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A fotografia entre a loucura e a sensatez

The photography between madness and wakeness

FONTANARI, Rodrigo. Roland Barthes e a revelação profana da fotografia. São Paulo: Educ/Fapesp, 248. 2015.

Resumo

A obra dedica-se essencialmente à dialética barthesiana sobre a loucura e a sensatez da fotografia, em uma incursão pelo punctum e pelo studium. Para entender o lado profano-afetivopoético da fotografia, o autor recorre às tradições gregas. Além da relação com a mitologia, Fontanari explica a relação que Barthes traça entre a fotografia e a poesia, especificamente o haicai, que, como o puctum, evoca o silêncio e a plenitude, cessando o barulho da técnica, da realidade, em direção à “consciência afetiva”, nas palavras de Barthes. O livro é um tributo ao percurso da imagem codificada para a não codificada, uma poética do afeto, do inexpressável.

Palavras-chave
Barthes; fotografia; câmera clara; haicai; mito

Abstract

The work is essentially devoted to the Barthesian dialectic of madness and tame of photography on a foray into the elements: punctum and studium. To understand the unholy side-poetic-affective-profane of photography, the author resorts to Greek traditions. Beyond the relation with mythology, Fontanari explains the relation that Barthes draws between photography and poetry, specifically haicai, which, like the puctum, evokes silence and plenitude, ceasing the noise of technique, of the reality towards the “affective awareness,” in Barthes’s words. The book is a tribute to the path of the coded image to the unencrypted one; it is a tribute to a poetics of affection and to what is the inexpressible.

Keywords
Barthes; photography; camera lucida; haiku; myth

Foram cerca de cinco anos de mergulho na obra de um dos maiores pensadores franceses, incluindo um período importante de estudos na Universidade de Paris VII, junto ao Centre Roland Barthes, que permitiram a Rodrigo Fontanari não somente estudar conceitos, mas vasculhar documentos, anotações e manuscritos para entender os caminhos traçados em A câmara clara: nota sobre fotografia, último ensaio de Roland Barthes. O resultado desse longo percurso direcionado ao entendimento da dialética da fotografia segundo a visão do semiólogo está no livro Roland Barthes e a revelação profana da fotografia (2015), de Fontanari, resultado de projeto apoiado pela Fapesp.

Nesse livro o autor debruça-se essencialmente sobre a dialética barthesiana que situa a fotografia como “louca ou sensata” (p. 221), em uma incursão pelo punctum e pelo studium, entendendo-a não como mero reflexo da realidade, mas como elemento capaz de nos levar a um au-delà, tomados numa “intensa experiência” do ver, como explica o autor. O livro que resultou de sua tese de doutorado parte, portanto, das representações fotográficas presentes em A câmara clara.

Para entender o lado profano-afetivo-poético da fotografia, Fontanari resgata para o leitor que o entendimento da imagem – ou da fotografia – no percurso do pensamento de Barthes passa por três níveis. O primeiro sentido é o informativo, “considerado o nível da comunicação que seria também aquele mais voltado à mensagem, ao conhecimento, trazido pelos elementos que compõem a imagem” (p. 82). Já o segundo nível seria o simbólico, no nível da significação, conforme Barthes explica: “é uma espécie de léxico geral, comum aos símbolos: é um sentido que me procura, a mim, destinatário da mensagem” (apud FONTANARI, p. 82). O terceiro sentido, mais “desprendido” da imagem, conforme Barthes, não pode ser nomeado, é uma “captação poética da imagem”, “teimoso e fugidio” (apud FONTANARI, p. 83).

Interessado neste aspecto da fotografia, Fontanari vai às tradições gregas para entender dois conceitos: o studium pode ser lido conforme a representação fotográfica, baseada na “[...] linha socrático-platônica dos simulacros, que torna as imagens como reflexos vãos”, e “[...] o punctum retroage a racionalidade platônica ao medo primitivo, próprio da Grécia filosófica bem-pensante, até a Grécia arcaica, aquela dos mitos”, o “sinistro, o médusante” (p. 22), e, como diz o autor, “[...] aquela linha mitológica das máscaras górgonas que, ao contrário, evoca a força das imagens sobre os que a contemplam” (p. 21).

