-privadas. Revista do Serviço Público, v. 58, n. 2, p. 151-179, 2007., p. 177), buscando criar um marco analítico para avaliação de PPPs em termos de negociação pelo setor público, conclui que:

O trabalho de formar parcerias público-privadas [...] tem que ser do tipo que sempre ocorreu na governança democrática: o trabalho de associar ativos e aspirações públicas e privadas para alcançar propósitos que são publicamente valiosos, por meio de métodos que são percebidos como legítimos e justos, e que demonstram ser eficientes e efetivos.

Vale apontar que, nas últimas 3 ou 4 décadas, a nova gestão pública se impôs como regime de implementação de políticas públicas e prestação de serviços públicos, suplantando a administração pública tradicional e impondo técnicas de gestão próprias do setor privado e um maior envolvimento desse setor no planejamento e na gestão das atividades públicas próprias do Estado. Em um processo de superação, a nova governança pública não abrirá mão de medidas de eficiência e efetividade, mas adicionará valores como transparência, participação e accountability.

As OUCs, contemporâneas à abordagem da nova gestão pública, também são questionadas pela governança pública ao mesmo tempo que a sociedade como um todo - em especial técnicos, pesquisadores e populações envolvidas - cobrará sua eficiência, efetividade, transparência e participação com geração de valor público positivo. Nesse sentido, mostra-se importante esclarecer o papel que os CEPACs desempenham em meio ao processo de financeirização do espaço urbano e, junto com as OUCs, de geração de valor público nos projetos de renovação urbana.

Os certificados de potencial adicional de construção como principal mecanismo de viabilização das operações urbanas consorciadas e como produto financeiro

Grandes projetos urbanos e OUCs são, como exposto, experiências de alianças público-privadas que têm entre si semelhanças e diferenças no que concerne ao papel do Estado e dos demais atores nos processos de planejamento e gestão, nos modelos de financiamento, na distribuição de custos e benefícios etc. No modelo brasileiro, os CEPACs - substituindo o instrumento da outorga onerosa e também baseados no conceito de solo criado - passaram a ser a principal estratégia de financiamento por meio da qual investidores privados podem se consorciar às OUCs.

CEPACs são títulos públicos emitidos pelo município com o propósito específico de financiamento de determinada OUC e, por isso, ficam necessariamente vinculados a ela. Alienados em leilões públicos e comercializados no mercado5 5 Conforme Brasil Bolsa Balcão - B3 (2017): “no mercado primário, geralmente é utilizado o procedimento de leilão para venda dos títulos pela prefeitura do município. O leilão é realizado no sistema eletrônico de negociação da B3 (PUMA Trading System). Além dos leilões, os investidores podem adquirir os CEPACs no mercado secundário, também através do sistema eletrônico de negociação PUMA Trading System”. ,6 6 A Brasil Bolsa Balcão S.A. é uma sociedade de capital aberto supervisionada pela CVM resultante da fusão, em 2017, entre a Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM&F Bovespa) e da Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (CETIP). ou, ainda, utilizados para o pagamento de obras previstas e necessárias à OUC, são conversíveis em direito de construir7 7 Cada CEPAC equivale a determinado valor por metro quadrado, que varia por subsetores de acordo com determinados estoques de áreas adicionais de construção. unicamente no perímetro definido pela OUC, não sendo restrita sua negociação a proprietários de lotes e imóveis nesse perímetro.

Conforme B3 (2017), tais títulos são classificados como produto financeiro de renda variável que apresenta, entre outras vantagens:

  • [A] oportunidade para os investidores que acreditam na valorização imobiliária da região alvo dos projetos da prefeitura, dado que se houver a valorização, provavelmente os CEPACs poderão ser vendidos no mercado secundário por um valor superior ao da aquisição;

  • [A] flexibilidade no desenvolvimento de projetos do mercado imobiliário;

  • A permissão para construção de áreas adicionais ou modificações de uso do imóvel pode significar um diferencial nos projetos imobiliários realizados pelas construtoras, gerando um diferencial competitivo frente aos imóveis padrões;

  • [A] diversidade de investimentos no mercado imobiliário.

No entanto, tais vantagens - a ser apropriadas por investidores e atores presentes nos mercados imobiliário e financeiro - não necessariamente se articulam aos mesmos objetivos do poder público municipal ou da população residente no perímetro da OUC, já que podem gerar grandes mudanças nos padrões de uso ou processos de gentrificação, por exemplo. Para o setor privado, os CEPACs são um mecanismo de conversão de potencial construtivo em títulos negociáveis no mercado e posteriormente convertidos em área construtiva adicional utilizada em projetos imobiliários na área da OUC. Para o poder público, em outro sentido, o papel do CEPAC será garantir a antecipação da disponibilidade de recursos orçamentários para os investimentos, com a função de alavancar a OUC (BRASIL, 2001bBRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2001b.), a despeito de externalidades negativas que possam impactar proprietários, moradores e usuários da área em questão.

