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A TERRA SOB TORTURA: TÉCNICA COMO VINGANÇA E REAFIRMAÇÃO DO RACIONALISMO

Earth in torture: technique as revenge and restatement of rationalism

RESUMO

Correspondendo à interpretação critica de Nietzsche sobre a razão convencional, trazemos neste escrito uma reflexão sobre o destino da técnica e suas consequências para a relação homem - Terra. Para Nietzsche, o aparato técnico do contexto moderno traz em si as bases de uma metafísica niilista e apartada da efetividade do mundo concreto. Tal distanciamento arquitetou e nos deixou o legado da degenerescência ambiental que tantos nos preocupa nos dias de hoje. Como proposta, o pensamento nietzschiano nos convida a repensar o sentido da Terra, não via um simplista abandono da tecnologia, mas por um reencontro com a natureza, uma proximidade que nos proporcione novas possibilidades de existência e ação.

Palavras-chave:
Técnica; Terra; perspectiva ambiental; pensamento nietzschiano

ABSTRACT

Responding to the critical interpretation of Nietzsche on the conventional reason we bring this written reflection on the fate of the technique and its consequences for the relationship man - Earth. For Nietzsche, the technical apparatus of the modern context brings with it the foundations of a nihilistic metaphysics and apart of the effectiveness of the concrete world. Such distancing architected and left us the legacy of environmental degeneracy so many concern us today. As proposed, the Nietzschean thought invites us to rethink the meaning of the Earth, not via simplistic abandonment of technology, but a reunion with nature, a closeness that will provide us with new possibilities of existence and action.

Keywords:
Technical; Earth; environmental perspective; Nietzsche’s thought

INTRODUÇÃO

“A compulsiva apropriação tecnológica da natureza - de cuja fúria desencadeada não escapa o próprio homem - é insensata e carece de auto-reflexão. A racionalidade técnicocientífica precisa receber uma dimensão de sentido, que só pode ser dada pela reflexão, pela meditação e pela crítica filosófica. Essa tendência, como toda compulsão, é patológica e conduz antes à reificação, à administração econômica global de interesses e rendimentos do que a qualquer perspectiva de salvação.” Oswaldo Giacoia Junior, 2003.

No mundo contemporâneo, o destino da técnica se fez entendido enquanto o destino do próprio homem e, consequentemente, de nossa própria cultura. Talvez este seja um dos maiores equívocos do pensamento moderno tardio1 1 Referente à modernidade tardia, termo proposto por Araujo (2003), que caracteriza o contexto atual, onde padrões essencialmente modernos convivem com seu anti-argumento, isto é, as perspectivas ditas “pós-modernas”. A modernidade tardia é marcada pelo vigor do racionalismo positivo e mecanicista, atrelado a uma tecnociência subserviente aos interesses dos grandes sistemas produtivos, governados por empresas transnacionais. Seus instrumentos de destaque são os dinâmicos e sofisticados sistemas de telecomunicação (base para uma fluída e veloz rede internacional de informações), o arrojo da mecatrônica, informática assim como da robótica e cibernética, além o desenvolvimento vertiginoso das nanotecnologias, engenharias genéticas, genômica e neurociências. Para Giacóia Jr. (2003), todas estas potencialidades caminham para um previsível estabelecimento de uma antropotécnica (base para uma transumância), assim como condições plenas para o nascimento de uma inteligência artificial autônoma. , tanto para os que desejam a concretização plena desta imagem de futuro e de sociedade, quanto para aqueles que querem se contrapor a tal tendência de domínio.

Esse equívoco aqui anunciado, não se faz tão clarividente. Levantá-lo não é uma tarefa ordinária. Como suspeitava Heidegger (2002HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.), a técnica, que se faz dominante em nosso tempo, é possuidora do artifício de encobrir sua essência. Tal encobrimento ocorre, pois foi dada à técnica uma prodigiosa capacidade de edificar (a partir de sua aparência empreendedora, dinâmica e veloz) a metamorfose e o ocultamento de sua própria imagem e sentido, ou seja, a técnica como auxílio para o desvelamento e melhor compreensão do mundo e de sua realidade.

O sentido aparente de técnica, a qual nos referimos criticamente, é, em absoluto, aquela em vigor nos nossos dias. Aquele falso sentido de técnica, apontado por Heidegger (2002HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.), enquanto meio, modo e determinação instrumental para as finalidades empreendedoras (econômico-comerciais) do homem, pautadas em uma arrojada e violenta ação transformadora sobre a physis. A nosso ver, esse arrojado modo instrumental de pensar e agir se dispõe, estritamente, em ampliar uma segunda natureza, burocraticamente servil as intenções humanas, altamente planificada e administrável, que cumpre o curioso papel de garantia de sobrevida e redoma protetora, uma espécie bolha que busca assegurar, cada vez mais, o afastamento do homem diante das forças hostis e imponderáveis da primeira natureza, ou seja, aquela que, em si, subsiste e se expande sem a intervenção humana, uma natureza ainda dotada de potência criadora autônoma e indomável. Nesta perspectiva, sinalizamos que o destino da técnica dominante, enquanto o devir da própria humanidade, é uma astuta farsa, que esconde, em seu fundamento, uma base moral e ideal em curso, desde os primórdios da razão ocidental.

Em nossa leitura, o sentido aparente da técnica é uma reafirmação moral do humanismo historicamente triunfante, um ideal que tem em sua essência os domínios da transcendência metafísica, do niilismo e, como definiria Giacóia Jr. (2003), da maioridade da razão, gestada na figura de Sócrates. A técnica triunfante do racionalismo, potencializa os desejos desta trajetória do pensamento e concretiza seus fins da maneira mais eficiente já vista. Portanto, em nossa leitura, a técnica moderna, em si, de aparência denunciada por Heidegger (2002HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.), não pode ser vista como fundamento, muito menos um fim para a História. Este modelo técnico vem se afirmando cada vez mais enquanto meio para a corrupção, perversão e submissão da natureza, assim como um potencial de enfraquecimento e possível aniquilamento da própria existência do homem.

Para decifrar os caminhos e as reais intenções sobre o destino ilusório da técnica, faremos uso do pensamento de Nietzsche, sendo este um dos filósofos a sustentar, até os nossos dias, uma perspectiva crítica, atual e iconoclasta sobre os alicerces do modelo de razão triunfante e da modernidade em curso. Este filósofo, segundo Heidegger (2011), gestado no próprio contexto da modernidade, momento cerne para a ampliação política e econômica do projeto liberal e industrial, de nascimento e sistematização das ciências positivas e do rearranjo burguês e nacionalista dos Estados, se fez um opositor2 2 No entanto, cabe ressaltar que Nietzsche (2011a), em nossa interpretação, manifestou, em seus escritos, certo apreço por alguns elementos do princípio da modernidade, de sua fase renascentista inspirada pela consulta aos variados resquícios gregos, das heróicas desventuras e conquistas dos desbravadores e pioneiros daquele contexto de conhecimento, relativamente desobedientes aos imperativos cristãos. virulento da modernidade em curso no século XIX.

Para Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), o mundo moderno, marcado pelo domínio do niilismo e do logocentrismo científico positivista, é especializado em meios de entorpecimento diante do medo de conhecer e do afastamento efetivo do homem diante das tensões que envolvem o corpo e a efetiva vida na Terra. Esta modernidade criou outro mundo, idealizado e antropomorfizado, mediante a transcendência de um plano racional e divino. Para livrar-se das armadilhas do niilismo do “último-homem”, (o homem moderno), reafirmado pelo triunfo da tecnociência racionalista, Nietzsche (2011a) propõe, enquanto lição nevrálgica de sua filosofia, o retorno em fidelidade aos impulsos da Terra e à libertação do corpo enquanto vontade criadora, “razão maior” e elo privilegiado com a natureza do cosmo.

O esforço de nosso escrito não é promover uma condenação sumária, ou crítica destrutiva às possibilidades e a existência da técnica, sobretudo a técnica em sua profunda essência. Ao reconhecer a impossibilidade de retrocesso diante o poder e a presença da tecnologia em nosso tempo, propomos uma perspectiva de reflexão sobre as origens milenares de suas intenções, discutir, geofilosóficamente, sua remanescência, seus impactos, suas possibilidades de desdobramento e assim pensar em novos caminhos, sobretudo para a Geografia e um possível salvamento de caráter humanista sobre a própria técnica.