O punctum, segundo o autor, nos ensina a ver as imagens para além de simples simulacros enganosos, mas como “testemunhos fortes”, “rastros, traços, vestígios expectorais” ou como índices, onde o fotógrafo consegue ir além da representação e “tocar diretamente no real” (p. 222). É o caminho para entender o conceito de “grau zero” do pensador francês, sugere. Isso porque o punctum, mais do que representar, tem o poder de calar, espantar, neutralizando o sentido.

A plenitude do punctum faz cintilar o “inexpressar o expressável”, para usar uma expressão do próprio Barthes; e, ao mesmo tempo, Fontanari procurou mostrar também que o punctum “carrega” e “redefine” a máscara, pois sendo colada e inseparável do rosto, o revela (punctum) e o encobre (studium). A máscara que conserva a vida e sinaliza o morto e a morte nos leva ao encontro da Górgona.

Além da relação com a mitologia, Fontanari explica a relação que Barthes traça entre a fotografia e a poesia, especificamente o haicai, forma literária japonesa. Ambos, segundo o autor, teriam a mesma capacidade de “matar a linguagem e captar o instante”, ou como explica Fontanari, “o haicai traz a palavra mesma que aponta para a essência de um acontecimento sem no entanto narrá-lo, é um vestígio, uma lembrança, mas sem história ou, ainda, um mergulho na memória” (p. 211).

O haicai, como o punctum, evoca o silêncio e a plenitude, cessando o barulho da técnica, da realidade, da arte, da reportagem, em direção à “consciência afetiva”. Retomando Haroldo de Campos, Rodrigo Fontanari nos lembra que tanto o haicai como a foto seriam retratos da realidade externa e do interior do poeta.

Uma imagem fotográfica, como um romance, capta um único instante, em uma mistura entre ilusão e realidade (criações do fotógrafo sobre o real, invenções e “ilusões espectrais”, conforme nomeia o autor) e permite ao espectador vivenciar uma experiência presente sobre o passado, em uma espécie de abolição ou suspensão do tempo. Isso é possível graças aos grãos de sais de prata que registram o acontecimento no tempo e mostram a energia de alguém que esteve ali, “imagem que encarna”, espectro que surge da luminosidade química, fazendo ressuscitar o sujeito diante dos nossos olhos. Eis a violência contida no ato: a sua capacidade de nos colocar diante de alguém ou dos restos de alguém que já não está entre nós.

Daí ser possível o conceito de punctum tocar o conceito de aura, quando essa imagem invade a consciência do contemplador, e ela se deforma, esvazia-se, reconfigura-se, abre-se ao outro, à experiência (p. 189). Mas, diferente da aura, o punctum é mais violento, ativo e arrebatador, enquanto a aura é passividade e contemplação, nota Fontanari.

Este é justamente o aspecto dialético da fotografia que o autor expõe, a partir das palavras de Debray: a fotografia, mais do que mera semelhança, faz “alucinar”, coloca-se entre o visível e o invisível, a vida e a morte, pois torna presente o ausente e preenche uma carência. Daí a boa definição de imagem como algo que resulta do léxico grego: tuchê (acaso) e technè (arte, técnica): essa “centelha do acaso” e de técnica que nos toca, nos fere (punctum) (p. 159), pois é traço do vivo e do morto, “médusante”, é algo que oscila entre o real e a morte, o que nos faz transitar entre os mundos do simbólico e do extrassimbólico, considerando que a fotografia é uma impressão da ordem físico-química, e que raios luminosos partiram de um corpo e foram impressos em uma chapa metálica.

