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A mediação como agente potencializador da difusão em arquivos: experiência da campanha “Arquivo nosso de cada dia”

Mediation as a potentiating agent of dissemination in Archives: experience of the “Arquivo nosso de cada dia” campaign

Resumo

A mediação da informação, e também a mediação cultural, na Ciência da Informação, e em especial na Arquivologia são temáticas que requerem mais discussões teóricas e metodológicas. O presente artigo se propôs a refletir sobre a importância da mediação em atividades de difusão de conteúdo para a ampliação da representação social dos arquivos, tendo como estudo de caso a campanha “Arquivo nosso de cada dia” do Arquivo Público do Estado de São Paulo, com o objetivo de contribuir para fomentar a reflexão acerca da importância do processo de mediação em atividades de difusão em arquivos. Este artigo se caracteriza como quali-quantitativo, descritivo e exploratório, utilizando-se como métodos a análise dos documentos produzidos em decorrência da campanha. Os resultados demonstraram a importância de os arquivos empreenderem ações de difusão mediada com diferentes grupos sociais que impactam diretamente em como a sociedade reconhece e consequentemente, acolhe esses espaços de memória.

Palavras-chave:
mediação da informação; mediação cultural; difusão mediada; difusão em arquivos; arquivo nosso de cada dia

Abstract

Information mediation, as well as cultural mediation, in Information Science, and especially in Archival Science, are themes that demand further theoretical and methodological inquires. This paper ponders over the importance of mediation in the context of content dissemination activities oriented to the magnification of the social representation of archives. To this end we take as case study the “Arquivo nosso de cada dia” [Our daily archive], campaign of the Public Archive of the State of São Paulo, with the goal of encouraging critical thinking about the importance of the mediation process in dissemination activities of archival institutions. This paper has a qualitative, quantitative, descriptive and exploratory approach, and employs as methods the analysis of the documents generated during the campaign. The results prove how important it is to archival institutions to carry out actions of mediated promotion directed to different social groups that directly affect the way how society sees and welcome these spaces of memory.

Keywords:
information mediation; cultural mediation; mediated promotion; diffusion in archival institutions; our daily archive

1 Introdução

Em março de 2020, em decorrência da pandemia mundial ocasionada pelo coronavírus SARS-CoV-2, responsável por causar a doença covid-19, o Brasil iniciou o processo de isolamento social, com o fechamento de suas cidades e paralisações de atividades presenciais comerciais, educacionais, culturais e de sociabilidade em espaços públicos e privados (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2020aORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Entenda a infodemia e a luta contra o COVID-19. Washington: OPAS, 2020a. ). Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o anúncio se deu em 30 de janeiro de 2020 e desde então, o mundo nunca mais foi o mesmo (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE, 2020bORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. OMS declara emergência de saúde pública de importância internacional por surto de novo coronavírus. Washington: OPAS , 2020b. ).

Nesse contexto, o Governo do Estado de São Paulo, seguindo as recomendações da OMS, paralisou as suas atividades presenciais, decretou situação de emergência sanitária e quarentena em todo o Estado de São Paulo, com a publicação do decreto nº 64.864, de 16 de março de 2020 (SÃO PAULO, 2020SÃO PAULO (Estado). Governo do Estado de São Paulo. Decreto nº 64.864, de 16 de março de 2020. Dispõe sobre a adoção de medidas adicionais, de caráter temporário e emergencial, de prevenção de contágio pelo covid-19 (Novo Coronavírus), e dá providências correlatas. Diário Oficial, Estado de São Paulo, v. 130, n. 52, 17 mar. 2020.), afetando assim a execução das ações do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), unidade vinculada à Secretaria de Orçamento e Gestão. Visto o cenário. O APESP teve que repensar as suas atividades presenciais, virtualizando as ações que lhe foram possíveis, o que criou uma lacuna em relação à interação, antes presencial, com os seus usuários. Além da virtualização das atividades de consulta e atendimento aos usuários de seus serviços, foi desenvolvida uma campanha denominada ‘Arquivo nosso de cada dia’. A campanha buscou se aproximar e dialogar com os usuários e não usuários dos serviços e produtos informacionais oferecidos pelo APESP, bem como sensibilizá-los sobre a importância de organizar e preservar os seus arquivos pessoais, ou de familiares em casa, além de tecer olhares sobre a importância das memórias pessoais como parte da memória coletiva, sob o aspecto histórico e social, mediante o convite à criação de vídeos curtos pelos participantes, em que contassem aspectos da criação, organização e uso de seus arquivos.

O processo de desenvolvimento curatorial para a produção de conteúdo da campanha contou com a mediação de uma equipe do APESP, numa perspectiva dialógica entre profissionais da própria instituição, de colaboradores especialistas em organização e preservação de arquivos de outras instituições parceiras e de usuários (e não usuários) dos serviços e produtos informacionais do APESP. Destacam-se nessa atividade o Departamento de Preservação e Difusão do Acervo (DPDA), do APESP, e a colaboração de profissionais de arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e do curso de Arquivologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Ao considerarmos os estudos de Almeida Júnior (2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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), Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) e Martendal e Silva (2020MARTENDAL, F. F.; SILVA, E. C. L. Difusão arquivística e suas expressões nos cursos de graduação em arquivologia no brasil. Informação & Informação, Londrina, v. 25, n. 4, p. 256-279, 2020. DOI: 10.5433/1981-8920.2020v25n4p256. Acesso em: 11 out. 2022.
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), detectou-se que a mediação da informação, e também a mediação cultural, na Ciência da Informação e Arquivologia, são temáticas que requerem mais discussões teóricas e metodológicas. Ancorado nessa perspectiva, tendo como estudo de caso a campanha ‘Arquivo nosso de cada dia’ do APESP, o presente artigo se propôs a refletir sobre a importância da mediação em atividades de difusão de conteúdo para a ampliação da representação social dos arquivos, encontrando respaldo na literatura disponível sobre mediação e difusão em arquivos, bem como da difusão mediada. O objetivo é contribuir e ampliar a bibliografia sobre o tema, reforçando o arcabouço teórico acerca da importância do processo de mediação em atividades de difusão em arquivos.

Para tal, em relação aos aspectos metodológicos, este artigo se caracteriza como quali-quantitativo, descritivo e exploratório. Para o referencial teórico, foi realizada uma revisão de bibliografia sobre mediação, difusão e justiça social no campo da Ciência da Informação e, em especial, em Arquivologia, com a consideração à contribuição de artigos produzidos por outras áreas do conhecimento, como a Arquivologia, a Ciência da Informação, a Comunicação, a Psicanálise, a Produção Cultural e o Direito, por acreditarmos ser necessária uma reflexão transdisciplinar sobre a temática.

Como método de pesquisa, foi utilizada a análise documental, utilizando-se como fonte de evidências os documentos produzidos em decorrência da campanha (tabela descritiva e relatórios de audiência). Para desenvolvimento da análise, foram criadas categorias estruturadas a partir dos três eixos desenvolvidos para produção de vídeos e planejamento da campanha, sendo eles:

  1. dicas - especialistas em arquivos produzem vídeos ofertando dicas para o cidadão organizar e preservar seus arquivos pessoais em casa;

  2. reflexões - colaboradores de diferentes áreas do conhecimento tecem reflexões sobre arquivos pessoais, memória coletiva e individual em diferentes perspectivas;

  3. experiências - depoimento do cidadão sobre a experiência afetiva com arquivos pessoais.

Nesta última categoria vale destacar que alguns cidadãos foram convidados em um primeiro momento, e após o início da campanha, outros procuraram a coordenação do projeto, para darem depoimento sobre suas experiências com os arquivos pessoais, apresentando-os como espaços de afeto, memórias familiares, identidade etc. A partir dessas três categorias, foi possível elaborar um quadro analítico (Quadro 1) com classes de análises separadas por duas categorias, sendo elas: (1) eixo para produção dos vídeos/objetivo, (2) títulos dos vídeos publicados. Foi elaborado também quadro (Quadro 2) com os títulos dos vídeos publicados e comentários dos usuários retirados do YouTube do APESP. Nesse ponto, foram suprimidos nomes pessoais dos usuários da rede social, por questões éticas e foram excluídos comentários que não demonstraram relação com a campanha ou insumo para análise qualitativa.

