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Uma medida de calor específico sem calorímetro

A specific heat measure without calorimeter

Resumos

Várias técnicas têm sido desenvolvidas para se obter o calor específico de sólidos e líquidos, incluindo a construção de experimentos de baixo custo para o ensino médio. Neste trabalho propomos uma maneira simples de se obter o calor específico de sólidos e líquidos. Por meio de curvas de calibração de resfriamento podemos estimar graficamente a perda de calor do sistema para sua vizinhança, e medir o calor específico do alumínio. Esta aproximação permite introduzir uma discussão sobre o processo dinâmico da troca de calor entre dos corpos.


Several techniques were developed to obtain experimentally the specific heat of solids and liquids and efforts has been done in order to build low cost experiments to use at high school level. In this work we propose a simple way to obtain specific heat of solids and liquids. Through calibration cooling curves we are able to estimate graphically the heat power loss of the system and also obtain the specific heat of the aluminum. This approach allows introduce a discussion on the actual dynamic process that is heat change between two bodies.


Uma medida de calor específico sem calorímetro

A specific heat measure without calorimeter

Cristiano Mattos; Alberto Gaspar

Departamento de Física e Química, Faculdade de Engenharia, UNESP. C.P. 205, CEP 12516-410, Guaratinguetá, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Cristiano Mattos E-mail: crmattos@feg.unesp

RESUMO

Várias técnicas têm sido desenvolvidas para se obter o calor específico de sólidos e líquidos, incluindo a construção de experimentos de baixo custo para o ensino médio. Neste trabalho propomos uma maneira simples de se obter o calor específico de sólidos e líquidos. Por meio de curvas de calibração de resfriamento podemos estimar graficamente a perda de calor do sistema para sua vizinhança, e medir o calor específico do alumínio. Esta aproximação permite introduzir uma discussão sobre o processo dinâmico da troca de calor entre dos corpos.

ABSTRACT

Several techniques were developed to obtain experimentally the specific heat of solids and liquids and efforts has been done in order to build low cost experiments to use at high school level. In this work we propose a simple way to obtain specific heat of solids and liquids. Through calibration cooling curves we are able to estimate graphically the heat power loss of the system and also obtain the specific heat of the aluminum. This approach allows introduce a discussion on the actual dynamic process that is heat change between two bodies.

I Introdução

Professores e pesquisadores em ensino de física têm realizado um grande esforço em física experimental para preencher o enorme vazio existente entre a teoria e as práticas experimentais no ensino médio [1-4]. Diversos trabalhos têm sido realizados com o objetivo de construir experimentos simples com material de baixo custo [5, 6]. A dificuldade encontrada na construção de experimentos com material de baixo custo está ligada à busca de resultados precisos. Se alguém quer ensinar boas técnicas de medida e elege a precisão como seu principal objetivo, a construção de aparatos experimentais de baixo custo só se justifica se não inviabilizar o alcance desse objetivo. Essa é uma razão relevante para aprimorar o conjunto de problemas em física experimental resolvidos com técnicas desse tipo, em particular no estudo da termodinâmica, de sérias dificuldades didáticas e experimentais [1,2,7,8].

A determinação do calor específico de gases, líquidos e sólidos pode ser obtida por diferentes técnicas experimentais oriundas das mais diversas áreas da física [1,3-13]. Ao mesmo tempo tem-se realizado um grande esforço teórico para expressar os fenômenos termodinâmicos relacionados com calor específico em diferentes contextos da física [14-18]. Neste trabalho, estendemos o uso de um método simples para obter o calor específico de sólidos, a partir do estudo da troca de calor entre dois corpos [19]. O método baseia-se na construção de curvas de resfriamento que descrevem a perda de calor do sistema para a sua vizinhança. Com essas curvas pode-se estimar com boa precisão a temperatura inicial efetiva do sistema ao entrar em contato com o sólido.

