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Tratamento da actinomicose pulmonar com levofloxacina

Resumos

A actinomicose é uma infecção bacteriana supurativa crônica caracterizada por múltiplos abcessos, trajetos fistulosos e fibrose envolvendo a face, o pescoço, o tórax e o abdômen. É causada por uma bactéria anaeróbia, Gram-positiva e saprófita (Actinomyces). A actinomicose pulmonar primária é uma doença rara que resulta provavelmente da aspiração de secreções da orofaringe. Pode apresentar-se como uma doença respiratória crônica. O tratamento de escolha é a antibioticoterapia com penicilina. Os autores apresentam o caso clínico de uma mulher de 55 anos com diagnóstico de actinomicose pulmonar tratada com sucesso com levofloxacina.

Actinomicose; Infecção; Ofloxacino; Registros médicos


Actinomycosis is a chronic suppurative bacterial infection characterized by multiple abscesses, fistulous pathways, and fibrosis involving the face, neck, chest, and abdomen. It is caused by an anaerobic Gram-positive saprophytic bacterium (Actinomyces). Primary actinomycosis of the lung is a rare disease that probably results from aspiration of oropharyngeal secretions. It can present as a chronic respiratory disease. The treatment of choice is antibiotic therapy with penicillin. The authors report the case of a 55-year-old female diagnosed with pulmonary actinomycosis and successfully treated with levofloxacin.

Actinomycosis; Infection; Ofloxacin; Medical records


RELATO DE CASO

Tratamento da actinomicose pulmonar com levofloxacina* * Trabalho realizado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal.

Diva de Fátima Gonçalves FerreiraI; Joana AmadoII; Sofia NevesIII; Natália TaveiraIV; Aurora CarvalhoIV; Rosete NogueiraV

IInterna Complementar de Pneumologia. Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal

IIAssistente Hospitalar de Pneumologia. Hospital de Joaquim Urbano, Porto, Portugal

IIIAssistente Eventual de Pneumologia. Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal

IVAssistente Graduada de Pneumologia. Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal

VAssistente Graduada de Anatomia Patológica. Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Diva de Fátima Gonçalves Ferreira Rua de Monsanto, 9, 4º Esquerdo Frente CEP 4250-291, Porto, Portugal Tel 351 22 786-5100 E-mail: divaferreira@iol.pt

RESUMO

A actinomicose é uma infecção bacteriana supurativa crônica caracterizada por múltiplos abcessos, trajetos fistulosos e fibrose envolvendo a face, o pescoço, o tórax e o abdômen. É causada por uma bactéria anaeróbia, Gram-positiva e saprófita (Actinomyces). A actinomicose pulmonar primária é uma doença rara que resulta provavelmente da aspiração de secreções da orofaringe. Pode apresentar-se como uma doença respiratória crônica. O tratamento de escolha é a antibioticoterapia com penicilina. Os autores apresentam o caso clínico de uma mulher de 55 anos com diagnóstico de actinomicose pulmonar tratada com sucesso com levofloxacina.

Descritores: Actinomicose; Infecção; Ofloxacino; Registros médicos.

Introdução

A actinomicose é uma infecção bacteriana crônica com envolvimento torácico em 15 a 50% dos casos. Ocorre esporadicamente em humanos e outros animais, não é contagiosa, e o agente causal, um comensal da boca, é uma bactéria anaeróbia Gram-positiva do gênero Actinomyces. A maioria das infecções tem localização cérvico-facial, torácica, abdominal ou pélvica. A actinomicose torácica é geralmente causada pela aspiração de secreções da orofaringe, mas também pode resultar da extensão direta de infecções cérvico-faciais. A reação é habitualmente supurativa com formação de abscessos contendo grânulos actinomicóticos e eosinofílicos. O diagnóstico pode, como no presente caso, ser confirmado por exame microbiológico cultural. A penicilina em altas doses é o tratamento de escolha.

