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ELA, NÓS: tecnologia, afeto e sociabilidades na contemporaneidade1 1 Versão preliminar deste artigo foi apresentada no 24º Encontro Nacional COMPÓS. Sugestões apresentadas e debatidas foram incorporadas ao texto da presente versão.

HER, US: technology, affection and sociability in contemporaneity

Resumo

O artigo, tomando como objeto o filme Ela (Her, Spike Jonze; 2013, EUA), trata da interface homem/máquina e dos desdobramentos concernentes às relações entre o elemento humano e o advento da técnica. O intuito principal é refletir sobre a abordagem conceitual do termo “técnica” e sua interpretação em práticas culturais da contemporaneidade, considerando questões atinentes a afetos e sociabilidades. O direcionamento teórico-analítico orienta-se a partir de conceitos da sociossemiótica e de estudos e reflexões de Martin Heidegger, filósofo alemão que se debruça sobre a problemática da técnica moderna, no momento em que a sociedade assiste à redução das distâncias e aos efeitos de presença daí decorrentes, fenômeno que tende a ser vivenciado de forma ambígua, misturando sensações de receio e de encantamento.

Palavras-chave
interface homem/máquina; técnica/tecnologia; Ela; sociabilidade; afetos

Abstract

The essay, focusing on the film Her (Spike Jonze; 2013, EUA), deals with the problem of man/machine interface and its consequences, concerning the relationship between the human element and the advent of technique. The main purpose is to discuss the conceptual approach of the term "technique" and its interpretation in contemporary cultural practices, considering matters related to affection and sociability. The theoretical and analytical basis are derived from socio-semiotic concepts and from German philosopher Martin Heidegger’s studies, and reflections about the issues of modern technique in a time when society watches the shortening of distances and the resulting effects of presence, a phenomenon which tends to be experienced in an ambiguous way, mixing up fear and enchantment sensations.

Keywords
man/machine interface; technique/technology; Her; sociability; affections

Introdução

A questão da técnica, de sua encarnação em máquinas e aparelhos, é tema recorrente em domínios diversos como o da arte, da cultura e da ciência. De um modo geral, concebida como uma ação eficiente do homem sobre a natureza com vistas a dispor de suas potencialidades e a tornar a vida menos árdua, a técnica foi sendo associada ao longo da história às ideias de conforto e bem-estar social. Nas últimas décadas, aperfeiçoada a estágios de grande, e surpreendente, responsividade aos comandos do homem, a máquina, em sentido amplo, converte-se na chamada era do digital em produto “inteligente”, atributo até então outorgado à racionalidade humana. Trata-se, no entanto, de uma “inteligência artificial”, ou seja, derivada e controlada pela primeira. Sob tal denominação, enfatiza-se o poder cognitivo para antecipar, resolver, superar problemas, bem como economizar ao máximo o dispêndio das energias do homem.

Ser inteligente, porém, diz respeito igualmente a saber ser feliz, não importa em qual acepção esse termo venha a ser abordado. Assiste-se, assim, cada vez mais, à busca pelos processos técnicos (hoje, sobretudo, na forma de softwares) suscetíveis de suprir carências afetivas e necessidades vinculantes das pessoas. No âmbito das práticas contemporâneas, ambientes urbanos modificados digitalmente, roupas e acessórios wearable computer, interações à distância e em tempo real, entre outros procedimentos, são reveladores do emprego da técnica em prol de um conceito de bem-estar menos positivista, e mais esteticamente kantiano, no sentido de práticas destinadas a afetar emotivamente o sujeito, dando-lhe a sensação de partilhar de uma comunidade de sentimentos (KANT, 2009 KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. São Paulo: Ícone, 2009.).

Esse é o recorte, e o mote, deste trabalho: o crescente vínculo sensível do homem com aplicativos programados para com ele interagir emotivamente, a medida de suas potencialidades e a abertura (ou não) que promovem para a compreensão da própria condição humana. Tais perguntas integram-se a um projeto maior sobre cultura digital e produção cinematográfica, e a uma reflexão específica para este caso, suscitada pelo filme Ela, de Spike Jonze, lançado no final de 2013 nos Estados Unidos e exibido no Brasil no primeiro semestre de 20142 2 Título original: Her. Roteiro/direção: Spike Jonze; fotografia: Hoyte van Hoytem; direção de arte: Austin Gorg. .

Visando a atender esse interesse, nossa proposição desdobra-se em duas vertentes intimamente articuladas: a questão da técnica no filme, e a questão da técnica no pensamento reflexivo do filósofo alemão Martin Heidegger, que viu nessa problemática “prospectos acerca do futuro do homem”3 3 Tomamos de empréstimo a expressão que serve, como tese, de subtítulo ao livro de Francisco Rüdiger – Martin Heidegger e a questão da técnica: prospectos acerca do futuro do homem (2006). Amparado em leitura crítica de um conjunto de textos do pensador alemão, Rüdiger ressalta com acuidade a percepção de Heidegger sobre tal aspecto em face da definição de ser homem e do futuro da humanidade. . Nosso questionamento vai na direção de compreender o caminho que a técnica pode apontar para a a percepção da própria vida, e de seu entorno, no discurso examinado.

