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Ópio para Ovídio: o Livro do Travesseiro de Yoko Tawada em tradução

Opium for Ovid: the Pillow Book by Yoko Tawada in translation

Resumo

Este artigo2 2 Este artigo apresenta alguns dos pontos abordados na dissertação de mestrado da mesma autora (Vale, 2017) realizada na Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Modernas (Alemão). visa a expor as principais questões envolvidas no processo de tradução do alemão para o português do Brasil do livro Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres), de Yoko Tawada. Com vistas ao exercício de traduzir, este trabalho deve ser entendido como um estudo preliminar sobre a escritora e seu livro Ópio para Ovídio, escrito em uma língua estrangeira. Num contexto de constante migração e, ao mesmo tempo, de negação do Outro e de xenofobia, entende-se como necessária a busca por uma experiência de alteridade. Nesse sentido, este trabalho persegue o deslocamento do olhar para uma perspectiva e uma língua estrangeiras, de modo que o texto traduzido propicie uma experiência com o fremd.

Palavras-chave:
Yoko Tawada; Literatura Alemã; tradução literária; deslocamento e transformação

Abstract

This paper presents the main issues involved in the translation process from German into Brazilian Portuguese of the book Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Opium for Ovid: A Pillow Book of 22 Women), by Yoko Tawada. This work should be understood as a preliminary study about the writer and her book Opium for Ovid, that was written in a foreign language. In a context of constant migration and a growing xenophobia, the experience of foreignness is considered here as necessary. Therefore, by emphasizing the displacement of perspectives, this work aims to provide an experience with the foreign (fremd) through the act of translating.

Keywords:
Yoko Tawada; German Literature; literary translation; displacement and transformation

Zusammenfassung

In dem vorliegenden Artikel sollen die wichtigsten Aspekte des Übersetzungsprozesses aus dem Deutschen ins brasilianische Portugiesisch des Buches „Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen“ von Yoko Tawada behandelt werden. Im Hinblick auf die Übersetzungspraxis lässt sich diese Arbeit als Vorstudie über die Schriftstellerin und ihr Buch „Opium für Ovid“ verstehen. Das Buch wurde auf Deutsch verfasst, eine Fremdsprache für Yoko Tawada. In Anbetracht der ständigen Migration und einer gleichzeitig wachsenden Fremdenfeindlichkeit wird die Suche nach einer Auseinandersetzung mit der Fremdheit gefordert. In diesem Sinne verfolgt diese Arbeit eine Verschiebung in die Richtung des Fremden, sodass der übersetzte Text auch eine Erfahrung damit ermöglichen kann.

Stichwörter:
Yoko Tawada; Deutsche Literatur; literarische Übersetzung; Verschiebung und Verwandlung

1 Introdução

Os processos migratórios motivados por guerras, miséria, perseguição política ou por livre escolha de quem migra são uma constante e influenciam praticamente todas as esferas da vida em sociedade. No espectro das atitudes possíveis em relação a esses processos há dois polos opostos: receber o estrangeiro ou apartá-lo. Por um lado, o medo e as posições xenófobas erguem muros e ganha força o polo da repulsão. Por outro lado, não é possível desconsiderar as tentativas de receber o estrangeiro e de permear pouco a pouco as fronteiras entre o próprio e o alheio.

A literatura produzida em alemão como língua estrangeira pode ser um dos poros capazes de permitir um contato transformador. Escritores e escritoras das mais diversas origens linguístico-culturais fazem da língua alemã seu instrumento de trabalho, atravessam um dos limites mais representativos do caráter nacional e se apropriam dele criativamente.

Nesse sentido, este artigo visa a expor um estudo preliminar sobre a escritora Yoko Tawada e seu livro Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres), com vistas ao exercício de traduzir. Esse exercício busca fazer jus à visão da própria escritora sobre tradução, considerada por ela como um deslocamento que necessariamente modifica, altera e, até mesmo, revigora a língua de chegada. Sendo assim, transitamos entre as línguas e culturas envolvidas nesse processo para que o próprio e o alheio, a origem e o destino, possam conviver de alguma forma neste trabalho, calcado no caminho que preenche o distanciamento e o hiato estabelecidos pelo fremd.

No decorrer deste artigo, nos utilizamos da gama de significados do termo fremd para traduzi-lo de acordo com o considerado mais apropriado em cada caso. Em algumas de suas ocorrências, a palavra foi deixada em alemão para possibilitar, ao mesmo tempo, a abrangência do conceito e sua concisão. Alguns dos aspectos contidos no fremd são os seguintes: em sua forma de atributo, a palavra pode qualificar o “estrangeiro”, como é o caso de “língua estrangeira” (Fremdsprache). Além disso, sua acepção enquanto substantivo (Fremde) pode se referir a uma pessoa proveniente de outro país ou a alguém tido como o Outro, o alheio, em contraposição ao “eu” que o nomeia. Pode designar, também, o estranho, o não conhecido, o incomum e, por fim, o conjunto de países excetuando-se aquele no qual se nasce. Notamos, ainda, uma nuance negativa do fremd que revela o medo do desconhecido, ou até mesmo, do não-confiável.

Para Yoko Tawada ser fremd é uma arte (cf. Tawada em entrevista a Horst 2009Horst, Clair. Immacolata. Interview mit Yoko Tawada: Fremd sein ist ein Kunst. In: Migrationsliteratur: Eine neue deutsche Literatur? Berlin: Heinrich-Böll-Stiftung, 2009. Disponível em: <http://www.migration- boell.de/downloads/integration/DOSSIER_Migrationsliteratur.pdf>. Acesso em 20.07.2013.
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: 84). Ela escreve obras literárias em alemão e em japonês, sua língua materna, e parece positivar esse termo ao expor literariamente o significado de trazer consigo uma bagagem linguístico-cultural múltipla. Tawada entende-se a si mesma e a sua escrita como fremd. Fremd por viver numa terra e numa língua estrangeiras e por fazer delas não somente sua ferramenta de trabalho, mas também um de seus principais temas.

2 Yoko Tawada e o fremd na multiplicidade cultural da Literatura Alemã contemporânea

Da janela de um trem ela observa a Europa se aproximando pela Transiberiana. A Ásia foi pouco a pouco ficando para trás e, dentro de si, a água europeia tomada a transforma lentamente, assim como lento é o seu deslocamento. Yoko Tawada percebe o Ich (eu) como água, um “eu” sem identidade, um corpo em movimento que pode correr, que não tem uma forma permanente, que está no centro e percebe o mundo e, ao perceber o mundo, se metamorfoseia. Segundo essa concepção, Yoko Tawada diz se constituir de um híbrido de Europa e Japão:

Foi algo especial para mim ter feito essa viagem muito lenta para a Europa, não como a maioria dos turistas e visitantes que chegam de imediato e percebem a cultura estrangeira somente com os olhos, como uma paisagem, mas sim como aquele que lentamente se transforma a si mesmo na viagem […] Eu escrevi, por exemplo, que o ser humano se compõe de até 80 por cento de água, ou seja, se eu sempre beber durante essa viagem água estrangeira, uma água europeia ou uma água que se torna mais europeia a cada dia, então, eu mesma também serei outra quando chegar. (Tawada em entrevista a Saalfeld 2002Saalfeld, Lerke von. Ich habe eine fremde Sprache gewählt. Gerlingen: Bleicher Verlag, 2002.: 185)3 3 As traduções contidas neste artigo foram feitas por mim, salvo as citações que não constam na língua de origem em nota. Nesse caso, o tradutor ou a tradutora constará nas referências bibliográficas. Texto original: Das war für mich etwas Besonderes, diese sehr langsame Fahrt nach Europa gemacht zu haben; nicht wie die meisten Besucher oder Touristen, die sofort ankommen und nur mit Augen die fremde Kultur wie eine Landschaft wahrnehmen, sondern dass man in der Fahrt sich selbst langsam verändert (…) Ich habe zum Beispiel geschrieben, dass der Mensch zu 80 Prozent aus Wasser besteht, das heißt, wenn ich während dieser Fahrt, immer fremdes Wasser trinke, ein europäisches Wasser oder ein Wasser, das jeden Tag europäischer wird, dann werde ich ja selbst anders wenn ich ankomme.

Nascida em Tóquio em 1960, onde se formou em Teoria Literária com ênfase em Literatura Russa, Yoko Tawada mora na Alemanha desde 1982. A escritora gostaria de ter estudado na Rússia, mas não acreditava ser possível realizar seu desenvolvimento literário nesse país por conta da falta de apoio. Tawada afirma, em entrevista a Horst (2009Horst, Clair. Immacolata. Interview mit Yoko Tawada: Fremd sein ist ein Kunst. In: Migrationsliteratur: Eine neue deutsche Literatur? Berlin: Heinrich-Böll-Stiftung, 2009. Disponível em: <http://www.migration- boell.de/downloads/integration/DOSSIER_Migrationsliteratur.pdf>. Acesso em 20.07.2013.
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: 83) que, na Alemanha, sempre conseguiu apoio e percebe como as pessoas se interessam pelo fato de que estrangeiros escrevem em língua alemã.

Ao se mudar para a Alemanha, Tawada cursou Germanística, trabalhou como intérprete e passou a escrever textos literários em alemão. Desde 1987, a autora possui livros lançados em alemão e, desde 1991, em japonês. A obra sobre a qual o presente artigo se concentra, Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres), foi publicada na Alemanha em 2000 e, neste mesmo ano, foi traduzida para o japonês pela própria autora.