Os dados utilizados para as análises foram coletados nos relatórios de audiência do canal do APESP no YouTube (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2022ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Painel do YouTube Studio: estatísticas do canal. São Paulo, jun.2022. YouTube: Arquivo Público do Estado de São Paulo @arquivopublicosp.). Foram compilados 18 meses de dados de audiência da campanha “Arquivo nosso de cada dia” após seu lançamento, em outubro de 2020. A fonte de informação utilizada foi o painel do YouTube Studio, em estatísticas do canal (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2022ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Painel do YouTube Studio: estatísticas do canal. São Paulo, jun.2022. YouTube: Arquivo Público do Estado de São Paulo @arquivopublicosp.), disponibilizada para os responsáveis pelo canal do APESP. Para a aferição quantitativa do público alcançado pela campanha, foi priorizada a métrica “espectadores únicos”, definido pelo próprio YouTube como o “número estimado de pessoas que assistiram seu conteúdo no período selecionado” (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2022ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Painel do YouTube Studio: estatísticas do canal. São Paulo, jun.2022. YouTube: Arquivo Público do Estado de São Paulo @arquivopublicosp.), em detrimento da somatória de visualizações de cada vídeo, já que cada usuário pode ter visualizado mais de uma vez cada vídeo. Foi considerado também o indicador “tempo total de exibição” para medir o ‘volume’ de comunicação realizada por cada vídeo. Para efeito de análise, ainda foram agregadas pelos autores informações sobre as categorias dos vídeos, definidas pela coordenação da campanha, além da compilação manual da quantidade de curtidas e comentários e novos inscritos a cada vídeo.

Por fim, foram analisados os resultados da campanha em conexão com a literatura utilizada para tecer uma compreensão sobre a importância da promoção de ações de difusão mediada para a ampliação da representação social dos arquivos.

2 Mediação como pressuposto para difusão em arquivos

A questão da mediação da informação passou a ser objeto de estudo dos intelectuais no final do século XX e início do século XXI, em decorrência do crescimento do aumento do uso e proliferação das Tecnologias da Informação e Comunicação - TICs, especialmente da midiatização, como esclarece Grusin (2020GRUSIN, R. Mediação radical. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 101-132. ).

Feitosa (2017FEITOSA, L. T. Cultura, mídia e mediação da informação: aspectos culturais transdisciplinares. In: Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciência da Informação, 18., 2017, Marília. Anais [...]. Marília: UNESP, 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/104004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 1) evidencia que “a mediação é, por excelência, cultural e que é preciso avançar epistemologicamente para se entender o significado de mediação”. Nessa perspectiva, Feitosa (2017) identifica que as pesquisas demonstram que, para entender as mediações da informação, é necessário mais investimento teórico-conceitual transdisciplinar.

Ao considerar a complexidade da temática, detectou-se a necessidade de empreendimento de novos estudos em decorrência das poucas pesquisas em Arquivologia sobre o processo de mediação para difusão ou difusão mediada, a qual considera a relação colaborativa entre usuários e não usuários dos serviços e produtos arquivísticos, profissionais da informação e a instituição arquivo. Dito isso, o presente trabalho buscou viabilizar essa reflexão numa perspectiva transdisciplinar, contando com a contribuição teórica de diferentes áreas do conhecimento como a Arquivologia, a Ciência da Informação, a Comunicação, a Psicanálise, a Produção Cultural e o Direito.

Jacks (2020JACKS, N. Mediação em Jesús Martín-Barbero. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p.73-100. ), ao estudar a perspectiva de mediação em Martín-Barbero (1987 MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía. Barcelona: Gustavo Gili, 1987.), bem como ao tecer reflexões acerca da mediação no campo da comunicação, evidencia que Martín-Barbero (1987 MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonía. Barcelona: Gustavo Gili, 1987.) rejeita a predominância dos meios técnicos e uma suposta homogeneidade da sociedade moderna em relação à mediação cultural. Isso deixa a produção em comunicação como esfera central da mediação, mas que se interessa pelo processo de mediação em si, processo esse não linear e perpassado por diferentes questões, se considerarmos a mediação enquanto fenômeno social heterogêneo. A mediação cultural é vista como processo, e o mediador atua para estruturar um processo de negociação no qual auxilie as partes a superar os obstáculos a um acordo e encontrar uma solução para o caso objeto da mediação (FALECK, 2020FALECK, D. Mediação como mecanismo de resolução de disputas jurídicas: raízes e perspectivas. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 159-180. ).

A mediação deve ser flexível em seu processo, se adaptando a diferentes contextos, e o mediador deve compreender as diferentes necessidades das partes e as características do caso (FALECK, 2020FALECK, D. Mediação como mecanismo de resolução de disputas jurídicas: raízes e perspectivas. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 159-180. ). Assim, o mediador é um sujeito que dialoga entre partes, troca, negocia, informa, afeta e se deixa afetar, num processo contínuo de retroalimentação linguística e social. Faleck (2020FALECK, D. Mediação como mecanismo de resolução de disputas jurídicas: raízes e perspectivas. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 159-180. , p. 169) aponta que as “características pessoais do mediador, como a sua personalidade, experiências e formação, são determinantes para a definição do processo” o que, de certa forma, está em consonância com os pensamentos de Damatta (2020DAMATTA, R. Sobre mediações. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores, 2020. p. 31-40. , p. 36) que evidencia que “o limen, a dissolução das fronteiras e das categorias de tempo, espaço e causalidade, é o lugar do mediador”. Ou seja, o mediador é um sujeito que interage no seu tempo sociocultural e histórico.

Dunker (2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. , p. 47), ao discorrer sobre a mediação no processo de curadoria cultural e artística, evidencia que o curador (enquanto mediador) deve ser um educador que não tutela seu público ou seu produtor, “mas que dá voz à obra, faz com que sua recepção seja possível e estimula a criação da crítica no interior do processo”. O autor coloca a escuta como um fator importante no processo de mediação do curador. A curadoria mediada tem uma função política indissociável, uma vez que o curador pode “se colocar na posição de favorecer ou desfavorecer políticas de memória, desconstruir, construir ou reconstruir identidades ou diversidades”. (DUNKER, 2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. , p. 48).

O autor afirma também que, “se retemos o sentido antigo da noção de cura, o que o curador faz é cuidar do processo e das relações nele envolvidas, daí a sua função ser sintetizada pela noção de mediação”. (DUNKER, 2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. , p. 49). E que, assim, “a nova curadoria reconhece que os sistemas simbólicos dos quais ela cuida estão em conflito e que o ato de cura envolve uma tomada de posição nesse universo dos conflitos”. (DUNKER, 2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. , p. 49). Nesse contexto, destacam-se os conflitos contemporâneos nos quais grupos subalternos, como nota-se em Spivak (2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2010.), ou grupos sociais que reivindicam espaços de fala, encontram dificuldade de inserção, de modo a que suas vozes sejam escutadas por grupos privilegiados socialmente e que detêm espaço no debate público, poder econômico e sociocultural. Esse ‘silenciamento’ é também observado em Longhini (2021LONGHINI, G. D. N. Sobre silêncio e alaridos do lugar de fala. In: ALVES, B. E. R.; FERNANDES, F. B. M. (orgs.). Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2021. p. 50-59. ) e Boaes (2021BOAES, G. O lugar de fala: apresentação do dossiê. Caos: Revista Eletrônica de Ciências Sociais, João Pessoa, v. 1, n. 26, p. 13-28, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.46906/caos.n26.59563.p13-28 . Acesso em: 11 out. 2022.
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). Latente nos grupos que reivindicam historicamente seus direitos, equidade, suas memórias e identidades em distintas potências, apontamos: o movimento de Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais (LGBTQIAP+), negros, indígenas etc. Acionar memórias para re(construção) da identidade é um processo histórico-social dinâmico que se retroalimenta no tempo, espaço e território (LEE, 2019LEE, J. A. Para além dos pilares de evidências: explorando o terreno instável dos arquivos e suas metodologias. In: GILLAND. A. J.; MCKEMMISH, S.; LAU, A. J. (orgs.). Pesquisa no multiverso arquivístico. Salvador: 9Bravos , 2019. p. 317-344. ).

Ainda em nosso diálogo com Dunker (2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. ), a mediação perpassa todo o processo de curadoria que é envolto por conflitos de diferentes naturezas socioculturais. Porém, ele enfatiza que é difícil situar o conceito de mediação por se referir recursivamente ao próprio conceito do conceito, e que depende de uma autorreferência para se tornar inteligível (DUNKER, 2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. ).

O autor acredita que o curador precisa reconhecer a sua posição histórica no processo de mediação. Principalmente acerca da verticalização e hierarquização da cultura que coloca certos códigos, genericamente incompreensíveis, acima de outros. As evidências nos estudos de Dunker (2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. ) contribuem para nossa reflexão acerca das práticas do arquivista curador de conteúdo para a difusão em arquivos.