O objetivo desse procedimento não é prescindir ou dispensar o uso do calorímetro, mas dar um enfoque complementar às experiências típicas de medição de calor específico realizadas com esse aparelho. Está claro para quem faz este tipo de experiência que, a menos que se use calorímetros de alta qualidade, é muito difícil medir a temperatura de equilíbrio térmico com precisão, principalmente quando ela difere muito da temperatura ambiente. Para muitos estudantes essa experiência é interminável - o equilíbrio térmico parece nunca ser atingido. Na realidade, o valor da temperatura final, que conclui a experiência, é fruto de uma espécie de acordo entre o professor e seus estudantes: adotam um valor consensual, em que a temperatura parece estar suficientemente estabilizada.

O procedimento apresentado, além de tornar possível a introdução de conceitos como turbulência, gradiente de temperatura e fluxo de calor, mostra que o isolamento térmico é desnecessário para a medida do calor específico. Do ponto de vista epistemológico, esta experiência pode ser compreendida como una inovação pedagógica no ensino de física, pois permite uma comparação entre duas metodologias experimentais distintas. Certamente é uma grande vantagem para o aluno, nos primeiros anos de estudo em ciências, conscientizar-se da possibilidade de abordar e medir certas propriedades físicas de várias maneiras distintas.

II Procedimentos experimentais

O equipamento experimental compõe-se de um bloco maciço de alumínio, um aquecedor, uma balança, um béquer e um termômetro. O procedimento experimental é bastante simples. De início coloca-se um determinado volume de água no béquer, mede-se a temperatura ambiente, a massa do bloco de alumínio e, em seguida, a água é aquecida a uma temperatura de 60oC, aproximadamente. Coloca-se o termômetro no interior da água e passamos a medir sua temperatura em intervalos de um minuto, o que vai possibilitar a construção da curva de resfriamento, que representa a perda de calor do sistema para sua vizinhança. Quando a temperatura atingir cerca de 45oC, aproximadamente, o bloco de alumínio é imerso na água. A partir desse instante é necessário medir a temperatura da água a cada 5 segundos até que a taxa de decaimento da temperatura retome o ritmo anterior à imersão do bloco, quando voltamos a medir em intervalos de um minuto.

III Análise dos dados

Obtidos os dados, constrói-se o gráfico da temperatura da água, T(oC) pelo tempo t(s) (figura 1). Para melhor discutir as etapas do processo de troca de calor do sistema com a vizinhança, dividimos o gráfico em três partes. A primeira (parte I) mostra a curva de resfriamento, que descreve o processo de transferência de calor do sistema (água) para o ambiente. A parte II representa predominantemente o processo de troca de calor no interior do sistema (água e bloco de alumínio). Nesse intervalo de tempo a perda de calor do sistema para o ambiente pode ser descrita extrapolando-se a curva correspondente à fase I. A parte III mostra o retorno à taxa anterior de transferência de calor do sistema para a sua vizinhança representada na parte I.


Na fase inicial, representada no primeiro setor, a troca de calor entre o sistema (S) e sua vizinhança (V), DQS ® V, pode ser representada por

o que implica em definir a água (A) como o sistema inicial, ou seja, estamos desprezando a interferência do recipiente, o que nos parece aceitável uma vez que o capacidade térmica do recipiente é muito pequena em relação à da água. Na segunda fase, além do calor transferido do sistema para o ambiente, incluímos o calor transferido entre a água e o bloco de alumínio, D. Escrevemos então

Nessa fase vamos admitir que a perda de calor do sistema para o ambiente não se altere significativamente quando o bloco de alumínio está imerso. Isso significa que, com ou sem o bloco imerso na água, a transferência de calor do sistema para o ambiente e a taxa em relação ao tempo com que ela se processa são praticamente iguais. Podemos justificar mais essa aproximação tendo em vista que a massa de água utilizada é suficientemente grande para submergir completamente o bloco de alumínio. Essa aproximação nos leva a duas conseqüências importantes. A primeira, considerar que as quantidade DQS ® V e D, expressas como DQA ® V e D, são iguais.

