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Política na era da visibilidade total: observações conjunturais a partir do episódio The Waldo Moment, de Black Mirror

Politics in the era of total visibility: conjunctural observations from the episode The Waldo Moment - of Black Mirror

Resumo

O presente texto é um ensaio estético-político que procura articular categorias filosóficas que permitem correlacionar o episódio The Waldo Moment, da série Black Mirror, com a conjuntura política mundial contemporânea, tomando especialmente o caso Donald Trump como paradigma. Para tanto, pensa a entrada em cena de Waldo como um sinal que indica, ao mesmo tempo e contraditoriamente, a positivação integral do espetáculo e a revolta antissistêmica. A partir da leitura do cinismo em Vladimir Safatle, busca compreender um discurso que torce a diferença entre constativo e performativo e se afirma por meio do humor brutal, permitindo a entrada na esfera pública de elementos que até então eram vedados. Finalmente, faz uma análise discursiva estrutural das oposições que alimentam as “guerras culturais” a partir da visibilidade total que as redes sociais produzem, dissolvendo a diferença entre público e privado.

Palavras-chave
conjuntura; cinismo; visibilidade; humor; espetáculo

Abstract

This paper brings an aesthetic-political essay that aims to articulate philosophical categories that allow correlating Black Mirror series’ episode The Waldo Moment with contemporary world political conjuncture, especially taking the case of Donald Trump as a paradigm. In this regard, Waldo’s entry into the scene is taken as a sign that indicates, at the same time and in contradiction, the integral positivization of spectacle and anti-systemic revolt. From Vladimir Safatle’s reading of cynicism, this paper seeks to understand a discourse that distorts the difference between constative and performative and affirms itself through brutal humor, allowing the entry of elements that were previously forbidden into public sphere. Finally, it makes a structural discourse analysis of the oppositions that feed “cultural wars” from total visibility that social networks produce, dissolving the difference between public and private.

Keywords
conjuncture; cynicism; visibility; humor; spectacle

Organizar o pessimismo significa simplesmente extrair a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem

(Walter Benjamin).

The Waldo Moment: instrumentalização da revolta

A série Black Mirror, criada por Charlie Brooker, inicialmente exibida no Channel4, do Reino Unido, e posteriormente produzida pela Netflix a partir de 2015, tem representado um dos mais potentes exercícios de antropologia especulativa na cultura pop contemporânea. Ela apresenta um futuro, em geral próximo do imediato, no qual pequenas transformações tecnológicas em relação à nossa matriz provocam uma intensificação de tendências que já vivenciamos hoje em dia. Um dos segredos parece ser exatamente curvar apenas suavemente, sem exigir um grande esforço da imaginação, certas tendências tecnopolíticas que já estão postas. The Waldo Momen t, terceiro episódio da segunda temporada exibido em 25 de fevereiro de 2013, nesse sentido, parece um retrato político dos nossos tempos.

O presente texto1 1 O presente texto foi construído a partir de pequeno ensaio chamado de “A Era do Chauvinismo”, publicado no blog pessoal, com desenvolvimento de argumentos, referências e expansão temática, e posteriormente seguido do texto “Do Populismo Reacionário ao Exterminismo”, que, embora tenha lhe precedido em publicação, foi escrito posteriormente repetindo algumas das suas teses (como ali indicado). Ele também é mencionado na entrevista “Muros do condomínio esquerdista transformados em pontes de diálogo” concedida ao Instituto Humanitas Unisinos. traça uma análise de conjuntura em que são examinadas as condições discursivas e afetivas sobre as quais se ancora o crescimento das tendências políticas que The Waldo Moment traz. Para tanto, relaciona, em uma chave geral, o pensamento de Guy Debord sobre o espetáculo e de Vladimir Safatle sobre o cinismo, colocando-os na perspectiva das guerras culturais. Adicionalmente, figuram como premissas implícitas ou como pano de fundo estudos sobre a dinâmica das guerras online feitos por Dale Beran (2019)BERAN, D. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019., Angela Nagle (2017)NAGLE, A. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017., Franco Bifo Berardi (2017)______. Futurability: the age of impotence and the horizon of possibility. London/New York: Verso, 2017. e David Neiwart (2017), numa ponta; e as problematizações da ascensão dos populismos, neofascismos e tendências de extrema direita no mundo, na outra, inspirando-se em Chantal Mouffe (2018)______. For a Left Populism. NY/London: Verso Books, 2018., Lawrence Grossberg (2017)GROSSBERG, L. Under the cover of chaos: Trump and the battle for American right. London: PlutoPress, 2018., Manuel Castells (2018)CASTELLS, M. Ruptura: a crise da democracia liberal. Trad. Joana Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018., John Judis (2016)JUDIS, J. The populist explosion. New York: Columbia University Press, 2016., Nancy Fraser (2018)FRASER, N. Do neoliberalismo progressista a Trump - e além. Trad. Paulo Neves. Política & Sociedade, v. 17, n. 40, Set./Dez. de 2018. e os já mencionados Neiwert e Berardi. O caso da eleição norte-americana de 2016, em que se enfrentaram Donald Trump e Hillary Clinton, é tomado como paradigma para experiências semelhantes que aconteceram, por exemplo, no Brasil, posteriormente, com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, e rondam novamente o espectro mundial como um todo, cruzando, inclusive, Ocidente e Oriente.2 2 De modo puramente exemplificativo, o mapa da cena inclui, por exemplo, Estados Unidos, Bolívia e Brasil nas Américas; Inglaterra, Hungria e Polônia, mas também marginalmente Espanha, França, Alemanha e Holanda na Europa (nos segundos casos, sem estar nos governos); Turquia e Rússia na fronteira entre Europa e Ásia; Índia e Filipinas, na Ásia, entre outros países. Casos como China, Venezuela e Coreia do Norte, embora com elementos semelhantes, não se encontram na mesma dinâmica democrática para ascensão dos líderes populistas. Sobre tema, ver Judis (2016) e Castells (2018).