Assim, ao mesmo tempo que os CEPACs apresentam vantagens aos atores do mercado e ao poder público, como pontuado, também inseririam, hipotética e potencialmente, um componente especulativo às OUCs, já que o Estatuto da Cidade definiu tais títulos como de livre circulação e negociação por qualquer pessoa ou instituição, sem qualquer tipo de ligação com a OUC correspondente (CARVALHO FILHO, 2013CARVALHO FILHO, J. S. Comentários ao Estatuto da Cidade. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013.)8 8 De modo complementar, sendo um título público que tem seu valor atrelado à expectativa de sucesso da OUC, traz em si o risco inerente de ser desacreditado pelo mercado e ter seu preço desvalorizado (SANTOS, 2004). . Essa intenção é explicitada pela B3 (2017) como vantagem pela “oportunidade para os investidores que acreditam na valorização imobiliária da região [da OUC]” e possível venda no mercado secundário. Ou seja, o desmembramento entre propriedade do título com potencial de construção e propriedade da terra urbana criaria uma “possibilidade” de ação ou movimento especulativo - não só na esfera imobiliária, mas também na financeira -, já que os preços dos CEPACs (e, consequentemente, do direito de construir na região) se tornam dependentes tanto da valorização do solo quanto das variações e dos movimentos do mercado financeiro de títulos.

Como conjunção destes dois últimos pontos, ­­Ferreira e Fix (2001FERREIRA, J. S. W.; FIX, M. A urbanização e o falso milagre do CEPAC. 2001. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1704200110.htm >. Acesso em: 20 jun. 2015.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opinia...
) e Fix (2009)FIX, M. Uma ponte para a especulação: ou a arte da renda na montagem de uma “cidade global”. Caderno CRH, v. 22, n. 55, p. 41-64, 2009.apontaram como principal perigo trazido pelos CEPACs a possibilidade de conversão do potencial construtivo em mercadoria especulativa, tornando-se um mecanismo de captura de mais-valia fundiária pelos detentores desses títulos. Segundo os pesquisadores, ao desvincular o título da posse do lote, atrelando-o tão somente ao potencial construtivo, gera-se uma possibilidade de especulação financeira em detrimento das condicionantes urbanísticas. Nesses termos, os CEPACs acabariam por se tornar um “falso milagre”.

Tais questionamentos se apresentaram com certa contundência e diametralmente opostos às vantagens de aquisição dos CEPACs como produto financeiro. Entretanto, como veremos na próxima seção, passados quinze anos do lançamento dos primeiros CEPACs, essa possibilidade ainda não se materializou, como comprova a formação de um mercado secundário insignificante para comercialização e/ou retenção de títulos com vistas à especulação “estritamente” financeira, já que, ao contrário, grande parte dos títulos foram consumidos na construção de edifícios.

Segundo Stroher (2019STROHER, L. E. M. Operações urbanas consorciadas: financeirização urbana sem investidores financeiros? In: SHIMBO, L.; RUFINO, B. Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. p. 113-146.), os principais compradores de CEPACS das OUCs Faria Lima e Água Espraiada foram empreendedores imobiliários, com o propósito de construção nas áreas das OUCs (em sua maioria, empresas nacionais). Ou seja, foram os compradores primeiros os executores do potencial adicional de construção. Quanto ao mercado secundário, este se formou como resultado de erros de cálculo da conta de títulos necessários aos empreendimentos (para mais e para menos).

Em que pese seu sentido econômico, como indica o Novíssimo Dicionário de Economia (SANDRONI, 1999SANDRONI, P. H. (Org.). Novíssimo dicionário de economia. São Paulo: Best Seller, 1999., p. 219), “especulação” é o processo de:

Compra e venda sistemática de títulos, ações, imóveis etc. com a intenção de obter lucro rápido e elevado, aproveitando a oscilação dos preços. [...] consiste em comprar títulos ou commodities quando seus preços estão baixos, ou em baixa, e vender esses mesmos títulos ou commodities quando os preços estão em alta ou alcançam um ponto máximo de elevação [...].

Nesse sentido, como veremos na próxima sessão, inexistiram, até então, práticas de compra e venda sistemática de CEPACs e realização de ganhos sobre a oscilação de preços deles. De acordo com dados da Prefeitura Municipal de São Paulo, os preços dos CEPACs das OUCs Faria Lima e Água Espraiada têm mantido, ao longo do tempo, tendência de crescimento em ambos os mercados, com situações em que os preços do mercado secundário se realizaram menores do que os do mercado primário (STROHER, 2019STROHER, L. E. M. Operações urbanas consorciadas: financeirização urbana sem investidores financeiros? In: SHIMBO, L.; RUFINO, B. Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. p. 113-146.).

Com isso em vista, este presente artigo almeja tão somente questionar o movimento de compra e venda de CEPACs, visando a ganhos especulativos, o que implicaria a retenção e sobrevalorização deles por agentes financeiros, como forma de controle artificial da oferta dos títulos. Ao mesmo tempo, ainda que ressaltemos o papel dos CEPACs como aliança público-privada, não é objetivo deste artigo questionar suas implicações nos processos de financeirização do mercado imobiliário e de produção do espaço urbano de maneira geral.

