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NOTAS SOBRE UMA POSSÍVEL TEORIA DA REVASCULARIZAÇÃO DISCURSIVA

RESUMO

Neste texto, com base nos trabalhos de Gayatri C. Spivak (2010 [1985]) acerca da possibilidade de os sujeitos subalternos falarem e serem ouvidos e de Marie-Anne Paveau (2019a, 2019b, 2020) no tocante à teoria da ressignificação discursiva, buscamos propor a categoria de revascularização discursiva. À luz desta categoria discursiva, cujo primeiro termo advém da medicina inicialmente, analisamos um pequeno conjunto de práticas discursivas engendradas por sujeitos em situação de vulnerabilidade social, que a partir de uma obstrução discursiva, de um problema, criam em suas redes sociais, percursos alternativos para a resolução/desobstrução de seus problemas. Os dados não são muito numerosos, mas a discussão empreendida a partir desses dados mostra-nos um caminho pertinente e relevante para essa categoria nos ajudar a refletir sobre a possibilidade de intervir e contribuir para a construção de uma sociedade mais decente (MARGALIT, 2007).

vulnerabilidade social; discurso da web; ressignificação; revascularização

ABSTRACT

In this text, based on the work of Gayatri C. Spivak (1988 [1985]) about the possibility for subordinate subjects to speak and be heard and in Marie-Anne Paveau (2019a, 2019b, 2020) regarding the theory of discursive resignification, we seek to propose the category of discursive revascularization. In the light of this discursive category, whose first term comes initially from medicine, we analyze a small set of discursive practices engendered by subjects in a social vulnerability situation, who, from a discursive obstruction, of a problem, create, in their social networks, alternative paths for to solve/desobstruct their problems. The data are not very numerous, but the discussion undertaken from these data shows us a pertinent and relevant path for this category to help us reflect on the possibility of intervening and contributing to the construction of a more decent society (MARGALIT, 1996).

social vulnerability; web discourse; resignification; revascularization

Aqueles que agem e lutam deixaram de ser representados, seja por um partido ou um sindicato que se arrogaria o direito de ser a consciência deles. Quem fala e age? Sempre uma multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos grupos. Não existe mais representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede [discursiva ou tecnodiscursiva].

Deleuze (2004)DELEUZE, G. Os intelectuais e o poder: entre Michel Foucault e Gilles Deleuze. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. p.69-78. .

Umas pequenas notas de advertência e das razões para o trabalho com o digital

Depois de mais de meio século de densa e extensa produção no campo dos estudos do discurso, considerando as suas mais diferentes abordagens e perspectivas, é possível ainda produzir algum tipo de conhecimento pertinente e relevante acerca dos estudos discursivos? Perguntando de outra maneira, é possível ainda engendrar algum tipo de renovação científica nesse campo de conhecimento? De alguma forma, especialmente no tocante ao que inúmeros discursivistas perquiriram em termos de dispositivos epistemológicos e teórico-metodológicos acerca do discurso, tudo já não foi dito nesse campo? Além disso, precisamos de novos conceitos? No campo do discurso, não estaria na hora de agirmos com mais parcimônia e colocarmos em prática a navalha de Occam?1 1 “Trata-se de um princípio científico e filosófico que propõe que, entre hipóteses formuladas sobre as mesmas evidências, é mais racional acreditar na mais simples. Ou seja: diante de várias explicações para um problema, a mais simples tende a ser a mais correta. O filósofo inglês William de Occam (1285-1347) não foi o primeiro a pregar isso: Aristóteles já fazia o mesmo no século 4 a.C. Mas foi o nome de Occam que ‘colou’, por causa do frequente uso que ele fazia do argumento em debates filosóficos. Já o termo ‘navalha’ ou ‘lâmina’ é uma metáfora que surgiu muito depois dele: sugere que, com o uso da parcimônia, a hipótese mais complicada é ‘cortada’” ( LAZARETTI, 2014 ). Ou ainda em que medida o que estamos propondo como inovador não se trata simplesmente de uma notação científica (outro nome para coisas já existentes)?

Com base em um postulado histórico, bastante aceito nas humanidades em geral, qual seja, o de que todo o conhecimento científico é filho do seu tempo, arriscamos a hipótese de que é sim possível produzir algo inovador, certamente não com uma heurística próxima à das postulações epistemológicas e teórico-metodológicas já legitimadas no campo, mas com contribuições relevantes e pertinentes. Com efeito, acreditamos que a teoria da ressignificação na web ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. ), juntamente com a noção de revascularização discursiva aqui proposta, podem tanto desempenhar o papel de “fermento” da renovação no âmbito dos estudos do discurso, quanto ser importantes instrumentos de criação - sobretudo para os sujeitos em condição de vulnerabilidade social - de seus próprios espaços de enunciação.

Qualquer que seja a denominação usada (revolução, transformação, conversão, virada digital etc.), é notório que “as ações e os efeitos do digital estão aí, o uso das tecnologias digitais, da internet e dos objetos conectados estão progressivamente se integrando à nossas existências” ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p.7, tradução nossa). Atualmente não somente pela questão do isolamento social decretado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março último, em razão da pandemia Covid19, é praticamente impossível não ser interpelado, no sentido althusseriano do termo, pelo discurso digital. Com efeito,

[...] o discurso digital nativo é o conjunto de produções verbais elaboradas online, quaisquer que sejam os aparelhos, as interfaces, as plataformas e as ferramentas de escritura. Ele coloca às ciências da linguagem, tais como são praticadas até o momento, um bom número de problemas que só podem ser resolvidos questionando os modelos conceituais. ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p.7, tradução nossa).

Paveau (2017b)PAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. nos alerta para a necessidade premente de as ciências da linguagem se debruçarem sobre o discurso digital. Um bom exemplo de como a análise do discurso digital poderia contribuir não somente com as ciências da linguagem, mas com todas as humanidades de uma maneira em geral pode ser dado com base no esclarecedor texto de Francisco Fernandes Ladeira (2020)LADEIRA, F. F. Da #fiqueemcasa para a #usemáscara, o discurso do retorno à normalidade. Observatório da Imprensa, Campinas, v.20, n.1171, 5 maio 2020. Sessão Coronavírus.. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/coronavirus/da-fiqueemcasa-para-a-usemascara-o-discurso-do-retorno-a-normalidade/. Acesso em: 18 maio 2020.
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, intitulado Da #fiqueemcasa para a #usemáscara, o discurso de retorno à normalidade . Nesse texto, Ladeira, com aguçado espírito crítico, a partir de uma análise de conteúdo, nos mostra como nestes meses de pandemia, houve nos tutoriais midiáticos (especialmente nos dos noticiários locais), por pressão de determinados setores econômicos, uma espécie de migração da campanha #fiqueemcasa para a campanha #usemáscara. Essa última simulando um efeito de retorno à normalidade. De acordo com o autor:

[...] diante da urgente necessidade de determinados setores econômicos em retornar à normalidade, surgiu uma nova campanha, abraçada, principalmente, pelos noticiários locais. Saiu a hashtag “fique em casa”, entrou a hashtag “use máscara”. Os tutoriais midiáticos da vez não estão mais relacionados a ficar em casa, mas sobre como “ir às ruas de maneira segura”: use máscara, cubra boca e nariz, não se esqueça de passar álcool gel nas mãos, mantenha-se distante de outras pessoas, retire seus calçados ainda na porta de casa, tome banho ao chegar da rua, etc. [Ademais], é preciso denunciar que defender o chamado “retorno à normalidade”, quando ainda nem chegamos ao pico da pandemia do coronavírus, não é uma mera escolha econômica, mas um posicionamento genocida e criminoso (o triste caso da região italiana da Lombardia não nos deixa dúvida sobre essa questão). Como dizia o velho Marx: no capitalismo, os trabalhadores são meras mercadorias, passíveis de serem trocadas por outras, assim como é feito com uma máquina quando ela não dá mais conta de operar satisfatoriamente. Afinal de contas, lembrando as palavras do dono de uma famosa rede de restaurantes: o Brasil não pode parar por cinco ou sete mil mortes. ( LADEIRA, 2020LADEIRA, F. F. Da #fiqueemcasa para a #usemáscara, o discurso do retorno à normalidade. Observatório da Imprensa, Campinas, v.20, n.1171, 5 maio 2020. Sessão Coronavírus.. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/coronavirus/da-fiqueemcasa-para-a-usemascara-o-discurso-do-retorno-a-normalidade/. Acesso em: 18 maio 2020.
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).

Fernandes Ladeira nos mostra o papel que a mídia desempenha na sociedade, apresentando distintos movimentos de sentidos, bem como os seus propulsores. No início estava em jogo uma questão sanitária (#fiqueemcasa) e, depois, por conta da pressão de certos grupos, entra em cena a questão econômica (#usemáscara). Do ponto de vista da análise do discurso digital, especialmente, a partir de Paveau (2017b)PAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. é preciso considerar também tanto o caráter hipertextual da hashtag, destacado por Ladeira em seu artigo, quanto o seu caráter textual.

A hashtag, enquanto elemento tecnolinguageiro, rapidamente se tornou um elemento familiar na paisagem gráfica e digital contemporânea. No entanto, ocorre, de forma cada vez mais frequente, encontrarmos hashtags fora da rede, numa camiseta antes de uma palavra, por exemplo, ou em contextos nos quais ela não é clicável, como por exemplo, numa mensagem eletrônica, num texto, ou em determinados sites, onde elas são integradas linguisticamente nos enunciados, sem sua funcionalidade hipertextual. Conforme Paveau,

a hashtag é uma tecno palavra ( Paveau, 2013aPAVEAU, M.-A. Langage et morale: une éthique des vertus discursives. Limoges: Lambert- Lucas, 2013a. ), porque ela possui uma natureza compósita: o segmento é tanto linguageiro (trata-se de siglas, palavras, expressões ou mesmo frases inteiras), mas igualmente clicável, uma vez que é um link que permite a criação de um fio. O lugar da hashtag é livre no tweet: começo, meio ou fim. Seu modo de integração é variado: ele pode preceder ou seguir o texto do tweet (e então ele é externo), mas pode igualmente ser integrado na sintaxe do enunciado, frequentemente como substantivo ou adjetivo (hashtag interna). ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p.199).