Cena inicial: uma jovem mulher aguarda sua chamada em uma sala de espera. Hipoteticamente, poderia ser para pedir um empréstimo bancário, realizar uma consulta médica ou ser entrevistada para um emprego. Logo descobrimos, no entanto, tratar-se de algo bem menos trivial: uma pequena comissão de aparência bastante burocrática irá decidir, com base em um curto depoimento, se ela será a candidata do partido oposicionista de centro-esquerda (trabalhista) para substituir um parlamentar que havia renunciado ao mandato por envolvimento com pedofilia. De certo modo, já está explícito o caráter tecnocrático e vazio com que o processo nasce – admitindo a candidata desde sempre que a eleição estava perdida, mas seria uma forma de alavancar sua carreira. A sensação de d èja vu quanto ao candidato situacionista é a mesma: conservador moderado, alinhado com o “possível”, simultaneamente detestável na mesma medida que aparece como força inercial do sistema. Temos assim um quadro bastante normal para as democracias do Norte (considerando que o cenário aponta para Londres): duas candidaturas sem vocação popular, uma eleição burocratizada e provavelmente sem grande número de votantes e a manutenção do status quo no piloto automático, como se o sistema – que parece desagradar à maioria da população – fosse tão poderoso que nada pudesse realmente se situar como oposição. Um candidato liberal-conservador e uma candidata de centro-esquerda desidratada constituem o cenário eleitoral que se apresenta inicialmente.

Aparece, então, o segundo elemento: um comediante de televisão que cede sua voz ao personagem Waldo, pequeno ursinho azul. Waldo trabalha a partir de um contraste interessante: a simpática figura do bichinho, esteticamente aprazível e delicada, é agressiva e desbocada, partindo para uma ridicularização de qualquer um dos seus convidados. Dizendo o que todos temem dizer, confronta não só os convidados, mas as convenções estabelecidas em torno do que pode ou não ser dito. Waldo, então, vê-se diante do candidato conservador e seu programa faz esplêndido sucesso ao atormentar o polido gentleman com palavrões e perguntas indigestas. A resposta do candidato à polêmica é simplesmente rechaçar Waldo, apelando para sua irrealidade enquanto apenas um boneco azul. Waldo, com isso, enfurece-se e passa a endurecer ainda mais, inclusive perseguindo o candidato em seus comícios, entrevistas e ações de marketing eleitoral. Quanto mais agressivo fica, mais Waldo recebe aplausos da multidão. A tendência encontra seu ápice em um debate realizado em uma escola, onde Waldo – por decisão editorial da emissora que o exibia – apresenta-se como candidato e passa a atacar todos os concorrentes com impropérios diversos. Seu autor/voz, no entanto, estava começando um affair privado com a candidata oposicionista e, no calor do momento, acaba humilhando-a com um discurso sobre sua falta de convicção e adesão à burocracia da política. A contradição pessoal logo aflora e o comediante arrepende-se de ter sido tão agressivo, encerrando-se no quarto. Finalmente, após repensar seu papel e as consequências das suas ações, decide encerrar o personagem por meio de uma sabotagem que termina mal, sendo espancado por fãs de Waldo quando se apresenta como dono do personagem.

Salta-se, então, ao terceiro ato. A emissora de tevê, percebendo a lucratividade e o sucesso de Waldo, resolve continuar com a personagem, à revelia do comediante. Assim sendo, outras pessoas assumem o papel e Waldo segue na disputa eleitoral. O comediante percebe que não possui controle sobre a máquina que criou. Finalmente, a eleição é decidida com a vitória do candidato conservador, embora Waldo tenha conquistado uma votação expressiva, maior que a da candidata de centro-esquerda. Na última tomada, após os créditos finais, o episódio sugere que Waldo se torna uma força mundial, associando-se a corporações e passando a habitar aeroportos, escolas e ruas pelo mundo inteiro.

The Waldo Moment consegue captar simultaneamente as duas pontas do problema político que se observa sobre o mundo hoje em dia: de um lado, há uma população – formada especialmente por jovens – indignada e revoltada com a «casta» e com sua impotência para resolver os problemas das pessoas, sua lógica autorreferente e oportunista de governo; de outro, percebe-se a atitude social que cada vez mais se aproxima do cinismo e do chauvinismo, sem conseguir traduzir a indignação em atos construtivos, de modo que cai, com isso, em uma espécie de humor suicida. De fato, é impossível não comparar a pequena eleição municipal retratada com a eleição de Donald Trump nos EUA. A candidata trabalhista poderia ser comparada à Hillary Clinton: embora teoricamente à esquerda, é perfeitamente alinhada com o establishment e seus interesses inegociáveis, desidratada de energia democrática e flagrantemente posicionada para figurar como mais uma peça no tabuleiro que não se move – com a diferença de que Hillary contava com generoso orçamento. O candidato conservador, por outro lado, é um simples administrador que não está interessado em qualquer tensão política, apenas em ocupar o lugar que lhe estaria destinado naturalmente. Trump pôde, portanto, desempenhar o papel de Waldo por meio das redes sociais, embaralhando as convenções existentes sobre o que pode e não pode ser dito. Apesar de não resistir a uma análise mais fina, o gesto é interpretado por muitos como a posição de outsider e de recusa da positividade do sistema – inclusive contra recomendações da mídia corporativa, mais liberal e prudente. A sensação de impotência e insatisfação dá origem a um “basta!” que rapidamente se torna “foda-se!”, como se a perda de contato com a produção social fosse compensada por meio de uma escolha contraintuitiva, geralmente depositada em um outsider. O indivíduo, soterrado por um sistema pesado demais para dar conta, excessivamente positivo 3 3 Utilizaremos Guy Debord para pensar essa condição de extrema positividade, mas filósofos como Theodor Adorno e Byung-Chul Han poderiam igualmente figurar como marcos teóricos para tanto. , compensa sua separação com um ato louco: elegemos um personagem de comédia de mau gosto para nos governar melhor, ainda que saibamos que isso é um ato sem sentido lógico. Quebrando todos os protocolos de civilidade no debate público, o método dos populistas consiste na criação permanente do caos para se apropriar da energia de revolta (GROSSBERG, 2017GROSSBERG, L. Under the cover of chaos: Trump and the battle for American right. London: PlutoPress, 2018., pp. 121-131).