As delimitações estabelecidas aos escritores que, como Yoko Tawada, não nasceram na Alemanha ou possuem background de migração se dão, inicialmente, pelas designações atribuídas à sua literatura: literatura intercultural, de migração, do estrangeiro, das minorias, de fora, multicultural, não somente alemã, de homens e mulheres migrantes, do fremd (estranho, alheio, estrangeiro), entre outras. Tais denominações parecem evocar um caráter que não necessariamente privilegia as características da obra, mas simplesmente ressalta a origem ou o não pertencimento nacional dos escritores.

Com o intuito de tentarmos expandir o âmbito das categorias, acabamos por nos deparar com uma espécie de paradoxo: se, por um lado, essas categorias implicam certo apartamento de uma literatura “alemã de fato”, por outro lado, elas propiciam encontros e permitem que os escritores por elas englobados recebam uma série de incentivos para o exercício de sua carreira literária.

Yoko Tawada considera positiva a possibilidade de estar em contato com escritores tão diversos por ocasião de eventos específicos para determinadas categorias, nas quais ela também é englobada. No entanto, a autora destaca que as denominações conferidas a eles não são capazes de caracterizar de fato sua literatura. Seu arcabouço cultural, assim como tantos outros elementos formadores da identidade do artista, tem implicações em sua escrita, contudo, na dualidade gerada pela possibilidade de reunir esses autores e, ao mesmo, apartá-los dos demais, talvez o equilíbrio esteja no ato de focarmos na análise de sua obra, colocando-a em primeiro plano, antes de sua origem nacional.

É certo que o elemento que os unifica é a apropriação que faz de uma língua estrangeira como instrumento de seu trabalho criativo e, no caso de Yoko Tawada, ela não somente escreve em uma língua estrangeira, mas também sobre ela. Neste contexto, a escritora não parece querer apagar o caráter de estrangeiridade, o fremd por assim dizer, de sua escrita, mas, pelo contrário, opta pela atitude de explicitá-lo.

Como é possível perceber nas considerações transcritas abaixo, para Yoko Tawada a questão do fremd ultrapassa o caráter de estrangeiridade dentro de uma cultura e ganha dimensões mais amplas, como as que englobam as diferentes formas de perceber um mesmo acontecimento ou as transformações ocorridas em cada indivíduo:

[...] ficar fremd significa, muitas vezes, que alguém não conseguiu se integrar. Eu não acho isso. Ser fremd é uma arte. [...] O autor precisa ser sempre fremd, mesmo no próprio país, para que não sejamos uma parte cega do todo, para que tenhamos distância, para que possamos não estar de acordo ou sentir que algo é lógico, sempre podemos pensar que poderia ser de outra forma, isso é ser fremd [...]. Eu só consegui aprender uma nova língua e uma nova cultura já adulta, porque tentei ser fremd. Trata-se de encontrar uma língua que possa descrever as diferenças não somente entre culturas, mas também dentro de uma cultura e dentro de uma cabeça. A coisa própria também se transforma, duas coisas entram uma na outra e se misturam, e não necessariamente de duas culturas, mas às vezes de um único impossível ou maravilhoso modo de comportamento percebido por duas pessoas de maneira completamente distinta [...]. Cada um precisa encontrar sua Fremdheit [estranheza, estrangeiridade], nós precisamos ser fremd, senão, não há integração numa sociedade, onde moram muitas pessoas diferentes. (Tawada em entrevista a Horst 2009Horst, Clair. Immacolata. Interview mit Yoko Tawada: Fremd sein ist ein Kunst. In: Migrationsliteratur: Eine neue deutsche Literatur? Berlin: Heinrich-Böll-Stiftung, 2009. Disponível em: <http://www.migration- boell.de/downloads/integration/DOSSIER_Migrationsliteratur.pdf>. Acesso em 20.07.2013.
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: 84)4 4 Sonst heißt fremd bleiben ja oft, jemand hat es nicht geschafft, sich zu integrieren. Das meine ich nicht. Fremd sein ist eine Kunst. (...) Fremd sein braucht der Autor immer, auch im eigenen Land, dass man nicht ein blinder Teil von einem Ganzen ist, dass man Distanz hat, dass man nicht einverstanden sein kann oder selbstverständlich empfindet, dass man immer denken kann, es könnte anders sein, das ist fremd sein. (…) Ich konnte nur deshalb eine neue Sprache und eine neue Kultur als Erwachsene lernen, weil ich versucht habe, fremd zu sein. Es geht darum, eine Sprache zu finden, die die Differenzen beschreiben kann und zwar nicht nur die zwischen Kulturen, sondern auch die innerhalb von einer Kultur und innerhalb von einem Kopf. Auch die eigene Sache verwandelt sich, zwei Sachen gehen ineinander und vermischen sich, und zwar nicht unbedingt aus zwei Kulturen, sondern auch manchmal aus einer einzigen unmöglichen oder wunderbaren Verhaltensweise, die von zwei Menschen ganz anders wahrgenommen wird (…) Jeder muss seine Fremdheit finden, entdecken, wir müssen fremd sein, sonst gibt es keine Integration in einer Gesellschaft, wo viele verschiedene Menschen leben.

Um certo distanciamento é necessário para que as coisas não se naturalizem, para que seja possível imaginar outras formas possíveis. A autora afirma, ainda, que integração do seu ponto de vista não significa necessariamente assimilação, na medida em que se trata de achar uma língua que descreva as diferenças e, nesse sentido, não tente apagá-las em prol de uma pretensa homogeneização. Sendo assim, Tawada ressalta a necessidade de manter o caráter estranho e estrangeiro de si e do texto, de modo que sua constituição está intimamente ligada à ideia de alteridade. Dessa forma, podemos dizer que ser fremd permite habitar a diferença, de si mesmo e do Outro. Como exposto anteriormente, esse conceito está permeado de significações e pode implicar, ainda, um sentimento de não adequação, de não pertencimento ou um distanciamento em relação a uma língua e a uma cultura ou ao sentimento de que se é alheio em seu próprio meio linguístico-cultural. Segundo Assmann:

Quanto de próprio, quanto de fremd o ser humano necessita? Nós ouvimos hoje não somente as vozes de autores pós-modernos que anunciam uma nova época da transculturalidade, em que domina uma mistura global de raças, culturas, mídias e formas de vida e em que não há mais o estritamente fremd e o estritamente próprio (Welsch 1994). Nós ouvimos também as vozes dos fundamentalistas. E ouvimos as vozes dos autores pós-colonialistas que, depois de uma longa história de opressão e aniquilamento, partem para a busca por suas próprias culturas e reinventam suas tradições próprias. Nosso mundo continua a crescer tanto em homogeneização, quanto em diferenciação: fronteiras são constantemente permeadas e destruídas, mas, em algum outro lugar, também são erguidas novas. (Assmann 2011Assmann, Aleida. Einführung in die Kulturwissenschaft: Grundbegriffe, Themen und Fragestellungen. Berlin: Erich Schmidt, 2011.: 232)6 5 Wieviel Eigenes, wie viel Fremdes braucht der Mensch? Wir hören heute nicht nur die Stimmen postmoderner Autoren, die eine neue Epoche der Transkulturalität ausrufen, in der eine globale Durchmischung der Rassen, Kulturen, Medien und Lebensformen herrscht und in der es `kein strikt Fremdes und kein strikt Eigenes mehr gibt (Welsch 1994)`.Wir hören auch die Stimmen der Fundamentalisten . Und hören die Stimmen postkolonialer Autoren, die sich nach einer langen Geschichte der Unterdrückung und Vernichtung auf die Suche nach ihren eigenen Kulturen begeben und die Erfindung eigener Traditionen machen. Unsere Welt nimmt weiterhin an Homogenisierung wie an Differenzierung zu: Grenzen werden permanent durchlässig und abgebaut, aber woanders auch neu aufgerichtet.

Conforme Assmann (2011Assmann, Aleida. Einführung in die Kulturwissenschaft: Grundbegriffe, Themen und Fragestellungen. Berlin: Erich Schmidt, 2011.: 233), sobretudo os artistas que fizeram uma experiência migratória ou que se ocupam com uma consciente arqueologia das complexas camadas de suas memórias culturais são capazes de transmitir novas orientações através de tradições culturais. Nesse sentido, outro ponto levantado por Assmann refere-se às “identidades múltiplas” (multiple Identitäten). Ela afirma que “quanto mais a consciência controladora de um ser humano se dissolve e a fachada de sua autoencenação se torna quebradiça, mais espaço é aberto para a experiência da alteridade e da não identidade” (Assmann 2011: 22).6 6 Je mehr sich das kontrollierende Bewusstsein eines Menschen auflöst und die Fassade seiner Selbst-Inzenierung brüchig wird, desto mehr Raum wird geschaffen für die Erfahrung von Alterität und Nicht-Identität.

O eu híbrido, para o qual os desvios fazem parte do caminho, está em constante deslocamento, seja numa viagem em direção ao Outro ou às próprias transformações. Nesse sentido, é possível identificar um campo semântico que permeia vida e obra de Yoko Tawada que engloba, dentre outros, os seguintes elementos: transiberiano, transculturalidade, transpor, transmitir, transmudar, transportar, transformar.