Em suma, mesmo que a reflexão empreendida por Ladeira seja extremamente importante e relevante, é preciso ir além da análise de conteúdo da hashtag. Para além de seu conteúdo, esse elemento tecnolinguageiro, por pertencer a uma ordem do discurso digital, tem uma dimensão performativa muito forte, que modifica todo o ambiente no qual é produzida, propagada e reformulada. Em outras palavras, é preciso considerar que a hashtag ultrapassa o seu conteúdo e também a polêmica que daí pode decorrer, pois ela age como um verdadeiro argumento em favor de determinada causa, proposição, valor social, etc. Feita essa breve justificativa das razões para se investir epistemologicamente, teórica e metodologicamente no discurso digital, apresentaremos a gênese do conceito de revascularização discursiva.

A revascularização nas ciências médicas

O termo revascularização vem das Ciências Médicas, especificamente da medicina. Nesse campo de conhecimento, a revascularização do miocárdio, mais popularmente conhecida como cirurgia de ponte de safena, é um procedimento invasivo por meio do qual o cirurgião cardíaco, por conta de uma obstrução causada por uma placa de gordura, utiliza uma parte de artéria ou veia para desviar sangue da aorta para as artérias coronárias. Geralmente, esses procedimentos são feitos com circulação extracorpórea, ou seja, com o auxílio de um equipamento, que substitui as funções do coração e do pulmão durante boa parte do processo cirúrgico. Esse tipo de procedimento é altamente recomendado para grupos selecionados de pacientes com estreitamentos ou “bloqueios” importantes das artérias que nutrem o coração (doença coronariana aterosclerótica, por exemplo). Por meio dessa técnica, são criados percursos alternativos que visam a ultrapassar as obstruções.

O procedimento cirúrgico, embora de alta complexidade, é realizado com muita frequência. Há relatos de cirurgiões que juntamente com toda a equipe médica chegam a realizar dez cirurgias por semana2 2 Informação repassada pelo Prof. Dr. Francisco Gregori Junior, quando da entrevista para o procedimento médico de uma cirurgia de revascularização do miocárdio, realizada por um de nós no Hospital Evangélico de Londrina, em outubro de 2018. . Depois de aplicar uma anestesia geral, o cirurgião cardíaco faz um corte no centro do tórax e serra longitudinalmente o esterno, o osso que une as costelas na parte da frente (esternotomia mediana). Coloca-se então o coração em processo de arrefecimento, ao mesmo tempo em que uma solução preservativa é injetada nas artérias. Esta solução, chamada de “cardioplégica” tem por objetivo minimizar a possibilidade de lesões induzidas por um período de fluxo sanguíneo reduzido durante a cirurgia.

Antes de iniciar-se o bypass , isto é, o procedimento cirúrgico que enxerta uma via alternativa ligando a aorta ao lugar imediatamente depois da obstrução, instala-se a circulação extracorpórea, um sistema de tubos de plástico, oxigenador artificial e bombas que permitem ao sangue circular e ser oxigenado sem passar pelo coração e pelos pulmões. Esse tipo de procedimento permite parar o coração e realizar as delicadas suturas das pontes de mamária ou safena, sem o “vaivém” do coração pulsante. Atualmente, o método está tão aperfeiçoado, que alguns cirurgiões têm desenvolvido, com bons resultados, a cirurgia sem circulação extracorpórea, o que implica operar o coração, reduzindo, assim, o tempo gasto na cirurgia.

A ponte de safena é a mais tradicional e envolve a retirada de um ou mais segmentos de veia safena da perna, seguida de costura (anastomose) de uma das pontas à parede da aorta e costura da outra ponta ao segmento de artéria coronária subsequente ao local da obstrução, realizando, assim, um “desvio”. Esse desvio permite que o fluxo de oxigênio, que estava prejudicado pela obstrução, seja restabelecido, irrigando novamente a área do coração que estava com déficit. Nos últimos 15 anos, a artéria mamária interna tem sido cada vez mais utilizada, com melhores resultados em longo prazo do que a safena da perna. Neste caso, realiza-se apenas uma anastomose, pois o sangue flui naturalmente da aorta, para um de seus ramos e daí, para a artéria mamária interna, cuja extremidade será seccionada e anastomosada à artéria coronária, na maioria das vezes o ramo descendente anterior ou uma de suas grandes ramificações. Dessa maneira,

[...] são dois os tipos de condutos empregados para a revascularização do miocárdio: condutos venosos e condutos arteriais. O conduto venoso mais utilizado é a veia safena magna, que apesar de ser de fácil utilização, apresenta degeneração progressiva ao longo do seguimento pós-operatório sendo que, ao final de 10 anos, apenas 30% das pontes estão pérvias. Os condutos arteriais, em especial as artérias torácicas internas, apresentam maior durabilidade, atingindo perviabilidade de 90 % em 15 anos. ( PÊGO-FERNANDES; GAIOTTO; GUIMARÃES-FERNANDES, 2008PÊGO-FERNANDES, P. M.; GAIOTTO, F. A.; GUIMARÃES-FERNANDES, F. Estado atual da cirurgia de revascularização do miocárdio. Revista de Medicina, São Paulo, v.87, n.2, p.92-98, 2008. , p. 96).

Segundo os especialistas, a maior vantagem do uso deste tipo de ponte, que usa condutos arteriais, é a durabilidade em relação à ponte de safena ou condutos venosos. A duração de um procedimento rotineiro de revascularização é de aproximadamente quatro horas, das quais cerca de uma hora/uma hora e meia é passada em circulação extracorpórea, o que permite a implantação de múltiplas pontes. Ao final da cirurgia o esterno é suturado com fios de aço inoxidável que não mais serão retirados. Na maioria das vezes, o paciente responde bem às medidas clínicas convencionais e a média de permanência hospitalar total é de cinco a seis dias. Além disso, os pacientes passam de quatro a seis meses afastados do trabalho se restabelecendo da cirurgia. Durante esse período, o paciente realiza diversos exercícios fisioterápicos com o objetivo de ampliar sua capacidade de respiração, que fica prejudica por conta de todo o procedimento cirúrgico. Os pacientes em cujas cirurgias são usados condutos arteriais (mamária) ficam por longo tempo com dores no peito, especialmente no lado em que a mamária é retirada.

A revascularização discursiva: fundamentos

Conforme enunciado na primeira nota de rodapé deste texto, a proposta de uma teoria discursiva da revascularização dialoga numa relação de aliêmica 3 3 Palavra-valise que junta aliança e polêmica. , por um lado, com a discussão feita por Gayatri C. Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. em seu ensaio seminal, publicado originalmente em 1985, no periódico Wedge e intitulado Can the Subaltern Speak? 4 4 Em 2010, esse artigo foi traduzido para o português, pela Profa. Sandra Regina Goulart Almeida et al. , transformado num pequeno livro e publicado pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais – EdUFMG, com o título Pode o subalterno falar? ( SPIVAK, 2010 ). e, por outro, com a teoria da ressignificação perquirida por Marie-Anne Paveau (2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, 2019b, 2020). A fundamentação é epistemológica no caso do trabalho de Spivak e metodológica no caso de Marie-Anne Paveau, e se justificam não somente pelo fato de essas duas pesquisadoras, cada uma a seu modo, buscarem entender como os sujeitos subalternos, por um lado, e ofendidos, por outro, podem enunciar, mas, especialmente por elas nos mostrarem como determinadas práticas discursivas podem intervir no mundo e contribuírem radicalmente para que a nossa sociedade seja mais decente. Sociedade decente é aqui entendida de acordo com Avishaí Margalit (2007)MARGALIT, A. La Société Décénte. Paris: Champs Flammarion, 2007.:

[...] uma sociedade decente é uma sociedade que combate as condições, que constituem aos olhos de seus membros as razões de se sentirem humilhados. Uma sociedade é decente se o funcionamento das suas instituições não fornecem razões para que seus membros se sintam humilhados [e mortos].5 5 Os assassinatos de Anderson Gomes, Marielle Franco, João Pedro de Matos Pinto e George Floyd (este último nos EUA) com o consentimento ou com a autoria dos Aparelhos de Estado, infelizmente nos mostram que não vivemos numa sociedade decente. ( MARGALIT, 2007MARGALIT, A. La Société Décénte. Paris: Champs Flammarion, 2007. , p. 22).

Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. , com base na desconstrução derridariana e no marxismo gramsciano, nos chama a atenção para um tema até então pouco debatido no meio acadêmico europeu, qual seja, o de desafiar os discursos hegemônicos sem se aliar a esses discursos, questionando também as nossas próprias crenças de produtores legitimados de saber e de conhecimento. Seu principal objetivo é pensar a teoria crítica como um instrumento intervencionista, engajado e contestador. Nesse sentido, a autora fornece, em seu ensaio, subsídios críticos para que deixemos de olhar para o mundo pelas lentes dos intelectuais europeus ocidentais, uma vez que essas lentes - mesmo a dos mais críticos – segundo a autora, não alteram em nada a condição de subalternidade dos sujeitos, que continuam sendo vistos como uma categoria monolítica e indiferenciada.

Avançando em seu ensaio, Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. critica a apropriação indiferenciada que é feita por distintos intelectuais europeus acerca do termo subalterno. Para ela, esse termo não deve ser usado indistintamente para todo e qualquer sujeito marginalizado. Desse modo, Spivak argumenta que o termo subalterno descreve “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos do estrato dominante” (SPIVAK, 2010, p. 35). No entendimento da pesquisadora, o intelectual ao falar pelo subalterno, coloca-se num lugar paradoxal, uma vez que, julga poder falar pelo outro, numa espécie de porta-voz, que com esse ato enunciativo produz resistência. Todavia, agir dessa maneira, silenciando o subalterno, sem lhe oferecer a possibilidade de ele mesmo criar o seu espaço de enunciação, é continuar reproduzindo as estruturas de poder e de opressão. Assim,

[...] é impossível para os intelectuais franceses6 6 Quando Spivak (2010) faz menção aos intelectuais franceses, ela está se referindo basicamente a Michel Foucault e Gilles Deleuze. Não vamos entrar nessa polêmica, pois por um lado isso fugiria ao escopo do nosso artigo e, por outro, diferentemente da autora, discordamos que Foucault e Deleuze olham para o outro (o não-europeu) sem levar em consideração o tipo de poder e desejo que esse sujeito possui. Ver, por exemplo, a conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, intitulada Os intelectuais e o poder , publicada no livro Microfísica do poder ( FOUCAULT, 2014 ). contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de que tudo o que leem – crítico ou não – esteja aprisionado no debate sobre a produção desse Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa. ( SPIVAK, 2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. , p. 23).