A comercialização dos certificados de potencial adicional de construção nos leilões das operações urbanas consorciadas Faria Lima e Água Espraiada

A despeito da argumentação teórica sobre os impactos da comercialização dos CEPACs na seção anterior, uma análise pormenorizada do comportamento dos preços desses títulos realizados ao longo do tempo nos leilões por meio de ofertas públicas e/ou colocações privadas por OUCs paulistanas mostra que sua valorização real é expressiva (como vemos nos gráficos e quadros a seguir), manifestando, por um lado, a valorização do preço do solo nos perímetros das operações e, por outro, o crescente interesse de construtores e incorporadores em determinadas operações - e em áreas dentro delas - mais do que em outras9 9 Este estudo identificou apenas 2 referências de análise sobre a comercialização de CEPACs: Sandroni (2013), um documento de trabalho do Lincoln Institute of Land Policy; e Stroher (2019), um capítulo de livro resultante de seminário de pesquisa, o que demonstra a pertinência do estudo. .

Vale considerar que apenas os valores dos CEPACs das OUCs Faria Lima e Água Espraiada sofreram tais variações significativas por meio de vários leilões durante um período de 13 anos (2004-2017). Nesses termos, a pesquisa se restringiu a essas 2 únicas OUCs, pois as demais OUCs com CEPACs - Água Branca, em São Paulo, Porto do Rio, no Rio de Janeiro, de 2009, e Linha Verde, em Curitiba, de 2011 - ainda não geraram dados suficientes para a análise da comercialização de CEPACs ao longo do tempo. Em São Paulo, a OUC Água Branca se caracterizou, até o presente momento, por um primeiro e único leilão em 2015, com pouca movimentação, e a Operação Urbana Centro ainda não emitiu CEPACs. No Rio de Janeiro, a OUC Porto do Rio optou por uma modelagem financeira de criação de um fundo de investimento imobiliário pela Caixa Econômica Federal, com compra de todo o estoque de CEPACs. Em Curitiba, a OUC Linha Verde ainda não teve um volume de comercialização suficiente para a análise de preços ao longo do tempo (3,72% de CEPACs comercializados em 6 leilões e 0,3% em circulação no mercado secundário até a presente data).

Isso posto, os preços mínimos dos CEPACs da OUC Água Espraiada subiram de R$ 300,00 na primeira distribuição, em julho de 2004, para R$ 1.261,00 na quinta distribuição, em junho de 2012, evidenciando uma valorização de 320% ao longo de 8 anos. Analogamente, os preços mínimos dos CEPACs da OUC Faria Lima subiram de R$ 1.100,00 na primeira distribuição, em dezembro de 2004, para R$ 6.531,01, na quarta distribuição, em setembro de 2017, apresentando uma valorização de aproximadamente 500% em um período de 13 anos. Comparativamente, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou correção de 51% no primeiro período (2004-2012) e 104% no segundo período (2004-2017). Já o Índice Bovespa (Ibovespa) se valorizou 108% no primeiro período e 181% no segundo período.

De modo diverso, a OUC Água Branca realizaria um único leilão, em março de 2015, com o preço mínimo dos CEPACs a R$ 1.548,00, resultando em baixíssima adesão diante do total distribuído. Atualmente, um projeto de lei (PL n. 397/2018) vem sendo discutido na Câmara Municipal de São Paulo, com proposta de redução do preço mínimo em 50% e alteração para cima da taxa de conversão de áreas adicionais de construção, com o argumento de que os valores atuais não refletem mais a “realidade do mercado financeiro” (MANSUIDO, 2018MANSUIDO, M. Projeto que diminui valor dos CEPACs da Operação Urbana Água Branca é discutido na Câmara. 2018. Disponível em:<Disponível em:http://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/projeto-que-diminui-valor-dos-cepacs-da-operacao-urbana-agua-branca-e-discutido-na-camara/ >. Acesso em:03 mar. 2018.
http://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/proje...
).

Com base em tais números, deve-se pontuar que a inserção dos CEPACs na OUC Água Branca não gerou um interesse maior na operação e, consequentemente, um interesse especulativo baseado em futuras valorizações que a área viesse a apresentar (ou já esteja apresentando), haja vista o valor total de arrecadação anterior por meio de outorga onerosa de aproximadamente R$ 545 milhões, bastante significativo no período de 1995 a 2016, em relação ao valor de R$ 9.288.000,00 realizado em um único leilão de CEPACs.