Assim, manipulando algebricamente as equações (1) e (2), obtém-se, para as trocas internas de calor na parte II, em que se inclui o bloco de alumínio, a relação

Usando a definição de calor específico, obtemos para o calor específico do alumínio a expressão:

em que é a temperatura inicial do bloco de alumínio, que é a temperatura ambiente e, e são respectivamente a temperatura final e inicial do sistema.

A segunda conseqüência das aproximações feitas nos permite considerar válida a extrapolação da curva de resfriamento da água (parte I), mesmo quando nela está imerso o bloco de alumínio, o que possibilita a determinação do valor efetivo de , no qual se desconta a perda de calor para o ambiente. É esta extrapolação que nos permitiu desconsiderar o calorímetro, o que discutiremos a seguir.

IV Usando a curva de calibração

Não é raro no ensino do conceito de calor específico o uso de modelos ideais de calorímetro, inspirados em um raciocínio idealista que domina livros didáticos de física. Esta forma de pensar o experimento raramente permite aos estudantes medir, muito menos perceber que a temperatura do sistema está mudando continuamente. O tempo é completamente desconsiderado nas análises desse problema, o que aqui não ocorre pois no mesmo intervalo de tempo, em que ocorrem as trocas internas de calor no sistema, é necessário considerar as perdas de calor para o ambiente. A temperatura inicial do sistema não pode ser a temperatura no momento em que começa a interação entre a água e o bloco de alumínio, pois durante o experimento, o sistema está trocando continuamente calor com a vizinhança. Este é um dos propósitos deste trabalho, mostrar de forma simples que é possível, usando as curvas de de resfriamento, obter a temperatura inicial efetiva (ou corrigida) do sistema, que será aplicada na equação (4) para o cálculo do calor específico do sólido. Para se obter essa temperatura, é necessário observar em detalhe a figura 2.


A primeira parte (I) do processo é interrompida quando o bloco de alumínio, na temperatura ambiente, é imerso na água (t » 520 s). Começa então, a segunda parte (II) quando se intensifica o resfriamento do sistema, percebido com o aumento da taxa de decaimento (aumento do expoente de decaimento). A parte II é um processo que termina quando o sistema volta a taxa de decaimento inicial. Este evento define o começo da parte III. As interseções das partes I e II, e das partes II e III determinam o intervalo de tempo (DtII) em que houve intercâmbio de uma grande quantidade de calor entre a água e o alumínio. Durante esse intervalo, as trocas de calor entre a água e suas imediações seguem continuamente (DTA®V). O calor fornecido pela água ao bloco de alumínio pode ser obtido com o intervalo de temperatura efetivo (DTef) obtido diretamente da diferença entre a temperatura da interseção das partes II e III, e a temperatura correspondente na curva de calibração (figura 2). Com esses valores é possível levar a cabo o cálculo do calor específico do alumínio,

Esta medida é bastante razoável considerando-se o rudimento da técnica. Os estudantes devem escolher os pontos cuidadosamente para obter resultados aceitáveis no cálculo de calor específico. Como todo o procedimento experimental, a sua realização deve ser feita com muito cuidado, principalmente a tomada de dados, para se tenham boas estimativas da temperatura. Neste caso adotou-se o desvio de 0,1oC na medida de temperatura.