O alerta de Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. é o de que o intelectual ao se colocar como o porta-voz do outro, do subalterno, em última instância, está colocando esse outro como mero objeto de conhecimento. É preciso, segundo ela, ultrapassar a interação monológica que o intelectual europeu estabelece com o subalterno, este último ficando completamente à margem do diálogo. Assim, é mister criar condições de agenciamento para que essa interação seja efetivamente dialógica, transitando livremente entre os diferentes lugares de enunciação. Essa interação dialógica implica que não haja nenhuma sobreposição entre os lugares de enunciação, isto é, que os sujeitos não falem uns pelos outros, mas que falem por si mesmos, sem nenhuma intermediação enunciativa.

Para Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. , na atualidade, a tarefa do intelectual, longe de se propor como um porta-voz do subalterno, uma espécie de voz autorizada que denuncia as mazelas pelas quais passam os subalternos, é criar estrategicamente espaços enunciativos para que este último possa falar e, acima de tudo, possa ser ouvido. No entendimento da pesquisadora, esse tipo de trabalho do intelectual, o de criar espaços enunciativos para o subalterno, permite que se realize um trabalho contra a subalternidade, e não a favor dela como tem sido feito até então. Essa perspectiva retira assim os subalternos da obscuridade enunciativa e também histórica.

Apresentamos então rapidamente, com base no trabalho de Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. , o fundo epistemológico da nossa proposta de uma teoria discursiva da revascularização, qual seja a necessidade de criar condições para que os sujeitos em situação de vulnerabilidade social possam falar e serem ouvidos, ingressando definitivamente na história. Embora o foco de Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. seja pensar a violência epistêmica cometida pelos intelectuais europeus, entendemos que o seu trabalho possa ser deslocado para discutir os meios que os subalternos encontram para falar e se fazer ouvir.

Passamos agora para o trabalho de Marie-Anne Paveau acerca da teoria da ressignificação, que se apresenta como o suporte teórico-metodológico da nossa proposta.

Embora no Brasil existam excelentes trabalhos sobre o discurso digital, Marie-Anne Paveau pode ser considerada a precursora da análise do discurso digital. Em 2017, ela publicou um livro seminal intitulado L’Analyse du discours numérique. Dictionnaire des formes et des pratiques 7 7 A tradução deste dicionário para o português, que à época da escrita deste artigo estava estava sendo organizada por nós, foi publicada pela Editora Pontes de Campinas em 2021 (2021a). , no qual a pesquisadora propõe “novos conceitos, ferramentas e limites” ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p.8), calcados na Análise do discurso francesa, para embasar uma reflexão profunda acerca do funcionamento dos discursos nativos da internet. A pesquisadora nos alerta sobre o fato de que grande parte das abordagens que se propõe analisar o discurso digital, em ciência da linguagem, o faz a partir da perspectiva saussuriana e dualista (logocentrada e focada em apenas numa matéria linguageira), isto é, efetivamente extraindo excertos de texto verbal do ambiente tecnológico no qual o discurso foi primeiramente concebido.

Na perspectiva da pesquisadora, “a marginalização da máquina, considerada como um componente extralinguístico leva a trabalhar sobre as formas necessariamente estereotipadas da língua” ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p.10), desconsiderando, segundo ela, as suas especificidades (no tocante à língua, ao discurso, à técnica, à subjetividade/alteridade), em suma, a singularidade do discurso digital, que está assentado na composição de uma linguagem sincrética (que mescla textos, imagens, sons, gestos etc.).

Do ponto de vista da análise do discurso digital, a Linguística é questionada tanto metodológica quanto epistemologicamente pelos discursos digitais, pois estes impõem a atualização necessária dos próprios métodos que dispõem enquanto ciência. Além disso, os limites teóricos também são discutidos, para que possam abarcar essas novas discursividades de modo satisfatório. Nesse sentido, para além de se preocupar com o que os sujeitos dizem, quer seja do ponto de vista da forma, quer seja do ponto de vista do conteúdo, é preciso entender como, porque e que recursos tecnodiscursivos os sujeitos mobilizam para dizerem o que dizem de si, dos outros e para e pelos outros.

O discurso produzido no espaço digital da web 2.08 8 “A web 2.0 ou web social ou participativa surgiu no início dos anos 2000 conectando pessoas e está assentada na interação de vários agentes (é a web das redes sociais e do compartilhamento multimidiático).” ( PAVEAU, 2017a , p.15). deve, portanto, segundo Marie-Anne Paveau, ser abordado enquanto tecnodiscurso, sendo o prefixo tecno – não apenas um morfema que busca alterar o sentido do radical, mas uma opção teórica que modifica a episteme tradicional das ciências da linguagem. É afirmar que os discursos digitais nativos não são de ordem puramente linguística, que as determinações técnicas coconstroem as formas tecnolinguísticas, que as perspectivas logo e antropocêntricas devem ser descartadas em prol de uma perspectiva ecológica e integrativa, que reconhece o papel dos agentes não humanos nas produções linguísticas ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. ).

O discurso nativo da internet, conforme Paveau (2019a)PAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, é um tecnodiscurso, pois é produzido no interior dos dispositivos técnicos, sendo essa dimensão técnica constitutiva do discurso e não apenas o suporte. Para além de suporte, essa dimensão técnica interfere na maneira como o discurso se organiza. Ainda segundo a pesquisadora, “os tecnodiscursos são indissociavelmente linguageiros e técnicos, a matéria propriamente linguageira não podendo ser extraída dos ambientes conectados” ( PAVEAU, 2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p.123). Todavia, do mirante da operacionalização das análises, como é possível dar conta dos discursos que circulam na web? E, especialmente, como analisar os contradiscursos produzidos por determinados grupos a partir de um discurso primeiro insultuoso?

Com base na análise de dados que circulam na web 2.0, Marie-Anne Paveau (2020)PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23. propõe toda uma teoria, que busca dar conta justamente do discurso do sujeito ofendido, agredido, insultado, que subverte o insulto a seu favor e/ou em direção ao sujeito insultante. A ressignificação é por ela proposta para se pensar a argumentação, que erige um contradiscurso a partir de um enunciado ofensivo e, assim, se regenera. A noção de ressignificação proposta por Marie-Anne Paveau está fundamentada nas pesquisas de Judith Butler (2017)BUTLER, J. Le pouvoir des mots: discours de haine et politique du performatif. Trad. Charlotte Normann, Jerôme Vidal. Paris: Éditions Amsterdam, 2017. e Donna Haraway (2007)HARAWAY, D. Manifeste cyborg et autres essais: Sciences - Fictions - Féminismes. Paris: Exils Éditeur, 2007. , ambas refletindo, cada uma a seu modo, sobre os modos de reformulação do sujeito.

De um lado, em Butler (2017)BUTLER, J. Le pouvoir des mots: discours de haine et politique du performatif. Trad. Charlotte Normann, Jerôme Vidal. Paris: Éditions Amsterdam, 2017. , a ressignificação é o poder de ação ( puissance d’agir ) que desliza os limites do discurso ofensivo para além daqueles que permanecem no âmbito das implicações negativas, para enaltecer o ponto de vista do sujeito ofendido, na medida da sua capacidade de elaborar um contradiscurso. Ela afirma que a ressignificação “requer promovamos a abertura de novos contextos, que falemos de modos que nunca foram legitimados e que produzamos novas e futuras formas de legitimação” ( BUTLER, 2017BUTLER, J. Le pouvoir des mots: discours de haine et politique du performatif. Trad. Charlotte Normann, Jerôme Vidal. Paris: Éditions Amsterdam, 2017. , p. 70, tradução nossa).

De outro, em Haraway (2007)HARAWAY, D. Manifeste cyborg et autres essais: Sciences - Fictions - Féminismes. Paris: Exils Éditeur, 2007. , a ressignificação é compreendida a partir do imbricamento entre a biologia e a filosofia, principalmente, concretizado na metáfora da salamandra. Haraway afirma que o processo de regeneração de um ferimento, quando produzido nesse ser vivo, é acompanhado do “desenvolvimento da estrutura e de uma restauração das funções com a possibilidade constante de produção, no lugar da antiga ferida, de cópias ou qualquer resultado topográfico estranho” (HARAWAY, 2007, p. 81, tradução nossa).

Brevemente, tanto a metáfora da regeneração de Haraway (2007)HARAWAY, D. Manifeste cyborg et autres essais: Sciences - Fictions - Féminismes. Paris: Exils Éditeur, 2007. , quanto a performatividade diante do discurso de ódio ( BUTLER, 2017BUTLER, J. Le pouvoir des mots: discours de haine et politique du performatif. Trad. Charlotte Normann, Jerôme Vidal. Paris: Éditions Amsterdam, 2017. ) são lidas, portanto, por Paveau no interior dos estudos do discurso e resulta no conceito de ressignificação discursiva por ela proposto. Esta teoria está fundamentada em um conjunto de práticas tecnodiscursivas e argumentativas que circulam na web, especialmente mobilizadas pelos variados militantismos digitais. Paveau (2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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) apresenta uma tipologia dessas práticas tecnodiscursivas, baseando-se em três categorias: 1. a recontextualização enunciativa, quando um enunciado insultante é retomado engendrando em seu lugar uma ressignificação; 2. a publicação analógica, quando o enunciado insultante é retomado engendrando em seu lugar uma ressignificação que passa a circular em contextos distintos dos quais inicialmente circulou e 3. a produção de um dispositivo cultural ou intelectual, quando o enunciado insultante é retomado engendrando em seu lugar uma ressignificação que passa a circular em contextos distintos dos quais inicialmente circulou e essa ressignificação se transforma num dispositivo cultural e intelectual de resistência. Nesse sentido, a autora propõe uma

teorização da ressignificação, de modo a convertê-la numa noção operatória para a análise do discurso, na esteira de Butler, do trabalho de Brontsema, pesquisas anteriores sobre a noção ( Paveau 2013aPAVEAU, M.-A. Langage et morale: une éthique des vertus discursives. Limoges: Lambert- Lucas, 2013a. , 2017aPAVEAU, M.-A. Féminismes 2.0. discours numériques de la génération connectée. Argumentation et analyse du discours, Tel Aviv, n.18, 2017a. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/2345. Acesso em: 26 jan. 2022
http://journals.openedition.org/aad/2345...
, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , 2019) e integrando igualmente a perspectiva de Kunert. Essa teorização excede a própria prática de reapropriação das designações de pessoa e se desvencilha da abordagem lexical ou categorial frequentemente apresentada para exemplificar a ressignificação. Ela se abre para outras práticas e táticas discursivas, permitidas pelos universos discursivos digitais, mas não por eles apenas, envolvendo não somente os designativos, mas os discursos, os signos, as imagens, os sons. A ressignificação não é, portanto, apenas um processo semântico-pragmático, mas um dispositivo discursivo total, que envolve formas discursivas variadas e plurissemióticas [das quais os sujeitos ofendidos se valem para respostar aos seus ofensores]. ( PAVEAU, 2020PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23. , p.30).