O que Guy Debord (2017)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. pensava em torno da ideia de “sociedade do espetáculo” não se mostra muito diferente. Longe de noções simplificadoras que, por exemplo, poderiam associar o episódio Waldo a uma mera dominação ou manipulação da mídia sobre a população, o espetáculo, para Debord, era antes o modo de produção assumido pelo capitalismo sob diferentes formas. “O espetáculo”, diz a tese 12 do autor,

apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é o que aparece é bom, o que é bom aparece. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência (DEBORD, 2017DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017., p. 41).

Assim, o que Debord chama de espetáculo não é a mera transfiguração das imagens da política em novas embalagens, mescladas com shows e outros produtos da cultura pop, mas o encobrimento totalizante da realidade por uma positividade que se afirma sem deixar brechas. Com isso, insiste ser a separa ção “o alfa e o ômega do espetáculo”. O espetáculo, diz, “é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência” (idem, p. 45).4 4 Franco Bifo Berardi chega a comparar o crime de James Holmes, um adolescente atirador frequentador de chans de extrema direita que assassinou pessoas durante o filme “Batman returns ” inspirando-se no Coringa, com uma performance situacionista. “Holmes […] queria eliminar a separação entre filme e espectador; ele queria estar no filme” (2015, p. 2, trad. livre).

De certo modo, tanto na ficção de Waldo como em Trump, sua face realizada, podemos ver um germe de insubmissão a essa totalização, na medida em que o “inevitável” é posto em questão. Há um nítido componente de revolta que não consegue ser simplesmente descarregado ou assimilado pelo sistema, uma pretensão de tocar o que não pode ser tocado, aquilo que é indiscutível – ou seja, falando como Debord, o pseudossagrado da ordem social espetacular. É claro que um ou outro igualmente terminam mostrando a futilidade do gesto, na medida em que tais cortes, tais rupturas, podem ser percebidos como internos ao espetáculo: Trump é um multimilionário hiperreacionário que governa para os ricos; Waldo, por sua vez, é rapidamente apropriado pelo entretenimento e transformado em uma marca capaz de fundir os interesses corporativos com a política oficial em nível transnacional. Nem por isso, contudo, as chaves que interpretam o conservadorismo apenas a partir do medo revelam-se, aqui, úteis: não há dúvidas de que tanto Waldo quanto Trump desafiam o medo, pois desde o princípio são dados como inviáveis eleitoralmente. Na verdade, o medo acaba virando para o lado progressista, que argumenta contra os supostos outsiders precisamente o risco do pior (e não, como se esperaria, a esperança do melhor). Trata-se de pensar, por isso, o caráter duplo desse gesto: a revolta e a sua instrumentalização, ou a fissura que, em sua radicalidade, corta apenas por dentro o sistema, mantendo o bloco de poder intacto. Longa tradição do século XX que investiga o fascismo a partir da máxima de Walter Benjamin (1994)BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, vol. 1. Brasília: Brasiliense, 1994.: “por trás de todo fascismo existe uma revolução fracassada”.

Cinismo e pós-crítica

Um dos elementos em comum na onda fascista distribuída por todo globo parece ser a utilização, sobretudo por meio das plataformas, do discurso cínico e chauvinista performado pelos seus líderes.5 5 Posteriormente à primeira redação do texto foram eleitos Jair Bolsonaro no Brasil (2018) e Boris Johnson (2019) na Inglaterra, com a confirmação veemente do Brexit nas urnas, além de Donald Trump figurar no favorito na disputa pela reeleição dos Estados Unidos. O cínico, como destacou Vladimir Safatle (2008)SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., é diferente do hipócrita, que atua de uma forma contraditória aos valores morais que sustenta. Sua contradição é entre o que faz e o que diz. O cínico, ao contrário, vive a contradição performativa, isto é, assume que, embora reconheça o sinal invertido na sua ação (“agir assim é errado, eu sei”), confirma-a como a única possível (“no entanto, é o único jeito”). Assim, o problema da dissociação não existe mais: o cínico reconhece a impostura normativa da sua ação, mas a crítica não é mais capaz de o vincular. O cínico não é desmascarável, como o hipócrita: ele é quem supostamente desmascara, sempre mostrando que o outro pode ser tão canalha quanto ele próprio (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 28-29). Todavia, como escrevemos em outro lugar (PINTO NETO, 2019), “enquanto o cínico que Safatle descreve é predominantemente o yuppie do ‘novo espírito do capitalismo’ pós-68, o ‘lobo de Wall Street’ — rico, libertino e hedonista —, o momento atual parece estar gestando o cínico chauvinista, espécie de reacionário obtuso, ignorante, brutal”. Enquanto o yuppie celebra seu triunfo social, dando de ombros para responsabilidades para além do seu auto-interesse, o troll cria uma revolta ressentida que mascara sua condição sob a forma cínica do “nada vale a pena”.