E a partir delas, é importante questionar: como se configura uma difusão mediada entre arquivista, arquivo e sociedade (usuários e não usuários do Arquivo) em relação ao território, espaço e contexto social e histórico? Não se trata somente da mediação entre as operações técnicas dos arquivistas, os produtos e serviços para prover o acesso e apropriação da informação, mas também na compreensão de uma difusão mediada que contribua para ampliação do conceito social de arquivo e que considere diferentes grupos sociais.

Ketelaar (2019KETELAAR, E. Estudos sobre Arquivo. In: GILLAND. A. J.; MCKEMMISH, S.; LAU, A. J. (orgs.). Pesquisa no multiverso arquivístico. Salvador: 9Bravos, 2019. p. 219-260.) enfatiza, além das atribuições laborais dos arquivistas, também a sua função social e ética perante a sociedade, pois

Arquivistas são os estudiosos da guarda de registros que têm conhecimento “sobre a criação dos registros, seus contextos culturais pessoais e organizacionais, tipos de registros, sistemas de manutenção de registros e histórias de custódia e arquivo. ” Esse reconhecimento tem que ser compartilhado e promovido à sociedade, e pode ser melhorado pela interação com as disciplinas que fizeram a virada arquivística. (KETELAAR, 2019KETELAAR, E. Estudos sobre Arquivo. In: GILLAND. A. J.; MCKEMMISH, S.; LAU, A. J. (orgs.). Pesquisa no multiverso arquivístico. Salvador: 9Bravos, 2019. p. 219-260., p. 249).

É nessa perspectiva interdisciplinar que a Arquivologia pode (e deve) dialogar com diferentes conhecimentos e grupos sociais para pensar numa mediação colaborativa e integrativa, especialmente acerca de uma difusão mediada e como processo social dinâmico e com diferentes conflitos. E o processo evidenciando por Dunker (2020DUNKER, C. I. L. Mediação na cura psicanalítica e na curadoria empática. In: PEREZ, C.; TRINDADE, E. (orgs.). Mediações: perspectivas plurais. Barueri: Estação das Letras e Cores , 2020. p. 41-72. ) para experiências de mediação curatorial em equipamentos culturais (museus, centros de cultura, centros de memória) também pode (e deve) ser pensado para os arquivos que são lugares não somente custodiadores, preservadores, de fragmentos documentais de memória e informações, mas também como espaços de interações sociais revestidas por diferentes interesses pessoais e coletivos. Em outras palavras, faz-se necessário que os arquivos se apresentem e integrem de forma consciente os lugares de reivindicação sociocultural e histórica, abrindo espaço para uma efetiva representação e reconhecimento de coletivos marginalizados como de grupos sociais que vêm reivindicando a preservação de suas memórias. Por isso, Schwartz e Cook (2002SCHWARTZ, J. M.; COOK, T. Archives, records, and power: the making of modern memory. Archival Science, Switzerland, v.2, p. 1-19, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1007/BF02435628 . Acesso em: 27 fev. 2023.
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, p. 1, tradução nossa) esclarecem “os arquivos, então, não são depósitos passivos de coisas velhas, mas locais ativos onde o poder social é negociado, contestado, confirmado. ”

O arquivo, enquanto instituição social, não deve fechar-se em práticas preservacionistas de documentos sem considerar o usuário como parte essencial em seu processo laboral. Deve refletir sobre sua atuação perante as demandas informacionais e sociais, somando-se também a perspectiva pós-custodial (informacional, de fomento ao diálogo entre arquivistas, arquivos e usuários, focado nos processos arquivísticos como fenômeno social), como verifica-se em Ribeiro (2005RIBEIRO, F. Os arquivos na era pós-custodial: reflexões sobre a mudança que urge operar. [Boletim Cultural-Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão], [s.l.], v. 3, n. 1, p. 129-133, 2005. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/14000 . Acesso em: 10 out. 2022.
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).

Alinhado aos pensamentos dos autores supracitados, cabe refletir sobre qual mediação a Arquivologia pretende orquestrar enquanto saber e prática metodológica e intelectual. Instiga-se os arquivos e seus profissionais a que se reconheçam como atores ativos na construção de espaços de memórias sociais, individuais e coletivas, cientes de atuarem em territórios de disputas, que clamam para a inclusão de representatividades e narrativas, de formas mais democráticas. Exposto isso, nosso diálogo amplia-se para o conceito e usos da mediação na Ciência da Informação e, em especial na Arquivologia, com destaque para a inclusão do usuário nesse processo ativo.

2.1 Mediação na Ciência da Informação e na Arquivologia

É no fim do século XX e início do século XXI que a mediação passa a ganhar espaço de discussão na Ciência da Informação e, desde então, vem se consolidando como um dos segmentos de pesquisa dessa área, como esclarece Macedo e Silva (2015MACEDO, N. O.; SILVA, J. L. C. Mediação no campo da ciência da informação. Revista Folha de Rosto, Juazeiro do Norte, v. 1, n. 1, p. 64-74, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/40520 . Acesso em: 11 out. 2022.
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). Porém, pesquisadores como Macedo e Silva (2015MACEDO, N. O.; SILVA, J. L. C. Mediação no campo da ciência da informação. Revista Folha de Rosto, Juazeiro do Norte, v. 1, n. 1, p. 64-74, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/40520 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) e Almeida Júnior (2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) evidenciam que a mediação carece de mais aprofundamento teórico na área, bem como nota-se, a partir das pesquisas de Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) e Brandão e Borges (2016BRANDÃO, G.; BORGES, J. Mediação da informação arquivística: o papel do arquivista pós-custodial. RACIn: Revista Analisando em Ciência da Informação, João Pessoa, v. 4, n. especial, p. 118-136, 2016. ), a necessidade de fomentar a discussão acerca da mediação em relação à prática e à teoria arquivística.

Percebe-se assim, nos autores aludidos, que a mediação na Ciência da Informação está consubstanciada enquanto fenômeno social inerente à relação dialógica entre informação, profissional da informação, equipamento de informação (arquivo, biblioteca etc.), usuários e não usuários da informação, com o uso propagado do termo mediação da informação. Porém, autores que estão vinculados à perspectiva pós-custodial de mediação da informação notam o usuário da informação como sujeito reflexivo e interativo no processo social de busca e uso da informação.

Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 119), ao estudar Pieruccini (2004)1 1 PIERUCCINI, I. A ordem informacional dialógica: estudo sobre a busca de informação em Educação. 2004. Tese (Doutorado em Ciência da Informação e Documentação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Apud Lousada (2016). , afirma que “a mediação requer uma forma ou um meio de manifestação, seja ela pela linguagem, representações simbólicas, como a escrita, por exemplo”. E que, no caso da mediação da informação, como o conceito de mediação advém de outras áreas do conhecimento, necessita de uma maior reflexão sobre seus pressupostos teóricos no âmbito da Ciência da Informação.

Almeida Júnior (2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 97) destaca que “a mediação da informação permite e exige a concepção de informação que desloque o usuário da categoria de mero receptor, colocando-o como ator central do processo de apropriação”. Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) enfatiza ainda o surgimento de uma nova forma de mediação, a mediação pós-custodial, fundamentada na evolução dos meios tecnológicos de produção da informação e dos serviços informacionais. A interação entre usuários, profissionais da informação e os equipamentos informacionais passam a vigorar de forma variada e perpassada por uma complexidade não linear, como ressalta Silva (2009SILVA, A. M. Mediações e mediadores em Ciência da Informação. Prisma.com, Portugal, n. 9, p. 68-104, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/70071 . Acesso em: 11 out. 2022.
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).

Os serviços de informação multiplicaram-se e complexificaram-se até se instalarem na internet e, aqui, a função mediadora de comunicação no espaço social e a função mediadora institucional, com as estratégias comunicacionais específicas dos respectivos actores e agentes, não desapareceram, nem tendem, necessariamente, a desaparecer, mas podem transformar-se e coexistir com um emergente novo tipo de mediação - deslocalizada ou dispersa (na internet/redes conexas), institucional, colectiva, grupal, pessoal e até anónima, interactiva e colaborativa. Possíveis traços caracterizadores, entre os quais importa destacar a interação e os processos colaborativos, sociais, de participação cívica, espontânea e militante. (SILVA, 2009SILVA, A. M. Mediações e mediadores em Ciência da Informação. Prisma.com, Portugal, n. 9, p. 68-104, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/70071 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 91).

