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As crônicas anticapitalistas

Las crónicas anticapitalistas

Harvey, D. . (2020). The anti-capitalist chronicles . London, UK: Pluto Press. ISBN: 0745342094.

Palavras-chave:
Anticapitalismo; Neoliberalismo; Crise Capitalista.

Palabras clave:
Anticapitalismo; Neoliberalismo; Crisis capitalista

O livro é parte da série Red Letter, que, inspirada em Antonio Gramsci, buscou consolidar o debate do anti-imperialismo e das desigualdades sociais no “coração da agenda política e intelectual” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 7), aliando-se à luta de resistência democrática enfrentada pelas forças progressistas. Assim, a escrita deu-se por meio de discussões públicas com movimentos sociais, objetivando ajudar ativistas a desenvolver “significados políticos” das construções culturais, por meio da análise da atual conjuntura neoliberal sob as lentes do marxismo.

Para Harvey, o neoliberalismo, apesar de circular há décadas pelo mundo, também tem encontrado resistências. Na expressão de Gramsci, há uma “crise de autoridade” neoliberal guiada pela descrença crescente das grandes massas. Isso significa que “[...] o projeto neoliberalista está muito vivo, mas, significativamente, com sua legitimação perdida” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 7), congregando com o neofascismo para sobreviver. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro utiliza “[...] violência, racismo, sexismo e senso comum reacionário” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 8) para colocar o país em um cenário neoliberal, o que é comparado pelo autor ao regime de Pinochet, no Chile. A ascensão de Bolsonaro seria, para ele, uma “[...] expressão política da crise capitalista e do estado neoliberal” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 8). Neste contexto, os “[...] ideólogos de extrema direita estão defendendo que os pobres, doentes e idosos sacrifiquem suas vidas indo trabalhar para o então chamado ‘bem da nação’” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 8). Tal apelo, contudo, tem gerado instabilidade global.

Para exemplificar, o autor remete-se aos protestos do Chile de 2019, marcados pela repressão da polícia contra os manifestantes. Pressionado, Sebastián Piñera viu-se obrigado a aumentar as pensões, a segurança social e o salário-mínimo, além de retirar o estado de emergência e recolher as forças militares das ruas. Além do Chile, o Equador também passou por protestos parecidos. Por determinação do Fundo Monetário Internacional (FMI), foram implantadas novas taxas no país e houve a abolição dos subsídios de combustível. Contudo Lenin Moreno só pôde retornar a Quito depois de anular esse programa e negociar com os protestantes. Já na Bolívia, embora em uma circunstância distinta, Evo Morales foi acusado pela extrema direita de manipular as eleições a seu favor, provocando protestos entre grupos de posicionamentos contrastantes.

Líbano, Bagdá, Iraque e França também têm sido palco de protestos, indicando que o mundo está em um estado de agitação. As insatisfações centram-se, basicamente, no processo político que beneficia economicamente os ultrarricos e destitui o povo das necessidades básicas. Mobilizações desse tipo, como as de 2013 no Brasil e na Turquia, são eventos que desaparecem por um tempo e voltam repentinamente ao redor do mundo, embora a logística desses movimentos possa estar mudando. No Líbano, após muitos anos de combate, facções religiosas se unem contra a forma cleptocrática, autocrática e oligárquica de governo. Harvey considera que algo similar aconteceu no Brasil em 2019, quando partidos de esquerda, em conjunto, debateram sobre a situação política, trazendo alguma esperança de união.

As contradições centrais do capital que ocasionam insatisfação são, de acordo com o autor, as desigualdades sociais, os problemas ambientais e o crescimento composto. O crescimento exponencial, que ocorre desde os anos 70, gera problemas de produção, distribuição e consumo. O capital vem tendo problemas em achar oportunidades sustentáveis para alocar tanto dinheiro. Mesmo assim, a perspectiva de utilizar recursos para tratar da degradação ambiental e da desigualdade social sem as intervenções de um governo mundial é praticamente inexistente. Marx percebeu que haveria um momento em que o dinheiro (infinito) não teria mais como ser reinvestido de maneira sustentável. Porém, o dilema, leia-se dialética, é que, embora o capital seja tão grande a ponto de sucumbir, não há possibilidade de sobrevivência sem ele. Harvey então prevê que o socialismo e o anticapitalismo terão que negociar radicalmente com a imensidão do capital, sem que esses protestos se transformem em pequenas guerras.