Mesmo que o establishment liberal já tenha consolidado, ao reconhecer as lutas dos movimentos pelos direitos civis, a consciência de que racismo, machismo, xenofobia e outras formas de violência simbólica são fenômenos negativos, de modo a proibir sua enunciação na esfera pública, o discurso troll viraliza na medida em que se coloca como um humor brutal, jogando na zona cinza entre o sério e a piada.6 6 Descrevi o fenômeno parcialmente no texto de blog referido na nota anterior. Por isso, repito algumas partes com leves ajustes (PINTO NETO, 2016). Todas as figuras emblemáticas que se abastecem da economia das redes sociais e dos trolls já entenderam e jogam com essa zona gris, que também é explorada por Waldo durante todo episódio7 7 Esse é o cenário descrito por Beran (2019), NEIWERT (2017) e Nagle (2017) a partir da formação de ecossistemas antagonistas no âmbito do 4Chan e do Tumblr, descrevendo as características de cada grupo jovem a partir dos contrastes discursivos e da relação estabelecida com memes, piadas e narrativas autobiográficas. . Eles conseguem canalizar a insatisfação popular pelo magnetismo da piada que, torcendo a ordem séria do discurso, diz o obsceno. Safatle já havia detectado no humor um mecanismo cínico de afirmação do poder, ao referir – com base no diagnóstico de Jean-François Lyotard – que, ao contrário do ocultamento do caráter fetichista dos processos de determinação do valor, “teríamos o cinismo de práticas capazes de reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas próprias enunciam, tal como em uma eterna paródia” (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 91-92). Para Adorno, segue Safatle, o fascismo seria esse riso que vem do poder, mencionando que “ninguém acreditava na mitologia do fascismo, nem sequer seus porta-vozes, mas cria-se ” (idem, p. 97). Os líderes fascistas, assim, são phonies [falsidade que se afirma ironicamente como tal] e para compreender o fenômeno não basta penetrar na sua inconsistência racional, é necessário compreender que forma de vida esse discurso ideológico pressupõe (idem, p. 99).8 8 Ver, por exemplo, a poderosa análise de Bifo Berardi acerca do fenômeno clown Silvio Berlusconi antes mesmo da onda atual (BERARDI, 2011, pp. 76-94), depois corroborada pela associação entre Trump e Pepe the Frog (BERAN, 2019 e NAGLE, 2017) e, também por exemplo, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que chegou ao ponto de levar um humorista mimetizando seu próprio comportamento para enfrentar jornalistas recentemente. Ver também Grossberg ( 2017, pp. 12-13).

O problema – ainda hoje – é como responder a isso. Não porque seja difícil realmente contrapor afirmações absurdas ou refutar seus erros, mas formular a resposta de modo que não repita o mecanismo de feedback que alimenta o troll, ou seja, a forma repressiva (“você não pode dizer isso”). Como disse em outro texto (PINTO NETO, 2018):

Está-se em um duplo jogo que é uma armadilha: de um lado, a parte sacerdotal, a ‘lição de moral’ triste fica na conta daqueles que querem contraditar o discurso do humor brutalizado (chamado então de ‘politicamente correto’); de outro, os próprios cínicos, visto que falam sem precisar de um chão de coerência (a validade normativa é menos importante que a performance na superfície), tomam para si a condição de vítima, de censurados e de patrulhados, aproveitando muitas vezes a atitude de superioridade moral que o outro polo coloca sobre si9 9 Com posição semelhante: GROSSBERG, 2017, p. 12. . Tem-se, assim, um não-diálogo que vai contaminando a esfera pública e tornando os polos cada vez menos comunicantes, aumentando o fosso na medida em que a estratégia chauvinista vai funcionando. O politicamente correto (PC), ao eliminar a interpretação fora do campo do literal, é o alvo perfeito para o crescimento reativo desse fascismo: ao ser phonie, este joga no nível “meta” da linguagem que torna indecidível se o dito é realmente objeto ou não de crença pelo emissor. O obsceno, assim, não se situa no nível do ocultamento, daquilo que ninguém sabe (e precisa ser desmascarado), mas na capacidade de criar uma performatividade indecidível diante de um constativo escandaloso – jogando no nível que o politicamente correto não alcança pelo seu literalismo moralista. Assim, dentro desse arranjo, só resta ao PC o papel de polícia moral.

Não se trata de uma falsa simetria, como alguns críticos de Beran (2019)BERAN, D. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019., Grossberg (2017)GROSSBERG, L. Under the cover of chaos: Trump and the battle for American right. London: PlutoPress, 2018. e Nagle (2017)NAGLE, A. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017. procuram apontar, pois não se trata de afirmar que há uma figura simétrica entre polos idênticos, em nada equivalente ao funcionamento da máquina dinâmica de feedbacks recíprocos que opera ciberneticamente e independe de qualquer valoração positiva ou negativa sobre os polos envolvidos.