Projetamos sobre a tecnologia a imagem de uma arte que traz em si a possibilidade de desvendar os mistérios da vida e do mundo, um poder capaz de ampliar as possibilidades de plena existência humana. Porém, para o nosso campo de análise, o poder da técnica só será realmente próspero e libertador caso se configure enquanto caminho para o derradeiro encontro entre Terra e homem. Um encontro comprometido em perpetuar e fortalecer a coexistência entre os infortúnios, contradições e tensões que fundamentam todas as dimensões da existência, evitando assim o aniquilamento da multiplicidade e de suas forças edificantes.

DAS ORIGENS DA RAZÃO AO DOMÍNIO ABSOLUTO DA MATHESIS

“Operamos somente com coisas que não existem, como linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis - como poderia ser possível a explicação se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada vez mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais - na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos”. Friedrich W. Nietzsche, 1882.

Em seu diagnóstico sobre as origens da razão convencional (aquela triunfante em toda a trajetória logocêntrica da tradição e da ciência positiva e ocidental), enquanto patologia do espírito, Nietzsche denuncia que seu nascimento adveio da preocupação com a memória. O sentido de memória, ao qual nos referimos, não se assemelha apenas à imagem de dimensão psíquica explorada por estudiosos como Dortier (2005) e Le Goff (2012). Estes compreendem a memória enquanto aspecto das mentalidades, o mito, o tempo cíclico das culturas tradicionais, o “histórico de vida”, como o difundido pela História Nova e a Antropologia Cultural, em contraponto ao domínio do registro oficial (o fato) sistematizado pela História metódica. A memória, julgada por Nietzsche (2009b), está atrelada justamente aos primeiros rudimentos da representação do fato histórico, ou seja, a cristalização sistemática do evento ocorrido, em contraposição ao esquecimento que marcava a concepção de devir das culturas homéricas, greco-arcaicas (e tradicionais), centrada no instante e esquecimento.

O cuidado com a memória, como reafirmado por Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), seria para os filósofos e sacerdotes da cultura helênica a maneira de subverter a ordem política dos guerreiros, superar a trama persuasiva do discurso sofista e deslegitimar a atmosfera mágica dos feiticeiros (xamãs) da Grécia primitiva. A memória, para o filósofo desse contexto, assim como o desenvolvimento da razão convencional, seria o instrumento para a tomada do poder político. Para Araújo (2003) o período clássico da antiguidade grega seria marcado por esse domínio da memória, além de sua rigorosa e burocrática administração. A cidade (pólis) grega nasce em decorrência do arrojo das relações políticas, sendo que, para esta se estabelecer em ação objetiva, o registro sobre os eventos conflituosos (de ordem política, social e militar) era de extrema necessidade.

Segundo Giacoia Jr. (2013) a mnemônica, desenvolvida nos primórdios da tradição foi uma das primeiras técnicas de pensamento racional-objetivo. Para Nietzsche (2009b______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.), a essência da mnemônica do mundo helênico seria o ato de recordar o ocorrido por meio do ressentimento relativo à dor sofrida. Nesta lógica, a dor representaria, além do sofrimento físico do corpo, o rancor obtido diante do prejuízo, do dano, da dívida, das perdas ocorridas mediante toda e qualquer lida sobre a realidade, os conflitos com a natureza e a coletividade humana. Para Nietzsche, a dor seria julgada pelos sábios da razão enquanto o sintoma em evidência, o objeto de maior interesse e o mal a ser combatido.

Nos argumentos do filósofo da “Genealogia da Moral”, ao contemplar e registrar os acontecimentos da vida enquanto imagens inesquecíveis, os filósofos foram, progressivamente, estabelecendo as primeiras regras da razão convencional, tendo por base a identificação de contradições polarizadas e dicotômicas entre culpado e lesado, risco e resguardo, dano e punição, ação e reação, causa e efeito. Recordar pela dor se fez, no julgamento de Nietzsche (2009b______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.), a principal estratégia de autopreservação e sobrevivência de nossa espécie. Como desdobramento, em nossa interpretação, esse medo da dor foi, durante milênios, a base para os planejamentos do homem ocidental, linha mestra de sua projeção ao futuro, alicerce para o desenvolvimento de seus saberes, sua História e Geografias, de suas ações produtivas, assim como de superação dos antagonismos e dos infortúnios do mundo. Para Giacoia Jr. (2013), recordar pela dor possibilitou ao homem prometer e assim, planejar, racionalmente, o seu destino. Os efeitos desta lógica alcançaram, em pouco tempo, o engendramento dos primeiros modelos cosmológicos, filosóficos, matemáticos e, posteriormente, religiosos da tradição, destaque para o mundo cindido de Sócrates, representado pela alegoria da caverna de Platão, seu maior semeador.

Para Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), Platão seria de fato aquele que reuniria grande parte dos princípios racionais desdobrados pelos pensadores arcaicos e de seu tempo (como Pitágoras, Parmênides e Heráclito) e formularia o grande tratado sobre a desvalorização do mundo aparente, o desprezo à vida, como denominaria Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), a negação e condenação do mundo inferior, representado pela imagem da Terra.

A Terra para Nietzsche (2009, 2009a, 2011, 2011a) seria a dimensão súbita3 3 “[...] na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe para nós” (NIETZSCHE, 2011a, p.140). daquilo que o filosofo entende por cosmo. A nosso ver, trata-se de um fundamento geofilosófico de seu pensamento, base válida para a compreensão das dimensões espaciais. Filósofos como Henri LefebvreLEFEBVRE, H. A produção do espaço. Tradução de Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000), 2006. Disponível em: <http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2017.
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4 4 [...] Somente Nietzsche manteve o primado do espaço e a problemática da espacialidade: repetição, circularidade, simultaneidade do que parece diverso no tempo e nasce do tempo diverso [...] (LEFEBVRE, 1974). Essa passagem, destacada de “A produção do Espaço”, sinaliza em Lefebvre (2006) a importância dada à uma provável reflexão espacial, contida na perspectiva geofilosófica de Nietzsche, que valoriza a efetividade dinâmica do mundo (assim como da Terra), em detrimento das espacialidades mentais de base metafísicas. (2006) e geógrafos como Eric DardelDARDEL, É. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Tradução de Werther Holzer. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. 5 5 Em sua obra “O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica”, Eric Dardel traz, tanto via leituras diretas a Nietzsche, quanto via influências indiretas de Bachelard e Heidegger, elementos da geofilosofia nietzschiana como o sentido de Terra e Trágico, além do uso explícito do conceito de vontade de potência. (2011) trouxeram para a Geografia contemporânea (em algumas de suas proposições) elementos desta cosmologia nietzschiana que exploraremos ao longo deste texto.

A princípio, para Nietzsche (2009, 2009a, 2011, 2011a), terra e cosmo são seguimentos de um único corpo contínuo, o ente em sua totalidade, isto é, a composição do mundo concreto e imanente ou a physis, em seu sentido grego. Por impossibilidade de apreender a physis em sua totalidade, Nietzsche aponta que o homem só é capaz de vivenciá-la e experimentá-la em sua subitaneidade, a saber, a dimensão emergente, imediata e corporalmente sensível do homem em relação aos impulsos do cosmo. A isso Nietzsche chama de Terra, o domínio da vida, do corpo, a natureza que, a nós, se presentifica de forma fática e imanentemente. A Terra, portanto, é a única realidade possível (sensível e pensável) para Nietzsche, a dimensão geográfica, o mundo verdadeiro que a república de Platão condenou, mas que a humanidade deveria se voltar com interesse e apreço.

Permanecei fieis à Terra, irmãos, com o poder da vossa virtude! Que vosso amor dadivoso e vosso conhecimento sirvam ao sentido da Terra! Assim vos peço e imploro.

Não deixeis voar para longe do que é terreno e bater com asas nas paredes eternas! Oh, sempre houve tanta virtude extraviada! Trazei como eu, a virtude extraviada de volta para a Terra - sim, de volta ao corpo e à vida: para que dê à Terra seu sentido - um sentido humano! ( NIETZSCHE, 2011 NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. b, p. 74)

Segundo Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), a Terra para a filosofia clássica, o mundo concreto da percepção, seria o domínio da corrupção, da voracidade devastadora do tempo, marcada por uma ordem caótica e maléfica, onde entes imperfeitos, em meio aos seus incessantes movimentos de transformação (mudança), buscam, inutilmente, imitar a ordem e o equilíbrio do mundo superior. Já o mundo superior, seria a dimensão do Bem, do Belo e do Verdadeiro, ou seja, do Ser absoluto, divino, perfeito e incorruptível. Resumidamente, estas seriam as bases do modelo fechado e dicotômico de Platão, a obra divina de um demiurgo desconhecido, porém, acessível restritamente, em sua lógica, pelo espírito, pelo pensamento racional (convencional), princípio que fundamentaria o primeiro antropocentrismo cósmico.