Ademais, Lousada afirma que o conceito de mediação foi desenvolvido pensando-se nos serviços de referências das bibliotecas, mas que “[t]al concepção pode e deve ser apropriada pela Arquivologia, a fim de que se entenda de que forma o usuário e o arquivista lidam com a informação e de que forma o entorno social, as influências e os poderes interferem nessas relações”. (LOUSADA, 2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 125).

Acrescenta-se aos pensamentos de Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
), o uso do termo mediação pela Arquivologia também para a mediação dos processos de difusão do próprio conceito social de arquivo, uma linha tênue entre mediação da informação e mediação cultural, uma vez que “a mediação está presente em todos os fazeres do profissional da informação” como cita Almeida Júnior (2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 92). A interferência do arquivista no processo de mediação em relação aos usuários e não usuários pode produzir novos sentidos para ampliação do conceito social de arquivo, considerando este profissional não como agente social neutro, mas que deve atuar com ética profissional.

Autores de diferentes contextos históricos e sociais, como Lee (2019LEE, J. A. Para além dos pilares de evidências: explorando o terreno instável dos arquivos e suas metodologias. In: GILLAND. A. J.; MCKEMMISH, S.; LAU, A. J. (orgs.). Pesquisa no multiverso arquivístico. Salvador: 9Bravos , 2019. p. 317-344. ), Ketelaar (2019KETELAAR, E. Estudos sobre Arquivo. In: GILLAND. A. J.; MCKEMMISH, S.; LAU, A. J. (orgs.). Pesquisa no multiverso arquivístico. Salvador: 9Bravos, 2019. p. 219-260.), Lousada (2016LOUSADA, M. A mediação da informação e arquivologia: aproximações teóricas. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, João Pessoa, v. 11, n. 1, p. 117-134, 2016. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/3004 . Acesso em: 11 out. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
), Brandão e Borges (2016BRANDÃO, G.; BORGES, J. Mediação da informação arquivística: o papel do arquivista pós-custodial. RACIn: Revista Analisando em Ciência da Informação, João Pessoa, v. 4, n. especial, p. 118-136, 2016. ) congregam a ideia de que os arquivos são fenômenos complexos que requerem compreensão de suas dimensões sociais nas interações entre usuários (e não usuários), arquivista, arquivo e informação. Tem a mediação papel indispensável nesse processo e o arquivista, como profissional mediador, é influenciado pelo contexto social no qual está inserido, o que reverbera também em sua prática profissional.

O arquivista é um agente social que deve atuar em condições éticas favoráveis às suas práticas laborais, mas que, ao carregar valores de mundo (político, religioso, cultural, dentre outros), não pode ser visto como profissional neutro.

A ideia de neutralidade, tanto do mediador como do processo de mediação, torna-se claramente inapropriada e o momento da relação/ interação profissional da informação x usuário é estruturado não como algo estanque e fracionado no tempo, mas envolvendo os personagens como um todo, os conhecimentos conscientes e inconscientes, e o entorno social, político, econômico e cultural em que estão imersos. (ALMEIDA JÚNIOR, 2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 93).

A mediação da informação é um processo histórico-social aglutinado numa área do conhecimento composta por diferentes profissionais que interagem socialmente com seus distintos valores e interesses. “O momento em que se concretiza não é um recorte de tempo estático e dissociado de seu entorno. Ao contrário: resulta da relação dos sujeitos com o mundo”. (ALMEIDA JÚNIOR, 2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 93).

Ao fazer a analogia entre os esclarecimentos de Almeida Júnior (2009ALMEIDA JÚNIOR, O. F. Mediação da informação e múltiplas linguagens. Tendências da Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 89-103, 2009. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/119300 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) e a Arquivologia, pode-se evidenciar que o arquivista deve compreender o contexto histórico-social no qual está inserido para que consiga tecer uma compreensão sobre os possíveis impactos de seu fazer profissional na sociedade - para os usuários e não usuários de seus serviços de informação. Ademais, a mediação para difusão e ampliação do conceito de arquivo pode contribuir para inserir sujeitos esquecidos (ou negligenciados) dos circuitos da memória histórica chamada de “oficial” (contada nos livros de histórias e disseminadas socialmente) por sujeitos que dominam o debate e a opinião pública e, recorrentemente, os equipamentos culturais e informacionais. Sujeitos esses alinhados, explícita e implicitamente, às heranças do colonialismo e da escravidão, ao eurocentrismo e à construção de uma sociedade na qual o homem branco heterossexual é o expoente da vida social, não contemplando assim diferentes expressões de vivências humanas.

2.2 Difusão mediada em arquivos

Ao entender a mediação como uma prática social complexa inerente às interações sociais entre pessoas com diferentes valores, culturas e identidades, pretende-se neste artigo refletir acerca da difusão a partir da mediação cultural, para ampliação social do ser e do fazer do arquivo. Compreendendo o arquivo não somente como espaço de gestão e preservação de documentos, mas como instituição que afeta e é afetada pelo contexto histórico-social e cultural em movimento, bem como espaço constituído por diferentes embates e interesses de grupos sociais privilegiados e não privilegiados - ou subalternos, considerando nesta terminologia a perspectiva de Spivak (2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2010.).

Nesse diálogo, também lançamos mão das palavras de Cabral (2012CABRAL, R. M. Arquivo como fonte de difusão cultural e educativa. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 35-44, 22, 2012. ), que corrobora com nossa argumentação. Segundo ele,

Vale ressaltar que, quando se fala de uma prática que vai além da tecnicista, em momento algum se pretende diminuir a importância dessa dimensão, visto que sem ela não seria possível uma recuperação satisfatória dos documentos. O que está em pauta é algo mais, ou seja, uma prática que conjugue o lado técnico com o cunho social da instituição arquivística, por meio de uma política voltada para o público, atraindo-o de forma que compreenda o arquivo como espaço de coleta, preservação, mas também como lugar de criação de conhecimentos, de lazer cultural. (CABRAL, 2012CABRAL, R. M. Arquivo como fonte de difusão cultural e educativa. Acervo, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 35-44, 22, 2012. , p. 37).

Nesse contexto, a mediação para difusão em arquivos é compreendida como dispositivo potente para ampliação social destas instituições, uma vez que pode contribuir para inserção de novos sujeitos não inseridos nesses espaços, como as pessoas subalternizadas histórica e socialmente, como os LGBTQIAP+, negros, indígenas etc.

A mediação no processo de difusão em arquivos em sua acepção colaborativa, participativa e de ampliação de olhares sobre as práticas arquivísticas, os acervos custodiados e não custodiados nesses espaços, a diversidade e pluralidade da população brasileira, a valorização das diferentes memórias coletivas e individuais, encontra respaldo no que Macedo e Silva (2015MACEDO, N. O.; SILVA, J. L. C. Mediação no campo da ciência da informação. Revista Folha de Rosto, Juazeiro do Norte, v. 1, n. 1, p. 64-74, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/40520 . Acesso em: 11 out. 2022.
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) desenvolveram sobre mediação sociointeracionista, ou seja, a mediação deve se basear na história e no contexto social (processos históricos e sociais), na cultura (compreender crenças, valores, ideologias) e no sujeito (suas intervenções e interações em sociedade).

Macedo e Silva (2015MACEDO, N. O.; SILVA, J. L. C. Mediação no campo da ciência da informação. Revista Folha de Rosto, Juazeiro do Norte, v. 1, n. 1, p. 64-74, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/40520 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 66) compactuam com uma mediação sociointeracionista na qual

O que se torna mais relevante é o fato de que a mediação encontra-se também no seio das ações em torno da valorização do ser enquanto participante de uma realidade social que contribui para construção por meio da interação, o que promove a valorização das diferenças dos indivíduos e das relações sociais, como percebida na visão da teoria crítica, no construtivismo e no sócio interacionismo. Como bem completa Muzkate (2008, p. 12), 2 2 MUZKATE, M. E. Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo: Sumus, 2008. Apud Macedo e Silva (2015). “a mediação implica um saber, uma episteme, resultante de vários outros saberes, cuja transversalidade fornecerá o instrumental para uma prática que pressupõe a planificação e aplicação de uma série de passos ordenados no tempo”.

A valorização do ser no processo de difusão mediada em arquivos encontra aderência nas diferentes percepções sobre o espaço social no qual se apresentam e são representados em suas convergências e divergências. Numa proposta de diálogo contínuo com diferentes grupos sociais - usuários e não usuários dos serviços e produtos desenvolvidos pelos arquivos, compreendendo a territorialidade no qual este equipamento de memória e cidadania está inserido, num arquivo que preserva o passado, mas que também representa o presente e se constitui para o futuro.