Nesse campo semântico, também podemos colocar a tradução. O título de um de seus livros, composto por ensaios literários - Überseezungen - aglutina a sobreposição de Übersee (além-mar), Zungen (línguas, [parte do corpo]) e Übersetzung (tradução). Essa sobreposição pode nos remeter, ainda, às ideias de übersetzen, com a sílaba tônica “se”, com o significado de traduzir e de übersetzen, verbo separável, que traz a ideia de atravessar de uma margem à outra. Essa demontage é capaz de ilustrar a concepção de Yoko Tawada sobre tradução, vinculada ao deslocamento e à transformação. Segundo Blume:

Sobre a tradução dos seus próprios poemas pelo tradutor Peter Pörtner do japonês ao alemão, Tawada (1998Tawada, Yoko. Verwandlungen. Tübinger Poetik-Vorlesung. Tübingen: Konkursbuchverlag, 1998., p.7) comenta que, quando eles foram publicados, várias pessoas lhe perguntavam o que achava da tradução. Ela afirma que não via nessas traduções nenhuma perda, apesar de toda a diferença entre as línguas japonesa e alemã. “Naquele tempo encontrei a palavra transformação para defender possibilidades criativas do trabalho de tradução [...]”, diz a autora. [...] Ao contrário da palavra “perda” a palavra “transformação” não soa nem trágica nem dramática. Além disso, ela parece ser livre de um propósito limitado ou de um plano orientado para o lucro. Não se perdeu nada e não se sabe o que surgirá após uma transformação (Tawada, 1998, p. 8). E poderíamos afirmar, também, que essa tradução como transformação não se dá, para a autora, somente nos processos interlinguísticos ou intertextuais, mas na própria identidade de quem migra […]. Essa visão da tradução como um constante processo de transformação aponta para a abolição de limites ou fronteiras rígidas em favor de uma maior fluidez entre as línguas e culturas, ideia essa muito presente no conjunto da obra de Tawada. (Blume 2014Blume, Rosvitha Friesen. Traços migratórios e tradução cultural na obra ensaística de Herta Müller e de Yoko Tawada. Itinerários, n. 38, jan./jun. 2014, p. 59-72.: 69)

Na passagem acima, observamos a noção que norteia a visão de Yoko Tawada sobre tradução: uma transformação pautada na liberdade, sem um propósito limitado ou orientado somente para o lucro. A autora nega, assim, qualquer ideia de perda e exalta o que pode surgir de novo com uma transposição linguístico-cultural. Esses parâmetros expostos pela escritora são fundamentais para este trabalho, pois, como dissemos anteriormente, o estudo sobre a autora e seu livro Ópio para Ovídio está, aqui, intimamente ligado ao exercício tradutório. Sendo assim, antes de apresentarmos essa obra propriamente dita, tratamos a seguir de algumas questões teóricas voltadas à escolha da estratégia que norteia tal exercício.

3 O problema da tradução: notas teóricas

Inicialmente, faz-se importante destacar a Skopostheorie, teoria segundo a qual a decisão por determinada estratégia depende do Skopos, ou seja, do objetivo da tradução (Snell-Hornby 1998Snell-Hornby, Mary et al (org.). - Handbuch Translation. Tübingen: Stauffenburg Verlag, 1998, p. 105-107. : 105-107). Segundo Vermeer:

Vemo-nos perante um dilema, aliás desde há muito discutido na teoria da tradução (vide Schleiermacher) ou se distancia o texto do leitor de chegada, para o qual a tradução se destina, através de sua versão dita literal ou se lhe aproxima o texto adaptando-o aos hábitos da cultura de chegada. E não é possível obter os dois resultados ao mesmo tempo: manutenção da forma e aproximação do efeito. [...] E como a escolha de uma das estratégias expostas é obrigatória - há que escolher quer se queira ou não - é outra vez aquela nossa regra suprema que nos faz e permite decidir-nos: é o objectivo da tradução que determina qual dos dois caminhos se pode e deve seguir. (Vermeer 1985Vermeer, J. Hans. Esboço de uma teoria da tradução. Porto: Edições Asa, 1985. : 7-8)

Sendo assim, retomemos o objetivo deste trabalho: apresentar um estudo preliminar sobre a autora Yoko Tawada e, mais especificamente, sobre seu livro Ópio para Ovídio, com ênfase no exercício tradutório. Acreditamos que tal apresentação deve ser feita de maneira coerente com a visão da própria escritora sobre o caráter estrangeiro presente em si mesma e em sua obra e com as características que, segundo ela, deve possuir uma tradução. O texto traduzido deve conter, segundo Tawada (1998: 35), um caráter de deformação e de deslocamento, além de provocar no leitor o sentimento da existência de uma língua completamente diferente, uma “língua outra”.

Voltemos à dualidade presente na citação acima de Vermeer (1985Vermeer, J. Hans. Esboço de uma teoria da tradução. Porto: Edições Asa, 1985. ) que retoma Schleiermacher (2001Schleiermacher, Friedrich. Über die Verschiedenen Methoden des Übersetzens / Sobre os diferentes métodos de Tradução. Edição bilíngue. Tradução de Margarete von Mühlen Poll. In: Heidermann, Werner (org.). Clássicos da Teoria da Tradução. Vol. I. 2. ed. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. Antologia Bilíngue: Alemão-Português. [1813]) ao expor os dois principais caminhos que pode seguir uma tradução: um mais literal, que se distancia do leitor de chegada, ou aquele que se aproxima dele, estando mais de acordo com os hábitos da cultura de chegada. Segundo Schleiermacher (2001 [1813]), o leitor deve ser levado ao autor e não o contrário, já que isso significaria apagar o caráter estrangeiro do texto. E, no caso de Ópio para Ovídio, podemos dizer que esse caráter estrangeiro é duplo, pois está presente em certa medida também na relação que o texto estabelece com a cultura de partida.

Conforme Schleiermacher (2001Schleiermacher, Friedrich. Über die Verschiedenen Methoden des Übersetzens / Sobre os diferentes métodos de Tradução. Edição bilíngue. Tradução de Margarete von Mühlen Poll. In: Heidermann, Werner (org.). Clássicos da Teoria da Tradução. Vol. I. 2. ed. Florianópolis: UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. Antologia Bilíngue: Alemão-Português. [1813]), mais do que uma leitura facilitadora, em que o tradutor visa a escrever um texto em sua língua como se o autor do texto de partida o tivesse escrito ele mesmo na língua de chegada, buscamos conduzir o leitor por um caminho rumo à autora e à língua na qual ela escreve.

No âmbito dessa discussão, é importante notar que Toury (1995Toury, Gideon. Descriptive Translation Studies and beyond. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1995.: 57), por sua vez, considera como “norma inicial” a escolha feita pelos tradutores que se concretizará num continuum entre dois polos. Segundo sua perspectiva, os tradutores podem se sujeitar às normas realizadas no texto de partida ou às normas da cultura ou da língua de chegada. Se o texto traduzido for em direção ao texto de partida, será, segundo o autor, “adequado”. Se, por outro lado, as normas da cultura alvo prevalecerem, o texto traduzido será “aceitável”.

Ressaltamos que esses polos de adequação e de aceitabilidade se constituem num continuum, uma direção seguida por determinada tradução, que dificilmente será totalmente adequada ou totalmente aceitável. Britto (2010) também propõe essa espécie de contínuo de tal forma que a atitude do tradutor não deve ser necessariamente extremada, mas afirma que “é preciso forçar o leitor a sair da tranquilidade de seu mundo conhecido e obrigá-lo a enfrentar o outro em toda sua estranheza” (Britto 2010: 138). O autor cita Berman (apud Britto 2010: 139) ao destacar a importância de “receber o Outro enquanto Outro”. Segundo Berman (2002: 18), uma má tradução seria aquela que “[...] sob pretexto de transmissibilidade, opera uma negação sistemática da estranheza da obra estrangeira” e diz, ainda que:

[...] toda cultura resiste à tradução mesmo que necessite essencialmente dela. A própria visada da tradução - abrir no nível da escrita uma certa relação com o Outro, fecundar o Próprio pela mediação do Estrangeiro - choca-se de frente com a estrutura etnocêntrica de qualquer cultura, ou essa espécie de narcisismo que faz com que a sociedade deseje ser um todo puro e não misturado. Na tradução, há alguma coisa da violência da mestiçagem. (Berman 2002Berman, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: Edusc, 2002. 18)

Como apresentamos anteriormente, a atitude de Yoko Tawada como escritora, estrangeira em meio a outros tantos autores e autoras com uma bagagem linguístico-cultural diversa pode promover o contato com o Outro, o alheio a certa concepção de normalidade ou de naturalidade. Nesse sentido, o caráter homogêneo de uma cultura ou da identidade de um indivíduo é constantemente negado em sua obra. O diálogo intertextual em Ópio para Ovídio, por exemplo, explicita a condição do Outro, do que é distinto e pode invocar uma certa estética de estranhamento. Sendo assim, buscamos estabelecer um trabalho dentro do contínuo entre a língua estrangeira e a língua de destino para que a linguagem da tradução contenha em si um caráter heterogêneo e, até certo ponto, ambivalente. Como diz Berman:

No plano psíquico, o tradutor é ambivalente. Ele quer forçar dos dois lados: forçar a sua língua a se lastrear de estranheza, forçar a outra língua a se de-portar em sua língua materna. Ele quer ser escritor, mas não é senão re-escritor. Ele é autor - nunca o Autor. (Berman 2002Berman, Antoine. A prova do estrangeiro. Cultura e tradução na Alemanha romântica: Herder, Goethe, Schlegel, Novalis, Humboldt, Schleiermacher, Hölderlin. Tradução de Maria Emília Pereira Chanut. Bauru: Edusc, 2002. : 18-20)

No contínuo entre os dois polos ambivalentes que constituem as escolhas tradutórias - a manutenção da forma e a aproximação do efeito - o exercício, neste trabalho, consistiu em direcionar essas escolhas o quanto possível em direção ao estrangeiro, buscando uma aproximação com as estruturas da língua de partida, além da tentativa de recuperar certas marcas do texto Ópio para Ovídio, como o caráter narrativo fragmentário e os procedimentos utilizados para a construção de ironia, que de alguma forma devem fazer parte do texto traduzido.