Nesse contexto clássico, a razão convencional ainda não seria aquela repensada na modernidade, fundamentada diretamente pela experiência ou em encontro direto com a realidade, pois esta não se faz obediente às intenções e as necessidades humanas de controle, previsão e mensuração. A razão deste modelo platônico (o que chamamos de convencional) é, para Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), antropomorfismo estético, um modo de pensar fundado nas próprias intenções da lógica, um ideal dado, apartado da realidade e da Terra, construído mediante um edifício de formas e números, pautados na geometria de Pitágoras e, futuramente, na aritmética de Arquimedes.

O otimismo teórico contra o tempo voraz e os infortúnios do mundo e da vida, representado pelo modelo platônico, seu humanismo racional e contemplativo, vigorou por mais de um milênio, segundo a análise de Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.). A alegoria de Platão nutriu as bases e o conjunto maior dos elementos fundantes da teologia cristã. O mundo inferior, constituinte da cisão da cosmologia socrática, foi assemelhado às alegorias sobre a queda, no antigo testamento. Segundo Nietzsche (2009b______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.), a moral judaico-cristã é herdeira primogênita da filosofia ascética de Platão. Tal moral enxerga a vida mundana (viver na Terra), o mundo concreto e real, como o castigo divino lançado sobre as ousadias da vontade e a busca do prazer, ou seja, o ressentimento de Deus perante os pecados do homem, expurgado do paraíso, condenado a viver na Terra e sofrer a luta de sua existência.

Na Terra, o homem fora condenado às dores do corpo e às angústias da alma, consequências de sua lida com a natureza e os outros homens. Sua sina é trabalhar para vencer a fome do tempo, cultivar o solo, livrar-se das feras, contornar as pragas, resistir às intempéries e as moléstias, se valer diante dos riscos, da escuridão, da ganância e do egoísmo dos outros homens. A natureza (physis) nesta perspectiva é embusteira, hostil e traiçoeira, passível apenas de uso e contemplação, sendo que compreendê-la não traz respostas claras à existência.

Para Nietzsche (2009b______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.), o homem da moral cristã vive em um mundo de sofrimento onde nem mesmo a volúpia, julgada como pecaminosa, é capaz de amenizar as suas angústias da vida. A dor, portanto, é o centro de suas preocupações e rancores, pois o pior que poderia ter lhe acontecido foi ter sido expulso do céu para penar na Terra. Nesta lógica, o devir deste homem é se afastar dos sintomas causados pela vivência na Terra, buscar o religamento com o divino a partir da fé e da razão (espírito), sendo o seu caminho a renúncia do desejo, da vontade, do corpo, a negação do ego e o desprezo da vida, dos sentimentos e coisas mundanas, isto é, a fuga das causas da dor, até o momento de sua morte. A vida, a Terra e as sensações do corpo não valem a pena serem vividos, portanto, esperar asceticamente a momento do juízo final é o destino da moral platônico-cristã.

Para Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) o ressentimento impotente contra a dor, e a compaixão, a castração do “eu” em prol de um coletivo comprometido com o céu (além-mundo), são as bases do cristianismo, o instinto de rebanho, o humanismo escravo, fraco e niilista que conduz o homem à decadência, à indolência e à incapacidade. Esses elementos são o reflexo da rejeição sobre a Terra, (o mundo efetivo), movimento de autopreservação da sociedade contra os efeitos do sofrimento, a herança da posição recalcitrante e contemplativa do filósofo sobre o plano inferior. Inerte e temerosa em lidar com a dor, agir com coragem, ímpeto diante dos antagonismos e as tensões do mundo, só resta à moral do ressentimento alimentar um sonho, a existência de outro mundo (um plano transcendente), a criação de valores, regras e ideais que legitimam uma ordem superior, que fundamentam leis de condenação ao corpo e à sua arbitrariedade diante da vida. Neste movimento torna-se estruturado as bases originárias da tirania contra a Terra, a causa que estimula e agrava os mais terríveis males do homem.

Como apontado por Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), a perspectiva platônica e cristã de mundo só sofreu uma forte reforma por volta do século XIII, momento em que o retorno do pensamento aristotélico (mérito do projeto civilizatório islâmico sobre a Europa) abriu caminho para a fase embrionária do mundo moderno e sua revolução científica. Para Aristóteles, a Terra possui algo a nos revelar sobre o Ser. A experiência empírica retorna em importância para a produção do conhecimento e a revelação sobre o sentido da existência. Nesta nova visão de cosmo (esquematizada por Ptolomeu ainda na antiguidade), o plano superior e divino de Platão continua a vigorar, no entanto, uma mudança se faz importante: é possível conhecê-lo, em sua ordem, por meio do inquirir sobre o plano inferior, da observação direta sobre as coisas do mundo. A partir da base do pensamento aristotélico é que o discurso filosófico-cristão da Alta Idade Média, repercutido pelo esforço de São Tomaz de Aquino, enxergaria alguma correspondências entre a causa secundária (as qualidades do mundo inferior) e a causa suprema. Tal vínculo só seria possível graças ao princípio de quinta essência (éter), o plenum aristotélico que permeia e interpenetra tudo o que existe. Em sua filosofia, Aristóteles apontava que os planos superior (uno) e inferior (múltiplo) coexistiam. O ímpetus, ou a vontade dos corpos mundanos é, de certa forma, correspondente a força que emana de Deus. Compreender esse ímpetus é o caminho para desvelar o grande projeto divino.

De acordo com a leitura de Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.), a perspectiva aristotélico-ptolomaica de cosmo, presente na teologia católica da Alta Idade Média, promoveu mudanças profundas no conhecimento geográfico, mas também sofreu intenso solapamento ao florescer da modernidade. No que compete ao campo da Geografia, foram às bases aristotélicas de valorização da causa secundária e de proto-esperimentalismo que alimentaram, por um efêmero período, aquilo que Dardel (2011DARDEL, É. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Tradução de Werther Holzer. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.) denominou de Geografia das Velas Desfraldadas, ou seja, o aventureiro empreendimento das grandes navegações, que desbravaram “novos mundos”, outras terras e continentes, fazendo alvorecer uma nova era para a Cartografia. Segundo Chauí (2001CHAUÍ, M. As Humanidades contra o Humanismo. In: SANTOS, Gislene A. (Org.). Universidade, Formação, Cidadania. São Paulo: Cortez, 2001, v. 1, p 15-32.) é bem possível que esta curta circunstancialidade, do alvorecer do mundo moderno, tenha resgatado princípios de um humanismo grego esquecido, o que entendemos como uma frágil chama de um possível retorno à Terra, potencialmente cúmplice de uma cosmologia nietzschiana, mas que, como veremos, não prosperou.

Segundo Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.), a erosão do alicerces ontológicos de Aristóteles, fundados na qualidade e no anima, a força oculta (impetus) presente nos eventos e nos corpos que compõe o ente em sua totalidade, passam a manifestar um movimento agudo e decisivo rumo ao futuro domínio da razão sobre as quantidades (mathesis). Dentre os principais responsáveis por essa reviravolta no destino da razão estão, primeiramente, as desconfianças sobre as bases epicuristas do cosmo aristotélico, alimentadas pelo próprio cristianismo. Os próximos agressores foram representados pela teologia protestante e, em seguida, por seus influenciados, os estudiosos da Astronomia e da Física.