A ressignificação por recontextualização enunciativa é entendida por Marie-Anne Paveau como a prática mais comum de ressignificação. De um ponto de vista linguístico, ela argumenta que “trata-se da repetição de palavras, enunciados ou signos sob a forma da origem, em contextos diferentes a partir de uma fonte enunciativa diferente, pois está relacionada à pessoa ofendida” (PAVEAU, 2020, p.36), asseverando que “é a colocação em circulação discursiva que produz a ressignificação” ( PAVEAU, 2020PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23. , p.36). A pesquisadora observa ainda que a recontextualização se dá a partir da linguagem dominante (escrita, oral, imagética e sonora). Em relação à linguagem escrita, ela elenca três possibilidades: a republicação simples; a republicação com comentário ressignificante e a retomada enunciativa.

No que concerne à forma dominante icônica, Paveau apresenta uma possibilidade: a publicação de selfies, que incluem tanto o ofendido, quanto o ofensor. No que se refere às formas plurissemióticas na dominante oral, são propostas duas possibilidades: a leitura em voz alta dos comentários ofensivos e o cantar dos comentários ofensivos. Já sobre a publicação analógica – entendida como “a colocação em rede de uma produção tecnodiscursiva análoga àquela do ataque” ( PAVEAU, 2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p. 134, tradução nossa) –, a autora cita duas possibilidades: a publicação analógica de imagens fixas e a publicação analógica de imagens em movimento (vídeo). Por último, ela entende a ressignificação por produção de um dispositivo cultural ou intelectual como um conjunto de respostas ressignificantes relacionadas à construção de dispositivos tecnodiscursivos culturais ou intelectuais: “os sujeitos agredidos produzem enunciados ressignificantes a partir de suas competências técnicas, relacionadas ao seu campo profissional, mídias e ciências humanas” ( PAVEAU, 2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p. 135, tradução nossa). Para esse tipo de ressignificação, há, na compreensão da autora, três possibilidades: a criação midiática; o dispositivo icônico-discursivo-financeiro e a produção do saber científico.

Para analisar a ressignificação em contextos digitais, a partir das três tipologias propostas, a pesquisadora francesa propõe ainda sete critérios linguístico-(tecno)discursivos, que, segundo ela, constituem a ressignificação como processo discursivo:

  1. critério pragmático: existe uma ferida linguageira provocada pelo insulto, estigmatização, ataque, etc. a respeito da identidade de uma pessoa ou grupo;

  2. critério interacional: uma resposta ao enunciado ofensivo é produzida;

  3. critério enunciativo: o sujeito agredido é a origem enunciativa da resposta, que ele retoma do enunciado ofensivo por conta própria como auto-categorização, ou ele provoca uma simples recontextualização;

  4. critério semântico-axiológico: o enunciado-resposta compreende uma inversão ou mudança semântica e/ou axiológica;

  5. critério discursivo: o enunciado-resposta é produzido em contexto diferente do enunciado ofensivo, que é recontextualizado pela “abertura a contextos desconhecidos” (Butler, 2005, p. 234);

  6. critério sócio-semântico: o uso recontextualizado do elemento linguageiro é julgado como aceitável e reconhecido como tal pelos sujeitos implicados, que formam um sujeito coletivo;

  7. critério pragmático-político: o enunciado ressignificado é revolucionário, pois produz uma reparação e uma resistência, ampliando a coesão do sujeito militante (Kunert, 2010). ( PAVEAU, 2020PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23. , p.39).

Com base nesses critérios, a autora define a ressignificação como uma prática linguageira, linguística e material de resposta (2) a um enunciado ofensivo (1), efetuada pelo sujeito agredido pela auto-categorização ou recontextualização simples (3), que estabelece um retorno do enunciado ofensivo (4) num contexto alternativo (5), o novo uso sendo aceito coletivamente (6) e produzindo uma reparação e uma resistência (7).

Um exemplo lapidar da fecundidade da teoria da ressignificação, aqui entendida enquanto prática tecnodiscursiva, advém de uma campanha publicitária realizada em 2015, feita pela agência F/Nazca Saatchi & Saatchi para a marca de cerveja Skol , por conta do Carnaval daquele ano. Essa campanha foi realizada por meio de cartazes - que exibiam os enunciados “Esqueci o ‘não’ em casa” (imagem a seguir) ou “Topo antes de saber a pergunta” - que foram espalhados em pontos de ônibus na cidade de São Paulo. Essa campanha gerou bastante polêmica também na internet, visto que concretiza, de modo mais amplo, “as violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo” ( HIRATA et al ., 2009HIRATA, H. et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. , p. 271), as quais podem ocorrer de variadas formas, tais como “ameaça, coação ou força [...] com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade” ( HIRATA et al ., 2009HIRATA, H. et al. (org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Ed. da UNESP, 2009. , p. 271).

A referida campanha pode ser entendida não só como uma apologia ao assédio sexual feminino, mas concretiza de modo complexo o machismo estrutural que permeia ainda a sociedade brasileira, especificamente na compreensão de que o corpo feminino é público, não podendo uma mulher responder negativamente a uma investida sexual, por exemplo. Para muitas internautas, que se manifestaram nas redes sociais, os enunciados reconstroem o corpo da mulher conforme os moldes patriarcais, destituindo o poder e o protagonismo que elas exercem na construção de sua própria subjetividade. Observemos a seguir algumas imagens desta campanha:

Imagem 1
– Campanha da Skol, Carnaval de 2015.

Duas profissionais que se manifestaram de maneira contundente acerca desses enunciados ofensivos às mulheres, enquanto coletividade foram a publicitária e ilustradora Pri Ferrari e a jornalista Mila Alves. As duas profissionais da comunicação acrescentaram nos cartazes, com fita adesiva preta, logo após a frase “Esqueci o ‘não’ em casa” o enunciado “E trouxe o NUNCA” (conforme imagem 3 , a seguir). Depois elas deixaram fotografar-se ao lado desses cartazes já recontextualizados, fazendo um gesto obsceno para a campanha e postando essas fotografias em suas redes sociais. A publicação de Mila Alves recebeu, à época, quase 25 mil curtidas e mais de 8 mil compartilhamentos, gerando um intenso debate nas redes sociais. Observemos:

Imagem 2
– Fotografias de Mila Alves e Pri Ferrari (e de sua publicação) protestando contra a Campanha da Skol.

Imagem 3
– Desobstrução simples

Esse debate se transformou em inúmeras denúncias junto ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), órgão estatal que tem como missão principal “impedir a publicidade enganosa ou abusiva que cause constrangimento ao consumidor ou a empresas e defender a liberdade de expressão comercial9 9 Disponível em: http://www.conar.org.br/ Acesso: 18/05/2020. ”, e fez com que a cervejaria Ambev, empresa que fabrica a Skol, retirasse das ruas de São Paulo essa publicidade e criasse uma nova campanha10 10 Não é objeto nosso aqui discutir a segunda campanha publicitária criada pela Skol, após a primeira ter sido entendida como uma apologia ao assédio sexual feminino. Para um aprofundamento dessa questão, sugerimos a leitura da dissertação de mestrado “(Des)cristalizações de estereótipos femininos nos comerciais de televisão de 2017 da Skol”, de autoria da publicitária Cristiana Frazão Gomes, defendida em março de 2020. , que pregava desta vez o respeito no Carnaval.

Como dissemos alhures, trata-se de um exemplo lapidar, pois evidencia que a teoria que vimos propondo ao longo deste artigo funciona também em dados distintos dos quais as primeiras hipóteses teóricas foram formuladas. O trabalho das profissionais Mila Alves e Pri Ferrari, que recontextualiza enunciativamente o enunciado primeiro insultante às mulheres (“Esqueci o ‘não’ em casa”) a partir do acréscimo de um enunciado segundo (“E trouxe o NUNCA”), escrito com fita adesiva, engendra um enunciado político em favor das mulheres “Esqueci o ‘não’ em casa E trouxe o NUNCA”, podendo ser entendido, em certa medida, como um exemplo de ressignificação, conforme os critérios propostos por Marie-Anne Paveau (2020)PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23.:

  1. Critério pragmático: a publicidade da Skol é considerada por muitos internautas uma apologia ao assédio sexual feminino e também um processo de estigmatização do corpo feminino;

  2. Critério interacional : as profissionais Mila Alves e Pri Ferrari, assumindo o papel de porta-voz das mulheres, recontextualizam enunciativamente o enunciado ofensivo;

  3. Critério enunciativo: um enunciado que era ofensivo torna-se, a partir da intervenção das duas profissionais, o mote para uma luta em favor das mulheres;

  4. Critério semântico-axiológico : o que era ofensivo para as mulheres “Esqueci o ‘não’ em casa”, em apologia ao assédio sexual feminino, se transforma a partir da recontextualização enunciativa com o acréscimo do “E trouxe o NUNCA”, num movimento em defesa das mulheres;

  5. Critério discursivo: os cartazes, inicialmente veiculados em outdoors , com o enunciado ressignificado passam a circular ressignificados em dispositivos tecnodiscursivos;

  6. Critério sócio-semântico: as pessoas entendem que a campanha era uma apologia ao assédio feminino e passam a cobrar das autoridades uma atitude para retirar de circulação essa campanha insultuosa e

  7. Critério pragmático-político: a dona da marca de cerveja Skol, após a repercussão negativa, retira de circulação a campanha ofensiva e coloca em seu lugar uma outra que prima pelo respeito. A fala da publicitária Pri Ferrari na sua publicação ( imagem 3 apresentada anteriormente) atesta o caráter revolucionário da ressignificação: “Diretor da AMBEV me ligou e, disse que vão fazer uma força tarefa durante a noite pra TIRAR A CAMPANHA DE VEICULAÇÃO. Isso mesmo que vcs estão lendo, a campanha caiu. Minas, essa nós conseguimos!”