Situação bastante diferente apresentou a OUC Faria Lima, que obteve receitas de R$ 465 milhões por meio de outorga onerosa, até 2004, e de R$ 1,454 bilhão por meio da venda de CEPACs, até dezembro de 2018, considerando que o lançamento de CEPACs nessa operação se deu mais de uma década antes da OUC Água Branca. De outro modo, a OUC Água Espraiada não teve arrecadação via outorga onerosa, mas somente via CEPACs, arrecadando, até dezembro de 2018, um total de R$ 2,946 bilhões (SÃO PAULO, 2016aSÃO PAULO. Cartilha Relatório da Operação Urbana Consorciada Água Branca. 2016a. Disponível em: <Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/12/OUCAB_caderno_GESTÃO-URBANA.pdf >. Acesso em: 30 jan. 2020.
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.b...
, 2016bSÃO PAULO. Cartilha Relatório da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada. 2016b. Disponível em: <Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/12/OUCAE_caderno_GESTAOURBANA.pdf >. Acesso em: 30 jan. 2020.
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.b...
, 2016cSÃO PAULO. Cartilha Relatório da Operação Urbana Consorciada Faria Lima. 2016c. Disponível em: <Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2016/12/OUCFL_caderno_GESTAO-URBANA.pdf >. Acesso em: 30 jan. 2020.
https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.b...
).

A OUC Faria Lima teve sua comercialização de CEPACs regulamentada pela Lei Municipal n. 13.769/2004 e pela Lei Municipal n. 13.871/2004, realizando seu primeiro leilão no final desse ano. Conquanto o fracasso dos 2 primeiros leilões, em 2004 e 2006, os leilões seguintes auferiram arrecadações vultosas, inserindo um elemento de sucesso financeiro na OUC e na comercialização dos CEPACs.

Com os preços mínimos em constante crescimento e ágios significativos, os anos seguintes (2007-2010) arrecadaram R$ 1.129.667.074,00 como resultado do boom imobiliário iniciado em 2007 (Gráfico 1; Quadros 1 e 2). Sandroni (2013SANDRONI, P. H. Os certificados de potencial adicional de construção (CEPACs) como instrumento para o financiamento do desenvolvimento urbano. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, 2013.) apresenta a possibilidade de que tal crescimento vertiginoso da demanda por CEPACs teria sido resultado do esgotamento da carteira de projetos aprovados pelos empreendedores segundo as regras antigas via outorga onerosa.

Gráfico 1
Evolução dos valores arrecadados pela comercialização de CEPACs por meio de leilões públicos e colocações privadas (em R$) - OUC Faria Lima (2004-2017)

Quadro 1
Evolução dos preços mínimos e realizados de CEPACs nos leilões públicos - OUC Faria Lima (2004-2017)

Quadro 2
Evolução da quantidade de CEPACs ofertados e colocados por meio de leilões públicos - OUC Faria Lima (2004-2017)

O auge da demanda por CEPACs se deu em 2010, com o oferecimento dos últimos 92.151 títulos em mãos da Prefeitura Municipal de São Paulo, com preço mínimo de R$ 2.170,00 e realização a R$ 4.000,00, ou seja, com ágio de 84,33%. Nesse leilão, a quantidade de CEPACs prevista para a OUC Faria Lima seria esgotada ainda que houvesse potencial adicional de construção restante disponível. Segundo Sandroni (2013SANDRONI, P. H. Os certificados de potencial adicional de construção (CEPACs) como instrumento para o financiamento do desenvolvimento urbano. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, 2013.), isso se deu por conta do uso de CEPACs para mudança de uso e pelo aumento das taxas de ocupação. Stroher (2019STROHER, L. E. M. Operações urbanas consorciadas: financeirização urbana sem investidores financeiros? In: SHIMBO, L.; RUFINO, B. Financeirização e estudos urbanos na América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2019. p. 113-146.), por sua vez, relata que, a partir de 2012, os preços dos CEPACS no mercado secundário se elevariam em relação ao primário, quando o estoque total teria praticamente se esgotado (como mostra o Quadro 2). Após esse período, mesmo com a aprovação pela Câmara Municipal da emissão de mais 350 mil CEPACs necessários à comercialização do potencial adicional de construção remanescente, a Prefeitura Municipal de São Paulo só viria a realizar novos leilões em 2015, 2016 e 2017, todos com preços mínimos de R$ 6.531,01, vendidos sem ágio e com demanda bastante abaixo da oferta (Quadro 2).

Além dos leilões públicos, foi movimentado um volume relevante de CEPACs por colocações privadas, atingindo 17% do total colocado no mercado. Colocações privadas se deram na medida em que empreiteiros e fornecedores aceitaram receber CEPACs como pagamento por suas obras e serviços relativos à OUC. Nessa modalidade, os preços dos CEPACs seriam comercializados em valores preestabelecidos muito próximos aos valores realizados nos leilões anteriores, gerando, até dezembro de 2018, um montante de R$ 141 milhões (Quadro 3). Desse modo, mostra-se importante pontuar que tal modalidade dá ao CEPAC um caráter de “quase moeda”, gerando poder de compra ao poder público e agilizando a realização de obras e a prestação de serviços (SANDRONI, 2013SANDRONI, P. H. Os certificados de potencial adicional de construção (CEPACs) como instrumento para o financiamento do desenvolvimento urbano. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, 2013.).