Nos argumentos Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.), o próprio catolicismo foi um dos primeiros a denunciar que a cosmologia de Aristóteles, hegemônica na própria doutrina, apresentava supostas discordâncias em relação às escrituras do Velho Testamento (o livro do Genesis, em específico). Um dos pontos centrais desta acusação era o princípio aristotélico de que Deus, assim como a sua obra, sempre existiu e existirá eternamente, não havendo nem princípio, muito mesmo fim para o cosmo (posição que fere a crença no hexameron). O segundo movimento erosivo se deu devido às novas propostas de ordenamento da causa secundária, ou seja, a disposição do mundo inferior ou sublunar (como denominado na hierarquia de esferas do sistema aristotélico). As ideias de Copérnico, assim como seu arrojo e reafirmação em Galileu, colocariam em questão o geocentrismo e, consequentemente, o antropocentrismo do postulado clássico e medieval. Os astrônomos Tycho Brahe e Klepler, mesmo não aprofundando críticas ao paradigma aristotélico no campo ontológico, apontaram com suas formulações teóricas (fundamentadas em observações e cálculos) possibilidades de rebater a cisão do mundo clássico (em superior e inferior), estendendo a imperfeição da causa secundária (o mundo sublunar) para as esferas superiores, fixas e absolutas do cosmo. Desta forma, a corrupção (a mudança) do mundo inferior também estaria presente no modelo de mundo superior proposto na exegese que Aristóteles realizou sobre os postulados platônicos. No entanto, tal hipótese, não aniquilaria, de uma vez por todas, o fundamento dicotômico. Na verdade, um movimento contrário se estabeleceu. Princípios do pensamento Platônico, assim como o estoicismo de Santo Agostinho, ganhariam sobrevida no contexto da modernidade.

Para Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.), o princípio da modernidade é marcado pelos embates entre a ontologia teológica da doutrina católica e a astúcia do racionalismo absoluto, trazida à tona pela perspectiva da reforma protestante. Os pontos centrais do pensamento protestante estavam no debate sobre a fluidez do “último céu” e sua expansão para além dos limites do modelo aristotélico/ptolomaico. Contraditoriamente, teólogos da Igreja de Roma foram os primeiros a contestar a finitude do cosmo e a existência do plenum. Giordano Bruno foi um dos primeiros presbíteros católicos a desafiar o modelo vigente afirmando a possível existência de uma substância etérea, de natureza fluida que tudo envolve, interpenetra todos os corpos e se estende ao infinito. A proposta de Bruno abriria também a possibilidade de pensar infinitos mundos, infinitos sistemas planetários, infinitas centralidades cósmicas, além da ideia de vazio.

Na perspectiva de Araújo (2003), a crise do aristotelismo medieval, abriu largos caminhos para a hegemonia da mathesis absoluta sobre todas as ciências, sendo o seu agente maior a mecânica de Newton, amparada pelas bases do cartesianismo e pelo primeiro fenomenalismo kantiano. Para Randles (1999RANDLES, W. G. L. The Unmaking of the Medieval Christian Cosmos, 1500-1760: From Solid Heavens to Boundless Aether. Aldershot, England, and Brookfield: Ashgate Publishing, 1999.), o princípio de infinitude de Bruno e a natureza de sua noção de plano etéreo infinito, ganharam corpo e complexidade mediante da ideia de vazio e as formulações atomistas do universo de Gassendi. Em base, estas propostas (entre outras mais) somadas às constatações sobre a corrupção das esferas superiores de Brahe e as leis de movimento e força atuante sobre dos corpos terrestres e celestes de Kepler e Galileu contribuíram para a consolidação da “mecânica do mundo” desenvolvida por Newton. Mesmo sendo um deísta, Newton ofereceu, por meio de sua Física, elementos para a dessacralização da natureza e o enfraquecimento da ontologia hermenêutica do pensamento católico de base aristotélica. Toda a Matemática, Física e Astronomia desenvolvida no destino da tradição, ganham prioridade neste novo contexto, fundando assim as bases do tradicional e germinal conhecimento científico da Geografia (sobretudo da Geografia Física de cunho positivista e mecanicista), a categoria mais usual de espaço, assim como os fundamentos da Cartografia contemporânea.

Nas afirmações de Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), o mundo ‘real’, ou seja, as noções de espaço e tempo relativo de Newton são formadas pela união de céu e Terra em um sistema dinâmico. Sua constituição representa um grande laboratório para a mensuração, observação e descrição funcional da realidade e das relações de causa e efeito. Os corpos e os fenômenos que compõe o espaço/tempo relativo estão depositados em um plano (espaço/tempo) isotrópico e absoluto, um receptáculo originário concebido, a priori, apenas por um esforço racional de abstração. Os corpos e fenômenos instáveis que compõe este mundo são governados por uma ordem universal e imutável, representada, em essência, pelas leis gerais da gravitação. A força da gravidade, portanto, seria o éter que reuniria a dimensão relativa e absoluta. Compreender a dinâmica deste éter seria decifrar o “discurso de Deus”, uma via para a redenção da humanidade, o religar do homem com o demiurgo. Mas este compreender sobre o plano etéreo, abstrato e que governa a totalidade só seria possível pela razão. Porém essa razão não se alimenta de maiores formulações e suposições metafísicas6 6 No entanto, em outra consideração, aos moldes da interpretação de Heidegger (2011), a mecânica de Newton, mesmo sem profundidade ontológica, seria uma metafísica, pois pretende decifrar o caráter fundamental do ente na totalidade via um elemento ou substância una imutável e universal: a força gravitacional e suas leis. ou questões ontológicas sobre as causas superiores. Segundo Araujo (2003), para Newton não há interesse em especular os motivos da força ordenadora, sua busca está em utilizar de seus princípios para compreender o funcionamento da realidade e usufruir materialmente deste conhecer.

A proposta newtoniana pode nos conduzir a uma falsa ideia de que a mecânica do mundo corresponde a um estágio avançado do interesse empírico de Aristóteles. Porém, como afirmado por Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), o domínio sobre o funcionamento da natureza em Newton não é um caminho para desvendar os mistérios do demiurgo, como pretendia o filosofo grego. É certo que Newton reconhece a existência de um Ser absoluto e de suas leis, mas o seu afastamento ontológico sobre esta questão, repercute também em um afastamento de Deus à uma intervenção direta sobre a Terra. O plano inferior é o único a ser conhecido pela ciência newtoniana e o Ser não é passível de desvelamento a partir da observação e da quantificação. Nesta ótica, que será aprimorada pelas primeiras críticas de Kant, Deus, definitivamente, não está nas coisas do mundo, sendo a natureza destinada para a exploração compulsória. Ao se afastar das questões ontológicas sobre a relação Ser e mundo, Newton, por uma nova estratégia, acaba por resgatar e preservar o princípio da dicotomia cosmológica de Platão, onde o Ser é indecifrável em sua plenitude e inalcançável pela via material. Um caminho similar seria tomado pelo primeiro Kant.

Segundo Vitte (2007VITTE, A. C. Da Metafísica da natureza a gênese da Geografia Moderna. In: VITTE, Antônio C. (Org). Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), Kant seria o filósofo a transformar profundamente a metafísica convencional, abrindo novas possibilidades para seu desdobramento, além de fundamentar caminhos para uma filosofia da natureza (naturphilosophie), assim como uma ciência da natureza, sendo a Geografia uma das principais dentre elas. Suas primeiras formulações considerariam a substância, assim como o espaço e o tempo, não apenas uma abstração a priori e determinante sobre realidade, mas, uma condição também resultante da observação e da experiência. Sua posição era, ao mesmo tempo, uma resposta e uma afirmação à ciência newtoniana. Kant a exemplo de Hume, apostou na necessidade e no rigor do método empírico para concretizar uma Ciência mais eficiente.

A proposta metafísica de Kant, como o frisado por Vitte (2007VITTE, A. C. Da Metafísica da natureza a gênese da Geografia Moderna. In: VITTE, Antônio C. (Org). Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), não nega as conquistas anteriores de espaço e tempo absolutos, espaço enquanto receptáculo abstrato, os princípios de grandeza, quantidade e a vigência das leis gerais da mecânica de Newton. Porém, sua nova concepção de Ciência destaca certa correspondência aristotélica, ou seja, a importância de ir ao encontro da realidade e viver as experiências de descoberta junto à Terra, isso por que a natureza está viva, é orgânica e, mesmo sendo fruto de uma ordem inferior e totalizante, possuiu também dinâmicas próprias que precisam ser conhecidas, sofrer hierarquização e sistematização, conforme uma unidade racional e pré-determinante. Ainda assim as bases do logocentrismo persistiam em sua Física, já que as descobertas empíricas, junto à realidade deveriam sofrer ajustamentos em detrimento dos imperativos categóricos da razão pura (KANT, 2013). Mesmo resgatando a importância do empírico, Kant ainda não daria vigência para o pleno encontro Homem - Terra, já que a razão permanecia a intermediária dominante.