Acreditamos que com esse exercício seja possível fazer jus à concepção de Yoko Tawada sobre o traduzir que, segundo ela, implica uma transposição deformadora, e não conformadora. Em seu livro Verwandlungen (Metamorfoses), no capítulo intitulado Schrift einer Schildkröte oder das Problem der Übersetzung (Escrita de uma tartaruga ou o problema da tradução) ela diz:

Uma tradução literária precisa perseguir obsessivamente a literalidade até que a língua da tradução rompa as barreiras da estética convencional. Uma tradução literária deve partir da intraduzibilidade e lidar com ela, ao invés de eliminá-la. É fácil criticar uma tradução. Principalmente no que se refere a poemas modernos, leitores cultos e pretensiosos gostam de falar do desempenho deficiente dos tradutores. É frequentemente ignorada a forma como a tradução lida com a intraduzibilidade. Uma transposição interessante, uma deformação revigorante ou um deslocamento delirante para a língua própria é, antes, um feito da tradução. Por outro lado, é igualmente fácil elogiar uma tradução. Bocas triviais a elogiam quando a língua da tradução soa natural. A tradução faria o leitor esquecer que se trata de uma tradução. Esse elogio revela uma lógica distorcida. Não se diz: esta literatura é boa, porque quase esquecemos que é literatura. Para mim, o fascínio de uma tradução está no fato de fazer com que o leitor sinta a existência de uma língua completamente diferente. A língua da tradução tateia cuidadosa a superfície do texto sem se fazer dependente de seu núcleo. (Tawada 1998Tawada, Yoko. Verwandlungen. Tübinger Poetik-Vorlesung. Tübingen: Konkursbuchverlag, 1998.: 35-36)7 7 Eine literarische Übersetzung muß obsessiv der Wörtlichkeit nachgehen, bis die Sprache der Übersetzung die konventionelle Ästhetik sprengt. Eine literarische Übersetzung muß von der Unübersetzbarkeit ausgehen und mit ihr umgehen, statt sie zu beseitigen. Es ist einfach, eine Übersetzung zu kritisieren. Besonders bei modernen Gedichten sprechen gebildete und eingebildete Leser gerne über die die mangelhaft Leistung der Übersetzer. Dabei wird oft übersehen, wie wie die Übersetzung mit der Unübersetzbarkeit umgeht. Eine interessante Verschiebung, eine erfrischende Entstellung oder eine wahnhafte Verrückung in die eigene Sprache ist doch eher eine Leistung der Übersetzung. Andererseits ist es genauso einfach, eine Übersetzung zu loben. Triviale Münder loben sie, wenn die Sprache der Übersetzung natürlich klingt. Die Übersetzung lasse den Leser vergessen, daß eine Übersetzung sei. Dieses Lob zeugt von einer verdrehten Logik. Man sagt doch auch nicht: Diese Literatur ist gut, weil man fast vergißt, daß es Literatur ist. Für mich besteht der Reiz einer Übersetzung darin, daß sie den Leser die Existenz einer ganz anderen Sprache spüren läßt. Die Sprache der Übersetzung tastet die Oberfläche des Textes vorsichtig ab, ohne sich von seinem Kern abhängig zu machen.

Como é possível observar na citação apresentada, a visão de Yoko Tawada sobre o texto traduzido é de que ele toca na superfície do texto de origem sem se fazer dependente de seu núcleo. Os parâmetros relacionados à tradução, segundo a autora, estão vinculados às noções de literalidade e deformação no processo de transposição para a língua de chegada. O texto de chegada teria, assim, um caráter de deslocamento que não deve ser apagado, mas sim considerado como um resultado revigorante.

Tendo isso em vista, reiteramos que, no presente trabalho, o estudo do livro Ópio para Ovídio caminha junto ao seu processo tradutório. Sendo assim, apresentamos a seguir os principais aspectos do livro, ilustrado por alguns de seus trechos e as respectivas questões tradutórias voltadas, principalmente, ao intertexto e às perspectivas em relação ao estrangeiro. Nesse sentido, o ato de traduzir e a pesquisa buscam constituir um todo capaz de contemplar algumas das nuances do fremd marcadas no rosto do texto.

4 Ópio para Ovídio: texto, intertexto e tradução

As mulheres desse livro, personagens e autoras de si mesmas, promovem um deslocamento do olhar, na medida em que costuram uma trama de perspectivas ao avesso das naturalidades. Elas circulam por St. Pauli, pela China ou pelo céu e se metamorfoseiam no decorrer dos caminhos. Suas personalidades apresentam uma constituição fluida, como que dissolvida em água, substância tão cara a Yoko Tawada.

Cada personagem dá título a uma das vinte e duas partes de Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres. Elas possuem, ao mesmo tempo, uma unidade de sentido em si mesmas e uma relação com as demais, que se dá de modo descontínuo e fragmentário, não havendo entre as partes uma ideia de sequência lógica ou de linearidade. Buscamos ilustrar os principais aspectos considerados no estudo deste livro com trechos retirados em sua maioria de Latona e de Coronis, por abordarem de modo especialmente irônico uma certa visão ocidental sobre o “Oriente” e por trazerem à tona a questão do não pertencimento nacional e da escrita.

O diálogo intertextual com O Livro do Travesseiro, de Sei Shônagon e com as Metamorfoses, de Ovídio se constitui nesse livro de Yoko Tawada por elementos temáticos e estruturais. As personagens de Ópio para Ovídio transitam entre a tradição literária ocidental e a oriental em um processo de releitura e reescrita da memória intertextual no presente. Assim, antes de nos atermos ao texto e aos intertextos propriamente ditos, apresentamos algumas noções que baseiam nosso entendimento sobre intertextualidade no âmbito deste trabalho.

A intertextualidade, como expõe Samoyault (2008Samoyault, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008. ), possui dois componentes essenciais: a transformação e a relação. Tais elementos implicam trazer à tona as obras antigas e colocá-las em um novo âmbito de sentido, onde são realimentadas pelo sentido das obras novas feitas sobre esta memória do antigo. A memória é, assim, uma noção central deste movimento, que abrange o texto, o autor e o leitor, em jogos de múltiplas interpretações (Samoyault 2008: 10). Segundo Samoyault:

[…] o eterno retorno é um mito, mas é também o princípio constitutivo do mito, cujo enunciado é sempre reiterado e indefinidamente re-atualizado. Contando uma origem, ou esforçando-se por dar uma origem a uma cultura, a uma história, a uma nação, o mito dissolve, no entanto, sua própria origem na multiplicidade de suas versões. (Samoyault 2008Samoyault, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008. : 115).

O conceito de intertextualidade, conforme desenvolvido por Samoyault (2008Samoyault, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008. ), permite identificar como o texto de Yoko Tawada ressignifica os textos milenares com os quais trabalha a partir de uma construção ficcional própria. O sentido é comandado pelo seu texto em um constante trabalho de modificação e da própria relação-mosaico existente entre os textos. Yoko Tawada trabalha com a atualização dos mitos, de modo que ela os faz vivos e, ao mesmo tempo, os subverte.

Ressaltamos que o intuito desta pesquisa não é buscar uma interpretação da obra Ópio para Ovídio através de “pistas” a serem desvendadas nas Metamorfoses ou no Livro do Travesseiro, mas sim, discutir sobre o diálogo realizado pela autora com essas obras. Isso, já que:

[...] os liames que se elaboram entre os textos não são atribuíveis a uma explicação ou a um inventário positivista: mas isto não impede que se fique sensível à complexidade das interações existentes entre os textos. (Samoyault 2008Samoyault, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Hucitec, 2008. : 143)

Dessa forma, este breve levantamento intertextual não pretende ser explicativo ou esclarecedor, no sentido de trazer ao leitor relações pré-estabelecidas entre Ópio para Ovídio e os dois textos milenares, mas sim, fazer com que o leitor possa ser levado à autora através das referências literárias expostas por ela.

Yoko Tawada desvela algo que se aproxima ou pode ser aproximado nas tradições e, assim, reinventa sua própria tradição. A autora transforma o antigo em algo novo e ambos permanecem em movimento em função das relações com o passado e com a contemporaneidade, se reinventando na construção dessa memória literária, a cada (re)leitura e, inclusive, na tradução. No Livro do Travesseiro de Tawada, um Ovídio entorpecido traz à tona o intertexto como memória e, ao mesmo tempo, constituído no presente, a cada vez que se realiza.