Pode-se pensar então no profissional de arquivo como mediador em todos os seus processos laborais, desde a produção documental, passando pelo tratamento do acervo até a difusão para acesso. A mediação para difusão pode ser vista como dispositivo de sua função social e para contribuir para ampliação da representação social do arquivo. O arquivista mediador pode agregar os ‘saberes populares’ sobre arquivos à sua teoria e prática especializada de modo a ampliar o olhar sobre o mesmo, corroborando com uma prática profissional colaborativa. O arquivista deve atentar-se também para os lugares de fala de grupos sociais negligenciados historicamente (a população indígena, por exemplo) pelas instituições culturais e de memória, como são os arquivos, exercendo a escuta dessas falas de modo a transformar os arquivos em espaços de difusão dessas pessoas - com eventos, história oral, comissão para discussão de acervos pessoais e privados a serem custodiados, criação de comissões de diversidades, etc. A proposição de práticas de mediação alinhadas ao território no qual os arquivos se inserem, ao contexto histórico, social e cultural, colabora para fomentar as ações de difusão em arquivos, especialmente da mediação no processo curatorial para produção de conteúdo sobre arquivos e seus acervos, uma vez que os arquivos têm uma responsabilidade social que extrapola a documentação que custodiam e as próprias acepções ideológicas, políticas e sociais dos profissionais que nestes atuam.

Ao citar Rousseau e Couture (1998)3 3 ROUSSEAU, J.Y.; COUTURE, C. Os Fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Publicações Dom Quixote,1998. Apud. Martendal e Silva (2020). , Martendal e Silva (2020MARTENDAL, F. F.; SILVA, E. C. L. Difusão arquivística e suas expressões nos cursos de graduação em arquivologia no brasil. Informação & Informação, Londrina, v. 25, n. 4, p. 256-279, 2020. DOI: 10.5433/1981-8920.2020v25n4p256. Acesso em: 11 out. 2022.
https://doi.org/10.5433/1981-8920.2020v2...
) esclarecem que o termo difusão na Arquivologia remonta ao início do século XIX, porém ainda carece de discussão teórica e compreensão em relação às práticas arquivísticas e suas dimensões sociais. Na mesma linha, Rockembach (2015ROCKEMBACH, M. Difusão em arquivos: uma função arquivística, informacional e comunicacional. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 98-118, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/41739 .Acesso em: 11 out. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
, p. 105) evidencia que a “a difusão é algo complexo que envolve uma série de fatores e áreas de estudo” e que a discussão sobre esse tema deve considerar o usuário da informação, o conteúdo a ser difundido e o uso de tecnologias de informação e comunicação. Acrescenta-se ao pensamento do autor a importância do processo de mediação entre os agentes envolvidos (profissional de arquivo, usuários e instituição) na curadoria de conteúdo em arquivos, especialmente para difusão do conceito social de arquivo que vai além do fazer técnico especializado arquivístico e dos serviços de referência.

Martendal e Silva (2020MARTENDAL, F. F.; SILVA, E. C. L. Difusão arquivística e suas expressões nos cursos de graduação em arquivologia no brasil. Informação & Informação, Londrina, v. 25, n. 4, p. 256-279, 2020. DOI: 10.5433/1981-8920.2020v25n4p256. Acesso em: 11 out. 2022.
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) definem difusão como um processo com participação ativa do arquivista e do usuário da informação, o que faz sentido ao pensar no processo de difusão mediada e colaborativa para disseminação de conteúdo sobre o conceito de arquivo, do acervo arquivístico, do fazer técnico, etc. Ou seja, pensar a difusão mediada numa perspectiva não somente centrada no fazer técnico da área e nos serviços de referência, mas também para conhecer os diferentes olhares e entendimentos sobre o arquivo pela sociedade, propondo um diálogo entre conhecimento social sobre arquivo (senso comum) e o conhecimento especializado (acadêmico), retroalimentando a teoria e a prática da área.

Ao considerarem os aspectos sociais, integradores, orientadores e disseminadores, as autoras afirmam que

Podemos encontrar a difusão em múltiplos espaços do universo arquivístico, também podemos identificá-la como um processo que contempla diferentes estratégias para poder mostrar o que é um arquivo, para quê serve, quem é o arquivista e que trabalho realiza. (MARTENDAL; SILVA, 2020MARTENDAL, F. F.; SILVA, E. C. L. Difusão arquivística e suas expressões nos cursos de graduação em arquivologia no brasil. Informação & Informação, Londrina, v. 25, n. 4, p. 256-279, 2020. DOI: 10.5433/1981-8920.2020v25n4p256. Acesso em: 11 out. 2022.
https://doi.org/10.5433/1981-8920.2020v2...
, p. 262).

Aproximar-se do cidadão através das estratégias de difusão que demonstrem os arquivos como espaços multifacetados (de memória, identidade, cidadania, fruição, conhecimento etc.) pode contribuir para construção de uma imagem abrangente e positiva socialmente sobre estas instituições de memórias. Pois os arquivos apresentam dimensões sociais ainda em discussão que extrapolam os direitos expressos nas informações consubstanciada nos documentos custodiados, de lugares com fragmentos de memórias indispensáveis para a sociedade, de antagonismo histórico e social, de junções e rupturas, de diferentes sentidos.

Duff et al. (2013DUFF, M. W. et al. Social justice of archives: a preliminary investigation. Archive Science, Switzerland, v. 13, p. 317-348, 2013.Disponível em: DOI 10.1007/s10502-012-9198-x. Acesso em: 2 maio 2022.
https://doi.org/10.1007/s10502-012-9198-...
) afirmam que

Os impactos da ação de justiça social, incluindo aqueles com componente arquivístico, podem ser positivos ou negativos (e esse impacto pode ser de diferentes grupos). É importante ir além de uma visão dos impactos arquivísticos nas causas da justiça social como sendo intrinsecamente “positivos”. As ações que beneficiam um grupo podem ter efeitos negativos intencionais ou não intencionais para outro. Reconhecemos também que embora estejamos interessados ​​em demonstrar os impactos da justiça social dos arquivos, em algumas circunstâncias, arquivos e arquivistas podem ser empregados para reduzir a justiça social para um grupo social. (DUFF et al., 2013DUFF, M. W. et al. Social justice of archives: a preliminary investigation. Archive Science, Switzerland, v. 13, p. 317-348, 2013.Disponível em: DOI 10.1007/s10502-012-9198-x. Acesso em: 2 maio 2022.
https://doi.org/10.1007/s10502-012-9198-...
, p. 339, tradução nossa).

Tendo como ponto de atenção a justiça social, é indispensável pensar os arquivos como espaços de fala para grupos sociais que foram (e ainda são) subalternizados socialmente, espaços para serem ouvidos e representados nos acervos custodiados e nas ações de difusão. É indispensável compreender as dimensões acerca das reivindicações contemporâneas em relação às memórias e identidades das pessoas subalternizadas no processo histórico e social. Situando o lugar de fala descrito por Longhini (2021LONGHINI, G. D. N. Sobre silêncio e alaridos do lugar de fala. In: ALVES, B. E. R.; FERNANDES, F. B. M. (orgs.). Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2021. p. 50-59. , p. 57)4 4 BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 2, n. 11, p. 11-42, 1998. Apud Longhini (2021). , ao citar os estudos de Butler (1998), evidencia-se a necessidade de pensar sobre os “lugares de que se parte e pensar criticamente os efeitos da enunciação, tendo em vista os regimes que tornam certas falas mais ou menos audíveis que outras”, como ocorre na construção social da memória coletiva. Os arquivos, como lugares de escuta, devem ser refletidos no processo de mediação do arquivista em todas as suas práticas, serviços e produtos ofertados a sociedade, especialmente para a produção de conteúdo para difusão da própria representação social desses espaços, assim como das memórias silenciadas por quem deteve o ‘poder’ de representação das narrativas históricas. Dessa forma, será possível a ampliação do reconhecimento social dos arquivos.

3 Uma campanha para a ampliação do reconhecimento social dos arquivos

Tendo já sido exposto o arcabouço teórico sobre o papel do arquivo e dos profissionais que atuam em arquivos, em diálogo com a sociedade na qual estão inseridos, convidamos agora o leitor a fazer uma pequena reflexão, para fins didáticos e de contextualização sobre a linguagem escolhida para a campanha ‘Arquivo nosso de cada dia’. Dentre os espaços de guarda informacional que tradicionalmente povoam o imaginário social, considerando os arquivos, as bibliotecas e os museus, quais seriam os mais lembrados pelas pessoas?