E, prosseguindo o argumento, assim se configura a forma do arranjo cibernético:

A natureza política da perversão troll é conservadora, apesar da aparência transgressiva, porque, ao jogar no indecidível o performativo entre sério e jocoso, deixa de lado o conteúdo do enunciado – que, no fim das contas, é apenas uma reprodução banal da violência do status quo. Ao querer tocar o real por meio do obsceno, destruindo a positividade do espetáculo com uma pseudocrítica, a atitude reacionária apenas reafirma em uma duplicação irônica aquilo contra a qual supostamente ela estaria revoltada. Só que a estratégia de resposta do PC retroalimenta esse mecanismo, gerando o feedback esperado pelo reacionário – recolocando-o na posição de outsider a partir do policiamento da seriedade. O reacionário, falando uma estupidez, parece inteligente, enquanto o PC, policiando o conteúdo com uma constatação inteligente, parece estúpido porque “não entendeu a piada” (ironia). Inverte-se, numa simetria de duas diagonais, a relação inteligência/estupidez e burrice/inteligência. É uma estrutura em que ambos veem o outro lado como estúpido, porque pensam que sabem algo que o outro não sabe

(PINTO NETO, 2018).

Utilizando as ferramentas de formalização que o estruturalismo, por exemplo, legou às ciências sociais, poderíamos colocar o problema sob a forma abaixo:

Tab. 1.

Uma referência inescapável para pensar no acontecimento Trump são os irmãos Cohen, profundos artistas do encontro entre o acaso e a burrice,10 10 Sobre os obstáculos epistemológicos ao enfrentamento da burrice no âmbito acadêmico, ver por exemplo Durão (2017). do perigo que cerca a rede de estúpidos, de como situações fortuitas podem ocasionar um mal imprevisível e quase imbatível. Em Queime depois de ler, os Cohen exploram como a sucessão de decisões estúpidas completamente aleatórias pode formar uma cadeia serial, provocando uma avalanche de proporções monstruosas. O fato não se explica por uma manipulação comandada por um poder central: trata-se, como dizem Deleuze e Guattari (1995)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995., de um rizoma que compõe uma série de eventos aleatórios sem conexão entre si, mas que funcionam em disjunção inclusiva. Trump remete a essa burrice constitutiva e em rede, alimentada pela desinformação e pela ausência de diálogo possível. O sistema subterrâneo de informações – alimentado por um pseudoceticismo – provoca efeitos incontroláveis sobre a esfera pública, cujo efeito de filtragem não está mais apenas na mídia tradicional. No caso de Waldo, o marcador é ainda mais indecidível na medida em que ele não se identifica nem como conservador nem como progressista. Basta agir de modo agressivo e revoltado para que uma sucessão de pseudorrazões e pseudoargumentos se encontrem aleatoriamente, caindo sobre a cabeça dos surpreendidos pelo efeito de convergência que proporcionam as comunicações contemporaneamente. O outsider chauvinista vai, dessa maneira, tornando-se uma figura «contra o sistema», na medida em que a oposição contra ele reforça o mesmo bloco de críticas a partir do qual ele se levantou.

A dissolução da esfera pública na era da transparência

É interessante perceber – como também notou Safatle, mas agora olhando de outro ângulo – que Richard Rorty buscou traçar novamente a divisão entre espaço público e privado na política, separando o “intelectual público” do “ironista privado”. Entre os primeiros estariam Rawls e Dewey; entre os segundos, Heidegger e Derrida. Em Contingência, ironia e solidariedade, Rorty desloca o ironista para o âmbito privado devido à permanente colocação em dúvida dos valores compartilhados, enquanto os valores das democracias liberais não poderiam ser enunciados de maneira irônica (SAFATLE, 2008SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008., pp. 107-108).

Em resposta à crítica – que inclusive o etiquetava como “romântico” na visão política –, Derrida afirma que justamente a divisão entre público e privado era algo que não poderia subscrever, dado que a desconstrução dessas bordas já estava posta. Em Mal de arquivo, por exemplo, explorava, baseado nas tecnologias de comunicação existentes na época (fac-símile, CD-ROM, e-mail e outros), como tudo isso provocaria a erosão da diferença entre público e privado com impactos impossíveis de medir em termos de reflexos políticos. Segundo ele, “o correio eletrônico está hoje, mais ainda que o fax, em vias de transformar todo o espaço público e privado da humanidade e, portanto, o limite entre o público e privado, o segredo (privado ou público), e o público ou o fenomenal” (DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Cláudia Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001., p. 30). Derrida previu, com isso, a indistinção que hoje acontece entre o pessoal e o político a partir das redes sociais e das múltiplas tecnologias da informação e da comunicação, permitindo que uma “esfera pública paralela” surgisse ao lado da tradicional. Ora, é justamente nesse campo – Facebook, Twitter, WhatsApp, Instagram, Telegram, Tumblr, blogs etc. – que as “guerras culturais” estão acontecendo por excelência, a despeito da posição conciliadora que a mídia tradicional tenta promover a respeito. A distinção entre o sério e o jocoso como respectivamente esfera pública e privada, portanto, foi desconstruída pela emergência dessas tecnologias que promovem novas redes e novas subjetivações. Com isso, o projeto rortyano de resguardar a ironia para o âmbito privado, separando-a de uma crença sólida em instituições da democracia liberal que exigiriam uma abordagem mais pragmática, parece hoje simplesmente anacrônico. A ironia é atualíssima na era da memeficação da política. A esfera pública fratura-se em sedimentos comandados por lógicas diferentes, nas quais até vazamentos de informações privadas desempenham papel importante. Aliás, The Waldo Moment já inicia com um vazamento que leva à renúncia do parlamentar.