Quadro 3
Resumo quantitativo da comercialização de CEPACs - OUC Faria Lima (dezembro de 2018)

Com base nos números consolidados relativos à comercialização dos CEPACs pela OUC Faria Lima, considerando que o total de títulos atualmente em circulação é de apenas 5,5% do total colocado (entre leilões e colocações privadas), com o restante já convertido (utilizado em projetos), e que entre 2004 e 2018 a comercialização de CEPACs no mercado secundário foi insignificante e sempre residual, pode-se depreender, dessa operação, que tais títulos não foram utilizados com propósitos de ganhos especulativos, como previsto por pesquisadores supracitados e mesmo como publicizado pela B3.

Da mesma forma, pode-se afirmar que os ganhos proporcionados pela valorização dos preços dos títulos - especificamente os preços realizados - sugerem uma apropriação da mais-valia fundiária pela Prefeitura Municipal de São Paulo cada vez maior, como resultado direto da valorização do preço do solo na região. Uma comparação entre valores captados por meio da outorga onerosa com os valores captados pelos CEPACs em relação ao consumo de área de construção adicional revela, também, que a mais-valia recuperada com os CEPACs é aproximadamente quatro vezes maior.

Especificamente em relação à OUC Água Espraiada e à comercialização dos CEPACs por meio de leilões e colocações privadas, essa se dará - ainda que concomitante à comercialização de CEPACs pela OUC Faria Lima - de modo distinto. Tendo sido a primeira operação urbana implementada posteriormente ao Estatuto da Cidade e, portanto, financiada unicamente com recursos dos CEPACs10 10 É importante pontuar que a área da operação receberia - à revelia dos processos de planejamento e gestão - diversas obras viárias, de canalização e remoção de favelas, na década anterior, sem nenhuma contrapartida dos proprietários beneficiados via recuperação de mais-valia fundiária. , a OUC Água Espraiada se caracterizou por grandes proporções em relação às demais (com perímetro de 1.400 hectares, 4.850.000 metros quadrados de área de construção adicional e 4.490.999 unidades de CEPACs).

Tal operação realizaria seu primeiro leilão (o primeiro do gênero) em julho de 2004, sendo seguido por mais 15 realizados ao longo de 8 anos, até 2012. Com preços mínimos variando de R$ 300,00 a R$ 370,00 praticamente sem adição de ágio nos 3 primeiros anos após o lançamento dos CEPACs (2004-2006), a OUC comercializaria 45% dos títulos ofertados por meio de leilões arrecadando R$ 102.808.720,00, o que, somando-se os valores de colocações privadas, representaria o dobro dos valores da OUC Faria Lima no mesmo período. No período seguinte, relativo ao boom imobiliário (2007-2010), a OUC Água Espraiada arrecadaria, por meio de leilões públicos e colocações privadas, o valor total de R$ 1.103.168.492,00 comercializando quase a totalidade dos CEPACs ofertados. Tal como verificado na OUC Faria Lima, também nessa operação os preços ascenderiam de modo constante, atingindo, ao final de 2010, o valor unitário de R$ 750,00 (Gráfico 2 e Quadros 4 e 5).

Gráfico 2
Evolução dos valores arrecadados pela comercialização de CEPACs por meio de leilões públicos e colocações privadas (em R$) - OUC Água Espraiada (2004-2017)

Quadro 4
Evolução dos preços mínimos e realizados de CEPACs nos leilões públicos - OUC Água Espraiada (2004-2012)

Atenção especial é dada ao leilão de fevereiro de 2008, quando - possivelmente em uma tentativa de especulação - foram arrematados todos os 186.740 CEPACs oferecidos, aplicando-se um ágio de 141,30% ao preço mínimo de R$ 460,00 e chegando-se ao valor de R$ 1.100,00, o que geraria uma arrecadação de R$ 207.281.400,00. Como aponta Sandroni (2013SANDRONI, P. H. Os certificados de potencial adicional de construção (CEPACs) como instrumento para o financiamento do desenvolvimento urbano. Cambridge: Lincoln Institute of Land Policy, 2013.), esse movimento não teria sido bem-sucedido, já que no leilão seguinte, em outubro do mesmo ano, seriam comercializados apenas 58% de 650 mil CEPACs ofertados ao preço mínimo “sem ágio” de R$ 535,00. Ainda que a retração dos financiamentos e a crise internacional recrudescida em setembro de 2008 possam ter influído para a contenção do preço, tal como entende o pesquisador, é patente que a operação anterior visava a um controle artificial da comercialização e uma futura valorização dos títulos.

Diferentemente da OUC Faria Lima, que teria seus CEPACs esgotados no ano de 2010 e somente voltaria a comercializar novos CEPACs em 2015, a OUC Água Espraiada atingiria seu auge no ano de 2012 com a comercialização de 80% de 1.719.339 CEPACs em apenas dois leilões públicos, arrecadando R$ 1.731.353.316,00, cifra inimaginável à época para o consolidado em um único ano. Nesse período, os preços variariam de um mínimo de R$ 900,00 ao realizado de R$ 1.282,00 (Quadro 4).