Tratemos, então, mais especificamente dos dois intertextos e das relações estabelecidas com Ópio para Ovídio, a começar por alguns aspectos do Livro do Travesseiro. Essa é uma obra japonesa redigida entre os anos de 994 e 1001 (Wakisaka; Cordaro 2013Wakisaka, Geny; Cᴏʀᴅᴀʀᴏ, Madalena. Sobre a obra, a autora, o contexto e a tradução. Prefácio à tradução. In: Sʜôɴᴀɢᴏɴ, Sei. O Livro do Travesseiro. São Paulo: Editora 34, 2013.: 7) escrita, portanto, cerca de mil anos depois das Metamorfoses de Ovídio e mil anos antes de Ópio para Ovídio. Os acontecimentos escritos na Corte de Teishi por Sei Shônagon tratam de figuras da corte e de seu cotidiano. Segundo Cunha (2013Cunha, Andrei dos Santos. Questões de tradução e adaptação em O Livro de Cabeceira. Tradterm, v. 21, 2013, p. 71-95. Disponível em: <http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/07_andreidossantos21f.pdf>. Acesso em 17.12.2014.
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: 83) havia dois gêneros nesta época: o monogatari, mais próximo à narrativa e representado pelo Romance do Genji e o gênero zuihitsu, exemplo tido como originário do Japão, que representa algo “feito ao correr do pincel”, com crônicas da vida na corte, trechos introspectivos e poemas, como no Livro de Travesseiro, de Sei Shônagon.

É importante notar que, segundo Wakisaka (2013Wakisaka, Geny; Cᴏʀᴅᴀʀᴏ, Madalena. Sobre a obra, a autora, o contexto e a tradução. Prefácio à tradução. In: Sʜôɴᴀɢᴏɴ, Sei. O Livro do Travesseiro. São Paulo: Editora 34, 2013.: 9), o processo de leitura e escrita neste contexto da corte se dava entre as damas e era coletivo. Essa característica, como veremos adiante, foi um dos fatores fundamentais considerados para a tradução do título do livro de Yoko Tawada para o português: Opium für Ovid: Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres).

A menção ao Livro do Travesseiro já no título do livro pode se constituir como o primeiro contato com um caráter estranho ou desconhecido do texto. Sendo assim, alguns dos aspectos considerados na tradução da palavra Kopfkissenbuch dizem respeito à discussão que apresentaremos brevemente sobre o filme The Pillow Book, de Peter Greenaway e sobre o título das duas traduções da obra literária japonesa para o português do Brasil.

Esse filme de 1996, cujo título foi traduzido para o português como O Livro de Cabeceira, é uma das referências ocidentais a Sei Shônagon e, deste modo, poderia levar a uma aproximação com uma temática tida como possivelmente alheia. O filme faz inúmeras referências a Sei Shônagon, parecendo atribuir a ela palavras que constariam em seu Livro do Travesseiro, mas se trata de um texto modificado, um fruto criativo do diretor.

No entanto, embora a trama, as personagens e os diálogos de The Pillow Book sejam criação de Greenaway, o efeito que a personagem Sei Shônagon parece exercer sobre seus espectadores pode ser outro, conforme afirma Cunha (2013Cunha, Andrei dos Santos. Questões de tradução e adaptação em O Livro de Cabeceira. Tradterm, v. 21, 2013, p. 71-95. Disponível em: <http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/07_andreidossantos21f.pdf>. Acesso em 17.12.2014.
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: 79), devido à “quantidade de pessoas, inclusive teóricos, que citam os trechos [do filme] como sendo de autoria da Sei Shônagon histórica”. Segundo Cunha:

[...] os diálogos do filme O Livro de Cabeceira também foram reificados como sendo a palavra de Sei Shônagon, em um processo bem conhecido por quem tem que lidar com traduções de textos do Oriente [...] eles são apropriados, adaptados e reescritos a ponto de se tornarem irreconhecíveis, um produto da imaginação ocidental de como o Oriente deveria soar em tradução. (Cunha 2013Cunha, Andrei dos Santos. Questões de tradução e adaptação em O Livro de Cabeceira. Tradterm, v. 21, 2013, p. 71-95. Disponível em: <http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/07_andreidossantos21f.pdf>. Acesso em 17.12.2014.
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: 80)

Além da crítica em relação a uma tradução que representa como o Oriente, enquanto produto da imaginação ocidental, deveria soar, Cunha (2013Cunha, Andrei dos Santos. Questões de tradução e adaptação em O Livro de Cabeceira. Tradterm, v. 21, 2013, p. 71-95. Disponível em: <http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/07_andreidossantos21f.pdf>. Acesso em 17.12.2014.
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) ressalta, ainda, a importância da teoria da tradução e da tradução cultural em casos como esse, em que estão envolvidos, segundo ele, os seguintes conceitos: “nação, língua, gênero e origem” (Cunha 2013: 90).

Acreditamos que a tradução do título do filme no Brasil por O Livro de Cabeceira corrobora para essa ideia de aclimatação da obra ao Ocidente. Como apresentamos anteriormente, um dos elementos que caracterizam o Livro do Travesseiro de Sei Shônagon se refere ao processo coletivo de leitura e escrita na corte onde ela vivia, de modo que o termo “livro de cabeceira”, tal qual é utilizado atualmente, não remete às referências literárias relativas à cultura de sua época. Conforme Wakisaka e Cordaro:

Certamente a expressão [Makurano Sôshi] não tem o sentido atual de “livro de cabeceira”, pois a leitura para as damas da corte imperial é atividade conjunta, simultânea e diuturna, pública, aliada à apreciação e crítica da caligrafia e das outras artes. (Wakisaka; Cordaro 2013Wakisaka, Geny; Cᴏʀᴅᴀʀᴏ, Madalena. Sobre a obra, a autora, o contexto e a tradução. Prefácio à tradução. In: Sʜôɴᴀɢᴏɴ, Sei. O Livro do Travesseiro. São Paulo: Editora 34, 2013.: 9)

O livro Makurano Sôshi, de Sei Shônagon, foi traduzido diretamente do japonês para o português em duas ocasiões. A tradução de Andrei dos Santos Cunha foi publicada em 2008 e intitulada “O Livro de Travesseiro”. A tradução mais recente, de 2013, realizada por Geny Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luíza Yoshida e Madalena Cordaro, foi intitulada “O Livro do Travesseiro”. As tradutoras explicam que consideraram uma das propostas de interpretação sobre o nome Makurano Sôshi, segundo a qual Sei Shônagon teria feito uma associação com o termo makura, que significa travesseiro ou sela (Cf. Wakisaka; Cordaro 2013: 9).

Nesse contexto, a tradução do título da obra estudada nesta pesquisa leva à seguinte questão: traduzi-lo como O Livro de Cabeceira levaria os leitores ainda mais em direção ao filme e à concepção atual que se tem de um livro de cabeceira e não à obra japonesa. Além disso, Yoko Tawada usou o termo Kopfkissenbuch para compor o título do livro e não Die Bettlektüre, título do referido filme de Greenaway em alemão, que tem nessa língua a conotação de “livro de cabeceira”. Assim, tendo em vista essas questões, consideramos que a tradução de seu livro deveria ser Livro do Travesseiro, de modo a manter seu caráter de maior distanciamento em relação à cultura ocidental, ao invés de buscar aclimatar essa referência a uma perspectiva mais próxima ao orientalismo criado pelo Ocidente.

Dadas essas observações sobre a tradução do título, voltemos à temática do Livro do Travesseiro de Sei Shônagon. Segundo Wakisaka (2013Wakisaka, Geny; Cᴏʀᴅᴀʀᴏ, Madalena. Sobre a obra, a autora, o contexto e a tradução. Prefácio à tradução. In: Sʜôɴᴀɢᴏɴ, Sei. O Livro do Travesseiro. São Paulo: Editora 34, 2013.: 10): “[...] se a ala do Imperador se dedicava a registros históricos oficiais, próprios do universo dos homens, a de Teishi se dedicaria a relatos privados, mais próximos do mundo das mulheres”. Neste contexto, também é interessante notar a rica produção literária japonesa feita por mulheres na época de Sei Shônagon (Cunha 2013Cunha, Andrei dos Santos. Questões de tradução e adaptação em O Livro de Cabeceira. Tradterm, v. 21, 2013, p. 71-95. Disponível em: <http://myrtus.uspnet.usp.br/tradterm/site/images/revistas/v21n1/07_andreidossantos21f.pdf>. Acesso em 17.12.2014.
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). Segundo Cunha (2013:83), a literatura era ferramenta para promover a imagem da mulher enquanto culta e fascinante, de modo que tinha papel central no processo de circulação do poder.

A importância das mulheres na produção literária na época de Sei Shônagon no Japão parece ser retomada por Yoko Tawada neste Livro do Travesseiro de vinte e duas mulheres, em que encontramos personagens linguistas, redatoras, estudantes de Letras e escritoras. A personagem Coronis é poeta e para ela a ação do fazer poético se apresenta como algo erótico, de modo que ela satisfaz seu desejo carnal com a escrita:

Eine krankhafte Sucht nach Menschen zwingt Coronis, sich auf eine schutzlose Person zu stürzen, um ihr zu schaden. Die sexuelle Lust hingegen hat für sie etwas Autistisches. Sie braucht keine andere Person, sondern eine Sprache. Coronis erlebt den fleischlichen Höhepunkt beim Schreiben. Der Spatz, die Geheimpolizei, sieht, wie die Frau mit einer altmodischen Schreibmaschine schreibt und dabei erregt wird. (Tawada 2011: 86) Um vício doentio por pessoas força Coronis a se lançar sobre um indivíduo indefeso para feri-lo. O prazer sexual, por outro lado, tem para ela algo de autista. Ela não precisa de outra pessoa, mas de uma linguagem. Coronis experimenta o clímax carnal ao escrever. São sete horas da manhã. Um pardal pousa num galho e a observa pela vidraça de uma janela. O pardal, a polícia secreta, vê como a mulher escreve com uma máquina de escrever antiquada e fica excitada com isso.