É possível ampliar, por isso, a estrutura delineada anteriormente e colocá-la, para além do debate moral onde está situada, no nível político em um mundo no qual a distinção entre público e privado desapareceu. Esse tema é transversal à série, atravessando todos os episódios: dos linchamentos virtuais aos reais, da memória infinita à vigilância integral, da produção de corpos espetacularizados até uma existência totalmente submetida à ordem do desempenho, é sempre a transparência integral do mundo tecnologizado que está em jogo. O personagem de Ash (t02e01, Be right back), por exemplo, é a condensação algorítmica da “alma” humana baseada na combinação de postagens públicas. Aquilo que é mais privado e opaco – a alma – torna-se transparente. No episódio especial de Natal (t02e04, White Christmas), é a partir de uma lente de contato que se projeta – como na augmented reality – a disposição da tecnologia das redes digitais (o block) sobre o mundo, como o mapa de Borges que encobre a totalidade do território. Não se trata de negar que a realidade ou a natureza sejam em si mesmas tecnologias, mas apenas de perceber que um certo tipo de tecnologia – associada ao desempenho e à produtividade – coloca-se sobre o real, tornando-se unidimensional (quebrando, aliás, a bidimensionalidade que a relação de décadas atrás estabelecia entre real e virtual). Não por acaso, sempre há uma vigília sobre os personagens, como ocorre com Bing, o protagonista de Fifteen million merits (t01e02), quando a compulsoriedade de se manter atento diante da tela é o mundo em permanente ofuscação, 24/7, descrito por Jonathan Crary como o modo contemporâneo de funcionamento do capitalismo (Crary, 2014CRARY, J. 24/7: capitalismo e os fins do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 26-29).

A desconstrução da divisão entre público e privado, por isso, leva a uma visibilidade total em que tudo é público e privado simultaneamente. No mesmo ato em que desaparece a opacidade privada, desaparece igualmente o interesse público. O privado encobre o público, o público encobre o privado – mas a síntese não é muito feliz. A organização do sistema é baseada no funcionamento acelerado do capitalismo contemporâneo, que cobre todos os espaços com sua demanda por desempenho e produtividade dos indivíduos. Ao mesmo tempo, a espetacularização integral destrói o próprio espaço político – que, necessariamente, é coletivo – e provoca a sensação de impotência descrita no primeiro tópico. O espaço gerado nessa localidade, contudo, não encontra formas de organização, uma vez que abarcado pelos dispositivos que coordenam as atividades de modo integrado, cobrindo o real com a vigilância e o controle.11 11 A transparência aqui mencionada, baseada nos escritos de Debord e Byung-Chul Han, certamente poderia ser explicada também a partir do capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff (2017). Por outro lado, a relação entre a constituição da nuvem por Tung-Hui Hu (2015) a partir do modelo de time sharing poderia explicar a estrutura do “particular-em-soma”. A moralização do debate que se dá em torno às guerras culturais é consequência desse encurtamento.

Tab. 2.

Num ambiente ofuscante, sem zonas de penumbra e opacidade, o espaço da idiotia, 12 12 Sobre o tema, conferir Stiegler, que associa a idiota a Epimeteu, associando-a à tecnicidade originária do humano e à diferença idiomática (2003, pp. 274-299). Diz ele: “La epimeteia es esta des-preocupación, esta idiotez primordial, fuente de la singularidad y de la libertad finitas a partir de las cuales es posible actuar y que, demás, algo suceda, algo ocurra” (idem, p. 292). que é condição da singularidade, está permanentemente sendo pressionado pela “civilização” e pelo “progresso” uniformizadores, identificados por sua vez com esse capitalismo 24/7 (globalização, aceleracionismo, multiculturalismo etc.). O desconforto com a integração ao sistema de visibilidade total – espetáculo (separação) no seu excesso – expressa-se na exploração dos próprios espaços visíveis (redes sociais digitais) criando a metalinguagem troll que desvia do controle civilizatório (no caso, o PC) e gera opacidade. Enquanto o capitalismo global procura absorver as demandas politicamente corretas produzindo suas formas “limpas” (por exemplo: capitalismo verde, absorção pelas plataformas das pautas LGBT), a aura “antissistêmica” cai para o lado idiossincrático, identificando-se com imagens reacionárias. Contrapõe-se o enraizamento da tradição ao universalismo desterritorializante. Ao separar o “efeito performativo do constativo, alegando a piada, os trolls criam uma zona de opacidade que se contrapõe à visibilidade e à performance absoluta que caracteriza o PC (onde até mesmo o desejo é inquirido em relação aos seus preconceitos, suas paixões sujas, etc.)” (PINTO NETO, 2018). Abaixo formalizo a situação:

Tab. 3.

No entanto, a posição de revolta não se estabelece a partir de parâmetros claros de indignação no mundo troll. Trata-se de um “pessimismo desorganizado” que atira para todos os lados sem saber direcionar exatamente qual é o mote da indignação. A vagueza de Waldo, ao contar piadas, fazer grosserias e expressar um descontentamento genérico, trabalha a partir de uma desorganização cognitiva em torno das causas e efeitos dos problemas. Esse apelo, entretanto, encontra um similar no mundo da civilização do capitalismo acelerado: a posição de consumidor, aquele que “sempre tem razão”.13 13 Beran também faz a relação: “Não era segredo para ninguém que otaku era o ‘apoteose do consumerismo e uma força de trabalho ideal para o capitalismo contemporâneo” (2019, p. 62, trad. livre). No espaço encurtado, a revolta se traduz no interior desse sistema a partir da única posição de subjetivação que resta. O consumidor é essa figura mimada, cujos desejos (racionais ou irracionais) devem ser atendidos irrestritamente – e diante do qual cabe ao fornecedor encontrar uma forma de torná-lo integralmente satisfeito nas suas idiossincrasias. O troll revoltado é o consumidor insatisfeito da política. A revolta, por isso, estabelece-se a partir de uma idiossincrasia consumista na qual o indivíduo está liberado para expressar seus desejos livremente, em qualquer vocabulário, e conta com a simpatia dos demais na indignação. É difícil não associar Waldo a esse consumidor insatisfeito, desbocado e cheio de razão, assim como também pode-se pensar sobre a infantilização da sociedade que vota em um urso azul (fato seguidamente repetido no episódio) para a representar no Parlamento. A revolta, por isso, sempre passa a sensação artificial daqueles que reclamam contra tudo, mas não desejam mudar nada. O motivo é essa integração estrutural do consumidor no mesmo plano que a “civilização” (capitalismo 24/7 ou sociedade do espetáculo) contra o qual ele supostamente se levanta. Criando o caos permanente, forma-se uma revolta dos impotentes.14 14 Sobre a impotência no contemporâneo e suas relações com o surgimento do exército de trolls que apoiam o populismo de extrema direita, ver a descrição da “Era da Impotência” em Franco Bifo Berardi (2017), sobretudo p. 37-56.

