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Tradução comentada de um clássico de Copérnico

RESENHAS

Tradução comentada de um clássico de Copérnico

Penha Maria Cardoso Dias

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Penha Maria Cardoso Dias E-mail: penha@if.ufrj.br.

Tenho por norma não escrever resenhas, mas não pude recusar o simpático convite do editor da Revista Brasileira de Ensino de Física, Professor Nelson Studart. O livro a resenhar é: Commentariolus (Pequeno Comentário de Nicolau Copérnico sobre suas próprias hipóteses acerca dos movimentos celestes), de Nicolau Copérnico (é claro, após o sub-título), com introdução, tradução para o Português e notas de Roberto de Andrade Martins (Editora Livraria da Física, 180 pp, 2a. edição, 2003). Trata-se, segundo Martins, provavelmente, de uma primeira versão do De Revolutionibus Orbium Cælestium (Sobre a Rotação das Esferas Celestes) [1].

O livro de Martins foi publicado, inicialmente, em 1990 e se encontra em sua segunda edição (1993). A primeira edição foi apresentada por Luiz Pinguelli Rosa. Pinguelli discute questões epistemológicas geradas pelo De Revolutionibus, hoje clássicas. Um problema é o do compromisso epistemológico de Copérnico - seria ele um realista, um instrumentalista? - suscitado pelo prefácio, hoje famoso, de Andreas Osiander. Outro problema, não necessariamente independente do primeiro, mas, a mon avis, mais preocupante, é o próprio problema que a Epistemologia se propõe a resolver. Em linguagem que filósofos considerariam chula, trata-se do conteúdo de verdade de uma teoria: Pode-se dizer que teorias "são" certas ou erradas? (teorias são ou não epistêmicas?). Caso não se possa, como um cientista escolhe uma dentre teorias que competem?: Simplicidade? A teoria tem um maior poder de predição? [2] O De Revolutionibus é um manancial para essa discussão, como Pinguelli bem explica.

O Commentariolus é difícil de ler, o que é reconhecido por Martins. No livro, Copérnico não apresenta detalhes dos métodos da Astronomia. Ele, apenas, lista aspectos muito gerais dos movimentos dos planetas e da Lua. Martins supre o leitor, na Introdução, com particularidades do sistema astronômico, definindo seu aparato conceitual. Além disso, foi necessário que a edição viesse acompanhada de comentários, em notas de rodapé. Martins baseia-se em uma vasta literatura e o resultado é um trabalho erudito e meticuloso, não só quanto aos comentários, mas também quanto à tradução em si.

Em seu ensaio introdutório, Martins contextualiza, ainda, a obra de Copérnico, em seu tempo. Ele discute outras vêzes em que um sistema heliocêntrico teria sido proposto, na Antigüidade: A mais conhecida, por Aristarco de Samos (século III aC); além disso, alguns autores consideram que Heráclides do Ponto foi um "Tycho Brahe da Antigüidade" [3], por ter considerado um sistema similar ao de Tycho, um híbrido entre o de Cláudio Ptolomeu [4] e o de Copérnico. Embora Martins não se detenha nas questões epistemológicas clássicas associadas ao nome de Copérnico (um objetivo que ultrapassaria o escopo de intenções), o que é feito por Pinguelli, ele discute o que chama de "natureza da obra de Copérnico": Além de colocar o Sol estático no centro do sistema e a Terra girando ao seu redor, que outra contribui cão trouxe Copérnico? Martins analisa, então, o sistema de Copérnico, quanto a seus recursos e resultados e o que um astrônomo consideraria o status epistemológico da Astronomia, na época.

Finalmente, Martins toca em uma questão que me é sensível [p.79]:

A falta de conhecimentos detalhados sobre o conteúdo dos trabalhos científicos costuma levar a simplificações enganadoras: poderia imaginar que Copérnico simplesmente teve um lampejo e "viu" que o sistema heliocêntrico era o melhor. As coisas não são assim. Copérnico foi admirado, estudado e respeitado em sua época pelo alto nível de seu trabalho matemático de detalhe, não por haver simplesmente sugerido uma idéia. E isso é o que o distingue dos "Copérnicos da Antigüidade".

Um argumento comum é que Copérnico colocou o Sol no centro por compromisso com um (neo) platonismo que ressurgia em sua época; de acordo com a idéia, Copérnico "viu" que o Sol, lampada pulcherrima, como a ele se refere Alexandre Koyré ([5], p.63), é o centro do calor e da vida, blá-blá-blá, logo o centro do sistema. O único suporte do argumento parece ser a seguinte passagem do De Revolutionibus ([3], p.527-528), também citada por Thomas Kuhn ([6], p.131]) e parafraseada por Koyré ([5], p.63):1

No centro de tudo, repousa o Sol. Pois, quem colocaria essa lâmpada de um belo templo em outro ou melhor lugar do que esse, de onde ela pode iluminar tudo ao mesmo tempo? De fato, é [uma] feliz [expressão] que alguns o chamem de lanterna; outros, de mente e outros, ainda, de piloto do mundo. Trimegisto o chama de "Deus visível"; a Electra de Sófocles, "aquilo que faz arder em chamas todas as coisas". E, assim, o Sol, como se [estivesse] repousando em um trono régio, governa a família dos astros que o rodeiam. [...]. A Terra, além disso, é fertilizada pelo Sol e concebe crias todos os anos.

Uma leitura cuidadosa dos originais, seguindo, passo a passo, os argumentos dos autores e o desenvolvimento do raciocínio, em muito contribuiria para nos livrar de tais sandices. Quando menos, essa leitura permitiria separar argumentos realmente relevantes a uma idéia de "argumentos marqueteiros", cujo objetivo, por exemplo, é, tão somente, vender uma idéia que não se sabe justificar. Coube a Johann Kepler o coup de grâce no mundo de inspiração greco-romana, ao substituir os círculos, que representavam a perfeição, pela elipse; ele o fez, não porque a lampada pulcherrima tivesse iluminado seu caminho, de modo que ele "visse", mas porque - por mais que Kepler se esforçasse - Marte se obstinava em seguir os dados de Tycho.

Referências

[1] Nicolau Copérnico,

De Revolutionibus Orbium Cælestium (Nuremberg, 1543). Traduzido para o Inglês por Charles Glenn Wallise editado por R.M. Hutchins,

Great Books of the Western World,

Encyclopædia Britannica, 54 v., 1952, v. 16, 496-838.

[2] Rom Harré, The Philosophies of Science (An Introductory Survey) (Oxford University Press, 1972, 1985).

[3] Thomas L. Heath, Aristarchus of Samos (The Ancient Copernicus) (Clarendon Press, 1913. Re-publicado por Dover, 1981).

[4] Cláudio Ptolomeu, Ptolemy's Almagest, traduzido para o Inglês e comentado por G.J. Toomer (Princeton University Press, 1998).

[5] Alexandre Koyré, La Révolution Astronomique (Copernic, Kepler, Borelli) (Hermann, 1961; nova impressão, 1974).

[6] Thomas S. Kuhn, The Copernican Revolution (Harvard University Press, 1957).

  • Endereço para correspondência
    Penha Maria Cardoso Dias
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2004
    • Data do Fascículo
      2004
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