Das imagens de Ela

Ambientado na cidade norte-americana de Los Angeles – uma Los Angeles futurista, que tem lugar no tempo de um futuro próximo não especificamente determinado – Ela aborda a problemática das angústias, dramas e entraves das relações humanas em uma sociedade modulada pela onipresença da tecnologia; e coloca no centro da tela, melancólica e poeticamente, a questão do vazio interior que, em maior ou menor escala, de forma latente ou manifesta, sempre acompanha homens e mulheres em todos os tempos e em qualquer lugar. Na Los Angeles do filme, toda ela amplamente verticalizada por torres e arranha-céus – obras arquitetônicas vertiginosamente altas e totalmente equipadas com tecnologia de inteligência ultra-avançada –, as pessoas perambulam pelos espaços exteriores e interiores permanentemente entretidas com seus equipamentos eletrônicos e absorvidas em intermináveis falações ao telefone celular. Solitariamente agrupadas em multidões que se movimentam freneticamente em todas as direções, ocupadas cada qual com suas conversas e interlocutores invisíveis, parecem falar sozinhas no isolamento coletivo de cada uma4 4 Filmado em Los Angeles, predominantemente, e em Xangai, Ela apresenta o teor existencialista que se verifica em muitas das obras do diretor americano. O elenco é formado por Joaquin Phoenix (o protagonista), Scarlett Johansson (a voz), Rooney Mara, Amy Adams, Olivia Wilde, entre outros. .

O protagonista é o introspectivo e solitário Theodore Twombly, um jovem adulto já entrando na maturidade e recém-saído de um casamento fracassado. Theodore é funcionário de uma firma especializada na produção de cartas que simulam terem sido escritas à mão – a BeautifulHandwrittenLetters.com. O site, conforme já indica o nome, providencia o conteúdo e a remessa de correspondência de caráter pessoal para clientes que desejem agraciar outras pessoas. Essa função parece mais instigante no contexto do filme pelo fato de que a caligrafia, ainda que simulada, representa um dos últimos resquícios da expressão identitária de um sujeito, sua marca pessoal impressa no corpo da palavra escrita. A rotina da personagem divide-se entre o trabalho de composição das cartas que lhe são solicitadas; as lembranças da relação amorosa que tivera com a ex-esposa, a quem tenta esquecer; os passeios por salas de bate-papo, contemplação de imagens de mulheres nuas e escuta de músicas garimpadas na internet, partidas de videogame; e, raramente, breves encontros presenciais com alguns poucos amigos. Apesar de desempenhar cotidianamente as atividades de redator de cartas ditas “manuscritas”, Theodore jamais pousa as mãos em qualquer tipo de mouse ou teclado: o texto das tais cartas vai surgindo na tela do monitor, em letras que simulam serem cursivas, à medida que o protagonista vai ditando as sequências de frases e parágrafos que compõe e articula. Toda e qualquer solicitação ao computador é realizada por intermédio dos comandos de voz ou da captação de movimentos que executa; mesmo quando se põe a jogar avançados tipos de videogames, a garimpar imagens e músicas na internet, quando se aventura a procurar interlocutores em salas de bate-papo ou parceiras em salas de sexo online, o protagonista raramente se coloca em contato tátil com coisa alguma – salvo nos momentos em que tem nas mãos o celular, ou quando gruda na pele a câmera, minúsculo pontinho preto, ou acomoda no ouvido o diminuto fone de ouvido. A despeito de ser um profissional especializado em expressar sentimentos, é notável que tenha problemas para se relacionar com pessoas, e extrema dificuldade quando se trata de liberar os próprios sentimentos. O caráter introspectivo de Theodore é indiciado já desde o sobrenome – Twombly –, que traz embutido no significante a palavra womb (útero) – que remete à noção de interioridades como entranhas, ventre materno. Ressalte-se também que o primeiro nome – Theodore (deus dourado, fulgurante) – compõe com o sobrenome uma dicotomia que reflete o caráter ambivalente do protagonista, especialista em expressar sentimentos do lado profissional e fechado em seu isolamento na vida pessoal.

A monotonia dos dias de Theodore é subitamente quebrada quando adquire e instala em seus computadores e no celular o Sistema Operacional de Inteligência Artificial (o SO1), inusitado produto comercial anunciado com a promessa de ser uma “entidade intuitiva” capaz de “escutar”, “compreender” e “conhecer” seus usuários; o SO1 lhe fornece Samantha, uma voz pela qual ele se apaixona.