Considerações finais

A partir da análise de conjuntura delineada, pode-se sintetizar o texto desde os seguintes pontos:

  1. a sociedade de espetáculo, ao cobrir o real tornando-se seu modo de produção, cria um excesso de positividade. A revolta nega o positivo e por isso escapa à chave do medo como afeto central. Waldo abstratamente desafia o establishment, do mesmo modo com que os políticos populistas do cenário atual criam o caos permanente como forma de governo;

  2. as condições discursivas do troll são reflexos da impotência política. Elas configuram um cinismo irreversível jogando na indecidibilidade entre sério e humorístico que contrasta com o moralismo do politicamente correto, gerando uma máquina de feedbacks positivos entre antagonistas nas plataformas;

  3. a dissolução de fronteiras entre público e privado promovida pelas plataformas digitais produz um parâmetro integrado de correção política que tem como seu verso o localismo reacionário, entendido como espaço de idiotia livre dos constraints de uma esfera pública onipresente e, por isso mesmo, sufocante. Por isso, dá-se a popularidade dos governantes clowns enquanto alívio da integração (políticos “autênticos” como Waldo);

  4. a revolta desorganizada traduz-se na linguagem do consumidor insatisfeito, encontrando na reclamação seu principal veículo e por isso colonizada pela lógica capitalista desde o princípio, apesar da reivindicação antissistêmica. Trata-se de uma revolta impotente.

Encontrar saídas dessa estrutura é a tarefa de um pensamento que não se contente em se deixar integrar no progresso artificial que o capitalismo contemporâneo produz, em especial nas suas linhas de subjetivação. Por ora, estamos presos numa armadilha de feedbacks que tende a se reproduzir em espiral. A barbárie troll é a oposição interna que dinamiza o próprio mecanismo da civilização. O PC hoje é a força do progresso integrador na visibilidade integral. Contudo, há que se ler as outras barbáries que estão em jogo a fim de traçar novos caminhos. E, de fato, elas estão aí. Talvez, introduzindo um sentido positivo, precisemos dessa barbárie a que se referia Benjamin como a que “impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, vol. 1. Brasília: Brasiliense, 1994., p. 116).