Embora Yoko Tawada trabalhe com uma dimensão física da língua como algo que tem gosto, que perpassa seu corpo e, de algum modo, a transforma, no excerto acima, observamos que a tradução de Sprache por “língua” poderia gerar uma dubiedade não presente no texto de partida, por isso, a opção escolhida foi “linguagem”.

Ainda sobre a questão da autoria, notamos, conforme o título do livro estudado sugere pela palavra “von” (cf. Geisel 2011Geisel, Sieglinde. Kopfkissenbuch der Verwandlung. Die Anverwandlung literarischer Motive und Wahrnehmungsweisen von Ovid und Sei Shônagon in Yoko Tawadas “Opium für Ovid”. Text + Kritik. Zeitschrift für Literatur. n.191/192, Yoko Tawada, 2011, p. 47-53. Entrevista: Ein Spaziergang mit Yoko Tawada - Fremdkörper Sprache, 2001. Disponível em <http://www.nzz.ch/article71HPS-1.468004>. Acesso em 04.03.2017.
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: 50) Ein Kopfkissenbuch von 22 Frauen (Um Livro do Travesseiro de 22 mulheres), que as mulheres podem ser, além de personagens, também autoras desse livro. Em princípio, esse Livro do Travesseiro contemporâneo é delas e sobre elas. No texto Clymene, por exemplo, é explicitado o processo de escrever ou de produzir palavras. Esta reflexão está ligada à personagem linguista e explicita a necessidade de se colocar a continuidade em questão num estado entorpecido:

„ In einem Rauschzustand öffnen sich überall kleine Löcher, zwischen den Lauten, zwischen dem Ein - und Ausatmen, beim Blinzeln. Sie stellen die Kontinuität in Frage. Ein „r“ garantiert nicht, dass ein „a“ ihm folgt. Es gibt eine Unterbrechung zwischen beiden und darin kann alles zu Ende sein. Welche Brücke verbindet beide Laute miteinander? In einem Rauschzustand kann ich nicht mehr so sprechen, als würde alles selbstverständlich weiterlaufen. Mitten in einem Wort hole ich Luft, um zu sehen, ob der Satz weitergeht. (Tawada 2011: 96) Num estado de torpor, pequenos furos se abrem por todo lado, entre os sons, entre o inspirar e o expirar, ao piscarmos. Eles colocam a continuidade em questão. Um “t” não garante que um “o” lhe siga. Há uma ruptura entre ambos e nisso pode estar tudo terminado. Quais pontes ligam ambos os sons? Num estado de torpor, não consigo mais falar como se tudo continuasse a transcorrer de modo óbvio. No meio de uma palavra, tomo ar para ver se a frase continua.

O tema Rausch (torpor, embriaguez) que aparece no trecho acima é importante nesta obra em que a dissolução da (auto)encenação se relaciona, dentre outros elementos, a um estado de entorpecimento gerado pelo ópio, em que os significados dão lugar à atribuição de significações mutáveis. Algumas das opções consideradas para traduzir Rauschzustand foram: estado de entorpecimento; estado entorpecido; estado ébrio ou inebriado. Optamos por “estado de torpor” de modo a manter a repetição da palavra Rausch, presente no decorrer do texto em outros compostos e como substantivo simples.

Notamos, ainda, que a continuidade colocada em questão no texto transcrito acima se dá entre “r” e “a”, em provável referência à palavra Rausch. Na tradução, alteramos, assim, as letras para “t” e “o”, em referência a “torpor”.

A naturalidade do sistema de escrita alfabética não é compartilhada pela personagem Clymene. Nesse sentido, é interessante notar que a estranheza do alemão como língua estrangeira é retratada por Tawada já no âmbito do sistema alfabético de escrita. A autora faz considerações a respeito das letras enigmáticas do alfabeto, de modo que um B pode virar tanto Bombe (bomba) como Blume (flor) e diz: “[…] Escrever significa, em primeiro lugar, colocar letras e com isso colocar corpos alfabéticos no mundo sem pensar na sua ilimitada capacidade de metamorfose”. (Tawada 1998: 30-32).8 8 Schreiben heißt zunächst, Buchstaben zu setzen und damit alphabetische Körper in die Welt zu setzen, ohne an ihre unbeschränkte Verwandlungsfähigkeit zu denken. A continuidade é colocada em questão no texto de Yoko Tawada, de modo que as possibilidades do vir a ser são inúmeras e enfatizadas pelo seu trabalho de escrita.

No que se refere às características narrativas de Ópio para Ovídio, a(s) narradora(s) em primeira pessoa apresenta(m) diversas facetas e, em princípio, não é possível atribuir a ela(s) uma identidade definida. Tal instância é fluida e, por vezes, é difícil saber de quem é essa “voz”, que poderia se diluir entre todas as personagens. Neste livro de Yoko Tawada, as esferas parecem ser propositalmente difusas ou não explícitas.

Em um movimento de interpretação lógica, buscamos espontaneamente por pistas que nos ajudem a entender, no sentido da nossa tradição de buscar atribuir significados muito bem definidos a tudo. No entanto, em Ópio para Ovídio tudo parece estar ao bel prazer do mundo ficcional e uma forma de explicitar a construção desse mundo se dá neste trecho da narrativa Iuno (Juno):

Iuno schließt ihre Augen und die Autorin Coronis schaltet die Schreibmaschine aus. Coronis empfindet jetzt ihren eigenen Körper als so schwer und will sich deshalb von dieser Figur trennen. (Tawada 2011: 200). Juno fecha seus olhos e a autora Coronis desliga a máquina de escrever. Coronis sente agora seu próprio corpo tão pesado e quer, por isso, separar-se dessa personagem

A elaboração de um mundo ficcional dentro da própria ficção também aparece em Latona, onde a narradora afirma que deve retirar um trecho do texto, denotando com isso o fato de que este mundo é não somente narrado, mas também criado por ela.

„Ihr habt kleine Flammen an den Fußspitzen“, sagte ich. Latona hob einen Fuß hoch und antwortete: „Früher durften nur Männer rote Sachen tragen, weil Rot die Farbe des Kämpfers war, und...“„Ja genau“, unterbrach Scylla und redete mit wirbelnder Zunge weiter. Latona schwieg. Scylla reagierte immer zu schnell und zu hastig, als würde ihr sonst etwas weggenommen werden. Auf einmal fiel mir ein, dass sich Latona und Scylla nie kennengelernt hatten. Die hier beschriebene Szene muss also aus dem Text gestrichen werden. (Tawada 2011: 36). “Vocês têm pequenas chamas nas pontas dos pés”, eu disse. Latona ergueu um pé e respondeu: “Antigamente somente os homens podiam usar coisas vermelhas, porque vermelho era a cor do guerreiro e...” “Sim, exatamente”, interrompeu Cila e continuou a falar revirando a língua. Latona silenciou. Cila sempre reagia rápida demais e precipitada demais, como se, caso contrário, algo fosse ser retirado dela. De repente, me ocorreu que Latona e Cila nunca haviam se conhecido. Essa cena descrita aqui precisa, então, ser riscada do texto.

Quanto ao tipo inconstante de instância narrativa, ela está presente também nas Metamorfoses de Ovídio, mas, neste caso, os narradores são explicitados, como a gralha, o corvo, etc. O livro das Metamorfoses apresenta um caráter fragmentário, assim como o mundo ficcional de Ópio para Ovídio, de modo que é possível observar em ambos a ausência de uma linearidade narrativa ou temática. Nesta obra de Ovídio, são apresentados inúmeros mitos com deusas, deuses, semideuses, ninfas, humanos, animais, de modo que não há uma temática una.

Além dos nomes mitológicos com os quais Tawada designou as vinte e duas mulheres de seu Livro do Travesseiro, há referências a acontecimentos descritos por Ovídio que explicitam o diálogo feito por ela com as Metamorfoses. É possível identificar nessas obras processos de alteração de perspectivas ou transformações do estado físico de pessoas e coisas. Em Ópio para Ovídio, o princípio da metamorfose permeia a observação das personagens e se constitui, ainda, como a constante possibilidade do vir a ser.

Quanto ao próprio motivo “metamorfose”, Yoko Tawada destaca na história da literatura europeia duas obras em que este tema é central: As Metamorfoses de Ovídio e A Metamorfose de Kafka, autor que Tawada diz ter começado a ler já nos tempos de escola. No que se refere à cultura do leste asiático, ela ressalta o fato de esse tema estar presente nas religiões, no Budismo e também na mitologia, nos contos de fada e assim por diante. (Tawada em entrevista a Horst 2009Horst, Clair. Immacolata. Interview mit Yoko Tawada: Fremd sein ist ein Kunst. In: Migrationsliteratur: Eine neue deutsche Literatur? Berlin: Heinrich-Böll-Stiftung, 2009. Disponível em: <http://www.migration- boell.de/downloads/integration/DOSSIER_Migrationsliteratur.pdf>. Acesso em 20.07.2013.
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: 83).

