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Fotografias históricas da América Latina

Historical photography from Latin America

Fischer, M; Kraus, M. 2015. Exploring the archive: historical photography from Latin America. (The Collection of the Ethnologisches Museum Berlin). Köln, Weimar, Wie: Böhlau Verlag,

Arquivos não costumam ser os ‘campos’ mais procurados por antropólogos, mas, hoje, não seria considerado como incomum um estudo antropológico ser baseado principalmente em materiais arquivísticos. Isso também vale para trabalhos que analisam fotografias históricas para extrair delas informações etnográficas. Além disso, consolidou-se, nas últimas décadas, um corpus bibliográfico sobre os aspectos teóricos e metodológicos de pesquisas feitas por meio de materiais textuais e visuais arquivados. Desse modo, o que atualmente provoca mais curiosidade é saber quais tesouros determinados arquivos guardam e como eles podem ser aproveitados para a pesquisa antropológica. Essa curiosidade é atendida com plena satisfação pelo livro de Fischer e Kraus (2015), ora resenhado.

A obra trata de um compêndio de fotografias históricas da América Latina presente no Ethnologisches Museum, de Berlim, cujas coleções etnográficas ficarão expostas, a partir do final de 2020, no Humboldt Forum, no centro da cidade, enquanto os depósitos, com os cerca de 500.000 objetos, e os arquivos, com as 285.000 fotografias etnográficas, por enquanto, continuarão no bairro de Dahlem. A impressionante abundância de materiais do museu, inaugurado em 1873, deve-se, em sua fase inicial, ao colecionismo ávido de Adolf Bastian (1826-1905), um dos fundadores e primeiro diretor da instituição. No decorrer do tempo, o conjunto de fotografias do museu cresceu consideravelmente, seja por doações, seja por aquisições; no entanto, as coleções mais valiosas resultaram de pesquisas financiadas pelo próprio museu. Como explicam os organizadores desta obra, é impossível descobrir um denominador comum da qualidade e da composição das coleções, de modo que sua característica principal seja a heterogeneidade, seja em termos gerais, seja no que concerne às coleções específicas.

As coleções apresentadas e analisadas no livro não representam a totalidade das fotografias sobre a América Latina presentes no Ethnologisches Museum, sendo, no entanto, uma seleção daquelas que têm suas origens em duas instituições estreitamente relacionadas: a Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte (BGAEU; Sociedade Berlinense de Antropologia [Física], Etnologia e Pré-História), fundada em 1869, e o Königliches Museum für Völkerkunde (Museu Real de Etnologia), fundado em 1873 e antecessor do atual museu.

A publicação deste livro foi estimulada por um projeto de pesquisa, financiado pela Deutsche Forschungsgemeinschaft (DFG; Sociedade Alemã de Pesquisa), que possibilitou digitalizar cerca de 6.500 fotos com temas latino-americanos e mostrar uma parte do acervo em uma exposição do museu, realizada entre 2013 e 2014. Os artigos que compõem a obra apresentam numerosos detalhes sobre os contextos das coleções: sua composição e aquisição; a história das fotos antes de serem integradas no acervo do museu; as intenções dos fotógrafos; e as histórias sobre sua conservação, organização e catalogação.

A sequência dos 17 artigos da coletânea não é apresentada em partes identificáveis no sumário, mas a excelente introdução de Michael Kraus chama a atenção para uma série de conjuntos temáticos, segundo os quais os artigos foram organizados: políticas de aquisição, gerenciamento das coleções e conservação; coleta de objetos arqueológicos no Peru do século XIX e o comércio de antiguidades; a produção de imagens para os veículos midiáticos de grande circulação na segunda metade do século XIX e no início do século XX; a comercialização de fotografias com temas etnográficos e arqueológicos; fotografias de viajantes e pesquisadores nas terras baixas da América do Sul; as relações entre os museus etnológicos de Berlim e Gotemburgo; e os contextos políticos da produção de fotografias.

Uma descrição e avaliação individual de todos os artigos extrapolaria o espaço de uma resenha, mas é possível garantir aos leitores que todos merecem ser destacados. Para os leitores mais interessados na etnologia indígena do Brasil, há quatro artigos muito bem escritos. Andreas Valentin apresenta a coleção fotográfica Kroehle-Hübner, chamando a atenção para as diversas qualidades das fotografias produzidas por George Hübner (1862-1935) nas várias fases de sua vida. Por sua vez, o texto de Paul Hempel, sobre Paul Ehrenreich (1855-1914) como fotógrafo durante a segunda expedição etnográfica alemã ao alto Xingu (1887-1888), explicita a relação entre fotografia e teoria etnológica na obra do etnólogo e como os padrões contemporâneos de pesquisa de campo influenciaram os tipos de fotos. O uso da fotografia como instrumento de pesquisa teria sido, de acordo com a interpretação de Hempel, o prenúncio de uma mudança de estilos entre a geração de Karl von den Steinen e aquela de Ehrenreich.