A propósito desta doença, os autores apresentam um caso clínico que simulou uma neoplasia pulmonar, com interesse pelo tratamento com levofloxacina. É feita uma revisão teórica sobre a actinomicose pulmonar.

Relato do caso

Uma paciente do sexo feminino, 55 anos de idade, caucasiana, não fumante, secretária, procurou atendimento no serviço de emergência. Tinha história de hepatite B crônica, hipertensão arterial, dislipidemia mista e múltiplas cáries dentárias não tratadas. Relatou que há três semanas havia iniciado quadro de dejeções diarréicas diárias, azia, desconforto retroesternal agravado pelo decúbito dorsal, astenia, anorexia e emagrecimento (5 kg). Uma semana depois haviam surgido toracalgia esquerda de características pleuríticas com agravamento progressivo, acessos freqüentes de tosse seca ao esforço e pico febril isolado. O eletrocardiograma foi normal, e a endoscopia digestiva alta revelou um cárdia complacente e gastrite antral. A telerradiografia de tórax mostrou hipotransparência heterogênea, esboçando perda de substância em seu seio, no terço médio do campo pulmonar esquerdo. A tomografia computadorizada de tórax evidenciou a presença de uma massa de 4 cm com conteúdo heterogêneo e continuidade pleural ao nível da língula e a presença de dois micronódulos subpleurais na região posterior do campo pulmonar direito (Figura 1). Procedeu-se ao estudo etiológico considerando-se a hipótese diagnóstica de neoplasia pulmonar como a mais provável. Do estudo analítico, salientam-se os seguintes resultados: velocidade de hemossedimentação = 98 mm/1ª h; antígeno do câncer 125 = 63,3 U.mL–1 (<35,0); antígeno carcinoembriogênico = 3,55 ng.mL–1 (<2,5) e discreta elevação da proteína C reativa. O estudo imunológico sérico, os marcadores virais e o estudo analítico final não revelaram outras alterações relevantes. Os resultados da colonoscopia, da ultrassonografia abdominopélvica, da mamografia e da citologia cérvico-vaginal foram normais. A primeira fibrobroncoscopia realizada mostrou sinais inflamatórios difusos ao nível da língula. Os resultados do exame citológico de aspirado, lavado brônquico e lavado broncoalveolar foram negativos para células neoplásicas. O exame microbiológico em aerobiose foi também negativo, assim como a pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes. A paciente foi então submetida à biópsia aspirativa transtorácica (BAT), que, ao exame citológico extemporâneo, mostrou um processo inflamatório com supuração. Face a este resultado provisório, iniciou-se a antibioticoterapia com levofloxacina 500 mg via oral ao dia, e decidiu-se realizar uma segunda fibrobroncoscopia. Entretanto, o exame citológico da BAT revelou aspectos morfológicos compatíveis com a presença de Actinomyces, confirmada pelo exame microbiológico cultural do lavado brônquico e broncoalveolar da segunda fibrobroncoscopia, no qual se identificou A. naeslundii (Figura 2). A pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes foi negativa. Dada a melhoria clínica e radiológica após um mês de tratamento (Figura 3), optou-se por manter a antibioticoterapia já iniciada, cuja posologia foi alterada: levofloxacina 500 mg endovenoso ao dia por quatro semanas e, depois, 500 mg po qd. Não se verificou iatrogenia à terapêutica, a qual foi mantida por 16 semanas, até a completa normalização radiológica. Analiticamente constatou-se uma redução da velocidade de hemossedimentação e uma redução de ambos os marcadores tumorais inicialmente alterados, assim como a normalização da proteína C reativa. A paciente foi também submetida a tratamento dentário.