A naturphilosophie de base kantiana, deu margem para o surgimento de inúmeras propostas científicas que tinham a natureza como o objeto por excelência, destaque para a Geografia humboldtiana. Para Vitte (2007VITTE, A. C. Da Metafísica da natureza a gênese da Geografia Moderna. In: VITTE, Antônio C. (Org). Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), o próprio Kant havia atribuído a Geografia (física) a excelência de sistema empírico da natureza, ou seja, a ciência que, por objetivo, exercia a dimensão fenomenalista e experiencial da metafísica para, a partir de suas constatações sobre as leis particulares do objeto, definir um nexo teleológico com a metafísica transcendental da natureza. A aplicação da metafísica kantiana, em um procedimento científico sobre a Terra, como o representado pela Geografia tradicional, seria a condição ideal para um amadurecimento epistemológico e conceitual de uma autentica ciência da natureza.

Como esclarecido por Vitte (2007VITTE, A. C. Da Metafísica da natureza a gênese da Geografia Moderna. In: VITTE, Antônio C. (Org). Contribuições à História e à Epistemologia da Geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.), no caso da Geografia física, a forma, enquanto objeto de destaque em sua observação sobre as paisagens, traria em si, não só a possibilidade de quantificação de sua grandeza matemática (influência direta da mathesis absoluta), mas o indicativo do próprio ímpetus que caracteriza a matéria, isto é, a energia (a vida) ou a qualidade orgânica dos corpos que constituem a realidade. A apreciação estética sobre a forma proporcionaria o entendimento geográfico sobre a particularidade dos objetos. Por fim, o uso racional da imaginação, considerando o exercício dos juízos estético e teleológico sobre a sistematicidade da physis, proveria a Geografia, entre outras ciências, de conceitos importantes para o trabalho de interpretar e representar a Terra (a exemplo da paisagem, da região e da própria categoria de espaço). Tal empreendimento faria do cientista natural (a exemplo do geógrafo) a reunião entre o “gênio” (ou filósofo), isto é aquele que enxerga e pensa a realidade, e o “artista” (ou poeta), aquele que interpreta e nomeia as essências dos entes que compõe a totalidade do mundo.

Os movimentos que comungaram para a vigência da proposta newtoniana e kantiana de universo e Ciência trouxeram um novo paradigma, que apesar do aparecimento das perspectivas estruturalistas, orgânicas, sistêmicas e quânticas, que valoram a Terra para além na quantidade, ainda se mantém influente na atualidade, na busca pelo conhecimento: o princípio da quantidade (o cálculo, a mensuração), a função, a relação causal e o enfraquecimento ontológico. A Geografia como a mais originária e uma das mais aptas ciências da natureza, trouxe consigo em seu germe, mesmo considerando a valorização estética kantiana, elementos fundamentais para a sobrevida deste paradigma do desprezo sobre as potências ontológicas da Terra.

TÉCNICA COMO INSTRUMENTO DA VINGANÇA CONTRA A TERRA

“Um novo orgulho me ensinou o meu Eu, que ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas levá-la livremente, uma cabeça terrena, que cria sentido na Terra. [...] Foram os doentes e moribundos que desprezaram corpo e Terra e inventaram as coisas celestiais e as gotas de sangue redentoras: mas também estes doces e sombrios venenos tiraram eles do corpo e da Terra!” Friedrich W. Nietzsche, entre 1883 e1885.

A trajetória de pensamento que gestou a mecânica de Newton fez emergir, a partir de seu sucesso e decorrência científica, uma visão de mundo que sustenta, na imagem da máquina, sua maior significância. Como o salientado por Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), o “mundo máquina” se fez uma das perspectivas centrais dos tempos modernos. Desvendar seu funcionamento é a chave para a sobrevivência e para o plano futuro da humanidade. A imagem da máquina passa a representar a ordem, assim como a espacialidade (e Geografia) a ser seguida, não só pelos setores da economia e suas ordens produtivas, mas pela própria Ciência. E sendo a Ciência uma “técnica de torturar” a Terra e dela extrair a suposta lógica de seus mecanismos e sistemas, sua serventia maior se dá em converter tudo que compõe a relação entre natureza e sociedade, em progresso técnico, a exemplo da grande indústria, das lavouras do agronegócio, das estratégias de guerras, das formas de condução política, da produção econômica, dos meios de transporte e comunicação, da medicina, da urbanização, das relações sociais, entre outros.

A patologia do mundo moderno tardio carrega em si e em seu próprio nome, o seu derradeiro diagnóstico: sofremos de modernidade. Na avaliação de Santos (1998______. Tecnologia, natureza e a redescoberta do Brasil. In: ARAUJO, H. (org) Tecnologia e cultura: Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.), a humanidade, discriminada em nações, fez de seu thelos a busca pelo progressivo desenvolvimento sobre os modelos de sociedade e sistemas econômicos. Após o desfecho do século XX, referenciado por Hobsbawm (1995) no episódio de derrocada da União Soviética, o objetivo central da grande maioria dos países é, de acordo com Santos (1998), a busca por um capitalismo de eficiência.

Aquelas nações que não atingirem tal expectativa, se encontrarão em descompasso com as vitais intenções de progresso econômico. Enfeitiçada por este propósito, a humanidade não se deu conta que seu caminho de prosperidade se revela, a cada dia, um verdadeiro abismo de decadência.

O progresso técnico, como afirmaria Benjamin (1985), é de fato a força que aliena e desloca o homem de sua humanidade. No entanto, a tirania da máquina, regida pela lógica das quantidades (da mathesis) mesmo percebida enquanto uma espécie de força opressora sobre o homem, ainda não se tornou, diretamente, alvo de significativa rebeldia, a não ser via a vingança imaginativa da arte. Mesmo ciente de seu poder desumanizador, o homem permaneceu crendo, passivamente, que o progresso técnico (aos moldes do cientificismo newtoniano) é o caminho para sua salvação, proteção e preservação. Segundo Giacoia Jr. (2003), o homem, da maioridade da razão contemplativa, depositou na tecnociência moderna a esperança de cumprir as utopias da tradição platônica, a saber, eliminar a corrupção da causa secundária. Os adversários centrais deste destino evolutivo da técnica rumo ao equilíbrio superior, da plena redenção do homem diante do Ser da tradição, seriam, em sua maioria de natureza geográfica: o espaço (as distancias), a natureza (que de certa forma é a própria composição do espaço) e o tempo, além da precariedade do próprio organismo humano (o corpo) e os meios de vida tradicionais, ditas pagãs e primitivas (a cultura).

No mundo moderno, o desprezo platônico pela Terra e pela vida, crescente em toda a trajetória da tradição, ganha no positivismo, na Matemática e no mecanicismo, de base cartesiana e newtoniana, sua maior intensidade. O nojo desperto pelo manuseio conflituoso das coisas do mundo, o ressentimento pela dor causada pelos infortúnios da natureza e dos acontecimentos, a recalcitrância contra o tempo e seu “foi”, como pensou Nietzsche (2009a______. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2009a.), se converteram, no homem, em um implacável esforço de vingança. Vingança que se valeu de instrumentos técnicos cada vez e, progressivamente, mais potentes para se afastar, interrogar, torturar, vencer e tiranizar as vontades da Terra. Pensando em uma perspectiva nietzschiana, o homem da razão e da moral de ressentimento odeia a transformação voraz do tempo, assim como as distancias e a resistência do mundo concreto. De acordo com Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), para vencer os prejuízos do tempo e suas intempéries, o homem desenvolveu a partir da memória (e seu registro), o cálculo e mediante o cálculo criou as estratégias de antecipação e planejamento que o modelo técnico triunfante foi capaz de concretizar.

O plano e o cálculo visam também à superação dos limites impostos pela physis. A técnica e seu aprimoramento deram ao homem, meios eficientes para vencer as distâncias, superar obstáculos, desafiar as forças da primeira natureza. Sobre esta o homem foi capaz de interferir nas disposições dos seus objetos, seres e coisas, criar sob e sobre a Terra suas intenções de exploração, ordenamento e produção. Exemplos muito ilustrativos destes esforços se fazem presentes nas implacáveis engenharias de estradas e seus veículos, que além de degradaram extensas áreas de vegetação nativa e seus complexos arranjos de ecossistemas, desarrumaram suas dinâmicas, desfiguram formas de relevo e contaminam a atmosfera devido ao insano desperdício de escassos combustíveis fosseis, queima esta que subsiste devido à “racional” motivação de acúmulo de capital da indústria petrolífera. Todo um surpreendente e engenhoso empreender foi mobilizado para afastar a dor das distâncias e obstáculos, fugir dos riscos da desconcentração de riqueza e evitar o sentimento de medo perante as inúmeras possibilidades de declínio e perecimento dos projetos humanos.