Como enunciamos, a teoria da ressignificação proposta por Marie-Anne Paveau dialoga, em certa medida, com a nossa proposta, isto é, há entre as duas algumas diferenças que gostaríamos de destacar:

  1. A teoria da ressignificação se fundamenta numa epistemologia da salamandra, da regeneração, proposta inicialmente por Haraway (2007)HARAWAY, D. Manifeste cyborg et autres essais: Sciences - Fictions - Féminismes. Paris: Exils Éditeur, 2007. ; a teoria da revascularização se fundamenta na epistemologia da recriação, que também é do âmbito da biologia, mas que reflete sobre a condição do sujeito a partir de uma obstrução e não de um insulto, propondo um percurso alternativo, isto é, não se trata de uma resposta, mas de propor um caminho alternativo, que estrategicamente desvie a obstrução;

  2. A teoria da revascularização se propõe a dar conta não somente da web participativa, como no caso de Paveau (2017b)PAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , especialmente nos casos de ciberviolência, mas busca dar conta dos mais variados tipos de tecnodiscursos que circulam na web, especialmente no que concerne às práticas discursivas produzidas por sujeitos em situação de vulnerabilidade. Dito de outro modo, enquanto a ressignificação se centra na resposta a uma ciberviolência, a revascularização se centra em buscar percursos alternativos, que desviem as obstruções;

  3. A teoria da ressignificação de Marie-Anne Paveau parte de uma ferida produzida por um sujeito em outro; a teoria da revascularização não depende de uma ferida para compreender o seu processo, mas se propõe a compreender como o sujeito, em situação de vulnerabilidade, encontra percursos discursivos alternativos para solucionar a sua obstrução discursiva e, como depois de liberado o fluxo discursivo, esse mesmo fluxo se capilariza pelos mais diferentes mídiuns;

  4. Paveau em sua teoria da ressignificação apresenta uma tipologia dessas práticas tecnodiscursivas, baseando-se em três categorias: a recontextualização enunciativa; a publicação analógica e a produção de um dispositivo cultural ou intelectual. A teoria da revascularização, seguindo a tipologia da revascularização do miocárdio, que a divide em venosa e arterial, baseia-se em duas categorias de desobstrução discursiva: a desobstrução discursiva simples e a desobstrução discursiva complexa. Cumpre dizer que a obstrução é entendida aqui discursivamente e não no âmbito pragmático e que a diferença entre simples e complexa é de natureza e não valorativa;

  5. A teoria da revascularização propõe critérios distintos dos da teoria da ressignificação: 1) há uma obstrução discursiva que precisa ser desviada – um sujeito em condições de vulnerabilidade que não consegue falar e ser ouvido; 2) propõe-se um percurso discursivo alternativo para desviar a obstrução – a inexistência de um lugar enunciativo faz com que o sujeito crie rotas alternativas para resolver o seu sufocamento; 3) esse percurso alternativo libera o fluxo discursivo – encontrado um desvio o sujeito desobstrui o seu sufocamento e 4) com o fluxo liberado, há uma capilarização discursiva em diferentes dispositivos – com o fluxo liberado a enunciação do vulnerável passa a ser audível.

Teoria da revascularização: critérios, metodologia e definição

O procedimento cirúrgico denominado revascularização do miocárdio, apresentado no início deste texto, especialmente, no sentido metafórico, pode explicar algumas das práticas discursivas realizadas por alguns atores sociais, sobretudo, mas não só, os que se encontram numa condição de vulnerabilidade social, por meio do uso das redes sociais. Antes de partirmos para a análise dos dados, é importante salientar como o corpus foi construído. O corpus de pesquisa foi construído considerando as dificuldades do próprio objeto em análise: a revascularização no discurso digital. Paveau afirma que o corpus digital não pode ser construído “segundo as normas dos discursos pré ou não-digitais, que privilegiam os ‘grandes’ corpus verbais” ( PAVEAU, 2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p. 125, tradução nossa). Por conta da própria característica de proliferação descontrolada dos discursos digitais, o modo de construção de um corpus de análise deve ser reformulado.

Para dar conta dessa dispersão ; desse descontrole dos discursos digitais, a pesquisadora francesa Sophie Moirand (2018)MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519. Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
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, em artigo lapidar, defende a construção do “pequeno corpus” como forma de refletirmos sobre a atualidade. A pressão de se trabalhar com o fenômeno do momento, no instante mesmo em que ele acontece, é um dos problemas das ciências atuais. Da perspectiva da Linguística, especialmente dos estudos discursivos, Moirand propõe então que um corpus - digital, por exemplo - pode também ser erigido por meio de uma “coleção de exemplos”.

Os “instantes discursivos” ( MOIRAND, 2018MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519. Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
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, p. 1, tradução nossa) podem ser apreendidos pela construção de um “pequeno corpus” que, apesar de ainda instável, permite analisar o discurso no momento mesmo em que ele é produzido, tornando possível melhor compreender os discursos sociais de uma época da história e de uma sociedade. Moirand (2018)MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519. Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
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defende, por conseguinte, que o pesquisador deve proceder coletando exemplos com os quais interage, registrando por meio do pequeno corpus, a reconstituição contextual dos eventos históricos e sociais. Recolhido dessa forma, o pequeno corpus se torna significativo de uma atualidade política. Dessa perspectiva, “a atividade de linguagem é encarada como uma maneira de ‘capturar’ o mundo, por meio da relação entre os locutores e seu ambiente” ( MOIRAND, 2018MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519. Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
https://doi.org/10.4000/corpus.3519...
, p. 6, tradução nossa).

O corpus dessa pesquisa é, destarte, construído por meio dessa metodologia do “pequeno corpus” defendida por Sophie Moirand (2018)MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519. Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
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e endossada por Marie-Anne Paveau em seus trabalhos em análise do discurso digital. Paveau afirma, ainda, que o interesse principal de uma pesquisa deve ser “compreender o funcionamento dos discursos e não propor regularidades que [exaustivamente] validem a hipótese interpretativa” ( PAVEAU, 2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
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, p. 125, nossa tradução).

Desobstrução discursiva simples: alguns exemplos

O corpus deste artigo é, portanto, construído por uma coleção de exemplos nos quais é possível perceber que um determinado sujeito, diante de um obstáculo (uma obstrução discursiva), acaba encontrando percursos alternativos para ultrapassar essas dificuldades. Propomos a seguir alguns exemplos que dissertam sobre a revascularização discursiva, isto é, aquela efetuada por um sujeito determinado a partir de conjunturas específicas mais individuais e que almejam uma finalidade específica e imediata, por exemplo, suprir as suas necessidades básicas. Serão apresentados quatro exemplos, que progridem na escala dos quatro critérios da revascularização discursiva (obstrução discursiva; percurso discursivo; fluxo discursivo e capilarização discursiva), a partir da desobstrução simples. Observemos:

Exemplo 1: O cartaz acima apresenta um sujeito em situação de vulnerabilidade social. Ele se identifica como “venezolano” e pede ajuda para conseguir um trabalho e conseguir sustentar a sua família. Não se trata de um tecnodiscurso, mas um discurso produzido fora do ambiente digital, que depois passa a circular no ambiente digital. Do ponto de vista do conceito de revascularização discursiva que propomos neste texto, constata-se que somente o critério 1 está presente - há uma obstrução discursiva que precisa ser desviada. Os demais estão ausentes. Em outros termos, sufocado economicamente e linguisticamente, visto que se trata de um hispano falante - elementos linguísticos como venezoelano e tem criança indicam esse sufocamento linguístico - o sujeito tenta desobstruir esses sufocamentos por meio de um cartaz em que expõe as suas principais demandas.

A seguir apresentamos um novo exemplo a ser considerado:

Exemplo 2. A captura de tela ao lado, mostra a publicação de um morador de Londrina – PR, publicada na rede social Facebook em 30/04/2020, na qual ele próprio oferece o serviço de pintura em troca de ovos de Páscoa para os seus filhos. Todavia, do ponto de vista da revascularização discursiva, diremos que ele atende somente aos critérios 1 e 2: 1) há uma obstrução discursiva, de um sujeito em situação de vulnerabilidade, que precisa ser desviada; 2) é proposto um percurso discursivo alternativo para desviar a obstrução. Os outros dois critérios estão ausentes. Isso nos mostra que a revascularização não é inerente ao discurso, mas uma construção subjetiva. Destacamos também que esse post recebeu apenas 14 comentários, 8 curtidas e nenhum compartilhamento.

Tanto a publicação que busca trocar serviço por ovos de páscoa ( imagem 4 ), quanto o cartaz do imigrante venezuelano ( imagem 3 ), embora enunciem que também há crianças necessitando de ajuda - o que no nosso imaginário judaico-cristão é uma forma eficaz de interpelação -, são dois exemplos em que a revascularização discursiva, isto é, a efetivação de um caminho alternativo a determinada obstrução (social, econômica, política, etc.) não ocorre plenamente.

Imagem 4
– Arquivo pessoal.

Prossigamos ao exemplo 3: este trata de outro post do mesmo pintor, que precisava de um bolo de aniversário para a filha, e que, sem recursos para comprá-lo, ofereceu nas redes sociais os serviços de pintura e de servente de pedreiro em troca do referido bolo. Porém, esse pedido foi agora foi publicado alguns dias depois da primeira publicação, numa nova comunidade da rede social o Facebook. Observemos:

Imagem 5
– Arquivo pessoal.

Exemplo 3. A captura de tela ao lado mostra outra publicação de um terceiro, publicada dias depois da primeira publicação do morador de Londrina. A narrativa permanece a mesma: sem recursos para comprar um bolo de aniversário para a sua filha, que faria aniversário em 03/05/2020, o pintor postou dias antes em suas redes sociais a seguinte mensagem “troco meus serviços de pintor e servente por um bolinho de aniversário pra minha princesa”. Tão logo a mensagem começou a circular, outro usuário da rede social Facebook compartilhou a informação inicial e, juntamente com outras amigas, decidiram levar o bolo a até a residência do pintor, que além da filha que fará aniversário tem mais dois outros filhos e está desempregado. A filha que nunca havia recebido uma festa de aniversário comemorou a data com a família e os amiguinhos. Destacamos também que essa segunda publicação, advinda de um compartilhamento, recebeu mais de 90 curtidas, 70 comentários e 39 compartilhamentos.