Desprovida dos habituais androides e das costumeiras holografias, luzes neon, e livre da profusão barroca dos aleatórios e mirabolantes efeitos especiais que costumam dar forma aos filmes ambientados no futuro, a estética de Ela tem certo tom de nostalgia contida: a despeito do cenário de ficção científica, e da presença dos efeitos especiais – relativamente discretos e parcimoniosamente dosados – de que se vale, o filme remete, quase bucolicamente, aos Estados Unidos dos anos 1930, quando recém-assolado pela grande depressão econômica de 1929. O plano da expressão sublinha e reflete, dessa forma, o estado de depressão psicológica mais ou menos acentuado que, no plano do conteúdo, parece acompanhar a maior parte das personagens – as quais perambulam pelo filme em figurinos que misturam trajes saídos de décadas passadas (anos 1950, 1960) e elementos de estilo e indumentária próprios da contemporaneidade. Enquanto as roupas e os cabelos ostentados por tais figuras indicam, significativamente, a bizarra desconexão de personagens perdidas no tempo e um tanto soltas no espaço, por sua vez a cidade futurista evidencia conexões e laços com épocas remotas exibindo coloração sépia, levemente amarelada, que tanto evoca fotos antigas quanto remete a composições resultantes de filtros como os que presentemente são utilizados, por exemplo, na edição das imagens postadas em redes sociais como o Instagram e outras. Cores pastel conferem às cenas, de modo geral, uma tonalidade diáfana; e o clima, por vezes quase onírico, é de suave melancolia. A trilha sonora, que alterna e combina articuladamente piano, violão e composições eletrônicas, mistura ocasionalmente temperada com sonoridades típicas de computadores e celulares, contribui para enfatizar a fusão do passado com o futuro, a mistura do antigo com o novo – procedimento que pode ser lido como tentativa de crítica, desmistificação da noção de originalidade e novidade plenas, do caráter de inquestionável inusitado que costuma acompanhar cada surgimento de “novas tecnologias”. Fusões e misturas, diga-se, refletidas também no plano diegético: a atividade profissional do protagonista consiste em ditar cartas pessoais a computadores que as escrevem em letra tipo manuscrita e editam-nas como se tivessem sido elaboradas pelas mãos do destinador; impressas, as missivas – por vezes decoradas com ilustrações que também simulam serem feitas à mão – são remetidas aos respectivos destinatários, à moda antiga, em belas folhas de papel especial. E, paradoxalmente, não obstante a avançada tecnologia que no filme poderia ser alçada à condição de personagem – posto que na trama é presença enfática, invasiva e definitivamente dominante no cotidiano das pessoas –, o aparelho do qual emana a voz de Samantha, sempre próximo ao corpo de Theodore (preso ao bolso da camisa por alfinete de segurança), ou ao alcance de suas mãos, é um inexpressivo e despretensioso telefone celular que em nada se assemelha aos smartphones da atualidade.

Contrastando com as cenas em que imperam os dispositivos eletrônicos alternam-se cenas em flashback – vivamente iluminadas, em cores brilhantes, pontuadas por múltiplos contatos físicos, rápidos quadros de um passado recente em que Theodore contracena com sua antiga mulher, a esposa ainda querida, da qual está se divorciando. É justamente nessa brecha – fissura que se transforma em furo e depois em buraco – constituída pela falta do ser amado que surge espaço para alojar Samantha.

Tal como uma secretária particular, a voz – que emana dos computadores e do celular de Theodore –, tenta inicialmente organizar a vida conturbada do protagonista: o sistema (Samantha) administra e-mails, agendas de compromissos; e também se esforça por elevar-lhe a moral e a autoestima. Mesmo desprovida de um corpo, tal como o concebemos fisicamente, a voz tem corpo próprio manifestado nas marcas de sua performatividade na expressão oral, como o timbre, a entonação, a modulação tonal, e outras características que podem torná-la, guardadas as especificidades culturais, mais ou menos sedutora. Retomando Zumthor, “escutar um outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte. Essa voz, dirigindo-se a mim, exige uma atenção que se torna meu lugar, pelo tempo dessa escuta.” (ZUMTHOR, 2000ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000., p. 98). Em suma, Twombly encontra na escuta da voz de Samantha seu espaço de preenchimento e afeto. Entretanto, programada para ser uma inteligência artificial, capaz de aprender com as pessoas com as quais “interage” e também com a leitura e troca de informações, simultânea e permanente, com diversos outros sistemas de inteligência, Samantha começa a verbalizar ideias, pensamentos e sentimentos cada vez mais inusitados e criativos, tanto a seu próprio respeito quanto a respeito de Theodore. Rapidamente a voz passa a desejar ter um corpo físico e, à moda de Pinocchio, o boneco de madeira da literatura italiana (COLLODI, 2011COLLODI, C. Le avventure di Pinocchio – storia di um burratino. Casale Monferrato: Edizioni Piemme, 2011.), transformar-se em uma pessoa “de verdade” – seja lá o que “de verdade” signifique.

Da técnica e de Ela

Tratar da interface homem-máquina implica considerar o homem no quadro da questão da técnica. Martin Heidegger5 5 Para a elaboração deste artigo foram consultadas duas edições do estudo A questão da técnica, ambas integradas ao conjunto dos Ensaios e Conferências de Heidegger. A primeira leitura, em edição francesa, apoiou-se na tradução do texto alemão de 1958, e foi publicada pela editora Gallimard (2010); a segunda buscou em uma edição da editora Vozes (2012), em língua portuguesa, traduções mais apropriadas aos conceitos e definições empregados. Ao longo do artigo, adotamos a sistemática de citar trechos da versão em português, apondo em notas de rodapé a correspondente tradução em francês. , o filósofo alemão, debruça-se sobre esse aspecto da vida humana, no momento em que a sociedade moderna assiste à redução das distâncias e aos efeitos de presença daí decorrentes, fenômenos que vivencia com uma sensação ambígua de receio e encantamento. Objetivando afastar-se de uma visão instrumental, corrente, da técnica, Heidegger busca explicar o que caracteriza a essência da técnica moderna. Sua abordagem não é, porém, essencialista, no sentido de procurar um aspecto comum ao gênero de toda técnica. Raciocinando na trilha de uma arqueologia do sentido, recupera do essencial a ideia do que dura, perdura e permanece. Assim, uma reflexão fundamental da técnica pressupõe o que na origem do sentido grego de techné já está presente, permanece, mas se manifesta com maior clareza na técnica moderna, ou seja, o princípio da não-ocultação evocado no conceito antigo do termo, com a diferença de que na modernidade o real, para o autor, é visto como recurso cujas potencialidades estão sempre disponíveis a serem desveladas.