Para Nietzsche (2009b______. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009b.), dor, risco, medo e indisposição de lidar com as incertezas do mundo se converteram, progressivamente, na cultura logocêntrica do homem ocidental, em um ressentido “ranger de dentes” e este, por sua vez, se nutriu, durante séculos, de um desejo por domesticação, revide e punição. Repreender e castigar a Terra tomaram as principais metas civilizatórias da humanidade. Esse princípio de modernidade se tornou o alicerce fundamental da constituição das Geografias ao decorrer do tempo, dos territórios, da ordem espacial vigente e de seu assenhoramento funcional e comportamental sobre a realidade.

Sob a intencionalidade do pensamento moderno, rios se canalizam, represam e desviam para cumprir a função de colossais reservatórios hídricos, matrizes energéticas e assim servir as necessidades da indústria e agricultura de produção em escala planetária. As superfícies terrestres, antes repletas de suas formas e coberturas originais, assumem nova composição, recortes e moldagem para garantir a vitalidade supranatural dos campos agrícolas, a criação de assentamentos favoráveis a expansão desesperada e sem sentido de grandes cidades e super-metrópoles, a instalação de vias velozes e seguras para a fluidez das mercadorias e dos variados projetos societários. Fluidez essa que também fez uso do ar, além de horizonte para despejo de todos os vapores e poeiras nocivas, emitidas pelo ritmo alucinante do trabalho e da produção.

Interstícios e profundidades do corpo da Terra são violados pela indústria extrativista de minérios, para garantir grandes volumes de inúmeras substâncias essenciais e assim engendrar uma segunda natureza, cada vez mais sedenta, robusta, geradora de abundantes resíduos (nocivos a vida) e propensa a maiores desperdícios de matéria prima. Seres orgânicos diversos são extintos, domados, adestrados, modificados geneticamente e antropomorfizados para suprir a fome humana, suas carências e anseios. A engenharia genética com o intuito de garantir, a qualquer custo, não a subsistência, mas a eficiência produtiva dos alimentos, seleciona organismo e genomas mais maleáveis e potencialmente rentáveis. Um fortalecimento que ao mesmo tempo enfraquece a autonomia reprodutiva dos organismos e expõe aos novos desequilíbrios ambientais, a devastação e ao desaparecimento os seres vivos julgados “menos interessantes”.

O resultado deste empreendimento voraz e implacável é o assentamento progressivo de uma natureza menor, inferior, menos exuberante e potente, cada vez mais débil, dócil e doente, incapaz de se proteger, manter-se de pé, se recuperar e criar por si mesma. A cada dia vemos uma natureza que necessita, ainda mais, dos cuidados e amparos do homem, dependente de sua engenhosa caridade, de suas intervenções técnicas e científicas. Suas sementes e ventres parecem não gerar frutos sem as receitas antrópicas, sem os remédios do conhecimento humano, sem as logísticas de sua indústria. Uma Terra que, com o passar do tempo, vem perdendo seu viço, sua virtude criativa. Um ente que vem sendo despossuído da força de seus impulsos e vontades. Como se não bastasse, a enfermidade progressiva da Terra traz consigo a ruína do próprio homem, que à ela pertence e faz parte.

O passo a passo da degenerescência da Terra obriga o homem a criar, cada vez mais, novas alternativas de sobrevida, impulsionando assim um ciclo incompreensível que reúne, em um mesmo passo, destruição e progresso. Uma ciranda que nos convence de uma suposta grandeza e divindade humana. Mas qual o limite deste jogo? Até quando e de onde mais retiraremos os alicerces de nossas próximas invenções? Fatalmente, a natureza em si, permanecerá sem nossa presença. Talvez frágil, por alguns milênios, mas certamente recuperará, sozinha seu caminho de exuberância. No entanto, essa esperança de renascimento da natureza parece contar com o provável alívio de nossa extinção. Seria um troca justa?

As ferramentas do homem, além de extensão de seu corpo, em sua lida com o mundo, hoje se desdobra em uma espécie de segundo plano de existência. Nas novas arquiteturas urbanas, cada vez mais imponentes, redomas de concreto, aço, vidro e demais compostos sintéticos, apartam o vivente de seu pleno habitar e essência, termos caros a Heidegger (2002HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.). Uma fuga que não somente se limita ao apartamento do homem em relação aos infortúnios da vida sobre a Terra, mas ao afastamento deste mesmo homem diante das tensões da vida em sociedade, conflitos que, em sua essência, também pertencem à natureza, aos infortúnios da Terra ou do viver no mundo.

Como estratégia para não se dispor diretamente aos conflitos, que marcam as trocas sociais, o homem investe em seu radical projeto de liberdade, a ponto de proclamar o ideal de individualidade acima de toda forma de convívio. As matrizes, assim como as vias deste projeto de isolamento do indivíduo e de seletos grupos dominantes ou oprimidos, estão expressas em toda parte, sendo os eixos principais suas mediações comunicativas, a exemplo das telecomunicações (como a internet e as inovações da telefonia), o ordenamento urbano, como sugerido por Winner (1986WINNER, L. The whale and reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: The Chicago University Press, 1986.p. 19-39.), e a mediação econômica, sobretudo monetária, das relações sociais, marcadas profundamente pelo enclave, exclusão e pela desigualdade.

Segundo Winner (1986WINNER, L. The whale and reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: The Chicago University Press, 1986.p. 19-39.), a técnica que fundamenta toda a lógica e ordenamento das estruturas produtivas, tanto no campo, quanto na cidade, traz em si valores e materializa, historicamente, intencionalidades de ordem política e ideológica. Como a hegemonia do destino da técnica é um triunfo da cultura ocidental, aqueles julgados enquanto pertencentes a tal cultura, tidos como idealizadores, agentes de seu desenvolvimento e obedientes ao seu agenciamento, são os privilegiados, por mérito e direito, além dos seletos convidados para o banquete do progresso. Todo indivíduo, etnia ou grupo visto como indigno, estranho, resistente ou inadaptado ao destino da técnica, terá de lidar com a azeitada infraestrutura de coerção, apartamento e exclusão social, que, concretamente, se expressa nas desigualdades, na exploração do trabalho, na violência opressora, na precarização dos meios de vida dos cidadãos de “segunda classe”.

No caso das mediações econômicas, merece destaque o consumo e as novas tecnologias de comércio, cada vez mais impessoais, gestadas por rigorosos planejamentos, originados nas engenharias de telecomunicações, logística, informática e automação. O consumo neste contexto, assim como o salientado por Santos (2000SANTOS, L. G. Consumindo o futuro. Folha de São Paulo, 30/01/2000. p.10.), em suas leituras sobre Deleuze e Guattari, não cumpre aqui um empreendimento para saciar necessidades, mas para satisfazer a miséria libidinal dos abastados. Nesta lógica, o consumo vai além dos atos de sobrevivência da espécie, se espraiando na concretização dos desejos artificiais e supérfluos.

Em uma interpretação inspirada em Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) a busca pelo saciar dos desejos do homem moderno não se configura enquanto um atender autêntico da vontade, muito pelo contrário. A volúpia compulsiva e doentia de consumo, mediada pela persuasão de mercado, é, em sua essência, estratégia de entorpecimento contra os efeitos, impulsos conflituosos e contraditórios, manifestados pela realidade, ou seja, é mais uma vez, fuga e vingança contra a Terra. Comprar, libidinosamente, assim como produzir, vertiginosamente, para corresponder a esse consumo. Consumo e produção são mera vontade de quantidade, desejo por excedente, ilusão de abundância, garantias de conforto, bem-estar, necessidade de acúmulo, para assim nos proteger das dinâmicas marcadas pela miséria e efemeridade do tempo, que, dentre outras coisas, marcam a natureza do mundo em que vivemos. Consumo, portanto, é medida de autopreservação, “narcótico” contra as tensões do viver, estratégia para se evitar a aproximação com a plena existência, com as adversidades, as misérias e as perdas do mundo.