O exemplo três nos pareceu lapidar em relação ao que estamos designando como revascularização discursiva. Temos um sujeito em situação de vulnerabilidade social, que mesmo sem condições financeiras, encontrou uma forma criativa de alcançar determinado objetivo, isto é, obter um bolo e realizar a festa de aniversário para a sua filha. Em outras palavras, esse ator social embora desprovido de recursos financeiros – materializado na publicação no enunciado: “estou desesperado e não consigo emprego em lugar nenhum, meu auxílio emergencial não sai do em análise” – encontrou um percurso alternativo para atender a sua demanda.

Com efeito, a partir dessa obstrução (social, econômica) descrita um percurso discursivo alternativo é proposto, criando um espaço de enunciação para desobstruir/resolver o problema inicial. Trata-se de um processo de desobstrução discursiva simples, que atende aos quatro critérios elencados anteriormente: 1) obstrução discursiva11 11 Inicialmente a obstrução de base é socioeconômica e política. O autor do post é um dos muitos sujeitos invisibilizados pelo Estado brasileiro, obstruído pelo aplicativo do Auxilio Emergencial que não sai do Em análise . Ele não consegue ser ouvido pelo Estado brasileiro. O Estado é insensível a suas reclamações. De que adiantaria pedir um bolinho de aniversário para filha ao Estado? Então diante dessa obstrução ele cria um percurso alternativo para expressar sua situação de miserabilidade e sua demanda (um bolinho de aniversário para a filha em troca de serviço) – a rede social. Ele se desvia do Estado e fala direto com as pessoas que frequentam as redes sociais. Na rede social, há uma liberação do fluxo discursivo e suas demandas recebem uma resposta diferentemente do que a do Estado. A liberação do fluxo é seguida de uma capilarização por outros mídiuns. Estamos diante de uma obstrução social, econômica e política que vira uma obstrução discursiva porque o canal da comunicação entre essas pessoas e o Estado está interditado. , embora precise comprar o bolo para a sua filha, o pintor, por conta de sua condição de vulnerabilidade, está sem recursos financeiros; 2) criação de percurso discursivo alternativo, o pintor propõe, por meio de uma breve publicação divulgada na rede social Facebook, a troca de seus serviços de pintor e de servente pelo bolo da sua filha; 3) liberação do fluxo discursivo, várias pessoas se comovem com o pedido/troca oferecida pelo pintor, compartilham a informação na rede social e decidem levar efetivamente o bolo e os mantimentos até a casa do profissional e a festa é então realizada para a filha e 4) capilarização discursiva, a publicação do pintor ganhou repercussão nacional, sendo publicada em diversas plataformas e exibida no programa de notícias Boa Noite Paraná , da Rede Paranaense de Televisão, no dia 02/05/2020 ( imagem 6 , a seguir), bem como em outros mídiuns12 12 Disponível em: https://www.indiarobaweb.com.br/noticia2/95003/pintor-oferece-mao-de-obra-em-troca-de-bolo-de-aniversario-para-filha-e-recebe-ajuda-em-londrina-39para-a-minha-princesa39 . Acesso: 18/05/2020. . Há também diversos comentários postados na reportagem do portal G1 Paraná , parabenizando o pintor pela iniciativa:

Imagem 6
– Captura de tela da veiculação no programa Boa Noite Paraná.

Imagem 7
– Captura de tela dos comentários no portal G1 Paraná

Conforme explicitamos, os processos que ocorrem desde a publicação original do pedido na rede social Facebook, passando pelo compartilhamento dessas informações na rede até o alcance da mídia em geral, concretizam a proposta do conceito de revascularização discursiva simples. O sujeito, mesmo em situação de vulnerabilidade, perseguiu o objetivo, desviando de uma narrativa clássica e procurando alternativas para alcançar sua meta. Ele não se deixou abater pela obstrução e criou uma forma muito interessante de resolver esse desvio que é não só social ou econômico, mas também discursivo13 13 Ao fazer essa afirmação não estamos, sobremaneira, desobrigando o Estado dos seus deveres para com seus cidadãos; estamos apenas olhando, a partir da perspectiva das ciências da linguagem, para as alternativas que são criadas pelo sujeito em situação de vulnerabilidade, como por exemplo, a desobstrução discursiva. .

Se retomarmos a discussão que Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. empreende em seu ensaio acerca da possibilidade – e necessidade – de criação de lugares enunciativos para os subalternos, constatamos nos exemplos anteriores que o sujeito em situação de vulnerabilidade social criou o seu próprio espaço enunciativo, a partir das possibilidades técnicas da rede social, e atingiu os seus objetivos, isto é, completou o percurso narrativo que pretendia. Com efeito, sua publicação na rede social Facebook apela também para os afetos, isto é, comoveu diversas pessoas, que se sentiram interpeladas a ajudar na demanda do pintor. Dessa maneira, não foi preciso nenhuma intervenção a favor do pintor, que encontrou a sua própria forma de falar e, especialmente, de se fazer ouvido. Essa prática enunciativa que encontrou eco, nos faz lembrar de Michel Foucault (2014)FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. quando este autor nos diz:

O papel do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado” para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso. E por isso que a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional [...] não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazê−lo aparecer e feri−lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. Luta não para uma “tomada de consciência” (há muito tempo que a consciência como saber está adquirida pelas massas e que a consciência como sujeito está adquirida, está ocupada pela burguesia [neofacista]), mas para a destruição progressiva e a tomada do poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda, para esclarecê−los. Uma “teoria” é o sistema regional desta luta. ( FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. , p. 66-67).

Vale destacar também que se trata de um tecnodiscurso14 14 O discurso produzido no espaço digital da Web 2.0, segundo Marie-Anne Paveau, deve ser abordado enquanto tecnodiscurso, sendo o prefixo tecno “uma opção teórica que modifica a episteme tradicional das ciências da linguagem. É afirmar que os discursos digitais nativos não são de ordem puramente linguística, que as determinações técnicas coconstroem as formas tecnolinguísticas, que as perspectivas logo e antropocêntricas devem ser descartadas em prol de uma perspectiva ecológica e integrativa que reconhece o papel dos agentes não humanos nas produções linguísticas.” ( PAVEAU, 2017b , p. 11). , na acepção de Marie-Anne Paveau (2019b), mas não de um contradiscurso, que ao passar por processo de ressignificação, busca reparar um insulto dito em discurso anterior. Nesse sentido, é possível conceituar a revascularização discursiva como uma obstrução discursiva que precisa ser desviada. Assim, é proposto um percurso discursivo alternativo, para desviar dessa obstrução. Esse percurso alternativo libera o então fluxo discursivo, levando a concretização de um percurso narrativo almejado. Com o fluxo liberado, há uma capilarização discursiva, isto é, a circulação em diferentes dispositivos.

Desobstrução discursiva complexa: #forabolsonaro

O Brasil vive, juntamente à crise sanitária da pandemia Covid19, uma crise política, sentida de modo mais efetivo desde o golpe parlamentar de deposição da presidenta Dilma Rousseff em 2016, passando pela ascensão de Temer ao poder e culminando com a vitória de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Vitória essa que se deu muito por conta da disseminação em massa de Fake News contra o seu então adversário Fernando Haddad e patrocinadas por empresários ligados ao então candidato do Partido Social Liberal (PSL). A pandemia escancarou a incapacidade - já assinalada por grande parte da população desde a campanha eleitoral do candidato - de Bolsonaro em propor projetos eficazes para o Brasil e estabelecer o diálogo - base de qualquer sociedade democrática - com os diversos setores que participam da construção e compreensão de um país.

Em meio a essa conjuntura política, brevemente pincelada ( BRUM, 2019BRUM, E. Brasil construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2019. ), muitos sujeitos vivenciam uma obstrução tanto política e ideológica - quando não se sentem minimamente representados nos pronunciamentos e nas ações do presidente -, quanto uma obstrução física - quando, a partir da compreensão equivocada de Bolsonaro acerca da crise que vivenciamos, ele não persegue efetivamente uma solução viável para o país e o número de mortos, vítimas do coronavírus, cresce assustadoramente a cada dia, transformando o Brasil no epicentro mundial da pandemia Covid1915 15 Lembremos que Bolsonaro chamou, diversas vezes, o coronavírus de “gripezinha” e “histeria, por exemplo ( GRIPEZINHA..., 2020 ); enquanto o número de mortes, decorrentes desse vírus letal, passa de 17 mil no Brasil ( CASOS..., 2020 ) e a Organização das Nações Unidas aponta que a fome deve atingir o dobro de pessoas em decorrência da pandemia ( CRISE..., 2020 ). .

Tanto a obstrução mais subjetiva, quanto a obstrução mais pragmática revelam a necessidade pungente que os sujeitos sociais vivenciam diante do momento histórico, político e social atual, especificamente no Brasil. Em tempos como esse é necessário que todos os cidadãos permaneçam em suas casas para diminuir a denominada “curva do coronavírus”, isto é, diluir ao máximo o número de infectados para que o Sistema Único de Saúde (SUS) possa se organizar em relação aos atendimentos e, assim, aumentar também sua capacidade de ação. Apesar de “isolados” em suas casas - pelo menos aqueles que podem - os atores sociais sentem interpelados a reivindicarem e, a seu modo, se colocar enquanto sujeitos no mundo, ainda que seja no espaço digital.

Lembremos de que a vulnerabilidade, advinda de uma falta, está também ancorada na compreensão dos sentidos erigidos em torno da pobreza que, segundo o historiador e antropólogo chileno, José Bengoa, é

[...] um conceito difícil de definir, mas que todo mundo entende quando se o menciona. Talvez porque cada qual, cada indivíduo sabe perfeitamente o que seria para ele e sua família uma situação de pobreza. Para um poderia ser não comer; para outro, vestir-se pobremente, para um terceiro, baixar seu nível de vida habitual. São muito imprecisas, portanto, as definições habituais sobre a pobreza. Esta conceituação é mais clara na literatura que vê a pobreza como ‘carência’, isto é, como ausência total ou parcial de bens, serviços, acesso à cultura e à educação, enfim, à falta de integração à sociedade. ( BENGOA, 1996BENGOA, J. Pobreza y vulnerabilidad. Temas Sociales, La Paz, v.10, n.4, p.23-38, abril 1996. , p. 73).