Heidegger recupera do pensamento poético, precisamente de uma imagem criada por Goethe6 6 Na obra Os prodigiosos filhos do vizinho, quando substitui a palavra “fortwähren” (perdurar) pela palavra “fortgewähren” – continuar a conceder, como uma “harmonia implícita de continuidade entre ‘währen’, durar, e ‘gewähren’, conceder, ou a articulação entre a vigência (como o que dura) e o ato de conceder, entendendo que “somente dura o que foi concedido. Dura o que se concede e doa com força inaugural, a partir das origens”. (2012, p. 34, itálico no próprio texto)/”Seul dure ce qui a été accordé. Ce qui dure à l´origine, à partir de l´aube des temps, c´est cela mêmme qui acorde” (2010, p. 42). , o componente de concessão implicado no ato do desencobrimento, concessão que possibilita ao homem tomar parte nesse processo de des-ocultamento do real. Assim entrelaçado, como convocante e convocado, o homem se posiciona diante das coisas do mundo, pela manifestação ambígua da técnica, de revelação e encobrimento. “A questão da técnica é a questão da constelação em que acontece, em sua propriedade, em desencobrimento e encobrimento, a vigência da verdade” (2012, p. 35)7 7 “La question de la technique est la question de la constellation dans laquelle le dévoilement et l´occultation, dans laquelle l´être même de la vérité se produisent.” (Ibid., p. 45) .

Apartemo-nos, porém, da noção de “verdade” (compreensível e teoricamente desenvolvida no seio do pensamento do autor), e, portanto, de sua definição no presente contexto, tendo em vista que almejamos recuperar de Heidegger essa visão ambígua da técnica, assim como o papel ambivalente do homem em constante interação com a natureza, na busca da compreensão não apenas da essência da técnica, mas, por meio dela, de sua própria essência. Não deixa de ser instigante o modo como o autor descarta, a partir dessa posição, tanto a crítica da fascinação exercida pela técnica, quanto o sentimento de revolta que engendra sob a alegação de que dela deriva a forte automatização da vida – atitudes, aliás, similares do ponto de vista de Heidegger, porque amparadas justamente na visão instrumental da técnica e do que ela produz, as coisas técnico-tecnológicas.

Poderíamos dizer, grosso modo, que o desvelamento implica a não-ocultação das potencialidades do real8 8 Nos termos de Jacques Lacan, empregaríamos o termo com inicial maiúscula – Real. (LACAN, 2005) (de suas coisas, processos)9 9 O que não significa que tais potencialidades já estejam lá à espera que o homem as desvele; devem ser produzidas e respondem a uma ação recíproca do homem, da natureza e de suas interações sempre passíveis de gerar novos processos e coisas. Heidegger critica, portanto, a condição soberana do homem diante da técnica e da realidade, assim como a visão equivocada de uma natureza/realidade pronta no aguardo de uma ação humana para explorá-la ou controlá-la. O contraponto é válido: não se resigna perante uma atitude catastrófica, de completa impotência do homem diante da técnica, ao contrário, encaminha seu pensamento no sentido de um apelo à libertação por meio dela desde que bem compreendida em sua essência (e não desde que bem empregada, como se costuma dizer). ; desvelamento operado pelo homem, mas não exclusivamente submetido à sua ação, na medida em que este não apenas interpela a natureza a fazer aparecer suas forças/energias, mas reage a uma espécie de apelo diante do qual provoca a realidade pela técnica. A ação não se esgota na criação de aparelhos ou máquinas, e sim na virtualização dos processos derivados da técnica moderna, que se institui como “fundo”10 10 Na versão francesa (Gallimard), emprega-se a palavra “fonds”; na versão publicada no Brasil (Vozes), “disponibilidade”. , na acepção do autor, pronto a gerar novos e nem sempre controláveis efeitos.

Retoma, para tanto, o sentido de técnica na episteme antiga da reflexão grega, quando a arte não era arte, era “techné”, assim como tudo o que se criava no modo pro-dutivo, provocativo, porque resultava de uma operação partilhada entre o homem e a natureza em suas relações interpelantes geradoras de desvelamento de novas formas, possibilidades, interações. Vista desse modo – como um desvelamento sob o modo provocante partilhado pelo homem – a essência da técnica pode ser empregada não como aquilo que aprisiona, mas como o que liberta11 11 Heidegger aponta os perigos de o homem agir sobre a natureza pela técnica apenas segundo o modo da composição, isto é, vendo-a sempre como recurso. Ao mesmo tempo, porém, que enxerga nesse procedimento sua perdição, aponta na própria técnica a possibilidade de sua salvação, desde que encarada de outro ponto de vista, em que o poético tem papel central. .