“Certas fotografias são capazes de provocar esse efeito de estupefação (mèdusante) que retroage da racionalidade platônica ao medo primitivo, da Grécia arcaica à Grécia dos mitos”, afirma Fontanari (p. 127). Logo, para Barthes, o romance é “uma pulsão de amor”, e a preparação do romance surge da necessidade do sujeito imortalizar o outro sobre o qual se debruça, “um caso de amor, uma fantasia que serve de motor simbólico, um guia para a produção da escritura”. (p. 86)

Barthes fugia do método para se refugiar no prazer, salientou Haroldo de Campos, deixando o estruturalismo e indo ao encontro do signo (p. 56). No entanto, conforme adverte Fontanari, o punctum não é algo ligado à subjetividade de cada um, mas ao potencial de uma fotografia trazer a todos nós a capacidade de “ver nosso próprio olhar” (p. 124):

O punctum não pode ser reduzido a um detalhe que toca a um único sujeito, mas para esse autor, esse conceito tem a ver com o trabalho do operador e sua capacidade de transformar e generalizar um rosto singular em máscara e, assim, ele pode bem vir a perturbar, provocar abalos em outras subjetividades. Transformar um rosto fotografado em máscara é também nos fazer ver e sermos vistos sobre o olho do outro, dar nosso olhar, nossos visus a nosso próprio exame, algo que é próprio de toda imagem. Há sempre um “campo cego”, um ponto que cega, em que nada se vê sobre a imagem, mas que ela nos dá a ver nosso próprio olhar.

Assim, a a máscara pode ser também testemunho do humano, como escreve Leda Tenório da Motta na apresentação da obra (p. 8). Ao longo de sua obra, Rodrigo Fontanari nos ajuda a perceber a capacidade das fotografias serem, por um lado, “instrumentos do intelectual, da razão e da racionalidade” (studium), e por outro, “veículos dos afetos, dos mitos, do sentimento, ou seja, de uma certa regressão do sujeito ao primitivo, ao medo, num retorno in extremis ao mito” (p. 102). Não é lugar da interpretação, pois entre o haicai, o espectro e o mito, a linguagem cessa, sobrepondo-se a surpresa, e “a consciência cala e solta um só grito: é isso!” (p. 93). Enquanto o haicai transforma uma experiência em linguagem (poema), a fotografia transforma em experiência um modo de ver (foto), explica o autor (p. 92).

O pensamento de Barthes, que se debruçou sobre a fotografia enquanto mito e máscara, mostra que a visão do homem e a representação do corpo estão o tempo todo no centro do entendimento do retrato. A obra de Fontanari é, pois, um tributo ao percurso da imagem codificada para a não codificada, uma poética do afeto, trilhada por Barthes quando do luto da mãe, trazida de volta pela fotografia.

O percurso de Barthes é uma excelente mostra de que a fotografia pode e não pode ser vista como linguagem. Quando a linguagem se torna “insuficiente”, a “pungência do fotográfico” se faz valer, escreve Fontanari (p. 90). Para tal, o autor francês foi além do estruturalismo, encontrando a fenomenologia das imagens, em busca de uma “elaboração poética da ‘aproximação afetiva’ da imagem”, por conta da dolorosa perda da mãe. Afinal, “[a] fotografia não é mais um objeto de estudo teórico relativo, mas o sujeito de uma experiência absoluta – prática, afetiva e existencial” (p. 89).

Ao buscar entender o punctum e o studium pelo caminho da mitologia grega, da figura amedrontadora da Górgona e do mito de Platão, Fontanari conseguiu enfatizar a A câmera clara não como uma teoria do signo fotográfico, mas sugerir um olhar da fotografia a partir do lugar do sujeito que “se sente olhado pela foto” (p. 24).

Roland Barthes e a revelação profana da fotografia nos ajuda a entender a imagem em sua conexão com o real e com a morte, a máscara como objeto mortuário, que revela o humano. E ao associar os flashes fotográficos, disparos da câmara, aos grafos de luz dos poemas do haicai, o autor traz, conforme salientou Leda Tenório da Motta, uma tese original, apresentando a nós leitores uma nova proposta para entender a imagem. Com Barthes e com Fontanari aprendemos que a fotografia assume um potencial que extrapola o campo da mera representação, alcançando o universo dos afetos, o inexpressável.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017
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