Quadro 5
Evolução da quantidade de CEPACs ofertados e colocados por meio de leilões públicos - OUC Água Espraiada (2004-2012)

Ao longo do tempo, a OUC Água Espraiada não realizaria um montante expressivo de colocações privadas para pagamento de obras e serviços, negociando somente 4% do total de CEPACs colocados no mercado nessa modalidade (Quadro 6). Por outro lado, a quantidade de CEPACs já convertidos atingiu um nível muito próximo à outra operação estudada, restando apenas 3,29% de títulos ainda em circulação e corroborando a tese de que eles não têm sido utilizados com propósitos de ganhos especulativos, ainda que uma possível tentativa tenha sido registrada.

Quadro 6
Resumo quantitativo da comercialização de CEPACs - OUC Água Espraiada (dezembro de 2018)

Por fim, é digno de nota que a OUC Água Espraiada ainda registra 24,49% de saldo de CEPACs (1.100.000 unidades) - ou seja, ainda não colocados no mercado - de um total de 4.490.999, enquanto a OUC Faria Lima registra 32,11% de saldo de um total de 1 milhão (321.836 unidades), lembrando que a quantidade inicial de títulos dessa operação era de 650 mil. Esses saldos indicam que o mercado ainda não conseguiu consumir os estoques propostos ou perdeu interesse nas áreas remanescentes.

As operações urbanas consorciadas e os certificados de potencial adicional de construção no processo de financeirização do espaço urbano

Um novo contexto, caracterizado pela neoliberalização econômica e pelo acirramento da financeirização e globalização, reflete-se na produção, no planejamento e na gestão do espaço urbano. Nesse contexto, uma nova escola de planejamento urbano, baseada no empreendedorismo, no planejamento estratégico, no city marketing e no urbanismo de espetáculo se tornou quase hegemônica em grandes cidades do mundo ocidental. Tal “empresariamento” da administração pública fará com que os grandes projetos urbanos - as OUCs no Brasil - sejam fortemente caracterizados e induzidos por esforços de atratividade, competitividade e inserção das cidades no sistema econômico mundial, obviamente em detrimento de um enfoque de gerenciamento de serviços urbanos, de melhoria da qualidade de vida e de garantia do direito à cidade.

Ao mesmo tempo que a economia vai se tornando mais financeirizada, o setor imobiliário o faz pela introdução de inovações financeiras, pelo aumento dos investimentos em ativos imobiliários e por uma grande afluência de capital financeiro na produção do espaço urbano. De acordo com Paiva (2006PAIVA, C. C. A diáspora do capital imobiliário e sua dinâmica de valorização no capitalismo contemporâneo: a irracionalidade em processo. 2006. 215 f.Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.), essa maior articulação entre os capitais imobiliário e financeiro pode ser atribuída ao desenvolvimento dos novos mecanismos de securitização, que proporcionam maior liquidez aos ativos imobilizados ou, de outra forma, uma transferência de propriedade de ativos físicos para a propriedade de títulos negociáveis em bolsa sob a forma de ações, debêntures, títulos de securitização etc., criando um circuito paralelo de valorização do capital bastante diferente daquele da comercialização de ativos reais.

Como apontado por Klink e Stroher (2017KLINK, J.; STROHER, L. E. M. The making of urban financialization? An exploration of Brazilian urban partnership operations with building certificates. Land Use Policy, n. 69, p. 519-528, 2017.), mostra-se importante, no entanto, que as críticas sobre a financeirização não se resumam aos seus resultados sobre os demais setores, como é o caso do mercado imobiliário e da produção do espaço urbano, mas que atentem para sua constituição e dinâmica internas. Tendo isso em vista, neste artigo, procuramos caracterizar as OUCs como um instrumento urbanístico específico para a consecução de grandes projetos de renovação urbana, cuja conditio sine qua non para sua viabilidade econômico-financeira é a instituição de alianças público-privadas, sendo a principal delas os CEPACs.

Os CEPACs foram desenvolvidos com a dupla função de (a) possibilitar a antecipação de receita gerada pela contrapartida privada por direitos adicionais de construção (um meio de recuperação da mais-valia fundiária gerada pelas OUCs) e (b) atuar como instrumento de precificação dessa contrapartida, por meio de mecanismos de mercado resultantes da equalização do custo total das obras e intervenções públicas, com a somatória do potencial adicional de construção disponibilizado pela operação (MALERONKA, 2015MALERONKA, C. Análise: CEPAC é um instrumento ainda em fase de evolução. 2015. Disponível em: <Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,analise-cepac-e-um-instrumento-ainda-em-fase-de-evolucao,1614868 >. Acesso em:13 mar. 2019.
https://sao-paulo.estadao.com.br/noticia...
).

Nesse processo, os preços dos CEPACs serão elementos-chave, na medida que devem equilibrar os incentivos para conectar proprietários de terra, construtores, empreiteiros, incorporadores e potenciais investidores (via mercado financeiro), ao mesmo tempo que proveem aos governos locais os recursos necessários ao financiamento de infraestrutura e bens públicos (KLINK e STROHER, 2017KLINK, J.; STROHER, L. E. M. The making of urban financialization? An exploration of Brazilian urban partnership operations with building certificates. Land Use Policy, n. 69, p. 519-528, 2017.).