Seguindo a linha conceitual do autor, mas alargando o prognóstico de sua abordagem do poiético12 12 Poiético como condição do poético em geral, de geração de sentidos criativos, e não apenas em seu emprego para as práticas artísticas em acepção estrita. , vemos em certas práticas midiáticas (e da vida cotidiana) a possibilidade também de um duplo aparecimento desse caráter da técnica: no presente caso, o modo como o cinema pode, enquanto processo técnico, fazer aparecer (SEEL, 2005 SEEL, M. Aesthetics of appearing. Stanford: Stanford University Press, 2005.) a essência da técnica, na acepção heideggeriana aqui retomada, e como desvela, em suas narrativas, a interação homem-máquina para além da visão instrumental de controlador/controlado. É precisamente o que se observa no filme Ela, conforme anunciamos na primeira parte deste trabalho.

O presente interesse não consiste numa análise pontual do problema; faz parte de um empreendimento de mais longo prazo, voltado a articular a linha investigativa da cultura digital sob a ótica reflexiva da produção cinematográfica contemporânea. Nossa imersão no pensamento de Heidegger tem uma motivação e um objetivo: a primeira decorre do fato de que seu texto focaliza nosso tema de interesse – a questão da técnica na vida moderna; o segundo justifica-se pelas incursões conceituais às nascentes dos sentidos dos termos convocados ao raciocínio do autor13 13 O texto de Heidegger é exemplar pela busca de precisão conceitual dos termos-chaves empregados em seu argumento, tais como essência, salvação, desvelamento ou des-encobrimento, pro-vocação, pro-dução, fundo ou disponibilidade, com-posição, e, obviamente, técnica. Há um jogo de radicais e definições no texto do filósofo que a edição da Vozes preserva: pôr, dis-por, dis-posição, dis-positivo, dis-ponível, dis-ponibilidade. Como diz o autor, ao referir-se aos termos que se acumulam “de maneira monótona, seca e penosa” na discussão do ato de des-encobrimento da técnica moderna: “Isso se funda, porém, na própria coisa que aqui nos vem à linguagem.” (2012, p. 21)/ “ce fait a sa raison d´être dans le sujet qui est en question” (2010, p. 24). .

Estrutura narrativa e percurso patêmico do sujeito

Para melhor evidenciar o modo como se perfila para nossa análise a ambiguidade da técnica, revelando e ocultando suas interações, de que se originam possíveis tumultos passionais, sistematizamos o fio dessas modalizações no filme Ela, cuja estrutura narrativa divide-se em momentos de vinculação com o sistema operacional (o SO Samantha) que evidenciam com clareza as transformações do sujeito no modo de visualizar a técnica, a interação homem-máquina, e, por extensão, as relações humanas, tais como explanadas até aqui a partir dos postulados teóricos de Heidegger. Designaremos cada etapa pelo tema que se desenvolve no percurso narrativo, e pelas figurativizações de que se reveste na modalização passional do protagonista, obtendo a seguinte sequência: falta, busca e encontro – surpresa – ajustamentos recíprocos – união – frustração14 14 A frustração, aqui, remete à noção da já mencionada mistura do antigo com o novo, à desmistificação da ideia da técnica como messiânica novidade plena; remete, principalmente, ao retorno ao humano que em Ela se encontra explicitamente tematizado e do qual falamos anteriormente. .

Falta, busca e encontro - expressa no vazio desencadeado pelo final de uma relação amorosa, o sujeito busca na promessa de um software não só o bálsamo para seu sofrimento, mas a esperança de uma interação que o preencha afetivamente, sem os condicionantes arriscados das relações humanas. Atende, portanto, assim como outras pessoas de seu contato, e para sua surpresa, aos apelos de uma sociedade que preconiza o parceiro na forma virtual, garantindo lances de ironia e humor ao enredo.

Surpresa - a responsividade do aplicativo, num nível que excede a expectativa do retorno programado, com respostas criativas, compreensão e manifestação de vontade própria, surpreende Theodore, reforçando a imagem inicial que tinha da máquina e da técnica, sob controle e domínio humanos.

Ajustamentos recíprocos - o próprio sujeito configurado pela inteligência artificial, concretizado na voz/personalidade de Samantha, desvela os mecanismos subjacentes à sua “vivificação”, retirando qualquer traço de ficção científica do filme. Essa autogeratividade do programa, em ajustes constantes às interações, tal como acontece com o protagonista humano, é a mesma que se processa nos jogos de videogame em rede e de caráter infinito. Quanto mais se joga, melhor o sistema reage às investidas dos jogadores, e mais se aperfeiçoa o nível de complexidade do jogo. Pode-se reconhecer aí o fenômeno descrito por Heidegger, ao afirmar que a técnica desvela a potencialidade de algo não como objeto e sim como “fundo”, no sentido de ativar uma latência para a produção contínua dos mesmos e de outros efeitos. É assim que a personalidade Samantha ultrapassa a fronteira de um perfil robótico, segundo a ideia corrente, para conjugar com Theodore laços de empatia inesperados em face dos quais a técnica se apresenta ao autor na lógica de uma estética do aparecimento. À estética do jogo contrapõe e afirma-se o jogo da estética (SEEL, 2005 SEEL, M. Aesthetics of appearing. Stanford: Stanford University Press, 2005.).