O próximo passo para o apartamento social e telúrico, já em efetivo curso, é o isolamento geográfico e material, ou o planejamento, cada vez mais incisivo, de vivências da pessoa, via o desenvolvimento de um plano de ações e iterações virtuais. A mediação comunicativa via sistema, ou rede de informações virtualizada, projeta uma ilusória sensação de extensão e arrojo geográfico-interativo. De fato, todo o aparato técnico em questão vence o tempo e a distância, multiplicando a quantidade das trocas. No entanto, a dimensão, o conteúdo e a qualidade das trocas passam sistematicamente por seleção e avaliação em seu potencial de conflito, dando aos usuários alternativas maiores de evitar ou escolher previamente o que está disposto a experienciar. Toda essa possibilidade administrativa sobre as relações empobrece a geografia do vivente, subtrai os riscos, frustrações, diminui o esforço de tolerância, as maiores surpresas e a lida do indivíduo com as multiplicidades de tensões que envolvem a relação interpessoal direta.

Dispor-se cada vez menos com os desafios e riscos da concretude da Terra parece se desenhar de forma crescente nos ideais modernos da humanidade. A impossibilidade platônica de ascender à perfeição transcendente, de retornar ao paraíso (como o profetizado no mito da queda), meta tão desejada e idealizada pelo homem em sua trajetória racional e litúrgica, parece se concretizar, mesmo que diferentemente da antiga passividade e contemplação filosófica. Ao invés de esperar inerte o juízo final, a técnica deu ao homem a capacidade de agir, paradoxalmente, de forma mediada e distanciada no engendramento de um grande “moto-continuo”, uma segunda natureza, uma plataforma técnica que, segundo a crença, progressivamente reverterá o castigo da queda e livrará o homem da dor e do sacrificio de viver, em corpo, os infortúnios da lida com a Terra.

CONCLUSÃO: UM NOVO HOMEM, UMA NOVA TÉCNICA E OUTRA NATUREZA

“Mas o desperto, o sabedor diz: corpo sou eu inteiramente e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para algo do corpo. O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento do teu corpo é também tua pequena razão que chamas de espírito, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão.” Friedrich W. Nietzsche, entre 1883 e1885.

Toda a crítica deste escrito segue os estímulos severos e combativos do pensamento nietzschiano sobre a modernidade e que desdobramos sobre os modelos técnico-científicos, triunfante em nosso tempo. Todavia, nossa aposta em Nietzsche não se consolida em um radical e absoluto retrocesso ou em prostração niilista sobre a fatalidade do real. Não é o “fazer nada”, muito menos o “destruir de tudo” que trará alguma solução para os sintomas da modernidade, a exemplo do enfraquecimento da Terra e o esgotamento dos limites de ação e inventividade do homem. A lição de Nietzsche (2009a) propõe que a busca pela ascensão do homem deve trilhar por caminhos distintos do devir da “vontade de verdade”, isto é a natureza apriorística, logocêntrica e universal do modelo de Ciência triunfante, do “mundo máquina”, do tempo-espaço newtoniano, da obsessão pelo progresso capitalista. A possível cura contra a aniquilação em marcha, presente de modo expressivo na relação homem-natureza (sobretudo na crise ambiental), seria, na visão de Nietzsche (2011a) o retorno à razão maior do corpo, em fidelidade com a Terra.

Para Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.a, 2009a), o corpo é a razão maior, superior ao próprio espírito (razão, consciência) o ente privilegiado em conhecer o mundo. É pelo corpo e seus atributos sensíveis que o homem pode apreender a multiplicidade de impulsos manifestada pelo cosmo e a partir de suas forças emanadas, nutrir de maior potência suas próprias vontades e feitos. Na visão de Nietzsche, o corpo, que é a concretude do homem (portanto o próprio homem) é também Terra e não pode ser concebido de forma apartada de seu continuum. Assim como o corpo faz parte da Terra, a mente (ou o espírito) faz parte do corpo humano. Neste raciocínio, pensar é, em primeira instância, sentir. Portanto, pensar-sentido é para Nietzsche (2011) a forma mais plena e originária de conhecer a Terra. Deste modo, Terra, corpo e mente formam o continuum da existência, o conjunto interdependente dos entes em sua totalidade, e, portanto, de toda a imensidão do cosmo.

Na visão do autor de “A Gaia Ciência”, Terra, corpo e pensamento são constituídos e se dinamizam, incessantemente, por meio de um verdadeiro combate de forças (vontades) que se opõe, se resistem e se harmonizam. Portanto, compreender verdadeiramente o mundo e a vida é trazer para os sentidos todo esse aparente caos de contradições que edificam o real. Mas para que isso de fato aconteça, o homem deve se furtar dos hábitos ascéticos da racionalidade. A consciência lógico-racional, determinada e domestificada pela mathesis, assim como por modelos universais e apriorísticos, trabalha de modo apaziguador e excludente sobre a multiplicidade do cosmo.

A razão, ao exercer sua análise sistemática sobre as conflituosas vontades da Terra e dos pensamentos, seleciona um único impulso enquanto caráter fundamental do fenômeno, a saber, aquele mais clarividente e compatível com as regras e os imperativos da própria razão. Toda vontade não condizente com as exigências estéticas e o imperativo da lógica, acaba excluída de todo o esforço de conhecimento, ou ainda, o que pode ser mais grave, condenada e moralmente avaliada como de natureza perniciosa e diabólica. É esse empobrecimento racional dos impulsos humanos que, por meio da tecnociência, também austeriza a própria natureza. Seu ato de hierarquização e seleção dos elementos compatíveis com a razão e seus propósitos, drena também da Terra sua multiplicidade, comprometendo assim sua autonomia criativa e exuberância.

O mal, ou o mau-valor, muitas vezes se faz o parâmetro equivocado mais difundido sobre a proposta filosófica de Nietzsche. Araujo (2000ARAUJO, L. Nietzsche: que humanismo? Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, n.17, p. 41-48, 2000.), em sua declarada defesa à tradição, aponta as lições da filosofia de Nietzsche como o contraponto às virtudes do humanismo, isto é, a afirmação sobre os vícios da ganância, da tirania, do egoísmo, da exploração e, consequentemente, do caminho para a barbárie. Já Nietzsche (2011), evoca em seu retorno ao sentido da Terra e da vontade, como o percebido por Giacoia Jr. (2003), um novo humanismo, a salvação do homem contra o sonambulismo delirante, fantasmagórico e niilista dos postulados de cunho puramente supra-sensíveis.

No campo de discussão sobre o vertiginoso desenvolvimento da técnica, é inteiramente possível estabelecer paralelos entre as críticas de Nietzsche e Winner. Segundo Winner (1986WINNER, L. The whale and reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: The Chicago University Press, 1986.p. 19-39.), a lógica do sistema capitalista atual, assim como seu poder de agenciamento tecnológico e de mercado, consolidou na sociedade uma cega confiança, ou sonambulismo, que, de certa forma, também transparece total passividade diante do destino da técnica, suas interferências e determinações sobre o modo como as sociedades se organizam e conduzem suas vidas. É de extrema necessidade que a coletividade e a sociedade organizada, desafiasse o poder de grupos influentes na política, no mercado e nas ciências, e se tornasse capaz de compreender, interferir e planejar a objetivação técnica sobre o mundo e a vida. Mas para isso cabe uma frequente ação pedagógica e ambiente (assim como tempo) para o debate qualificado.

É por este conjunto de problemas, aqui desdobrado, que a humanidade, diante da possibilidade real de selecionar e fabricar organismos, assim como o próprio corpo humano, deveria ao menos engajar-se e demorar-se na discussão e reflexão sobre os avanços da tecnociência moderna. Como o proposto por Giacoia Jr. (2003), dar ouvidos às precipitadas leituras nietzschianas e as incendiárias provocações de Peter Sloterdijk sobre a emergência de um uso potencial, monopolizado e efetivo das conquistas técnicas, é inclinar-se sobre os riscos de um abismo improfícuo. Para Sloterdijk (2000), a sociedade moderna perde tempo ao deixar que os obstáculos impostos pela postura humanista determinem o uso, assim como o ritmo deste uso sobre as conquistas tecnológicas. Segundo o filosofo alemão, esta potência tecnológica da modernidade é extremamente capaz de revolucionar o movimento da antropotécnica, ou seja, a possibilidade do homem em selecionar suas virtudes e reconstruir-se mediante o uso da nanotecnologia, da cibernética e da engenharia genética.