V Discussão

A taxa de transferência de energia do sistema para a vizinhança, pode ser considerada praticamente constante durante todo o processo. Assim esse fluxo de energia deve ser descontado na equação da conservação de energia do sistema, para que seja possível obter um valor para a temperatura inicial efetiva . Pode-se considerar que, no momento em que o bloco de alumínio é colocado dentro da água, haja uma diminuição do fluxo de calor da água para o béquer. Isto porque ao emergir o alumínio, a água sofrerá uma diminuição de temperatura e, por alguns instantes, o béquer estará com uma temperatura ligeiramente mais alta. Mas considerando-se que a capacidade térmica do vidro é muito menor que a da água, podemos tomar a variação no fluxo de calor para o ambiente como sendo desprezível. Usando a conservação de energia e tomando o tempo como uma variável importante, podemos representar o processo dinâmico que descreve como a energia está sendo dissipada pelo sistema. Neste caso se usa a hipótese de que a água perde a mesma quantidade de energia com ou sem o bloco de alumínio, ou seja:

VI Comentários finais

Em todas as técnicas experimentais deve-se fazer várias recomendações para evitar a perda de tempo nos procedimentos. Notamos que um bloco de alumínio com um terço da massa da água permite obter bons resultados em um tempo razoável. Uma das principais relações que se pode fazer nesta experiência é a relação entre o fluxo dinâmico de calor e o regime de decaimento da temperatura. Assim, se o bloco de alumínio tem um volume muito menor que o volume de água, não se nota facilmente a mudança do regime de decaimento da temperatura. Além do mais, o tempo necessário para se medir as temperaturas e medir as curvas de calibração se torna inadequado para a realização desta experiência em uma aula de física no ensino médio. Se o bloco de alumínio tem massa equivalente à massa de água, o decaimento da temperatura se produzirá de uma maneira muito abrupta e tornará difícil as medidas da temperatura e do tempo. Também é importante destacar a necessidades de alguns cuidados nas medidas da temperatura. Algumas medidas inadequadas de temperatura surgem quando o termômetro é posto muito próximo do bloco de alumínio. Como nessa região o gradiente de temperatura é muito alto, geram-se fluxos turbulentos de convecção na água, ocasionando grandes flutuações de temperatura que não podem ser usadas na construção da curva de resfriamento. Outra recomendação importante, é a de utilizar a temperatura inicial do sistema igual ou menor que 60oC. Quando a temperatura inicial é muito alta se deve esperar o tempo necessário até que a temperatura do sistema alcance o nível recomendado. Este procedimento é importante para que a parte da curva em que há troca de calor, entre o bloco de alumínio e a água seja maior em relação ao restante da curva. Também é importante imergir o bloco de alumínio quando a temperatura da água estiver próxima de 45oC. Se ele for imerso quando a água está a uma temperatura próxima de 60oC, a curva de trocas de calor terá uma derivada muito acentuada, dificultando a medida da temperatura do sistema. Finalmente, esta experiência permite várias discussões sobre conceitos como calor específico, trocas de calor e decaimento exponencial da temperatura (a tão famosa e tão pouco ensinada lei de decaimento de Newton). Este procedimento se configura como um excelente exercício para introduzir a discussão desses conceitos para estudantes do ensino médio ou de física básica no primeiro ano dos cursos superiores. Como se afirmou na introdução, este experimento permite a discussão de diferentes formas de se medir o calor específico, explicitando os problemas teóricos e experimentais típicos do método experimental que emprega calorímetros. Raramente se obtém, com calorímetros improvisados, construídos com materiais de baixo custo, como as caixas de isopor, resultados comparáveis aos obtidos com calorímetros de laboratórios de pesquisa. Do ponto de vista pedagógico, propomos esta alternativa ao método de medida de calor específico tradicional, de modo a levantar discussões de natureza metodológica e epistemológica, de conceitos raramente explicitados nos cursos introdutórios de física, como o conceito de calorímetro ideal, que é irreal.

Alberto Gaspar

E-mail: gaspar@feg.unesp.br

Recebido em 11 de dezembro, 2002

Aceito em 13 de janeiro, 2003

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  • Endereço para correspondência

    Cristiano Mattos
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2003
    • Data do Fascículo
      2003

    Histórico

    • Aceito
      13 Jan 2003
    • Recebido
      11 Dez 2002
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