União15 15 O termo “união” aqui diz respeito apenas às tentativas de fusão efetiva, do ponto de vista de corporeidades, entre humano e não-humano. Deve-se ressaltar que, na terminologia de Landowski (2005), a união consiste em um dos regimes de interação que subsume tanto os ajustamentos quanto os acidentes. Nessa linha de raciocínio, o filme atua ambiguamente entre acidentes, que tentam ser controlados, e ajustamentos. - a interface homem/software modulada por insights cognitivos agradáveis, de descobertas recíprocas das personalidades envolvidas; por lances emotivos de momentos de ternura e cumplicidade, alcança seu aspecto mais sensível, no sentido das sensorialidades manifestas pelo ato sexual virtual, excitado à base de palavras, murmúrios e de uma realização sexual vivamente verbalizada. Nessa fase, novos ajustamentos são buscados, visando tornar cada vez mais sensível a interação. Por iniciativa de Samantha, uma terceira personagem entra na relação figurando como a encarnação do SO e o componente desencadeador da fisicalidade a ser obtida pelo voyeurismo da câmera. Significativamente, a entrada de uma mulher na relação, ao invés de apimentá-la, representa um obstáculo para Theodore, pois rompe com a idealização do outro na parceria. De sua parte, explica-se a ansiedade de Samantha pela concretude sensorial de um corpo senciente (uma mulher de carne e osso que representaria a sua figura e por meio da qual ela se veria projetada no contato físico com Theodore) como indicador de uma responsividade dos aparatos, mediante a intervenção técnica, que não se limita a fabricar algo, e sim a provocá-lo em sua capacidade gerativa e performática, como postulou Heidegger. Afastada a ideia de uso da técnica como aquilo que simplesmente permite dispor dos recursos da máquina, o homem imerge numa relação intersubjetiva, ou seja, como fator convocado. A experiência da interface ocasiona, assim, a necessidade de ajustamentos recíprocos (LANDOWSKI, 2005LANDOWSKI, E. Les interactions risquées. Nouveaux Actes Semiotiques. Limoges: Pulim, 2005, v. 101,102,103.), na tentativa de maior domínio e satisfação do lado do humano, e de uma maior performatividade gerada pelo acúmulo de conhecimento da parte do SO. Nesse contexto, o software afigura-se não como mero objeto programado; é antes de tudo a programação de desempenhos que se retroalimentam do próprio ato interativo, adquirindo maior complexidade na medida da continuidade das interações. Com isso, a busca da completude relacional pelo sistema técnico se confronta com a consciência desoladora do ser humano de uma dificuldade generalizada dos vínculos intersubjetivos, sejam eles humanos ou mistos, homem/máquina. Em suma, começa a se desfazer a imagem da relação ideal, sem conflitos e perfeitamente harmonizada entre o homem e o aparato, ao mesmo passo que se desvela a própria imperfeição das relações interpessoais como condição inerente ao ser humano.

Frustração - em consequência justamente de seu caráter de “fundo”, em constante modificação, o SO cria novos vínculos, reprograma-se no conjunto de centenas de novas interfaces e rompe o contrato estabelecido com o protagonista, no âmbito do quadro de valores esperado por ele. A sensação de estabilidade harmoniosa de uma relação até então não experienciada, vivida com o aparato, é frustrada, assim como se frustram as expectativas atinentes às promessas da tecnologia, empenhada em suprir não apenas as necessidades cognitivas e pragmáticas, mas sobretudo, e cada vez mais, nossas carências afetivas. Reside nesse desenlace a dupla crítica, de uma ilusória compreensão do nosso controle sobre a técnica (assim como o seu avesso, igualmente equivocado, da escravização do homem pela ação das coisas tecnológicas) e de um discurso de felicidade generalizada, advinda das potencialidades tecnológicas para o bem-estar da vida cotidiana e das relações humanas.

Considerações Finais: Ela, nós, afetos e sociabilidades

Embora a técnica esteja fortemente presente e atuante em praticamente todas as cenas, é sobre o humano que recai, subversiva e paradoxalmente, o foco principal do filme. Ela, sob o pretexto de colocar em discussão a possibilidade ou não de se estabelecer e manter relações afetivas sem a presença do corpo físico, relações em que um ou mais parceiros tenham existência puramente virtual, termina colocando em tela o questionamento sobre a possível existência de relações afetivas genuínas, duradoras e desprovidas de frustrações e desilusões. Ao ponderar a respeito de quanto a dita aproximação pessoal proporcionada pela tecnologia pode ou não ser meramente ilusória, o filme evidencia justamente o caráter ilusório que permeia as relações interpessoais no universo não virtual.