Aqui propomos uma analogia despretensiosa: no cinema norte americano, temos franquias como Uma noite no museu (2006UMA NOITE no Museu 1. Direção: Shawn Levy. Estados Unidos: 1492 Pictures; 21 Laps Films; Ingenious Film Partners, 2006. 1 vídeo (154 min.). , 2009 UMA NOITE no Museu 2. Direção: Shawn Levy. Estados Unidos: 1492 Pictures; 21 Laps Films; Ingenious Film Partners, 2009. 1 vídeo (105 min.). e 2014UMA NOITE no Museu 3: o segredo da tumba. Direção: Shawn Levy. Estados Unidos: 1492 Pictures; 21 Laps Films; Ingenious Film Partners , 2014. 1 vídeo (117 min.). ) e bibliotecas são a morada de anjos em Cidades dos anjos (1998CIDADE dos Anjos. Direção: Brad Silberling. Produção: Charles Roven. Estados Unidos: Warner Bros, 1998. 1 vídeo (114 min.).), mas os arquivos, em muitos momentos são retratados como espaços obscuros e secretos, cenários de crimes como em Arquivo X (1998ARQUIVO X - o filme. Direção de Rob Bowman. Roteiro: Chris Carter. Estados Unidos: FOX, 1998. 1 vídeo (121 min.). ) e Anjos e demônios (2009ANJOS e Demônios. Direção: Ron Howard. Produção: Brian Grazer. Estados Unidos: Sony Pictures, 2009. 1 vídeo (138 min). ). Em outras palavras: na representação simbólica e de massa, a partir da representação e do imaginário trazido pelo cinema norte-americano, poderíamos inferir que os arquivos seriam os espaços menos atrativos.

Vale apontar, ainda, que a linguagem do audiovisual, aqui representada pelo universo hollywoodiano - tradicional ferramenta de propaganda cultural5 5 A esse respeito é importante lembrar o potencial do soft power utilizado tanto pela indústria norte-americana de entretenimento quanto, mais recentemente, na propaganda cultural de países asiáticos, como a Coréia do Sul, exemplificada no fenômeno musical do K-POP e do Oscar 2019 para o filme Parasita, o primeiro em língua não inglesa a ser premiado. Soft power é “a habilidade de se conseguir o que se quer pela atração e não pela coerção ou por pagamentos. Surge da atratividade de um país por meio de sula cultura, de sua política e de seus ideais” (NYE, 2005 apud BALLERINI, 2017, p.17). Ver: NYE, J. S. Soft power: the means to success in world politics. New York:Public Affairs Books, 2005. Apud Ballerini (2017). - tem se democratizado no ambiente das redes.

Na Sociedade da Informação que, cada vez mais, se vê desafiada pela intensa produção informacional na Internet, a busca por vídeos - sejam eles de longa ou curta duração, disponíveis em plataformas de compartilhamento de filmes, como Youtube, redes sociais, como o TikTok, além de diversos serviços de streaming disponíveis - surge como uma nova forma de acessar a informação e com ela aprender.

Embora a formação profissional fosse um limitador para a produção de conteúdo em rede, dentre tantos problemas e dilemas pelos quais fomos expostos durante a pandemia de covid-19, não nos pareceu intimidador buscarmos usar a linguagem audiovisual para, além de influenciar consumidores como sabemos ser um dos padrões atuais, tentarmos conscientizar e estimular cidadãos, potencializando a importância da guarda e preservação de seus documentos pessoais em suas casas, especialmente no momento em que muitos não poderiam sair delas.

Para o cidadão comum - valendo dizer que se tratava do público alvo da campanha “Arquivo nosso de cada dia” - é fato que apesar do desconhecimento de grande parte das pessoas da existência dos arquivos, todas elas detêm documentos pessoais consigo, considerando nesse conjunto desde seus documentos probatórios, como Registro Geral (RG) e Cadastro de Pessoal Física (CPF), até documentos de valor afetivo, como álbuns fotográficos de família, por exemplo. Em suma: nem todos têm uma biblioteca ou uma coleção de objetos, mas espera-se que em sociedades estruturadas e democráticas, todos os envolvidos, em maior ou menor grau, detenham um arquivo pessoal. Tendo isso em mente, a campanha proposta visou, especialmente, demonstrar e valorizar a importância da guarda de documentos - e exatamente na pluralidade que o termo moderno de “documento” abrange - tanto para fins probatórios como também para a dimensão afetiva (e espera-se, sobretudo, inclusiva) da memória e da história.

Para além do não reconhecimento dos espaços de guarda como os arquivos e de sua importância, a campanha deparou-se com outro desafio: demonstrar aos usuários dos serviços do APESP a importância da preservação de seus próprios documentos, transformando simbolicamente as casas em “arquivos-domésticos” e convidando os espectadores da campanha a tornarem-se aquilo que Cox (2017COX, R. J. Arquivos pessoais: um novo campo profissional - leituras, reflexões e reconsiderações. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2017. , p.7) chama de “cidadãos arquivistas”, conscientes do valor de suas ações. Para isso, foram convidados arquivistas, documentalistas, conservadores e apaixonados por história e memória, para, em linguagem acessível e acolhedora, estimular boas práticas de organização e preservação de arquivos.

Como apresentado na introdução deste artigo, o processo de desenvolvimento curatorial da campanha contou com a mediação de uma equipe do APESP, com colaboradores especialistas em organização e preservação de arquivos de outras instituições parceiras e usuários e não usuários dos serviços e produtos informacionais do APESP.

Por trás dessas ações, para além da sensibilização de todos os envolvidos sobre a importância da preservação de documentos e da valorização dos arquivos como espaços institucionalizados de guarda, envolveu-se outra questão sensível a todos os organizadores, que é o empoderamento dos atores envolvidos. Nesse sentido, o conceito de empoderamento utilizado é o de Sen (2010SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010.) que, de forma bem resumida aqui, podemos apontar como o acesso ao conhecimento como prática libertadora.

O modelo de vídeo escolhido para a produção foi ‘inspirado’ nos chamados tutoriais disponíveis na Internet, especialmente em redes como o YouTube.

E por que esse movimento? Segundo Cox (2017COX, R. J. Arquivos pessoais: um novo campo profissional - leituras, reflexões e reconsiderações. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2017. ),

A era das redes na qual vivemos, com sua profusão de aparelhos sem fio como os telefones celulares e os palmtops com múltiplas funções, está gerando certamente alguns difíceis desafios. Mesmo assim, a rede mundial dos computadores criou uma nova variedade de espaço para os arquivos pessoais que talvez faça frente a seus pontos negativos. Especialistas nos campos literário e histórico, particularmente aqueles com viés pós-moderno, vêm dedicando um tempo considerável à compreensão de textos e à natureza do arquivo. Tais especialistas constroem um modelo teórico, mas ainda assim atraente, para podermos nos ocupar com arquivos pessoais e familiares e compreendê-los. Tudo isso se torna complicado porque os arquivos e os arquivistas não são entendidos de forma completa na sociedade. Noções cambiantes acerca dos arquivos criadas pelos próprios especialistas, bem como o reforço na percepção popular daquilo que os arquivos representam, fazem desta uma tarefa permanentemente árdua. Os guias e comerciantes que divulgam produtos para ajudar os indivíduos a cuidar de seus documentos pessoais, a escrever histórias e memórias de família e a realizar outras tarefas semelhantes sugerem novas possibilidades, mas apenas se pudermos deduzir que os arquivistas estão envolvidos (seja na produção destes guias, seja na consultoria a seus autores). A fim de lidarem eficazmente com os arquivos pessoais e familiares, os arquivistas precisam explorar novas maneiras de se conectar com o público. Em lugar de proteger e policiar seu campo de ação, eles precisam trabalhar para criar um grupo melhor de arquivistas amadores bem-informados. Eles precisam transformar sua própria cultura, passando do recolhimento e do arquivamento para a colaboração e a assistência. Isso poderia abrir novas possibilidades de popularização, de uma forma mais acessível, da missão arquivística. Em termos específicos, os arquivistas precisam aprender com novas áreas de pesquisa, como a gestão de informação pessoal e a pesquisa especializada a respeito da história do arquivo pessoal e do comunitário, além de expandir seus próprios horizontes de atividade e de cooperação, existem grandes oportunidades e possibilidades tanto no presente quanto no futuro. (COX, 2017COX, R. J. Arquivos pessoais: um novo campo profissional - leituras, reflexões e reconsiderações. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2017. , p. 15-16).