Segundo Giacoia Jr. (2003), atender as precipitações de Sloterdijk em alcançar uma suposta condição artificial de além-do-homem (super-homem) e assim caminhar a passos largos em um projeto racional de transumanização, é selar as possibilidades do que pode o corpo em toda a sua ainda desconhecida potencialidade. Em uma interpretação, ao modo de Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), muito pouco se investiu no conhecimento sobre o que pode o corpo, ante o que, até então, fora explorado de maneira pífia, devido aos obstáculos morais e milenares impostos pela trajetória do humanismo convencional (concretizado no racionalismo e na teologia judaico-cristã). Da mesma forma, muito pouco se conhece efetivamente sobre a Terra, tendo em vista sua relação íntima com as potencialidades desconhecidas do corpo.

Segundo Santos (1998______. Tecnologia, natureza e a redescoberta do Brasil. In: ARAUJO, H. (org) Tecnologia e cultura: Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.), a tecnologia moderna é o produto final de todo um esforço de alienação da técnica em-si-mesma, conduzida pelo sistema capitalista vigente. A técnica, em seu fundamento, sempre deu ao homem as informações necessárias para se conhecer e se relacionar com a natureza em sua plenitude. Isso ocorre, pois a própria natureza está encoberta da “magia” que deu vida a própria técnica. O que ocorre atualmente é o que Santos chama de “perversão da técnica”, movimento que, passo a passo, vem artificializando as mediações homem-natureza e fazendo que com a Terra perca sua autonomia criadora diante o poder de produção e transformação humana.

As preocupações de Santos, em certa medida, coadunam com as observações que Heidegger (2002HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.) levantou sobre o obscurecimento que o homem moderno sustenta sobre a essência de sua própria técnica. Para Heidegger, a técnica, em sua essência, é um instrumento, ou meio humano, que nos auxilia na ação de desencobrir os verdadeiros sentidos da experiência e manter em vigor as essências das coisas, o Ser dos entes (naturais e artificiais) que estão presentes e compõe o mundo em sua totalidade. Em uma apropriação nietzschiana deste debate, a técnica, em si mesma, pode se tornar instrumento para o saber do corpo, uma arte que possibilitará ao homem inúmeras perspectivas para decifrar e avaliar as vontades cósmicas, isto é, o caráter das múltiplas forças constituintes do contínuo existencial que envolve a Terra, o corpo e o pensar. Permitir a hegemonia racionalista e niilista do destino da técnica moderna é abrir mão, não só de uma ontologia sobre a existência, mas de uma vida verdadeiramente abundante e plena no mundo.

Como o proposto por Santos (1998______. Tecnologia, natureza e a redescoberta do Brasil. In: ARAUJO, H. (org) Tecnologia e cultura: Ensaios sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.), a nossa sociedade deve se comprometer em salvar a técnica de sua perversão. Precisamos fazer dela nossa aliada para possibilitar o surgimento de outro homem (ascendente e completo) assim como de outra natureza que há tempos ainda se mantém, em grande porção, enfraquecida, dependente e obscurecida. No entanto, este movimento não pode se furtar à responsabilidade de cuidar das essências e da natureza das forças múltiplas, assim como mantê-las em seu vigor (ou vigência). Não se pode correr o risco de permitir o desdobramento das motivações supersensíveis de aniquilamento sobre as vontades da Terra.

Nisso deve corresponder o papel de ciências com a Geografia, que, cada vez mais, se esteriliza em sua diversidade metodológica, epistêmica e filosófica, em detrimento de alternativas estritamente técnicas de leitura do mundo. Leituras estas que servem aos propósitos do modelo de modernidade triunfante. Cabe, ao exercício científico geográfico, manter-se crítico ao fetichismo técnico corrompido, mas, ao mesmo tempo, buscar alternativas para o seu salvamento, contribuindo para o desenvolvimento de técnicas, que ao invés de diminuir a intensidade das forças naturais, seja capaz de provocar a expansão de suas potencialidades.

O primeiro desafia seria: como promover uma técnica que favoreça, recupere e fortifique a autonomia criativa da Terra? Como desenvolver um modo técnico que ao invés de tornar a natureza dependente do homem, favoreça a sua plena e crescente emancipação? A técnica, neste raciocínio seria, portanto um amplificador de potência, tanto do humano, quanto do telúrico. Ao desvendar os mistérios deste fortalecimento entre técnica e natureza, eclode outro compromisso para Geografia, a saber; como traçar, a partir da relação potencializadora entre técnica e natureza, novos caminhos para o desvelamento das realidades geográficas que nos cercam? Tal caminho alimentaria um novo contexto e acontecimento para as investigações científicas no campo geográfico.

Por fim cabe resultar o indispensável compromisso pedagógico da Geografia em qualificar e propagar o debate sobre os rumos da técnica, possibilitando a comunidade organizada elementos para seu real protagonismo.

REFERÊNCIAS

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  • CHAUÍ, M. As Humanidades contra o Humanismo. In: SANTOS, Gislene A. (Org.). Universidade, Formação, Cidadania. São Paulo: Cortez, 2001, v. 1, p 15-32.
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  • WINNER, L. The whale and reactor: a search for limits in an age of high technology. Chicago: The Chicago University Press, 1986.p. 19-39.
  • 1
    Referente à modernidade tardia, termo proposto por Araujo (2003ARAUJO, F. G. B. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), que caracteriza o contexto atual, onde padrões essencialmente modernos convivem com seu anti-argumento, isto é, as perspectivas ditas “pós-modernas”. A modernidade tardia é marcada pelo vigor do racionalismo positivo e mecanicista, atrelado a uma tecnociência subserviente aos interesses dos grandes sistemas produtivos, governados por empresas transnacionais. Seus instrumentos de destaque são os dinâmicos e sofisticados sistemas de telecomunicação (base para uma fluída e veloz rede internacional de informações), o arrojo da mecatrônica, informática assim como da robótica e cibernética, além o desenvolvimento vertiginoso das nanotecnologias, engenharias genéticas, genômica e neurociências. Para Giacóia Jr. (2003), todas estas potencialidades caminham para um previsível estabelecimento de uma antropotécnica (base para uma transumância), assim como condições plenas para o nascimento de uma inteligência artificial autônoma.
  • 2
    No entanto, cabe ressaltar que Nietzsche (2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.a), em nossa interpretação, manifestou, em seus escritos, certo apreço por alguns elementos do princípio da modernidade, de sua fase renascentista inspirada pela consulta aos variados resquícios gregos, das heróicas desventuras e conquistas dos desbravadores e pioneiros daquele contexto de conhecimento, relativamente desobedientes aos imperativos cristãos.
  • 3
    “[...] na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe para nós” (NIETZSCHE, 2011NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.a, p.140).
  • 4
    [...] Somente Nietzsche manteve o primado do espaço e a problemática da espacialidade: repetição, circularidade, simultaneidade do que parece diverso no tempo e nasce do tempo diverso [...] (LEFEBVRE, 1974). Essa passagem, destacada de “A produção do Espaço”, sinaliza em Lefebvre (2006LEFEBVRE, H. A produção do espaço. Tradução de Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000), 2006. Disponível em: <http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf>. Acesso em: 22 mar. 2017.
    http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_inter...
    ) a importância dada à uma provável reflexão espacial, contida na perspectiva geofilosófica de Nietzsche, que valoriza a efetividade dinâmica do mundo (assim como da Terra), em detrimento das espacialidades mentais de base metafísicas.
  • 5
    Em sua obra “O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica”, Eric Dardel traz, tanto via leituras diretas a Nietzsche, quanto via influências indiretas de Bachelard e Heidegger, elementos da geofilosofia nietzschiana como o sentido de Terra e Trágico, além do uso explícito do conceito de vontade de potência.
  • 6
    No entanto, em outra consideração, aos moldes da interpretação de Heidegger (2011), a mecânica de Newton, mesmo sem profundidade ontológica, seria uma metafísica, pois pretende decifrar o caráter fundamental do ente na totalidade via um elemento ou substância una imutável e universal: a força gravitacional e suas leis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2016
  • Aceito
    20 Mar 2017
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