A eventual assunção de que a inteligência artificial de Samantha seja devidamente qualificada para compreender e aceitar plena e tacitamente conceitos e complexidades existenciais tende, fatalmente, a levar à reflexão a respeito dos limites da capacidade intelectual da inteligência não artificial. Em dado momento da trama, a voz pergunta a Theodore como havia sido sua vida na condição de casado; como resposta, obtém do protagonista a afirmação ambígua de que se tratava de uma situação “emocionante”, uma vez que ambos os envolvidos cresciam e mudavam juntos, mas, conflituosa, devido à dificuldade de mudar sem provocar sustos e causar distanciamentos. Impossível, face tal asserção, deixar de pensar que, se todos os envolvidos em um relacionamento amoroso são mesmo passíveis de mudanças, talvez seja também inevitável que em algum momento tal relação chegue a seu final, ao limite incontornável.

O filme, com seu estranho16 16 Estranho, tal como empregamos neste estudo, prende-se, em primeiro lugar, à noção do “estranho” nos termos em que é abordado na obra de Sigmund Freud, na qual o estranho é entendido como “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”, como proveniente de “algo familiar que foi reprimido” (FREUD, 1996); em segundo lugar, mas não menos importante, liga-se a questões atinentes às rupturas que caracterizam a linguagem poética, conforme definida por Roman Jakobson (1963). universo de personagens encapsuladas em si mesmas, capturadas por todo tipo de gadgets eletrônicos e aficionadas por alta tecnologia – mas ainda assim persistentemente sensíveis aos encantos de cartas manuscritas17 17 Note-se que as cartas manuscritas, tal qual a assistente virtual Samantha, funcionam, obviamente, como simulacros de presença. Landowski trata dessa problemática em A sociedade refletida (1992), particularmente quando discorre sobre as “estereotipias da sinceridade” e em seu artigo “La lettre comme acte de présence”, ali referenciado (1992, p.162-163). – apresenta múltiplas semelhanças e diversos pontos de contato com a realidade; suscita perguntas a respeito das razões que nos fazem ser como somos, seres contraditórios e ambivalentes, imperfeitos e fascinantes, detestáveis e apaixonantes. Reconhece-se a perspectiva heideggeriana de que é a própria técnica que nos desvela a essência da técnica moderna. Acrescentaríamos: é ela mesma a nos revelar a volta ao humano, mesmo em sua condição limitada, ainda que secundado pelo avanço espantoso de sua capacidade técnica.