Para esses pesquisadores, no entanto, em um contexto de mercados de capitais subdesenvolvidos (como é o caso do Brasil), os stakeholders locais (consultores, planejadores, construtores, incorporadores etc.) não seriam meramente tomadores de preços, mas, ao contrário, influenciariam o design físico e financeiro das OUCs e dos CEPACs. Nessa engenharia financeira, tais stakeholders levariam em consideração as taxas internas de retorno e os valores presentes líquidos viáveis financeiramente aos empreendimentos previstos por construtores e incorporadores.

Isso posto, é fundamental que as OUCs, diante da influência dos stakeholders ligados ao setor privado na elaboração e implantação dos instrumentos, desenvolvam estruturas e processos de governança pública que garantam a geração de valor público positivo com justa distribuição entre as partes e, em última instância, o direito à cidade de modo ampliado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se insere em duas amplas agendas de pesquisa: a) uma primeira sobre a financeirização do mercado imobiliário e da produção do espaço urbano no que concerne a seus instrumentos, dinâmicas e impactos; e b) uma segunda sobre governança pública e geração de valor público de alianças público-privadas. Com essa dupla perspectiva, apresentamos as OUCs como um instrumento urbanístico caracterizado por determinado tipo de aliança público-privada - os CEPACs - que lhes dão viabilidade econômico-financeira para custear as obras e intervenções necessárias, mas que exigem governança pública sobre os processos de planejamento e gestão.

Na medida em que os CEPACs, como títulos públicos e como instrumento financeiro, criam a possibilidade de ser utilizados em negociações especulativas e, por conta disso, incidem sobre o preço do solo nos perímetros das OUCs - tal como conjecturam alguns pesquisadores -, buscamos analisar as variações nos preços e a demanda do mercado por esses títulos nos leilões públicos das OUCs Faria Lima e Água Espraiada, no período de 2004 a 2018, evidenciando a quase inexistente negociação deles em mercado secundário.

Por um lado, tem-se que os CEPACs possibilitaram à Prefeitura Municipal de São Paulo (nos casos analisados) uma recuperação de mais-valia exponencialmente maior do que os montantes recuperados pela outorga onerosa antes utilizada. Por outro lado, inferiu-se que os CEPACs não desempenharam diretamente uma função especulativa com a prática de retenção por seus compradores para comercialização no mercado secundário ou, ainda, para construção em tempo futuro longínquo11 11 Ainda que seja impossível garantir que tais movimentos especulativos não venham a ocorrer de modo expressivo no futuro em outras operações. , como pode ser confirmado pela alta taxa de conversão de CEPACs em área de construção adicional (96,7% pela OUC Água Espraiada e 94,5% pela OUC Faria Lima) e pelo fato da maioria dos compradores dos títulos terem sido os próprios executores.

A despeito da insignificante inflexão especulativa induzida pelos CEPACs, o processo de globalização econômico-financeira vem condicionando uma imbricação cada vez maior entre os capitais financeiro e imobiliário, tornando-os mais agressivos em busca de oportunidades de reprodução e acumulação e influenciando sobremaneira a produção do espaço urbano, notadamente por meio dos grandes projetos de reestruturação urbana e das OUCs, mais especificamente, haja vista o aumento dos preços do solo nas áreas das OUCs e os subsequentes processos de gentrificação formais e informais. Ao mesmo tempo, é importante destacar que o estabelecimento dos CEPACs dificultou a compra de áreas de construção adicionais por proprietários e pequenos construtores, na medida em que se tornou necessária a participação em leilões por meio de corretoras de valores.

Ainda assim, as OUCs, a partir do início do uso dos CEPACs, têm se colocado como instrumento útil para a geração de vultosos recursos adicionais advindos do setor privado, por meio da comercialização de potencial adicional de construção, da recuperação de mais-valia fundiária e dos mais diversos tipos de alianças público-privadas, proporcionando ao poder público municipal uma substantiva capacidade financeira para realização de investimentos necessários ao financiamento dos programas de intervenções estabelecidos pelas OUCs.

Os resultados financeiros desse instrumento, como nos mostram as experiências das OUCs em São Paulo, podem ser considerados exitosos, no médio prazo, bem como seus resultados urbanísticos em termos de potencial de construção realizado, sendo, contudo, contestados pela relativa efetividade dos benefícios públicos produzidos. Ademais, ao gerar colateralmente valorização imobiliária, gentrificação e concentração de recursos orçamentários em determinadas regiões da cidade, reforça-se a premissa da contradição entre os interesses públicos objetivados na construção das OUCs e os resultados da produção do espaço urbano dominada por interesses de mercado.

Diante disso, mostra-se necessária uma rediscussão dos termos, custos e benefícios públicos das alianças público-privadas em geral e da garantia mais ampla do direito à cidade nas OUCs. Da mesma forma, cabe um acompanhamento contínuo da apropriação de valor público pela administração pública, pelos stakeholders privados, pelos proprietários, pelos moradores e pelos usuários em geral, com contínua readequação das políticas públicas. Em outros termos, a instituição da (nova) governança pública como um novo regime de implementação de políticas públicas e prestação de serviços públicos e como modelo de análise das políticas públicas urbanas, bem como a inserção do conceito de valor público como categoria analítica das alianças público-privadas, em geral, e das OUCs, especificamente, podem contribuir para aprimorar do instrumento.