Em uma revisão da história recente, Harvey considera que, nos anos 70, com o supply-side economics (economia pelo lado da oferta) ou o monetarismo, viabilizaram-se formas de controlar os processos produtivos. Ao enfraquecer as uniões trabalhistas, monetizar as eleições e dominar a mídia, as grandes corporações foram se consolidando no poder e destruindo o Estado de bem-estar social. Nos anos 90, ocorreu um grande avanço nas desigualdades sociais na maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD). Entretanto, com o triunfo da desregulamentação trabalhista e com as normativas do meio ambiente e das finanças enfraquecidas, uma nova era do pensamento neoliberal ganhou visibilidade. Os “empresários de si” passaram a perceber-se como individualmente responsáveis pelos problemas sociais, ignorando o sistema. Tal discurso imperou na crise de 2007-2008, quando o governo socorreu os banqueiros e deixou o povo sem receber nada, figurando um contrassenso.

Ao tratar das contradições do neoliberalismo, o autor reafirma que a crescente exploração dos trabalhadores, além de aumentar o capital dos capitalistas, também produz maior índice de desemprego e a precariedade. Contudo, se os capitalistas pagam mal os trabalhadores, quem vai consumir? É neste impasse que se intensificam a expansão geográfica, a oferta de crédito e o subsídio do Estado às corporações. Harvey sugere que a subjetividade em que se encontram os serviços financeiros leva a um crescimento constantemente desregulado. Assim, o capital cresce de maneira composta: países que eram inativos hoje estão completamente integrados à economia capitalista global. Há uma insanidade no crescimento monetário, que não acompanha uma progressão “física” e, exatamente nesses indicadores monetários é que habitam as grandes desigualdades sociais. Na economia especulativa, há uma classe investidora distinta, cujo “[...] interesse é apenas obter uma taxa elevada de retorno de qualquer maneira possível, sem qualquer restrição política, social e econômica” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 24).

Sobre isso, Harvey analisa as eleições presidenciais de 2018 no Brasil, quando a previsão de vitória de Jair Bolsonaro soou favorável ao mercado externo, elevando o índice da bolsa de valores. A campanha presidencial foi guiada por um discurso anticorrupção, com o objetivo de angariar eleitores e, não, de fato, combatê-la. Apesar de o governo sustentar posicionamentos preconceituoso e discursos pró-ditadura, o que levou o mercado internacional a investir no Brasil após a eleição de Bolsonaro foi algo similar à primeira onda neoliberal: uma agenda de privatizações, austeridade fiscal e balanço orçamental dos programas sociais. Ou seja, a extrema-direita “[...] está unificada no apoio a projetos neoliberais para a crescente concentração e centralização da riqueza na sociedade, mesmo que apoie o aumento da repressão dos movimentos de oposição” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 28).

Do outro lado do trabalhador, embora seja tentador dizer que a classe operária tenha desaparecido, a verdade é que ela simplesmente não está exercendo as mesmas atividades e não é mais contratada pelos mesmos serviços. Na classe operária contemporânea, “[...] os interesses mútuos de raça, gênero e classe se fundem em um nível, enquanto as identidades permanecem distintas” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 58). Para que esses trabalhadores se agilizem coletivamente, é necessário que eles percebam seus interesses em comum e que tenham uma uniformidade. Contudo a insatisfação tem levado a um cenário em que todos são culpados, menos o capital, e a respostas violentas, fazendo emergir apoio a figuras políticas que estimulam o ódio. No Brasil, Bolsonaro é a representação de uma extrema direita populista que restabelece o poder do capital utilizando ideias autoritárias e políticas neofascistas.

Pensando na construção de um modelo que supere tal cenário dramático, Harvey convida a não desistir da liberdade individual como parte do socialismo, já que, para conquistar a liberdade, é necessário alcançar uma sociedade em que todos tenham oportunidades. Enquanto isso, a direita monopoliza o conceito de liberdade individual, ainda que em um modelo nada libertário. Marx já dizia que a liberdade não é nada se não há o que comer ou acesso à saúde, educação, etc. Já para Polanyi (1980Polanyi, K. (1980). A grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro, RJ: Campus.), a possibilidade de ir além de uma economia de mercado abriria caminho para uma liberdade de caráter universal. Contudo, para Harvey, o “utopismo liberal” de Polanyi seria um obstáculo para se alcançar a liberdade verdadeira, visto que a regulamentação do mercado pelo Estado condenaria a liberdade do indivíduo.

O autor enfatiza que a transformação econômica chinesa carece de um olhar demorado sobre a promessa de como (talvez) o socialismo está sendo conduzido. No entorno chinês, o rápido desenvolvimento de países como Japão, Coreia do Sul e Taiwan moveu o partido que estava no poder a buscar atender as necessidades do povo, inspirado em uma versão filosófica da ideologia marxista. Embora com ressalvas, tal mudança foi exitosa no sentido de estar próxima de zerar os índices de pobreza extrema, além de atingir rápida urbanização e ótimos índices de empregos criados. No entanto, as injustas condições de trabalho devem ser seriamente problematizadas, bem como o nível descompensado de produção, altamente danoso ao meio ambiente.

