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PROCESSOS FÔNICOS NA PRODUÇÃO DE SENTIDO: A FONOLOGIA NA VIRADA PRAGMÁTICA1 1 ALBANO, Eleonora Cavalcante. O Gesto Audível: Fonologia como Pragmática. São Paulo: Cortez, 2020. 255p. (Resenha).

ALBANO, Eleonora Cavalcante. . O Gesto Audível: Fonologia como PragmáticaSão Paulo: Cortez, 2020255p. Resenha

O livro “O Gesto Audível: Fonologia como Pragmática”, de autoria de Eleonora Cavalcante Albano, foi lançado em 2020, pela Cortez Editora, logo no início da pandemia de Covid-19. Essa tragédia, que impactou expressivamente muitas de nossas práticas acadêmicas, teve também o efeito de dispersar a atenção de acontecimentos importantes no meio científico. O lançamento do livro, que estava planejado para acontecer nos moldes tradicionais no primeiro semestre de 2020, foi cancelado, como vários outros eventos. Esses fatos certamente contribuíram para o livro não ter recebido a atenção que efetivamente merece.

Estruturado em seis capítulos, o livro, em suas 255 páginas, também apresenta uma seção de agradecimentos, um breve prólogo, índice remissivo e referências bibliográficas. Trata-se de uma obra aberta, como bem anuncia sua autora logo no prólogo. Assim, ao invés de oferecer fórmulas prontas e exercícios com chave de resposta, costumeiros em manuais acadêmicos publicados por editoras comerciais com o objetivo primário de atender as demandas do mercado, a obra aqui resenhada apresenta-se como um convite à reflexão conjunta. A proposta reflete a práxis filosófica da autora, que, neste livro, sintetiza — mas não esgota — o trabalho desenvolvido ao longo de sua carreira acadêmica e de sua atuação como coordenadora do histórico grupo de pesquisa DINAFON (Dinâmica Fônica), sediado na Unicamp.

No capítulo inicial, “Linguagem e gestualidade humana”, delineia-se a proposta e desafio do livro, que é situar e atribuir ao gesto articulatório e à dinâmica da produção da linguagem, oral ou gestual, estatuto de ação social basilar para a negociação da significação. Em outras palavras, a ideia é conceber o signo linguístico como composto de ações e embutido em ações, em que o significante é parte da pragmática. A autora, no entanto, adverte que a tentativa de pensar o significante como algo não estático, mas, sim, um conceito que contribui para a atribuição de sentidos não visa apenas à elegância teórica. O que se objetiva é coadunar a concepção abstrata do significante fônico ao reconhecimento da sua corporeidade. Isso irá garantir a compreensão simultânea dos aspectos mais estáveis desse conceito e de sua variabilidade no tempo e no espaço.

Para desenvolver esse argumento, o capítulo apresenta um percurso histórico das ideias linguísticas bastante instigante, descrevendo estudos clássicos e recentes que refletem sobre a origem da linguagem, como, por exemplo, a concepção da língua de sinais da Nicarágua, casos de privação da linguagem e estudos com primatas. Todos os exemplos servem para corroborar uma das teses centrais do livro: a de que a fonologia é a lógica da produção de gestos articulatórios e de sua sensibilidade ao contexto linguístico através de movimentos coordenados. Trata-se de uma proposta transdisciplinar que interroga a fronteira entre as ciências naturais e humanas. Importante dizer que este primeiro capítulo é redigido em uma linguagem bastante clara, o que torna a sua leitura acessível para não-especialistas e para estudantes de graduação — algo relativamente raro em uma obra que discute conceitos abstratos com grande profundidade.

Em seu segundo capítulo, intitulado “Gradientes e categorias fônicas”, o livro apresenta inúmeros exemplos de análise na perspectiva da fonologia de laboratório, mostrando como várias questões clássicas sobre a linguagem humana não mais comportam respostas do tipo sim ou não, em virtude da natureza gradiente dos fenômenos linguísticos. Cabe dizer aqui que Eleonora Albano foi responsável pela introdução dos estudos de Fonologia de Laboratório no Brasil. Ela não apenas formou no Brasil os primeiros pesquisadores nessa linha de investigação, como produziu um vasto e expressivo material bibliográfico baseado nessa abordagem analítica, que é frequentemente citado.

No capítulo, a autora discute os sistemas fonológicos sob a luz de diversas teorias, apontando lacunas que se verificam em línguas pouco estudadas e reiterando as vantagens de se considerar os gestos articulatórios na classificação dos sistemas fonológicos, com ilustrações muito claras, como é o caso do exemplo do ruandês, apresentado a partir da página 57. Ao refletir como falantes do ruandês conseguem produzir segmentos complexos em intervalo de tempo relativamente pequeno, sendo, ainda assim, inteligíveis para a comunidade de fala, a autora conclui que os gestos articulatórios podem muito mais que apenas formar palavras ou indicar fronteiras linguísticas.

O gesto fonológico faz, no sentido austiniano, “coisas fonológicas”, isto é, cria sonoridades a partir de regras mutáveis que são necessariamente públicas e compartilhadas. Assim, o gesto articulatório situa-se na lógica da fala, e não apenas no seu aspecto físico. Nesse sentido, quando abordamos fenômenos de variação, como, por exemplo, as alofonias gradientes, é apropriado que o tratamento seja fonológico — e não estritamente fonético, como propõem áreas como a sociofonética. Para solidificar a proposta de união entre as concepções de categorias e de gradientes, a autora oferece uma alentada discussão sobre o estatuto da sílaba na perspectiva teórica que o livro avança.