A União Nacional dos Estudantes (em meio também à polêmica do Exame Nacional dos Estudantes que ainda não foi cancelado no Brasil, a saber, #AdiaEnem16 16 Disponível em: http://adiaenem.com.br/ Acesso: 18/05/2020. ), promoveu no dia 8 de maio de 2020 uma manifestação social intitulada #ForaBolsonaro. Essa manifestação social foi toda efetivada no espaço digital e ancorada em duas práticas tecnodiscursivas principais: num primeiro momento, a publicação nas redes sociais dos sujeitos segurando cartazes, nos quais estavam escritas uma ou várias das hashtags de reivindicação17 17 A saber, #peloadiamentodoenem;#pelademocracia; #emdefesadosus; # porauxílioemergencialparaosestudantes #peladefesadaciênciaepesquisabrasileiras; #contraademissãodosestagiáriosduranteapandemia; #foraweintraub e #forabolsonaro. e, num segundo momento, a participação da manifestação #forabolsonaro, por meio do site manif. app .

Essas duas práticas tecnodiscursivas ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. ), conforme a teoria da revascularização discursiva, propõem um percurso discursivo alternativo, para desviar uma obstrução primeira. Essa obstrução é tanto ideológica, como dissemos, encarnada na presença de um sujeito autoritário e incapaz de lidar efetivamente com a pandemia no Brasil, evidenciada, por exemplo, no fato de que em três meses de pandemia, o governo Bolsonaro já está em seu terceiro ministro da saúde, quanto uma obstrução física, a impossibilidade dos sujeitos de se deslocarem fisicamente no espaço social e, especialmente discursiva, os sujeitos não têm as suas demandas ouvidas.

A partir então da publicação do cartaz que contém, dentre outras, a hashtag #forabolsonaro (que intitula a manifestação desse dia proposta pela UNE), esse percurso libera o fluxo discursivo, dando vazão às afetividades que vivenciam os brasileiros em tempos de pandemia, acrescida de crise política e a geração de determinada vulnerabilidade política - a decadência da representatividade - e também de vulnerabilidade física - a doença e a fome. Observemos a seguir, alguns desses sujeitos participando dessa primeira forma de desobstrução discursiva:

Imagem 8
18 18 Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=3357655077595260&set=pcb.3357655314261903 Acesso: 18/05/2020. – Cartaz Adia Enem 1

Imagem 9
19 19 Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=3340622775965157&set=pcb.3340623445965090 Acesso: 18/05/2020. – Cartaz Adia Enem 2

Imagem 10
20 20 Disponível em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=3340593215968113&set=pcb.3340593765968058 Acesso: 18/05/2020. – Cartaz Adia Enem 3

Temos aqui, diferentemente dos exemplos anteriores, uma desobstrução discursiva complexa. A desobstrução discursiva complexa é por nós, compreendida, portanto, como aquela que é efetuada por um sujeito coletivo (a União Nacional dos Estudantes no exemplo), a partir de conjunturas mais amplas (calcadas em demandas sociais, políticas e econômicas, por exemplo) e que almejam uma finalidade também mais dilatada, coletiva (como a saída de um presidente).

Continuando no exemplo apresentado, nessa mesma manifestação social digital, foi proposta a participação pelo site manif.app . Esse site foi criado pelo artista francês Antoine Schmitt em 2019, “durante as intensas manifestações dos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos), em 2018-2019, por conta das dificuldades de acesso às manifestações devido à repressão policial” ( BUTCHER, 2020BUTCHER, I. Manif.app. MobileTimes, [s. l.], 06 maio 2020. Disponível em: https://www.mobiletime.com.br/tapps/06/05/2020/manif-app/. Acesso em: 26 jan. 2022.
https://www.mobiletime.com.br/tapps/06/0...
) e seu uso foi aberto ao público em 2020, por conta da demanda de reivindicação social sem a necessidade de aglomerações, expressamente proibidas, como medida de contenção da propagação do vírus.

O site manif. app está disponível em dez línguas, dentre elas o português, e logo na apresentação enuncia seu objetivo, que chamamos de desobstrução:

você deseja apoiar uma manifestação, mas você não pode ir pessoalmente (você está doente, você está muito longe, você está confinado em casa por causa de uma pandemia...). O site Manif.app lhe permite participar colocando o seu avatar no mapa, exatamente no lugar onde a manifestação está sendo realizada e assim demonstrar o seu apoio. O seu avatar será visível no mapa bem como todos os outros avatares. (MANIF.APP, 2020).

A capilarização discursiva é, por conseguinte, efetivada na possibilidade de criação de um avatar que se manifesta digitalmente em relação a determinada demanda: #forabolsonaro, por exemplo, criando um avatar, isto é, “uma representação gráfica de si na internet” (AVATAR, 2016). De um ponto de vista linguístico-discursivo é interessante ainda observar a possibilidade de “personalizar o seu avatar, associando o mesmo a um cartaz sobre o qual você pode escrever seu slogan. Você pode mover o seu avatar à vontade, ou retirá-lo da manifestação”.

Observemos a seguir o funcionamento dessa nova forma de militantismo digital ( CASTELLS, 2017CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na internet. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. ). Nela, é apresentado no canto superior esquerdo uma caixa com a palavra “slogan”, na qual é possível então digitar as palavras de ordem que serão inseridas no cartaz digital. Ao centro da imagem o avatar próprio do sujeito-manifestante é apresentado em vermelho, acompanhado do enunciado digitado/reivindicado. Em Brasília naquele momento tínhamos mais de 7 mil avatares, conforme observamos a seguir:

Imagem 11
– Avatar no manif.app21 21 Imagem gerada no dia da manifestação #forabolsonaro da UNE no manif.app (08/05/2020 - 15h).

O percurso da desobstrução discursiva complexa é, portanto, cumprido, no exemplo da manifestação da UNE, #forabolsonaro, quando a partir de uma obstrução discursiva (subjetiva ou pragmática, conforme explicitamos anteriormente), critério 1; é proposto um percurso discursivo alternativo, qual seja, manifestar-se - como e onde for possível - contra os malefícios vivenciados, critério 2; esse percurso libera então um fluxo discursivo, que estava sendo retido, isto é, a impossibilidade por conta da pandemia de sair às ruas, critério 3 e há, por fim, a capilarização discursiva em diferentes dispositivos (a rede social Facebook e o site manif.app , por exemplo), critério 4.

Umas poucas considerações semifinais

Com base em Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. e em Paveau (2019aPAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document. Acesso em: 27 jan. 2022.
https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-021...
, 2019bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , 2020), tentamos neste texto levar a cabo o objetivo inicial de ensaiar a proposição de uma teoria – a teoria da revascularização – mais em sintonia com práticas discursivas em efervescência na web, ou com os tecnodiscursos na concepção de Paveau (2017b)PAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. . Embora para uma visada metodológica mais tradicional os nossos dados sejam pouco representativos, as nossas análises nos permitiram mobilizar a categoria de revascularização discursiva para compreender o funcionamento do discurso de sujeitos em situação de vulnerabilidade, que se utilizam da web para resolver as suas obstruções/demandas. Postulamos a partir dos exemplos analisados dois tipos de revascularização discursiva: a simples e a complexa. A desobstrução discursiva complexa não é mais ou menos importante do que a desobstrução discursiva simples, apenas é de outra ordem, isto é, elas têm naturezas distintas. A segunda visa desobstruir problemas coletivos, a primeira, por sua vez, objetiva dirimir problemas mais individuais. Antes de finalizar, é preciso, no entanto, considerar algumas questões que nos parecem não ficaram muito claras ao longo do texto.

A primeira questão que merece esclarecimento se dá a partir das duas perguntas enunciadas no início deste artigo: no campo do discurso, não estaria na hora de agirmos com mais parcimônia e colocarmos em prática a navalha de Occam? Ou ainda em que medida o que estamos propondo como inovador não se trata simplesmente de uma notação científica (outro nome para coisas já existentes)? Entendemos que essas duas perguntas não se aplicam ao nosso texto, pois ambas partem de uma premissa falsa. No caso da primeira, o que estamos propondo não está em contraposição com uma resposta mais simples, como propõe a filosofia de Occam. A nossa resposta até o momento é a única que busca explicar o tipo de fenômeno estudado: como diante de uma obstrução discursiva os sujeitos encontram formas de criar percursos alternativos e resolver suas demandas. Assim, a navalha de Occam não é pertinente para o nosso trabalho. Também não se trata de uma notação científica (outro nome para coisas já existentes), uma vez que como já dissemos, a nossa proposta é a única existente para o tipo de fenômeno estudado.

A segunda questão tem a ver com um problema que atravessa todos os exemplos mobilizados. Embora produzidos por sujeitos distintos, inclusive no tocante à sua nacionalidade, as razões para as demandas são praticamente idênticas, isto é, sem condições financeiras, os sujeitos oferecem os seus serviços, o seu trabalho em troca de algo, no caso, alimento ou sem condições de realizar uma manifestação por questões ideológicas e pragmáticas, eles retomam um dispositivo tecnodiscursivo e realizam virtualmente a sua manifestação, nenhum dos sujeitos demanda por emprego, por exemplo. Esse dado é extremamente importante, pois mostra como as políticas de extinção dos direitos trabalhistas, consequentemente de extinção dos empregos, engendradas pelo governo brasileiro, extinguindo dos sujeitos em condição de vulnerabilidade a possibilidade mesmo de enunciar/demandar por um emprego. A luta é no primeiro caso por um trabalho temporário que mate imediatamente a fome dessas pessoas e, na segunda, pelo legítimo direito de manifestar-se. Cumpre destacar que não estamos questionando as demandas mostradas nos exemplos analisados, pois, como vimos, a vulnerabilidade é significada de variadas formas ( BENGOA, 1996BENGOA, J. Pobreza y vulnerabilidad. Temas Sociales, La Paz, v.10, n.4, p.23-38, abril 1996. ), estamos destacando uma questão extremamente importante: como gradativamente nos foi roubado do nosso imaginário e, consequentemente das nossas práticas discursivas e tecnodiscursivas: o direito de demandar por empregos dignos e, sobretudo, de sermos ouvidos em nossas demandas.