Em relação ao sistema fabril ao redor do mundo, Harvey sinaliza a intensificação da precarização do trabalho, subdivisões e monopólio. No contexto da administração brasileira, Faria (2011 Faria, J. H. (2011). Economia política do poder. Curitiba, PR: Juruá.), em consonância a esse aspecto, faz referência às implicações de uma ideologia da gestão capitalista para enfatizar a degradação do trabalho. Assim, o capital tira a autonomia dos sujeitos no cotidiano, que se veem coagidos pela constante busca de suprir as necessidades básicas, além de serem estimulados ao consumismo. Sendo o tempo livre um dos maiores indicadores de uma sociedade justa, a liberdade só viria quando a dominância da necessidade fosse superada. Porém há, por parte do capital, o ímpeto de controlar os processos de trabalho e apropriar-se de bens, até mesmo de forma violenta. Apropriando-se das pequenas empresas por meio de fusão e aquisição, as grandes corporações operam em um sistema de acumulação completamente desconectado da produção. Há, ainda, a apropriação de terras, quando se monopoliza uma área com potencial, expulsando ou retirando de forma opressora o poder dos produtores locais. A esse respeito, Harvey cita Gunnar Myrdal quanto ao processo de “causação circular cumulativa”, em que regiões são adquiridas por meio de sua falência.

Harvey afirma que Marx não se ateve muito à questão geográfica do poder no capitalismo, tornando-o um debate inconclusivo. Todavia é preciso destacar que a teoria de acumulação de capital preconiza que o enigma do problema é desvelado quando se “segue o dinheiro”. Assim, recorrendo aos ciclos sistêmicos de acumulação esquematizados por Arrighi (1994Arrighi, G. (1994). O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.), em determinado ponto o capital pode sofrer dificuldades de expansão e acabar assumindo uma forma mais fluida, como o da financeirização. Seja na lógica territorial ou capitalista, que deriva da circulação e infinita acumulação de capital, o conflito de poder leva à grande questão sobre quem carrega a legitimação dentro do Estado. Na dinâmica das corporações, o poder do Estado “[...] torna-se subserviente ao capital privado. Assim, se não são os acionistas, são as grandes empresas monopolistas que estão no controle” (Harvey, 2020, p. 40). A respeito de tal hegemonia na sociedade industrial brasileira, Tragtenberg, em 1989Tragtenberg, M. (1989). Administração, Poder e Ideologia. São Paulo, SP: Cortez., já anunciava as corporações como “empresas com alma”.

Em Grundrisse, Marx (2011Marx, K. (2011). Grundrisse, manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo.) descreve uma alienação em que o valor e a mercadora, ambos criados pelo trabalhador, pertencem ao capital. Também o capitalista é um ser alienado, já que não tem controle do mercado e as leis coercitivas de competição o forçam a tomar atitude. Essa dupla alienação, portanto, seria fundamental no modo de produção capitalista. Uma das forças que poderiam limitar essa dupla alienação é a legislação estatal, ao não permitir abusos no trabalho. Contudo medidas laborais protetivas nem sempre são demandas, já que o consumismo compulsório foi criado para suprir a insatisfação com o trabalho: nichos de consumo dividem as pessoas em estilos de vida, a vida útil dos produtos é reduzida, o mercado torna-se mais dinâmico. Entretanto, de forma otimista, Harvey conclui que há uma reação popular se formando, visto que as pessoas desempregadas ou desassistidas devem vir a compor uma nova classe trabalhadora. Para ele, esse ponto é importante, pois, “[...] a verdadeira raiz da liberdade individual e da emancipação é uma situação em que todas as nossas necessidades são atendidas através de uma ação coletiva” (Harvey, 2020 Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles. London, UK: Pluto Press., p. 81).

Assim, para compreender a conjuntura neoliberal, é preciso mapear as contradições dos modos de produção, analisando o contexto socioeconômico e político. Tais elementos são constitutivos da racionalidade que subsidia a gestão organizacional brasileira em suas múltiplas facetas de injustiças, violências e desigualdades.

REFERÊNCIAS

  • Arrighi, G. (1994). O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.
  • Faria, J. H. (2011). Economia política do poder Curitiba, PR: Juruá.
  • Harvey, D . (2020). The anti-capitalist chronicles London, UK: Pluto Press.
  • Marx, K. (2011). Grundrisse, manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política São Paulo, SP: Boitempo.
  • Polanyi, K. (1980). A grande Transformação: as origens de nossa época Rio de Janeiro, RJ: Campus.
  • Tragtenberg, M. (1989). Administração, Poder e Ideologia. São Paulo, SP: Cortez.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    02 Nov 2021
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