Mais do que isso, é fundamental que cidadãos e atores da sociedade civil organizada passem a participar mais ativamente dos processos de planejamento e gestão das OUCs - em especial da precificação e comercialização dos CEPACs -, tal como preconizam novas práticas das public-private-people partnerships, com mais transparência, participação social, governança e accountability, ao passo que o uso do conceito de valor público, com possíveis métricas de mensuração ou indicadores, será de grande valia na busca da garantia do direito à cidade.

AGRADECIMENTOS

O artigo foi desenvolvido como resultado das pesquisas de doutorado e pós-doutorado financiadas pela CAPES sob os contratos 88887.47989/2017-00 e 88882.314800/2019-01, respectivamente.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    A Operação Urbana Anhangabaú, primeira a ser implantada em São Paulo, em 1991, seria expandida em 1997 como Operação Urbana Centro. No entanto, até o presente momento, esta última ainda não foi atualizada de acordo com os princípios do Estatuto da Cidade, não podendo, portanto, ser denominada OUC.
  • 2
    Da mesma forma que a iniciativa privada foi ganhando espaço por meio da privatização e concessão de diversas atividades econômicas nesse período, o terceiro setor também vem cada vez mais exercendo diversos serviços de caráter social nas áreas da saúde, educação, esporte, cultura etc., culminando o processo com a instituição do Marco Legal do Terceiro Setor (Lei n. 9.790/1999), substituído recentemente pelo Novo Marco Regulatório (Lei n. 13.019/2014).
  • 3
    Diferentemente, stricto sensu, as PPPs regidas pela Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004) são, segundo Aragão (2005ARAGÃO, A. As parcerias público-privadas: PPPs no direito público brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 240, p. 105-145, 2005., p. 18), contratos de longo prazo “de delegação de construção, ampliação, reforma ou manutenção de determinada infraestrutura e da gestão da totalidade ou parte das atividades administrativas prestadas por seu intermédio, [...] arcada total ou parcialmente pelo Estado, fixadas em razão da quantidade ou qualidade das utilidades concretamente propiciadas pelo parceiro privado à Administração Pública ou à população”.
  • 4
    A PPP criada para a administração da OUC da Região do Porto do Rio (Porto Maravilha), no Rio de Janeiro, é um caso específico que se sobrepõe aos instrumentos urbanísticos ordenados pelo Estatuto da Cidade. Isso posto, ainda que as OUCs se diferenciem, em princípio, das demais alianças público-privadas, nada impede que outros arranjos sejam criados para o desenvolvimento e a implementação de obras e serviços previstos nos programas de intervenção das primeiras.
  • 5
    Conforme Brasil Bolsa Balcão - B3 (2017BRASIL BOLSA BALCÃO - B3. Produtos e Serviços. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-servicos/negociacao/renda-variavel/cepac.htm> . Acesso em: 03 mar. 2020.
    http://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-se...
    ): “no mercado primário, geralmente é utilizado o procedimento de leilão para venda dos títulos pela prefeitura do município. O leilão é realizado no sistema eletrônico de negociação da B3 (PUMA Trading System). Além dos leilões, os investidores podem adquirir os CEPACs no mercado secundário, também através do sistema eletrônico de negociação PUMA Trading System”.
  • 6
    A Brasil Bolsa Balcão S.A. é uma sociedade de capital aberto supervisionada pela CVM resultante da fusão, em 2017, entre a Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM&F Bovespa) e da Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (CETIP).
  • 7
    Cada CEPAC equivale a determinado valor por metro quadrado, que varia por subsetores de acordo com determinados estoques de áreas adicionais de construção.
  • 8
    De modo complementar, sendo um título público que tem seu valor atrelado à expectativa de sucesso da OUC, traz em si o risco inerente de ser desacreditado pelo mercado e ter seu preço desvalorizado (SANTOS, 2004SANTOS, M. W. B. Dos instrumentos da política urbana: das operações urbanas consorciadas. In: ALMEIDA, F. D. M.; MEDAUAR, O. (Coord.). Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10.07.2001: comentários. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 201-224.).
  • 9
    Este estudo identificou apenas 2 referências de análise sobre a comercialização de CEPACs: Sandroni (2013), um documento de trabalho do Lincoln Institute of Land Policy; e Stroher (2019), um capítulo de livro resultante de seminário de pesquisa, o que demonstra a pertinência do estudo.
  • 10
    É importante pontuar que a área da operação receberia - à revelia dos processos de planejamento e gestão - diversas obras viárias, de canalização e remoção de favelas, na década anterior, sem nenhuma contrapartida dos proprietários beneficiados via recuperação de mais-valia fundiária.
  • 11
    Ainda que seja impossível garantir que tais movimentos especulativos não venham a ocorrer de modo expressivo no futuro em outras operações.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Nov 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2019
  • Aceito
    28 Jan 2020
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