Em seu livro de ensaios Verwandlungen (Metamorfoses), no capítulo Gesicht eines Fisches oder das Problem der Verwandlung (Rosto de um peixe ou o problema da metamorfose), a autora ressalta que o Livro das Metamorfoses de Ovídio nos faz atentar para o fato de que as definições são fictícias (Tawada 1998Tawada, Yoko. Verwandlungen. Tübinger Poetik-Vorlesung. Tübingen: Konkursbuchverlag, 1998.: 55). Segundo Tawada (1998: 66), “a palavra da moda ‘perda de identidade’ suplantou o conceito de metamorfose. Contudo, a metamorfose é, desde a Antiguidade - seja dos gregos ou dos chineses -, um dos importantes motivos da literatura”.9 9 Das Modewort „Identitätsverlust” hat den Begriff der Verwandlung in die Ecke verdrängt. Die Verwandlung ist aber seit der Antike - sei es der griechischen oder der chinesischen - eines der wichtigen Motive der Literatur. Ainda no livro Verwandlungen, a escritora trata das Metamorfoses de Ovídio, em que as formas dos seres existentes eram indefinidas e, portanto, a possibilidade de se transformar é constitutiva da origem de tudo, conforme descreve na passagem abaixo:

No primeiro capítulo das ´Metamorfoses´ de Ovídio, é narrada uma espécie de origem do mundo que é, ao mesmo tempo, uma explicação sobre a capacidade que cada ser tem de se metamorfosear. A ideia de que um ser pode sequer se metamorfosear em outro vem de um tempo em que as formas dos seres vivos e das coisas ainda não estavam definidas. (Tawada 1998Tawada, Yoko. Verwandlungen. Tübinger Poetik-Vorlesung. Tübingen: Konkursbuchverlag, 1998.: 54) 10 10 In Ovids `Metamorphosen` wird im ersten Kapitel auf eine Weise von der Entstehung der Welt erzählt, die gleichzeitig eine Erklärung für die Verwandelbarkeit der Einzelnen Wesen ist. Die Vorstellung, dass ein Wesen sich überhaupt in ein anderes verwandeln kann, stammt aus der Erinnerung an die Zeit, in der die Gestalten der Lebewesen und der Dinge noch nicht bestimmt waren. NT. Nota-se que Tawada utiliza o termo “Kapitel” (capítulo) para se referir ao que seria o primeiro “Livro” (Buch) das Metamorfoses de Ovídio.

É possível identificar diversas formas de metamorfose no âmbito de Ópio para Ovídio, como em Latona e a transformação de seu próprio corpo:

Eines Tages wacht Latona mit dem Gefühl auf, sie hätte verschlafen. Sie hat zu lange hinter einer Nacht verweilt, und zwar mehr als nur zwei, drei oder fünf Stunden zu lange. Es kommt ihr vor, als hätte sie über mehrere Jahreszeiten hinweggeschlafen. Sie blickt in den Spiegel und sieht ein schmales Gesicht, mit Schnee gewaschen, die Fettschicht hat sich von der Haut gelöst, zarte Linien liegen um die Augen und auf der Stirn, die Mundöffnung ist dunkler geworden, die Augen feuchter, neue Haare sind dicht gewachsen, sie glänzen silbern. (Tawada 2011: 45) Um dia Latona acorda com a sensação de que teria dormido demais. Ela permaneceu tempo demais por trás de uma noite, aliás, mais do que apenas duas, três ou cinco horas a mais. Tem a impressão de ter dormido por várias estações do ano afora. Olha no espelho e vê um rosto estreito, lavado com neve, a camada de gordura se descolou da pele, linhas suaves estão ao redor dos olhos e na testa, a abertura da boca se tornou mais escura, os olhos mais úmidos, novos cabelos cresceram abundantes, eles brilham prateados.

Outra espécie de metamorfose está ligada à coisificação de pessoas e à humanização de coisas e de animais. Em Coronis, o processo de transformação se dá no âmbito da perspectiva do observador em relação às coisas. Os objetos cotidianos são encarados de modo distinto do usual devido ao estado entorpecido da narradora. Eles podem adquirir características humanas como uma barriga ou o sentimento de tranquilidade:

Im Rauschzustand entdecke ich eine seltsame Geste der Alltagsgegenstände, sie tun so, als wären sienicht sie selbst, als wären sie nur Gefäße für etwas anderes. Meine Geldbörse hat Münzen in ihrem Bauch, der Körper meines alten Füllers ist voller Tinte, meine blaue Teetasse hält die dunkle Flüssigkeit ruhig und auch das Fenster ist die vordere Seite eines Aquariums. Ich sehe eine Wasserlandschaft darin. Draußen regnet es. Was befindet sich in dem Gefäß namens „Eiche"? (Tawada 2011: 79) No estado de torpor, descubro um gesto estranho dos objetos cotidianos, eles agem como se não fossem eles mesmos, como se fossem apenas recipientes para outra coisa. Minha carteira tem moedas em sua barriga, o corpo da minha velha caneta tinteiro está cheio de tinta, minha xícara azul de chá comporta tranquila o líquido escuro e também a janela é o lado da frente de um aquário. Vejo uma paisagem de água ali dentro. Lá fora chove. O que se encontra no recipiente chamado “carvalho”?

Além da humanização de objetos, é possível identificar em Ópio para Ovídio a atribuição de características humanas a animais, e, em especial, aos pássaros. Antes de apresentarmos exemplos de como isso ocorre, recorremos novamente ao livro Verwandlungen (Metamorfoses), em que Tawada discorre no capítulo intitulado Stimme eines Vogels (voz de um pássaro), sobre a expressão “Bei dem piept es”, que significa que alguém está maluco, enlouqueceu. O significado literal de piepen é “piar”, ou seja, literalmente a frase significa “pia em alguém”. Conforme descreve Tawada: há uma expressão interessante em alemão: „Bei dem piept es”. Uma voz, provavelmente de um pássaro, fala e a forma de pensar de uma pessoa, na qual “pia”, é influenciada pela voz.” (Tawada 1998: 12)11 11 Es gibt eine interessante Redewendung im Deutschen: „Bei dem piept es”. Eine Stimme, wahrscheinlich die eines Vogels, spricht dann, und die Denkweise einer Person, bei der „es piept”, wird von der Stimme beeinflußt.

Em Coronis, o marido da protagonista desenha um pássaro que lhe conta segredos sobre sua mulher:

Der Stripzeichner zündet sich eine Zigarette an, nimmt einen Papierfetzen in die Hand und zeichnet einfach einen weißen Vogel. Manchmal muss er zwischendurch kleine Figuren zeichnen, wie man eine Notiz macht, weiß aber selber nicht, was er damit notieren will. Er schlägt den Vogel mit einem Pinsel, die Federn werden braun befleckt. Der Vogel zwitschert, deine Frau braucht keinen Mann, um verliebt zu sein. Dann flattert er und versucht, vom Papier wegzufliegen. Der Stripzeichner könnte ihm einen Käfig zeichnen, aber es ist besser, wenn er wegfliegt. Sonst könnte der geschwätzige Vogel noch mehr ärgerliche Dinge über seine Frau erzählen. (Tawada 2011: 88) O cartunista acende um cigarro, pega um pedaço de papel na mão e desenha simplesmente um pássaro branco. Às vezes, entre uma coisa e outra, precisa desenhar pequenas figuras, como se faz uma anotação, mas nem ele mesmo sabe o que quer anotar com aquilo. Acerta o pássaro com um pincel, as penas são manchadas de marrom. O pássaro gorjeia, tua mulher não precisa de um homem para estar apaixonada. Então esvoaça e tenta voar para fora do papel. O cartunista poderia lhe desenhar uma gaiola, mas é melhor que saia voando. Senão, o pássaro linguarudo poderia contar ainda mais coisas irritantes sobre sua mulher.

As referências aos pássaros aparecem em Ópio para Ovídio também em relação à personagem Leda. Nas Metamorfoses de Ovídio, Zeus tenta seduzi-la transformado em cisne. No Livro do Travesseiro de Tawada, Leda dá título a um dos textos. Além disso, a personagem aparece em Coronis, onde seu nome vem à tona em razão de sua morte, sendo descrita como uma mulher semiparalisada. Em Latona, não há menção a seu nome, mas ao bater de asas enquanto uma mulher se banha:

Latona kannte vor zwanzig Jahren einige Frauen in Ottensen, die zu Hause keine Badewanne hatten. Zum Baden kamen sie zu ihr. Eine dieser Frauen kam regelmäßig am ersten Tag des Monats zu Latona um zu baden. Latona konnte sich schon damals nicht mehr erinnern, woher sie sie kannte (...). Die Arme hingen kraftlos herab, wie gelähmt. Nur die Fingernägel wirkten kräftig, sie waren scharf gewetzt und blutrot gemalt. Die Frau redete nicht viel. Aber wenn sie im Badezimmer verschwand, hörte Latona kurz darauf heftiges Flügelschlagen. (Tawada 2011: 43) Latona conheceu há vinte anos algumas mulheres no Ottensen que não tinham banheira em casa. Elas vinham à sua casa para o banho. Uma dessas mulheres vinha regularmente no primeiro dia do mês à casa de Latona para tomar banho. Latona não conseguia se lembrar já naquela época de onde a conhecia (...). Os braços pendiam sem força para baixo, como que paralisados. Somente as unhas agiam vigorosas, eram afiadas pontiagudas e pintadas de vermelho-sangue. A mulher não falava muito. Mas quando desaparecia no banheiro, Latona ouvia, pouco depois, um forte bater de asas.