O artigo de Michael Kraus sobre as fotografias etnográficas de Wilhelm Kissenberth (1878-1944) é particularmente interessante por causa de suas interpretações cautelosas e sensíveis, já que a expedição de Kissenberth, a mais cara financiada pelo museu na época, é conhecida como um grande fracasso. Mas os fracassos na vida acadêmica também podem gerar estímulos incomuns para trabalhos científicos, como se sabe no Brasil, ao mais tardar, desde a publicação da biografia do historiador Rüdiger Bilden (Pallares-Burke, 2012Pallares-Burke, M. L. G. (2012). O triunfo do fracasso: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora Unesp.). Kraus analisa as fotos de Kissenberth em comparação com as informações sobre a expedição, chegando à conclusão de que as tensões de sua realização também encontraram expressão no material imagético produzido. Outro texto muito interessante é o artigo de Federico Bossert e Diego Villar sobre Max Schmidt (1874-1950) como fotógrafo, mas é uma pena que os autores escreveram pouco sobre as fotografias de Schmidt, enquanto a maioria do artigo trata de vida, obra e personalidade do etnólogo.

O artigo de Margrit Prussat sobre as fotografias para cartes de visite com motivos sul-americanos, como um gênero visual particular, também faz parte das contribuições que merecem ser destacadas. Trata-se de um tipo de souvenirs de outra época, com função social, mas será que eles têm importância para estudos etnográficos? Segundo a autora, sim, porque as imagens permitem tirar conclusões sobre seus produtores, suas intenções e sobre as referências locais dos retratados e, desse modo, é possível estudá-las segundo vários pontos de vista. Prussat faz questão de sublinhar que, entre as fotografias cartes de visite do museu, não se encontra nenhuma com tema antropométrico, mas que predomina a categoria do native portrait. Na contribuição de Hinnerk Onken, o autor discute os contextos históricos, culturais e ideológicos das grandes coleções de cartões postais com temas latino-americanos no museu e, com base em uma abordagem pós-colonial, explicita os estereótipos, as ideologias e as imaginações contemporâneos perceptíveis nas imagens. E Frank Stephan Kohl escreveu, em seu artigo sobre as primeiras fotografias comercializadas do alto Amazonas, por que apenas determinados motivos foram incorporados nas coleções do museu, o que permitiria lançar um olhar sobre a construção imagética da América Latina na época.

Manuela Fischer escreveu um dos artigos que desperta mais curiosidade, embora não se trate de um tema antropológico clássico. Ela versa sobre a tentativa fracassada de estabelecer a colônia Nueva Germania no Paraguai, uma experimentação pré-nazista pautada na ideia de criar uma comunidade ‘puramente germânica’ na América do Sul, sob a liderança de Bernhard Förster (1843-1889), casado com Elisabeth Förster-Nietzsche, irmã do filósofo Friedrich Nietzsche. O artigo se baseia no relato, publicado em 1889, de um ex-colono arrependido.

A coletânea resenhada representa uma riquíssima fonte de informações. O trabalho editorial é impecável, de modo que a leitura é muito prazerosa e estimuladora. Além dos textos, há um elevado número de fotos e outras imagens em excelente qualidade. Toda a riqueza das coleções fotográficas do Ethnologisches Museum pode ser consultada e pesquisada em detalhes em SMB-digital (n.d.)SMB-digital. (n.d.). Online-Datenbank der Sammlungen. Recuperado de http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus
http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus...
. Listas de grupos étnicos identificados nas fotos e de fotógrafos, estúdios fotográficos e distribuidores de fotos podem ser consultadas nas páginas 39-42 da introdução de Michael Kraus. Em resumo, trata-se de uma excelente publicação, cuja leitura pode ser recomendada enfaticamente a todas as pessoas que se interessam por coleções fotográficas e o que elas revelam.

  • Schröder, P. (2020). Fotografias históricas da América Latina. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(1), e20200010. doi: 10.1590/2178-2547-BGOELDI-2020-0010

REFERÊNCIAS

  • Pallares-Burke, M. L. G. (2012). O triunfo do fracasso: Rüdiger Bilden, o amigo esquecido de Gilberto Freyre São Paulo: Editora Unesp.
  • SMB-digital. (n.d.). Online-Datenbank der Sammlungen Recuperado de http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus
    » http://www.smb-digital.de/eMuseumPlus

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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