O terceiro capítulo, “Dinâmica fônica e sensório-motricidade”, começa afirmando que cabe à fonologia gestual indagar como lidar com um sintagma fônico que não é apenas um eixo de sucessão e com um paradigma fônico que não é apenas um eixo de substituição, como propõe a fonologia estruturalista. Em particular, como abordar as questões do marco temporal e da organização interna dos passos de cada nível, uma vez que as noções de sintagma e paradigma são caracterizadas por sobreposições e desalinhamentos. Esses desafios, embora já estejam em debate há cerca de três décadas, não estão esgotados. Assim, por exemplo, como abordar unidades de nível mais alto quando os gestos articulatórios observáveis são limitados ao nível do segmento?

A autora apresenta no capítulo o desenvolvimento das pesquisas em fonologia gestual que acompanhou de perto nas duas últimas décadas, discutindo, entre outras coisas, a problemática da postulação de marcos gestuais estáticos e a possibilidade de marcação de movimentos coordenados através de modelos específicos. Observa, todavia, que a fonologia gestual só será plenamente defensável quando fizer mais justiça à sua herança saussuriana. Há neste ponto uma importante discussão sobre unidades fonológicas de nível superior. De acordo com a autora, fazer este exame a partir da perspectiva da proeminência tem a vantagem de nos tornar conscientes do quanto a fonologia gestual se debate entre o idealismo e o fisicalismo. Isso acontece porque a noção de proeminência tem raízes humanísticas muito antigas. E sobre o avanço do fisicalismo nas ciências humanas, a autora adverte que é preciso atenção para não cair nas armadilhas dos modismos científicos e da fragmentação do pensamento. Esse, aliás, é um tema que vem discutindo em seus artigos no portal A Terra é Redonda1 1 https://aterraeredonda.com.br/tag/eleonora-albano/. .

Os capítulos quarto e quinto exploram aportes brasileiros na aplicação do modelo da fonologia gestual. O primeiro deles, “Aportes brasileiros: questões clássicas”, trata de problemas fonológicos tradicionais, reportando resultados de estudos laboratoriais recentes, e o segundo, “Aportes brasileiros: questões de fronteira”, trata de problemas que cruzam fronteiras disciplinares. São capítulos importantes porque traçam um painel da aplicação do modelo no cenário brasileiro, o que mostra definitivamente a vitalidade da abordagem e o seu poder de análise.

No quarto capítulo, a autora discute, por exemplo, os conceitos de categorias e gradientes, fazendo referência a estudos de línguas ameríndias brasileiras; retoma a discussão sobre a especificação arbitrária das defasagens entre os gestos articulatórios, dessa vez apresentando resultados de estudos sobre o papel da redução no impulsionamento e na disseminação da variação e da mudança linguísticas; considera, mediante resultados de estudos desenvolvidos no Laboratório de Fonética e Psicolinguística — LAFAPE, fatores que podem afetar a formação de semelhanças de família no campo fônico; demonstra a compatibilidade da noção de gesto articulatório com uma posição filosófica, inserido os processos e mudanças fônicas num quadro teórico alternativo ao idealismo e ao fisicalismo.

O quinto capítulo inicia-se com a discussão de como a concepção da linguagem como ação foi responsável pela queda de fronteira na filosofia da linguagem, a chamada virada pragmática. Nesse sentido, discute o conceito de acomodação, fazendo uma ampla revisão da literatura e trazendo exemplos de pesquisas desenvolvidas nos laboratórios LAFAPE e DINAFON. Inicialmente, apresenta e discute a proposta de um horizonte que considere múltiplos cérebros, ou cérebros acoplados. Essa proposta permite que se compreenda melhor o fenômeno da acomodação, embora os resultados de estudos revisados sugiram que o desenvolvimento da acomodação é complexo e paulatino, dependendo da experiência social e cognitiva.

Em seguida, aponta a incipiência de estudos sobre a acomodação fônica na infância, algo fundamental para um melhor entendimento para a elucidação dos conceitos de imitação e de acomodação. Mediante referência a diversos estudos, defende que a noção de acoplamento de osciladores consegue dar conta de padrões temporais mais amplos, como, por exemplo, aqueles envolvidos na aquisição da prosódia, e de padrões temporais mais estreitos, como os envolvidos na aquisição de segmentos. A seção seguinte discute as diversas formas na acomodação fônica, considerando-as produtos de diferenças sociais que precisam ser abordadas em uma versão da fonologia gestual que esteja antenada com a natureza social da aquisição da linguagem.

Por fim, a última seção descreve resultados de estudos que demonstram como bilíngues, profissionais da voz, cantores e locutores coadunam demandas de diferentes domínios cognitivos sobre o seu trato vocal, corroborando assim a tese de que a aquisição da linguagem se estende muito além da infância e da adolescência. O capítulo finaliza apontando lacunas e desafios, sendo um deles o de operacionalizar uma noção de gesto articulatório que seja não só extensível e corporificada, mas também situada e socializada.

O sexto e último capítulo, “Dilemas, desafios, horizontes” começa com a tese central do livro, que foi adiada precisamente para familiarizar o leitor com as ideias e os fatos que a sustentem. Eleonora Albano propõe que todos os processos fônicos são potencialmente produtores de sentido, mesmo que essa potência jamais se realize. Essa seria uma fonologia coerente com as implicações da virada pragmática — o que nos exige aprender a lidar com janelas temporais cada vez maiores e mais finamente caracterizadas. O capítulo e o livro concluem com tomadas de posição políticas contundentes. Uma delas é a de que não se produz nada de criativo sem romper com os poderes instituídos, sobretudo em tempos de obscurantismo. O livro “O Gesto Audível”, por romper audaciosamente com propostas teóricas tradicionais, oferece à área uma contribuição necessária, urgente e inescapável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2022
  • Aceito
    10 Nov 2022
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