  • 1
    O presente texto foi construído a partir de pequeno ensaio chamado de “A Era do Chauvinismo”, publicado no blog pessoal, com desenvolvimento de argumentos, referências e expansão temática, e posteriormente seguido do texto “Do Populismo Reacionário ao Exterminismo”, que, embora tenha lhe precedido em publicação, foi escrito posteriormente repetindo algumas das suas teses (como ali indicado). Ele também é mencionado na entrevista “Muros do condomínio esquerdista transformados em pontes de diálogo” concedida ao Instituto Humanitas Unisinos.
  • 2
    De modo puramente exemplificativo, o mapa da cena inclui, por exemplo, Estados Unidos, Bolívia e Brasil nas Américas; Inglaterra, Hungria e Polônia, mas também marginalmente Espanha, França, Alemanha e Holanda na Europa (nos segundos casos, sem estar nos governos); Turquia e Rússia na fronteira entre Europa e Ásia; Índia e Filipinas, na Ásia, entre outros países. Casos como China, Venezuela e Coreia do Norte, embora com elementos semelhantes, não se encontram na mesma dinâmica democrática para ascensão dos líderes populistas. Sobre tema, ver Judis (2016)JUDIS, J. The populist explosion. New York: Columbia University Press, 2016. e Castells (2018)CASTELLS, M. Ruptura: a crise da democracia liberal. Trad. Joana Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018..
  • 3
    Utilizaremos Guy Debord para pensar essa condição de extrema positividade, mas filósofos como Theodor Adorno e Byung-Chul Han poderiam igualmente figurar como marcos teóricos para tanto.
  • 4
    Franco Bifo Berardi chega a comparar o crime de James Holmes, um adolescente atirador frequentador de chans de extrema direita que assassinou pessoas durante o filme “Batman returns ” inspirando-se no Coringa, com uma performance situacionista. “Holmes […] queria eliminar a separação entre filme e espectador; ele queria estar no filme” (2015, p. 2, trad. livre).
  • 5
    Posteriormente à primeira redação do texto foram eleitos Jair Bolsonaro no Brasil (2018) e Boris Johnson (2019) na Inglaterra, com a confirmação veemente do Brexit nas urnas, além de Donald Trump figurar no favorito na disputa pela reeleição dos Estados Unidos.
  • 6
    Descrevi o fenômeno parcialmente no texto de blog referido na nota anterior. Por isso, repito algumas partes com leves ajustes (PINTO NETO, 2016).
  • 7
    Esse é o cenário descrito por Beran (2019)BERAN, D. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019., NEIWERT (2017)NEIWERT, D. Alt-america: the rise of the radical right in the age of Trump. London/New York: Verso, 2017. e Nagle (2017)NAGLE, A. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017. a partir da formação de ecossistemas antagonistas no âmbito do 4Chan e do Tumblr, descrevendo as características de cada grupo jovem a partir dos contrastes discursivos e da relação estabelecida com memes, piadas e narrativas autobiográficas.
  • 8
    Ver, por exemplo, a poderosa análise de Bifo Berardi acerca do fenômeno clown Silvio Berlusconi antes mesmo da onda atual (BERARDI, 2011BERARDI, F. ‘Bifo’. After the future. Trad. Arianna Bove et al. New York: AK Press, 2011., pp. 76-94), depois corroborada pela associação entre Trump e Pepe the Frog (BERAN, 2019BERAN, D. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019. e NAGLE, 2017NAGLE, A. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017.) e, também por exemplo, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que chegou ao ponto de levar um humorista mimetizando seu próprio comportamento para enfrentar jornalistas recentemente. Ver também Grossberg ( 2017, pp. 12-13)GROSSBERG, L. Under the cover of chaos: Trump and the battle for American right. London: PlutoPress, 2018..
  • 9
    Com posição semelhante: GROSSBERG, 2017, p. 12.
  • 10
    Sobre os obstáculos epistemológicos ao enfrentamento da burrice no âmbito acadêmico, ver por exemplo Durão (2017)DURÃO, F. A. Burrice Acadêmico-Literária Brasileira. Revista da Anpoll, v. 1, n. 43, 2017..
  • 11
    A transparência aqui mencionada, baseada nos escritos de Debord e Byung-Chul Han, certamente poderia ser explicada também a partir do capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff (2017)ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: BRUNO, F. et al (org). Tecnopolíticas da Vigilância. Trad. Heloísa Mourão. São Paulo: Boitempo, 2017.. Por outro lado, a relação entre a constituição da nuvem por Tung-Hui Hu (2015)HU, T-H. A Prehistory of the Cloud. Cambridge/London: The MIT Press, 2015. a partir do modelo de time sharing poderia explicar a estrutura do “particular-em-soma”.
  • 12
    Sobre o tema, conferir StieglerSTIEGLER, B. La técnica y el tiempo. El pecado de Epimeteo. Vol. 1. Trad. Beatriz Bastos. Hondarribua: Hiru, 2003., que associa a idiota a Epimeteu, associando-a à tecnicidade originária do humano e à diferença idiomática (2003, pp. 274-299). Diz ele: “La epimeteia es esta des-preocupación, esta idiotez primordial, fuente de la singularidad y de la libertad finitas a partir de las cuales es posible actuar y que, demás, algo suceda, algo ocurra” (idem, p. 292).
  • 13
    Beran também faz a relação: “Não era segredo para ninguém que otaku era o ‘apoteose do consumerismo e uma força de trabalho ideal para o capitalismo contemporâneo” (2019, p. 62, trad. livre).
  • 14
    Sobre a impotência no contemporâneo e suas relações com o surgimento do exército de trolls que apoiam o populismo de extrema direita, ver a descrição da “Era da Impotência” em Franco Bifo Berardi (2017)______. Heroes: mass murder and suicide. London/New York: Verso, 2015., sobretudo p. 37-56.

Referências

  • BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas, vol. 1. Brasília: Brasiliense, 1994.
  • BERAN, D. It came from something awful: how a toxic troll army accidentally memed Donald Trump into office. New York: All Points Rocks, 2019.
  • BERARDI, F. ‘Bifo’. After the future Trad. Arianna Bove et al. New York: AK Press, 2011.
  • ______. Heroes: mass murder and suicide. London/New York: Verso, 2015.
  • ______. Futurability: the age of impotence and the horizon of possibility. London/New York: Verso, 2017.
  • CASTELLS, M. Ruptura: a crise da democracia liberal. Trad. Joana Melo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
  • CRARY, J. 24/7: capitalismo e os fins do sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • DEBORD, G. A sociedade do espetáculo Trad. Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.
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  • DURÃO, F. A. Burrice Acadêmico-Literária Brasileira. Revista da Anpoll, v. 1, n. 43, 2017.
  • FRASER, N. Do neoliberalismo progressista a Trump - e além. Trad. Paulo Neves. Política & Sociedade, v. 17, n. 40, Set./Dez. de 2018.
  • GROSSBERG, L. Under the cover of chaos: Trump and the battle for American right. London: PlutoPress, 2018.
  • HU, T-H. A Prehistory of the Cloud Cambridge/London: The MIT Press, 2015.
  • JUDIS, J. The populist explosion New York: Columbia University Press, 2016.
  • MOUFFE, C. (org). Desconstrucción y pragmatismo Buenos Aires: Paidós, 1998.
  • ______. For a Left Populism NY/London: Verso Books, 2018.
  • NEIWERT, D. Alt-america: the rise of the radical right in the age of Trump. London/New York: Verso, 2017.
  • NAGLE, A. Kill All Normies: online culture wars from 4Chan and Tumblr to Trump and the alt-right. Winchester/Washington: Zero Books, 2017.
  • SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica São Paulo: Boitempo, 2008.
  • STIEGLER, B. La técnica y el tiempo El pecado de Epimeteo. Vol. 1. Trad. Beatriz Bastos. Hondarribua: Hiru, 2003.
  • ZUBOFF, S. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação. In: BRUNO, F. et al (org). Tecnopolíticas da Vigilância Trad. Heloísa Mourão. São Paulo: Boitempo, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2019
  • Aceito
    17 Abr 2020
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