Discussão

A actinomicose é uma infecção bacteriana crônica e não contagiosa que ocorre esporadicamente em humanos e outros animais. O agente causal é um comensal da boca e do trato respiratório, gastrointestinal e genital de indivíduos saudáveis. Esse comensal é uma bactéria Gram-positiva, filamentosa, anaeróbia facultativa e de crescimento lento, do gênero Actinomyces, pertencente à família Actinomicetaceae.(1,2,5) A actinomicose é uma doença rara, com distribuição mundial, sendo o maior fator de risco a má higiene oral. A redução da incidência desta patologia pode estar relacionada à melhoria da higiene oral e ao uso adequado de antibióticos nas infecções por outros agentes.(1)

Nos tecidos, o Actinomyces desenvolve-se em grânulos ou microcolônias densos que podem atingir 4 mm e são denominados "grânulos de enxofre" em razão da sua coloração amarelada.(5) A actinomicose dissemina-se sem respeitar os planos anatômicos.(3) Surge muitas vezes como uma co-infecção com outras bactérias denominadas "bactérias associadas", geralmente também comensais da mucosa oral, tipicamente Gram-negativas e que podem contribuir para a patogênese da doença.(3)

Todos os tecidos torácicos são suscetíveis de serem infectados, e os sintomas sugerem muitas vezes malignidade. A actinomicose pulmonar geralmente é causada por aspiração de secreções infectadas da orofaringe, mas também pode advir da extensão direta de infecções cérvico-faciais. A lesão típica consiste em um abscesso pulmonar preenchido por neutrófilos e rodeado de tecido fibrótico denso. Mais raramente pode ocorrer a consolidação sem formação de abscesso.

A doença pulmonar inicia-se de forma insidiosa com tosse, expectoração, febre e perda de peso. Num pequeno número de casos podem ocorrer hemoptises ou dor pleurítica. A expectoração habitualmente é amarela ou branca e sem odor característico. Quando fétida, sugere a presença de outros microrganismos anaeróbios em associação com o Actinomyces.(3) Dentro do brônquio pode formar-se tecido inflamatório com obstrução parcial do mesmo. A sintomatologia é muitas vezes surpreendentemente ligeira, tendo em conta a extensão da doença. São comuns a leucocitose, a neutrofilia e uma anemia moderada.(2-5) A lesão pulmonar pode fistulizar através da pleura para a parede torácica, invadindo as costelas e o esterno. Os pacientes podem apresentar um processo alveolar difuso com fístula broncocutânea ou fístula broncopleural, que podem evoluir para abscesso subcutâneo ou empiema, respectivamente.

A infecção crônica pode então manifestar-se como uma massa, semelhante ao carcinoma broncogênico, a qual fistuliza para o espaço pleural ou para a parede torácica, dando origem a um ou a vários abscessos, ou causando a destruição de osso. Esta forma de disseminação na infecção pulmonar difere da de outros microrganismos, podendo ser confundida inicialmente com um processo maligno.(1)

A actinomicose pulmonar pode simular uma variedade de doenças, como a nocardiose, a tuberculose e o carcinoma brônquico. Na telerradiografia, os infiltrados são muitas vezes densos e bem circunscritos. Habitualmente a lesão inicial apresenta-se como uma consolidação bem localizada que pode evoluir para a cavitação em metade dos casos, geralmente de pequenas dimensões. O derrame pleural é comum.(2) A infecção pode afetar múltiplos lobos, disseminando-se pelas fissuras interlobares, e dar origem a infiltrados alveolares ou nodulares. Ocasionalmente a erosão de um vaso sanguíneo leva à disseminação hematogênea da doença, que adquire o aspecto de doença miliar (disseminada). A tomografia computadorizada evidencia a presença de cavidades, a extensão através das fissuras, o espessamento pleural ou o envolvimento da parede torácica, que muitas vezes são inaparentes na telerradiografia torácica.(2)