Cox (2017COX, R. J. Arquivos pessoais: um novo campo profissional - leituras, reflexões e reconsiderações. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2017. ) aponta com clareza os desafios dos arquivos e de seus profissionais, especialmente nesse século XXI. E dentre eles, novamente destacamos, aquilo que já foi anteriormente apontado: a pequena quantidade de trabalhos dedicados à mediação e à difusão em arquivos.

A Biblioteconomia e a Museologia, de certa forma, dedicaram mais atenção à mediação da informação e à mediação cultural. No caso da Biblioteconomia, além da mediação existem também os chamados estudos de usuários, que apesar de serem disciplinas distintas, estão interconectadas. No caso da Museologia, identificam-se os movimentos que puseram em questão a função social dos museus.

Por parte da Arquivologia, detecta-se muitas vezes que uma possível justificativa para a ocorrência reduzida de estudos de usuários e de público, mais presentes nas outras áreas, se dá devido à especificidade e especialidade do público que comumente busca e frequenta os arquivos. A exemplo disso, Almeida (2016ALMEIDA, M. C. B. Arquivos, bibliotecas, museus: convergências. Revista Conhecimento em Ação, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 162-185, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.47681/rca.v1i1.2737 . Acesso em: 11 out. 2022.
https://doi.org/10.47681/rca.v1i1.2737...
) pontua a especialidade do público que busca pelos arquivos:

O público do arquivo é predominantemente voltado à pesquisa. Por essa razão, exige uma mediação mais direta. Em geral se exige agendamento de visita e a própria busca requer, quase sempre, a mediação de um profissional devido à especificidade dos instrumentos de busca existentes. Além disso, alguns fundos têm restrições de consulta e reprodução e os documentos só podem ser consultados na presença de um profissional. À exceção dos historiadores, que analisam conjuntos para achar uma informação que lhes interesse, os usuários de arquivo quase sempre têm um problema específico ou uma finalidade de uso em mente. (ALMEIDA, 2016ALMEIDA, M. C. B. Arquivos, bibliotecas, museus: convergências. Revista Conhecimento em Ação, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 162-185, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.47681/rca.v1i1.2737 . Acesso em: 11 out. 2022.
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, p. 170).

Entretanto, a campanha “Arquivo nosso de cada dia” buscou ir além desse público preconcebido. Optou-se por expandir o conceito de arquivo bem como ampliar a proposta de que novos “guardiões de documentos” surgissem.

Neste século XXI quando fomos atropelados por uma pandemia de proporções globais, acreditamos que era o momento dos arquivos e de seus profissionais ousarem e pensarem para além das caixas de guarda de documentos, estando abertos às experiências das áreas afins, buscando ocupar lugares decisórios de gestão da informação na Sociedade da Informação, e nada melhor do que começar com o arquivo de cada cidadão dentro de suas próprias casas. Expandir o conceito de arquivo visou, também, abraçar a multiplicidade e a diversidade dos membros sociais que, letrados ou não, em papel ou em computadores, produzem documentos audiovisuais, sonoros, iconográficos ou textuais, de modo a registrarem e preservarem suas próprias histórias e memórias.

Como profissionais de arquivos, os organizadores da campanha demonstraram saber das limitações de espaço, recursos humanos e investimentos das chamadas “instituições oficiais” arquivísticas. Assim, inspirada no conceito do total archives (SOCIETY OF AMERICAN ARCHIVISTS, 2022SOCIETY OF AMERICAN ARCHIVISTS. Total archives. In: SOCIETY OF AMERICAN ARCHIVISTS. Dicionary of archives terminology, Chicago, 2022. ), a proposta da campanha visou dividir o conhecimento para multiplicar os protocolos de organização e preservação. Nenhuma instituição do mundo seria capaz, neste momento, de recolher toda a produção e a profusão informacional que temos produzido. Entretanto, se cada um de nós, produtores de documentos, soubermos da importância da guarda de nossos próprios documentos, para a obtenção de direitos e tendo como universal o direito à memória, já teremos dado um passo mais efetivo para o necessário reconhecimento e valorização dos arquivos. Fechamos com as sempre pertinentes palavras de Bellotto (1986BELLOTTO, H. L. Arquivos para administração e para a história. Ágora: Revista do Curso de Arquivologia da UFSC, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 10-13, 1986. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/12500 . Acesso em: 18 jun. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
), que nos lembra:

Um Arquivo Histórico não se constrói por acaso. Não lhe cabe apenas esperar que lhe sejam enviadas amostragens aleatórias. A História não se faz com documentos que nasceram para ser históricos: com documentos que só informem sobre o ponto inicial ou o ponto final de algum ato administrativo decisivo. A História faz-se com uma infinidade de papéis cotidianos, inclusivamente com os do dia-a-dia administrativo, ademais das outras fontes não-governamentais. As informações sacadas viabilizarão aos historiadores as visões gerais ou parciais da sociedade; de qualquer forma, terão que poder contar com todos os elementos possíveis, não só os sacados dos documentos de efeito, que dariam imagens distorcidas dos fatos e dos comportamentos. (BELLOTTO, 1986BELLOTTO, H. L. Arquivos para administração e para a história. Ágora: Revista do Curso de Arquivologia da UFSC, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 10-13, 1986. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/12500 . Acesso em: 18 jun. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
, p. 12).

A campanha visou conscientizar os atores envolvidos na fundamental tarefa da gestão documental, seja na apresentação de depoimentos dos trabalhos especializados nas instituições arquivísticas, seja no convite para que cada “arquivista-amador” se reconheça como um ponto importante na costura do intrincado tecido da história e da memória. Passaremos agora a apresentar, de forma pormenorizada, o estudo de caso da realização da campanha e a análise dos dados obtidos.

4 A experiência da campanha “Arquivo nosso de cada dia” do Arquivo Público do Estado de São Paulo

Como já dito, a ideia da campanha partiu da necessidade do APESP de se aproximar de seus usuários, no momento de distanciamento social e, também, do interesse em escutar suas falas e experiências individuais e coletivas, sobre memória e afeto, ao acessarem seus arquivos pessoais. Além disso, também ofertar conteúdo que pudesse auxiliá-los na organização e preservação de seus arquivos pessoais. Para execução do projeto foram produzidos vídeos curtos, com depoimentos de até cinco minutos publicados quinzenalmente no canal do YouTube do APESP (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Playlist da Campanha #ArquivoNossoDeCadaDia. São Paulo: APESP, out. 2020. 1 vídeo (2:57 min) ). Além dos vídeos produzidos para a campanha foram produzidos um vídeo de apresentação institucional do projeto e duas lives (lançamento da campanha e live “Tudo isso é arquivo pessoal?”). Para melhor planejamento e produção dos vídeos da campanha, foram delineados três eixos temáticos: Dicas de especialistas; reflexões de colaboradores; relatos de experiências (detalhados no Quadro 1).

O processo de curadoria para produção dos vídeos foi mediado por profissionais do DPDA/APESP num diálogo frequente com os colaboradores, profissionais de arquivo e usuários e não usuários do APESP. Os conhecimentos, os saberes e os sentidos sobre arquivos dos cidadãos foram acolhidos como premissa do projeto. O ponto de interferência na mediação foi o pedido para que o cidadão pudesse colaborar, gravando um depoimento sobre sua relação com os seus arquivos pessoais, que os especialistas gravassem em linguagem acessível os vídeos com as dicas de como organizar e preservar os arquivos em casa por qualquer pessoa e que as reflexões sobre memórias fossem em linguagem acessível.

Quadro 1 -
Eixos temáticos/objetivos para produção de vídeos e título dos conteúdos produzidos

4.1 Análise de resultados da campanha

De forma geral, com base nas estatísticas do canal do YouTube processadas após 18 meses de vigência da campanha, podemos afirmar que os 38 vídeos publicados (17 dicas, 12 reflexões, nove experiências) e as duas transmissões ao vivo foram visualizadas cerca de 17,4 mil vezes, atingindo um total projetado de 14,7 mil espectadores únicos, que geraram a somatória de mais de um mil e três horas de audiência desse conteúdo, conforme demonstrado nos Gráficos 1 e 2 (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2022ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Painel do YouTube Studio: estatísticas do canal. São Paulo, jun.2022. YouTube: Arquivo Público do Estado de São Paulo @arquivopublicosp.).