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    Versão preliminar deste artigo foi apresentada no 24º Encontro Nacional COMPÓS. Sugestões apresentadas e debatidas foram incorporadas ao texto da presente versão.
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    Título original: Her. Roteiro/direção: Spike Jonze; fotografia: Hoyte van Hoytem; direção de arte: Austin Gorg.
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    Tomamos de empréstimo a expressão que serve, como tese, de subtítulo ao livro de Francisco Rüdiger – Martin Heidegger e a questão da técnica: prospectos acerca do futuro do homem (2006). Amparado em leitura crítica de um conjunto de textos do pensador alemão, Rüdiger ressalta com acuidade a percepção de Heidegger sobre tal aspecto em face da definição de ser homem e do futuro da humanidade.
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    Filmado em Los Angeles, predominantemente, e em Xangai, Ela apresenta o teor existencialista que se verifica em muitas das obras do diretor americano. O elenco é formado por Joaquin Phoenix (o protagonista), Scarlett Johansson (a voz), Rooney Mara, Amy Adams, Olivia Wilde, entre outros.
  • 5
    Para a elaboração deste artigo foram consultadas duas edições do estudo A questão da técnica, ambas integradas ao conjunto dos Ensaios e Conferências de Heidegger. A primeira leitura, em edição francesa, apoiou-se na tradução do texto alemão de 1958, e foi publicada pela editora Gallimard (2010); a segunda buscou em uma edição da editora Vozes (2012), em língua portuguesa, traduções mais apropriadas aos conceitos e definições empregados. Ao longo do artigo, adotamos a sistemática de citar trechos da versão em português, apondo em notas de rodapé a correspondente tradução em francês.
  • 6
    Na obra Os prodigiosos filhos do vizinho, quando substitui a palavra “fortwähren” (perdurar) pela palavra “fortgewähren” – continuar a conceder, como uma “harmonia implícita de continuidade entre ‘währen’, durar, e ‘gewähren’, conceder, ou a articulação entre a vigência (como o que dura) e o ato de conceder, entendendo que “somente dura o que foi concedido. Dura o que se concede e doa com força inaugural, a partir das origens”. (2012, p. 34, itálico no próprio texto)/”Seul dure ce qui a été accordé. Ce qui dure à l´origine, à partir de l´aube des temps, c´est cela mêmme qui acorde” (2010, p. 42).
  • 7
    La question de la technique est la question de la constellation dans laquelle le dévoilement et l´occultation, dans laquelle l´être même de la vérité se produisent.” (Ibid., p. 45)
  • 8
    Nos termos de Jacques Lacan, empregaríamos o termo com inicial maiúscula – Real. (LACAN, 2005 LACAN, J. O Simbólico, o Imaginário e o Real. In: Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.)
  • 9
    O que não significa que tais potencialidades já estejam lá à espera que o homem as desvele; devem ser produzidas e respondem a uma ação recíproca do homem, da natureza e de suas interações sempre passíveis de gerar novos processos e coisas. Heidegger critica, portanto, a condição soberana do homem diante da técnica e da realidade, assim como a visão equivocada de uma natureza/realidade pronta no aguardo de uma ação humana para explorá-la ou controlá-la. O contraponto é válido: não se resigna perante uma atitude catastrófica, de completa impotência do homem diante da técnica, ao contrário, encaminha seu pensamento no sentido de um apelo à libertação por meio dela desde que bem compreendida em sua essência (e não desde que bem empregada, como se costuma dizer).
  • 10
    Na versão francesa (Gallimard), emprega-se a palavra “fonds”; na versão publicada no Brasil (Vozes), “disponibilidade”.
  • 11
    Heidegger aponta os perigos de o homem agir sobre a natureza pela técnica apenas segundo o modo da composição, isto é, vendo-a sempre como recurso. Ao mesmo tempo, porém, que enxerga nesse procedimento sua perdição, aponta na própria técnica a possibilidade de sua salvação, desde que encarada de outro ponto de vista, em que o poético tem papel central.
  • 12
    Poiético como condição do poético em geral, de geração de sentidos criativos, e não apenas em seu emprego para as práticas artísticas em acepção estrita.
  • 13
    O texto de Heidegger é exemplar pela busca de precisão conceitual dos termos-chaves empregados em seu argumento, tais como essência, salvação, desvelamento ou des-encobrimento, pro-vocação, pro-dução, fundo ou disponibilidade, com-posição, e, obviamente, técnica. Há um jogo de radicais e definições no texto do filósofo que a edição da Vozes preserva: pôr, dis-por, dis-posição, dis-positivo, dis-ponível, dis-ponibilidade. Como diz o autor, ao referir-se aos termos que se acumulam “de maneira monótona, seca e penosa” na discussão do ato de des-encobrimento da técnica moderna: “Isso se funda, porém, na própria coisa que aqui nos vem à linguagem.” (2012, p. 21)/ “ce fait a sa raison d´être dans le sujet qui est en question” (2010, p. 24).
  • 14
    A frustração, aqui, remete à noção da já mencionada mistura do antigo com o novo, à desmistificação da ideia da técnica como messiânica novidade plena; remete, principalmente, ao retorno ao humano que em Ela se encontra explicitamente tematizado e do qual falamos anteriormente.
  • 15
    O termo “união” aqui diz respeito apenas às tentativas de fusão efetiva, do ponto de vista de corporeidades, entre humano e não-humano. Deve-se ressaltar que, na terminologia de Landowski (2005)LANDOWSKI, E. Les interactions risquées. Nouveaux Actes Semiotiques. Limoges: Pulim, 2005, v. 101,102,103., a união consiste em um dos regimes de interação que subsume tanto os ajustamentos quanto os acidentes. Nessa linha de raciocínio, o filme atua ambiguamente entre acidentes, que tentam ser controlados, e ajustamentos.
  • 16
    Estranho, tal como empregamos neste estudo, prende-se, em primeiro lugar, à noção do “estranho” nos termos em que é abordado na obra de Sigmund Freud, na qual o estranho é entendido como “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”, como proveniente de “algo familiar que foi reprimido” (FREUD, 1996FREUD, S. O estranho. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.); em segundo lugar, mas não menos importante, liga-se a questões atinentes às rupturas que caracterizam a linguagem poética, conforme definida por Roman Jakobson (1963)JAKOBSON, R. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963..
  • 17
    Note-se que as cartas manuscritas, tal qual a assistente virtual Samantha, funcionam, obviamente, como simulacros de presença. Landowski trata dessa problemática em A sociedade refletida (1992), particularmente quando discorre sobre as “estereotipias da sinceridade” e em seu artigo “La lettre comme acte de présence”, ali referenciado (1992, p.162-163).

Referências

  • COLLODI, C. Le avventure di Pinocchio – storia di um burratino. Casale Monferrato: Edizioni Piemme, 2011.
  • FREUD, S. O estranho. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • HEIDEGGER, M. La question de la technique. In: Essais et conférences Paris: Gallimard, 2010 [1958], p. 9-48.
  • ______. La chose. In: Essais et conférences Paris: Gallimard, 2010 [1958], p. 194-223.
  • ______. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.
  • JAKOBSON, R. Essais de linguistique générale Paris: Minuit, 1963.
  • KANT, I. Crítica da faculdade do juízo São Paulo: Ícone, 2009.
  • LACAN, J. O Simbólico, o Imaginário e o Real. In: Nomes-do-Pai Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
  • LANDOWSKI, E. Les interactions risquées Nouveaux Actes Semiotiques. Limoges: Pulim, 2005, v. 101,102,103.
  • ______. A sociedade refletida São Paulo: Educ/Pontes, 1992.
  • RÜDIGER, F. Martin Heidegger e a questão da técnica: prospectos acerca do futuro do homem Porto Alegre: Sulina, 2006.
  • SEEL, M. Aesthetics of appearing Stanford: Stanford University Press, 2005.
  • ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura São Paulo: Educ, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    Maio 2016
  • Aceito
    Jul 2016
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