O diagnóstico é difícil, e menos de 10% dos casos são diagnosticados na apresentação inicial.(5) As culturas devem ser feitas em meios estritamente anaeróbios e inoculadas rapidamente. Um exame microbiológico cultural de expectoração positivo tem pouco significado clínico, já que o Actinomyces faz parte da flora oral normal. A presença de grânulos de enxofre é sugestiva do diagnóstico, sendo contudo rara a sua observação. A colheita de secreções por fibrobroncoscopia também pode ser contaminada pela flora normal da orofaringe, a não ser que se usem cateteres protegidos. Da mesma forma, o exame bacteriológico do material obtido pela biópsia transbrônquica pode ser contaminado pelas secreções das vias aéreas superiores, sendo fiável o diagnóstico histológico ou a BAT do mesmo. A obtenção de uma amostra não contaminada para identificação do microrganismo requer geralmente uma BAT por agulha ou uma biópsia pulmonar cirúrgica. No caso de fístula, a presença de grânulos nas secreções é a chave para o diagnóstico(6). A BAT pode ser importante, como no caso apresentado, para providenciar a colheita em meios adequados para exame cultural.

O tratamento de escolha da actinomicose é a penicilina. Na maioria dos casos, o antibiótico deve ser administrado por via oral nas doses máximas toleradas. Nas situações graves ou rapidamente progressivas, a penicilina deve ser iniciada por via endovenosa em altas doses (10 a 20 milhões de unidades por dia).(2) Outros antibióticos podem ser utilizados por via oral, a saber, a ampicilina, a tetraciclina e a clindamicina, com bons resultados terapêuticos.(2) A cirurgia deve ser considerada como em qualquer doença bacteriana do tórax em geral, sendo muitas vezes necessária para aliviar a obstrução das estruturas mediastinais. Os empiemas devem ser drenados. A actinomicose tem uma elevada tendência a recidivar, motivo pelo qual a terapêutica deve ser prolongada por 6 a 12 meses. A duração exata depende da gravidade da doença, da sua extensão dentro e fora do tórax e da resposta ao tratamento. O prognóstico é excelente, com um percentual de cura de 90% quando a doença é diagnosticada precocemente e se administra a antibioticoterapia eficaz.(1)

A opção terapêutica utilizada no presente caso foi incontestavelmente controversa mas, tendo sido iniciada com eficácia clínica antes da confirmação diagnóstica, foi mantida, com o consentimento informado da paciente, até a regressão da sintomatologia e normalização completa das alterações radiológicas. A evolução desse caso sugere que a levofloxacina representa uma alternativa ao tratamento convencional da actinomicose pulmonar.

Recebido para publicação em 16/11/2006

Aprovado, após revisão, em 3/7/2007

  • 1. Gomes, MJ, Sotto-Mayor R. Infecções respiratórias não tuberculosas. Tratado de Pneumologia 2003;v. I;41:488-90.
  • 2. Cheon JE, Im J, Lee J, Choi G, Yeon K. Thoracic actinomycosis: CT findings. Radiology 1998;209(1):229-33.
  • 3. Fishman AP. Infectious diseases of the lungs. Fishman's Manual of Pulmonary diseases and disorders 2002;59:709-10.
  • 4. Cendan I, Talavera W. Pulmonary actinomycosis. A cause of endobronchial disease in a patient with AIDS. Chest 1993; 103(6):1886-7.
  • 5. Gibson G, Duncan M, Costabel U, Sterk J, Corrin B. Respiratory Infections. Respiratory Medicine 2003; v. II;35:890-1.
  • 6. Das DK. Actinomycosis in fine needle aspiration cytology. Cytopathology 1994;5(3):243-50.
  • Endereço para correspondência:
    Diva de Fátima Gonçalves Ferreira
    Rua de Monsanto, 9, 4º Esquerdo Frente
    CEP 4250-291, Porto, Portugal
    Tel 351 22 786-5100
    E-mail:
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    Trabalho realizado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2008

    Histórico

    • Aceito
      03 Jul 2007
    • Recebido
      16 Nov 2006
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