Ao comparar com os dados do Gráfico 3, é possível diferenciar dois blocos com características bem diferentes: (i) os vídeos curtos (de três a cinco minutos) sobre dicas, reflexões ou experiências atingiram mais de 13,2 mil espectadores únicos (mais de 90% do público da campanha) com tempo médio de dois minutos e oito segundos assistidos por vídeo; (ii) e as transmissões de eventos com temática mista e mais de uma hora de duração, que apesar de alcançar pouco menos de um, quatro mil espectadores, geraram de 822,7 horas de conteúdo consumido (mais de 60% do tempo de exibição da campanha).

Gráfico 1 -
Quantidade de vídeos por categoria

Gráfico 2 -
Espectadores únicos por categoria

Gráfico 3 -
Tempo de exibição por categoria (h)

Gráfico 4 -
Curtidas e comentários por categoria

Alguns vídeos acabaram se destacando pelos números alcançados no período estudado. A dica da arquivista Maria Fernanda Mendes e Freitas sobre “Como organizar meus documentos em casa?” foi o vídeo mais visualizado, por 1.735 espectadores. O vídeo que mais trouxe inscritos para o canal foi “Apresentação institucional da campanha” com 37 novos seguidores. A publicação com maior tempo de exibição, com 528,9 horas assistidas, foi a live "Tudo isso é arquivo pessoal?", que também lidera as estatísticas de curtidas (119) e comentários (dez).

Tendo em vista a proposta desta campanha, de ser um primeiro contato com o mundo dos arquivos para muitos cidadãos, que teriam despertado o interesse por mais informações sobre organização e preservação de documentos e coleções, o indicador “novas inscrições” no canal do APESP no YouTube (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Playlist da Campanha #ArquivoNossoDeCadaDia. São Paulo: APESP, out. 2020. 1 vídeo (2:57 min) ) acabou sinalizando que todos os vídeos da campanha juntos foram responsáveis por trazer 369 novos seguidores ao canal, ou seja, um incremento de 18% sobre o total de inscritos no canal ao início da campanha.

Quantitativamente, cada vídeo curto, em média, foi assistido por 333 espectadores únicos e teve 43 curtidas e 2,4 comentários; já as lives atingiram 101 e 5,5 respectivamente. Analisando esses indicadores com os vídeos agrupados por eixo temático, conforme o Gráfico 4, podemos destacar que os vídeos de dicas foram assistidos por mais pessoas (média de 392), enquanto os de reflexões foram os que mais geraram comentários (2,8, em média), conforme demonstrado no Quadro 2. Já os vídeos de experiências tiveram mais curtidas (média de 54), confirmando o resultado esperado para cada tipo de vídeo: reflexões motivarem discussões, dicas gerarem compartilhamentos/ inscrições e experiências trouxeram respostas emotivas.

Quadro 2 -
Títulos dos vídeos publicados no YouTube do APESP e comentários dos cidadãos

Os comentários das pessoas que assistiram aos vídeos no canal do YouTube (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Playlist da Campanha #ArquivoNossoDeCadaDia. São Paulo: APESP, out. 2020. 1 vídeo (2:57 min) ) demonstraram a importância das instituições arquivísticas criarem espaços para o cidadão falar sobre os seus conhecimentos, sentidos e afetos em relação aos seus arquivos pessoais, em especial como afetam e são afetados ao ler ou ver um documento pessoal. A fotografia, por exemplo, é um documento que traz à tona diferentes olhares e afeições ao cidadão, pois a imagem afetiva da família e de amigos em fotografias, na pandemia, demonstrou sua potência e a importância da sensibilização dos arquivos em relação a esse fenômeno social.

Os depoimentos demonstraram como é potente promover espaço de fala para os cidadãos de diferentes grupos sociais, especialmente dos subalternizados histórica e socialmente, como as pessoas LGBTQIAP+, negras etc. A recepção dos usuários do APESP ao se verem representados por uma fala de outro cidadão (não especialista em arquivos) demonstrou ser necessária e enriquecedora para a difusão do Arquivo, bem como para pensar os processos de mediações para difusão de conteúdos enquanto instrumentos indispensáveis para a ampliação da representação social dos arquivos. A mediação para difusão feita interativamente entre profissionais de arquivo, instituição arquivística e usuários e não usuários de arquivos é potente socialmente para (res)significar o arquivo como espaço de memória não só do passado, mas de memória e cidadania do presente e em consonância a sociedade contemporânea.

A contribuição dos profissionais de arquivo, ao produzirem vídeos com dicas simples para organização e preservação de arquivos pessoais em casa, mostrou que o conhecimento arquivístico está relacionado ao dia a dia do cidadão e aguça um olhar ampliado sobre a função social do arquivo.

5 Considerações finais

A literatura levantada e o caso estudado nesse artigo demonstraram a necessidade do empreendimento de novos estudos teóricos e práticos acerca da mediação como agente potencializador da difusão em arquivos e, consequentemente, da sua representação social ampliada.

Ficaram evidenciados os esforços de mediação para difusão da campanha "Arquivo nosso de cada dia", realizada pelo APESP durante a pandemia da covid-19. A proposta estimulou que profissionais de diversas áreas especializadas no trabalho e tratamento de arquivos adequassem seu conhecimento ao formato de dicas e reflexões, em vídeos curtos, com linguagem acessível a usuários e não usuários de arquivos. Além disso, a campanha abriu espaço para a recepção de relatos de experiências de cidadãos, que apresentaram suas práticas aplicadas aos seus próprios arquivos pessoais e/ ou familiares.

Os resultados demonstraram o envolvimento de uma audiência de mais de 15 mil pessoas, que efetivamente assistiram aos vídeos da campanha, gerando comentários/discussões acerca de temas como organização e preservação de arquivos pessoais, além de conseguir a conversão de mais de 360 novos seguidores ao canal corporativo no YouTube (ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2020ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Playlist da Campanha #ArquivoNossoDeCadaDia. São Paulo: APESP, out. 2020. 1 vídeo (2:57 min) ), onde novos vídeos eram lançados em média a cada 15 dias.

Apesar da pouca bibliografia localizada nas Ciências da Informação e na Arquivologia, em especial, e da ousadia da proposta feita por profissionais que estavam um pouco distantes dos experts em audiovisual, os números da campanha demonstram a importância da criação de espaços mais dinâmicos de troca com os usuários, a partir do lugar que ocupam as instituições arquivísticas.

Muitas vezes, os arquivos e os documentos povoam, no imaginário popular, um lugar estático, a tal ponto de serem chamados de “arquivo morto”. Para além dos depósitos de papel, ligados à burocracia que repele o cidadão comum, acredita-se que ações como a apresentada proporcionaram uma dupla reflexão pertinente tanto àqueles que atuam junto aos arquivos, quanto àqueles que, de alguma forma, potencializados pela situação da pandemia, puderam refletir sobre como os arquivos podem ser espaços de trocas de experiências, sejam elas educacionais, patrimoniais, cidadãs e, sobretudo, afetivas. Espera-se que esses mesmos usuários se dirijam aos arquivos, seja tal interação presencial ou virtual, buscando reconhecerem-se neles. Que para além do que o “[...] consagrado arquivista francês Braibant [...]” chamou de “arsenal da Administração” e “celeiro da História” (BELLOTTO, 1986BELLOTTO, H. L. Arquivos para administração e para a história. Ágora: Revista do Curso de Arquivologia da UFSC, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 10-13, 1986. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/12500 . Acesso em: 18 jun. 2022.
http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapc...
, p. 10), os arquivos sejam ativos e estejam atentos às inquietações da sociedade contemporânea. Que o presente estudo possa inspirar outras instituições e profissionais a abrirem-se para experiências semelhantes.

Parecer de avaliação

Os pareceres de avaliação deste artigo estão disponíveis em: https://seer.ufrgs.br/index.php/EmQuestao/article/view/127820/89493; https://seer.ufrgs.br/index.php/EmQuestao/article/view/127820/89494

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  • Declaração de autoria:

    Concepção e elaboração do estudo: Antonio Gouveia de Sousa, Elisabete Marin Ribas, Flávio Ricci Arantes. Coleta de dados: Antonio Gouveia de Sousa, Flávio Ricci Arantes. Análise e interpretação de dados: Antonio Gouveia de Sousa, Flávio Ricci Arantes. Redação: Antonio Gouveia de Sousa, Elisabete Marin Ribas, Flávio Ricci Arantes, Marcia Cristina de Carvalho Pazin Vitoriano. Revisão crítica do manuscrito: Dra. Marcia Cristina de Carvalho Pazin Vitoriano.
  • PARECER C

  • PARECER F

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    28 Mar 2023
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