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  • MOIRAND, S. L’apport de petits corpus à la compréhension des faits d’actualité. Corpus, [s. l.], n.18, 2018. DOI : https://doi.org/10.4000/corpus.3519 Disponível em: http://journals.openedition.org/corpus/3519, 2018. Acesso em: 26 jan. 2022.
    » https://doi.org/10.4000/corpus.3519» http://journals.openedition.org/corpus/3519
  • PAVEAU, M.-A. Análise do discurso digital: dicionário das formas e das práticas. Campinas: Pontes Editores, 2021.
  • PAVEAU, M.-A. Feminismos 2.0. usos tecnodiscursivos da geração conectada. Trad. Julia Lourenço Costa. In: LOURENÇO, J.; BARONAS, R. L. Feminismos em convergências: discurso, internet e política. Portugal: Grácio Editor, 2020. p. 19-23.
  • PAVEAU, M.-A. La ressignification: pratiques technodiscursives de répétition subversives sur le web relationnel. In: PAVEAU, M.-A. (dir.). Discours numériques natifs: des relations sociolangagières connectées. Langage & Societé, Paris, n.167, 2019a. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document Acesso em: 27 jan. 2022.
    » https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02145765/document
  • PAVEAU, M.-A. La blessure et la salamandre: théorie de la resignification discursive. In: COLLOQUE DU CARISM, 2019, Paris. Stigmatiser : normes sociales et pratiques médiatiques. Paris: Université de Paris, 2019b. Disponível em: https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02003667 Acesso em: 27 jan. 2022.
    » https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-02003667
  • PAVEAU, M.-A. Féminismes 2.0. discours numériques de la génération connectée. Argumentation et analyse du discours, Tel Aviv, n.18, 2017a. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/2345 Acesso em: 26 jan. 2022
    » http://journals.openedition.org/aad/2345
  • PAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b.
  • PAVEAU, M.-A. Langage et morale: une éthique des vertus discursives. Limoges: Lambert- Lucas, 2013a.
  • PAVEAU, M.-A.; BARONAS, R. L.; LOURENÇO, J. Ressignificação em contexto digital. São Carlos: EDUFSCar, 2021.
  • PÊGO-FERNANDES, P. M.; GAIOTTO, F. A.; GUIMARÃES-FERNANDES, F. Estado atual da cirurgia de revascularização do miocárdio. Revista de Medicina, São Paulo, v.87, n.2, p.92-98, 2008.
  • SIMON, R. As carnival starts in Brazil skol sensibly pulls its rather silly adverts. Transition Consciousness, [s. l.], 14 fev. 2015. Disponível em: https://transitionconsciousness.wordpress.com/2015/02/14/as-carnival-starts-in-brazil-skol-sensibly-pulls-its-rather-silly-adverts/ Acesso em: 25 jan. 2022.
    » https://transitionconsciousness.wordpress.com/2015/02/14/as-carnival-starts-in-brazil-skol-sensibly-pulls-its-rather-silly-adverts/
  • SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010.
  • 1
    “Trata-se de um princípio científico e filosófico que propõe que, entre hipóteses formuladas sobre as mesmas evidências, é mais racional acreditar na mais simples. Ou seja: diante de várias explicações para um problema, a mais simples tende a ser a mais correta. O filósofo inglês William de Occam (1285-1347) não foi o primeiro a pregar isso: Aristóteles já fazia o mesmo no século 4 a.C. Mas foi o nome de Occam que ‘colou’, por causa do frequente uso que ele fazia do argumento em debates filosóficos. Já o termo ‘navalha’ ou ‘lâmina’ é uma metáfora que surgiu muito depois dele: sugere que, com o uso da parcimônia, a hipótese mais complicada é ‘cortada’” ( LAZARETTI, 2014LAZARETTI, B. O que é a Navalha de Occam? Super Interessante, São Paulo, 18 jul. 2014. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-e-a-navalha-de-occam/. Acesso em: 24 jan. 2022.
    https://super.abril.com.br/mundo-estranh...
    ).
  • 2
    Informação repassada pelo Prof. Dr. Francisco Gregori Junior, quando da entrevista para o procedimento médico de uma cirurgia de revascularização do miocárdio, realizada por um de nós no Hospital Evangélico de Londrina, em outubro de 2018.
  • 3
    Palavra-valise que junta aliança e polêmica.
  • 4
    Em 2010, esse artigo foi traduzido para o português, pela Profa. Sandra Regina Goulart Almeida et al. , transformado num pequeno livro e publicado pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais – EdUFMG, com o título Pode o subalterno falar? ( SPIVAK, 2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. ).
  • 5
    Os assassinatos de Anderson Gomes, Marielle Franco, João Pedro de Matos Pinto e George Floyd (este último nos EUA) com o consentimento ou com a autoria dos Aparelhos de Estado, infelizmente nos mostram que não vivemos numa sociedade decente.
  • 6
    Quando Spivak (2010)SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2010. faz menção aos intelectuais franceses, ela está se referindo basicamente a Michel Foucault e Gilles Deleuze. Não vamos entrar nessa polêmica, pois por um lado isso fugiria ao escopo do nosso artigo e, por outro, diferentemente da autora, discordamos que Foucault e Deleuze olham para o outro (o não-europeu) sem levar em consideração o tipo de poder e desejo que esse sujeito possui. Ver, por exemplo, a conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, intitulada Os intelectuais e o poder , publicada no livro Microfísica do poder ( FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 8.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. ).
  • 7
    A tradução deste dicionário para o português, que à época da escrita deste artigo estava estava sendo organizada por nós, foi publicada pela Editora Pontes de Campinas em 2021 (2021a).
  • 8
    “A web 2.0 ou web social ou participativa surgiu no início dos anos 2000 conectando pessoas e está assentada na interação de vários agentes (é a web das redes sociais e do compartilhamento multimidiático).” ( PAVEAU, 2017aPAVEAU, M.-A. Féminismes 2.0. discours numériques de la génération connectée. Argumentation et analyse du discours, Tel Aviv, n.18, 2017a. Disponível em: http://journals.openedition.org/aad/2345. Acesso em: 26 jan. 2022
    http://journals.openedition.org/aad/2345...
    , p.15).
  • 9
    Disponível em: http://www.conar.org.br/ Acesso: 18/05/2020.
  • 10
    Não é objeto nosso aqui discutir a segunda campanha publicitária criada pela Skol, após a primeira ter sido entendida como uma apologia ao assédio sexual feminino. Para um aprofundamento dessa questão, sugerimos a leitura da dissertação de mestrado “(Des)cristalizações de estereótipos femininos nos comerciais de televisão de 2017 da Skol”, de autoria da publicitária Cristiana Frazão Gomes, defendida em março de 2020.
  • 11
    Inicialmente a obstrução de base é socioeconômica e política. O autor do post é um dos muitos sujeitos invisibilizados pelo Estado brasileiro, obstruído pelo aplicativo do Auxilio Emergencial que não sai do Em análise . Ele não consegue ser ouvido pelo Estado brasileiro. O Estado é insensível a suas reclamações. De que adiantaria pedir um bolinho de aniversário para filha ao Estado? Então diante dessa obstrução ele cria um percurso alternativo para expressar sua situação de miserabilidade e sua demanda (um bolinho de aniversário para a filha em troca de serviço) – a rede social. Ele se desvia do Estado e fala direto com as pessoas que frequentam as redes sociais. Na rede social, há uma liberação do fluxo discursivo e suas demandas recebem uma resposta diferentemente do que a do Estado. A liberação do fluxo é seguida de uma capilarização por outros mídiuns. Estamos diante de uma obstrução social, econômica e política que vira uma obstrução discursiva porque o canal da comunicação entre essas pessoas e o Estado está interditado.
  • 12
  • 13
    Ao fazer essa afirmação não estamos, sobremaneira, desobrigando o Estado dos seus deveres para com seus cidadãos; estamos apenas olhando, a partir da perspectiva das ciências da linguagem, para as alternativas que são criadas pelo sujeito em situação de vulnerabilidade, como por exemplo, a desobstrução discursiva.
  • 14
    O discurso produzido no espaço digital da Web 2.0, segundo Marie-Anne Paveau, deve ser abordado enquanto tecnodiscurso, sendo o prefixo tecno “uma opção teórica que modifica a episteme tradicional das ciências da linguagem. É afirmar que os discursos digitais nativos não são de ordem puramente linguística, que as determinações técnicas coconstroem as formas tecnolinguísticas, que as perspectivas logo e antropocêntricas devem ser descartadas em prol de uma perspectiva ecológica e integrativa que reconhece o papel dos agentes não humanos nas produções linguísticas.” ( PAVEAU, 2017bPAVEAU, M.-A. L’analyse du discours numérique: dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017b. , p. 11).
  • 15
    Lembremos que Bolsonaro chamou, diversas vezes, o coronavírus de “gripezinha” e “histeria, por exemplo ( GRIPEZINHA..., 2020GRIPEZINHA e histeria: cinco vezes em que Bolsonaro minimizou o coronavirus. Uol, Brasília, 01 abr. 2020. Congresso em foco. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/gripezinha-e-histeria-cinco-vezes-em-que-bolsonaro-minimizou-o-coronavirus/. Acesso em: 18 maio 2020.
    https://congressoemfoco.uol.com.br/area/...
    ); enquanto o número de mortes, decorrentes desse vírus letal, passa de 17 mil no Brasil ( CASOS..., 2020CASOS de coronavírus e número de mortes no Brasil em 19 maio. G1, Rio de Janeiro, 19 maio 2020. Bem Estar. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/05/19/casos-de-coronavirus-e-numero-de-mortes-no-brasil-em-19-de-maio.ghtml. Acesso em: 26 jan. 2020.
    https://g1.globo.com/bemestar/coronaviru...
    ) e a Organização das Nações Unidas aponta que a fome deve atingir o dobro de pessoas em decorrência da pandemia ( CRISE..., 2020CRISE do coronavirus pode fazer fome quase dobrar no mundo este ano, aponta ONU. G1, Rio de Janeiro, 24 abr. 2020. Economia. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/21/crise-do-coronavirus-pode-fazer-fome-quase-dobrar-no-mundo-aponta-onu.ghtml. Acesso em: 27 já. 2022.
    https://g1.globo.com/economia/noticia/20...
    ).
  • 16
    Disponível em: http://adiaenem.com.br/ Acesso: 18/05/2020.
  • 17
    A saber, #peloadiamentodoenem;#pelademocracia; #emdefesadosus; # porauxílioemergencialparaosestudantes #peladefesadaciênciaepesquisabrasileiras; #contraademissãodosestagiáriosduranteapandemia; #foraweintraub e #forabolsonaro.
  • 18
  • 19
  • 20
  • 21
    Imagem gerada no dia da manifestação #forabolsonaro da UNE no manif.app (08/05/2020 - 15h).
  • Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP 2017/12792-0)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2020
  • Aceito
    3 Jul 2020
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