Como buscamos demonstrar, a possibilidade de diálogo com os mitos é bem-vinda no espaço deste texto de Yoko Tawada. Ela se inspira na estética das Metamorfoses de Ovídio e no ideário asiático sobre a concepção do estado de constante transformação dos seres, para escrever o que chama de “experimento”. Segundo Geisel (2001):

Em japonês, como se sabe, não há um pronome específico para «eu» e também o conceito de «identidade» surge possivelmente do jargão da psiquiatria. A concepção budista do renascimento não conhece um Eu fechado em si, mas sim uma interminável sequência de transformações, inclusive para além dos limites de gênero literário. Na Europa marcadamente cristã, ao contrário, cada pessoa é um ser único, cuja existência tem um começo e, nos ensinamentos sagrados, um objetivo. [...] «Eu só poderia ter escrito esse livro [Ópio para Ovídio] em alemão. Em japonês esse experimento não teria tido sentido» (Geisel 2001) 12 12 „Im Japanischen gibt es bekanntlich kein selbständiges Pronomen für «ich», auch der Begriff «Identität» taucht allenfalls im psychiatrischen Fachjargon auf. Die buddhistische Vorstellung der Wiedergeburt kennt kein in sich geschlossenes Ich, sondern eine endlose Abfolge von Verwandlungen, auch über Gattungsgrenzen hinweg. Im christlich geprägten Europa dagegen ist jeder Mensch ein einmaliges Wesen, dessen Existenz einen Anfang und, in der Heilslehre, ein Ziel hat. [...] Im Japanischen hätte ein solches Experiment keinen Sinn gehabt.»

Um dos elementos através dos quais Yoko Tawada concretiza esse experimento é a ironia. A autora ironiza a necessidade europeia de buscar uma identidade formadora de cada indivíduo, imutável e, muitas vezes, indissociável de seu caráter nacional. Também são ironizadas a visão eurocêntrica de mundo ou uma ótica ocidental construtora de um determinado “Oriente”. Em Latona, os cursos de Budismo de fim de semana coexistem com a percepção da origem do Budismo Tibetano como consequência da reunificação alemã:

In der Zeitung lese ich, dass der Tibetanische Buddhismus eine Folge der deutschen Wiedervereinigung sei. Als sich die Grenzen des Westens plötzlich viel weiter nach Osten verschob, entpuppte sich China als ein verdächtiger Nachbar. Diejenigen, die sich in ihren politischen Aktivitäten bisher immer mit den Opfern des zweiten Weltkrieges identifiziert hatten, schlüpften jetzt in die Gestalt der Tibetaner. Sie sagten: In der Peking-Oper wurde immer eine Maske getragen, auf die wir unsere Hoffnungen malten, die nackten Gesichter der Tibetaner sind uns doch lieber, wir werden sie retten. (Tawada 2011: 41) No jornal leio que o Budismo Tibetano seria uma consequência da reunificação alemã. Quando, de repente, a fronteira do Ocidente se deslocou muito além para o Oriente, a China se revelou um vizinho suspeito. Aqueles que até aqui haviam se identificado em suas atividades políticas com as vítimas da Segunda Guerra Mundial se enfiavam, agora, na figura dos tibetanos. Diziam: na Ópera de Pequim sempre foi usada uma máscara, na qual pintávamos nossas esperanças, mas preferimos os rostos nus dos tibetanos, nós os salvaremos.

Na passagem transcrita acima, é possível observar a tensão de ordem nacional entre a China e o Tibete. Os rostos nus dos tibetanos aparecem em contraposição às máscaras usadas na Ópera de Pequim, a manifestação teatral originalmente chinesa que envolve acrobacia, música, dança, mímica e artes marciais.

A máscara também pode se constituir numa expressão do rosto com a qual buscamos algo de conhecido. A máscara colocada na fisionomia alheia parece colaborar com a necessidade de se atribuir um caráter minimamente reconhecível ao estranho, já que concebemos o Outro a partir de nossos modelos de significação.

Yoko Tawada mostra em Ópio para Ovídio diferentes significações atribuídas a um mesmo objeto, personagem ou acontecimento. Seja pelo torpor, pelas transformações e metamorfoses ou pela criação autoral, pelas perspectivas da realidade de seu mundo ficcional ou, ainda, pela tensão entre o nacional e o estrangeiro, a escritora aponta para as camadas que constituem um sujeito híbrido, constituído também pelas expectativas alheias:

As expectativas dos observadores produzem máscaras e elas crescem para dentro da carne dos estrangeiros. Assim, os olhares dos outros são continuamente inscritos no próprio rosto. Um rosto pode adquirir muitas camadas. Talvez seja possível folhear um rosto como uma narrativa de viagem. (Tawada 1998Tawada, Yoko. Verwandlungen. Tübinger Poetik-Vorlesung. Tübingen: Konkursbuchverlag, 1998.: 53) 13 13 Die Erwartungen der Betrachter erzeugen Masken, und die wachsen ins Fleisch der Fremden hinein. So werden stets die Blicke der anderen ins eigene Gesicht eingeschrieben. Ein Gesicht kann mehrere Schichten erhalten. Vielleicht kann man ein Gesicht wie einen Reisebericht umblättern.

Ao final do texto Coronis, é descrito um sonho em que a questão nacional, uma dessas muitas camadas, vem à tona:

Ein Traum, in dem einige Singvögel als Nationalspeise bestimmt werden. Es ist unklar, wer zu welcher Nation gehört, und es gilt als peinlich, danach zu fragen. Eine angebrannte Faust mit etwas Grünzeug auf meinem Teller. Die Speise wird hier schon vor der Geburt des Gastes bestellt. Der Teller singt seine Nationalhymne, kaltes Besteck klappert neben ihm. Ein Kommentar springt aus dem Stammtisch: „Arme Menschen essen alles, was sie finden. Aber wir essen nichts, was singt und fliegt." Von der sonnigen Fensterseite behauptet jemand: „Vogelfleisch ist gesund. "Von der kritischen Kellerseite drängt die Meinung: „Wir zünden die Flagge der barbarischen Nation an, denn sie fressen immer noch wie im letzten Jahrhundert Fleisch. Im Notfall müsste man sie wirtschaftlich erwürgen." Mein Gesicht konnte in dieser Gesprächsrunde keine Stellung nehmen. Bald verschwanden die Sprachen der anderen. In meinem Mund blieb nur noch ein verkohlter winziger Flügel übrig. (Tawada 2011: 92) Um sonho no qual algumas aves canoras são definidas como prato nacional. Não é claro quem pertence a qual nação e é tido como constrangedor perguntar sobre isso. Um punho estorricado com um pouco de algo verde em meu prato. A refeição é pedida aqui já antes do nascimento do convidado. O prato canta seu hino nacional, talheres frios estalam perto dele. Um comentário salta da mesa dos habitués: “Pessoas pobres comem tudo o que encontram. Mas nós não comemos nada que cante e voe.” Do lado ensolarado da janela alguém afirma: “Carne de ave é saudável.” Do lado crítico do porão a opinião insurge: “Nós queimamos a bandeira da nação bárbara, pois eles ainda devoram, como no século passado, carne. Em caso de emergência, deveríamos estrangulá-los economicamente.” Meu rosto não conseguiu tomar uma posição nessa roda de conversa. Logo desapareceram os idiomas dos outros. Na minha boca, restou somente uma minúscula asa carbonizada.

A ideia de nação é ironizada e exposta nessa refeição não compartilhada, fragmentada em diferentes delimitações como as de caráter nacional. As opiniões partem de lados distintos do restaurante, de modo que a divergência das ideias é ressaltada no início das frases com as diferentes posições dos falantes.

Ainda com relação ao trecho acima, destacamos que a tradução de Sprache por “língua” poderia ser entendida como a parte do corpo, podendo causar uma dubiedade não presente no texto de partida. Nesse sentido, levamos em conta que no ambiente de um sonho envolvendo questões de ordem nacional, “idioma” seria pertinente por apresentar a dimensão da língua própria de um povo, de uma nação.

Os limites impostos para a formação de uma personalidade imutável, como o critério nacional ou de origem não condizem com a perspectiva de transformação contínua das protagonistas de Ópio para Ovídio. Nenhuma delas apresenta uma identidade óbvia, por assim dizer, e expõem um constante deslocamento do olhar, como na seguinte passagem de Latona:

„ „Ist es nicht wunderbar, dass der Opiumkrieg endlich zu Ende geht?”, schrieb diese Freundin, die nach Peking übersiedelt war. „Viele meinen, dass er schon seit hundert Jahren vorbei sei, aber das stimmt meiner Meinung nach nicht. Jetzt erst ist dieser Krieg zu Ende. Jetzt ist Tibet der Rausch, das Industrieland China muss nicht mehr die Rolle des Opiumrauchers spielen.“ Latona schüttelt den Kopf. Wie kann diese Frau auf der anderen Seite der Erde allein leben? Dort stehen sie alle auf dem Kopf und es regnet aus der Erde. (Tawada 2011: 45) “Não é maravilhoso que a Guerra do Ópio finalmente chegue ao fim?”, escreveu essa amiga que havia se mudado para Pequim. “Muitos acham que ela já acabou há séculos, mas, na minha opinião, isso não é correto. Somente agora essa guerra chega ao fim. Agora o Tibete é o torpor, o país industrial China não precisa mais fazer o papel do fumador de ópio. Latona balança a cabeça. Como essa mulher consegue morar sozinha do outro lado da Terra? Lá estão todos de ponta-cabeça e chove da Terra.

No decorrer da narração, diferentes perspectivas são expostas e invertidas, de modo que os modelos de significação com os quais se interpreta o mundo são sempre passíveis de mudança. A questão da autoria também é tratada de modo difuso e com caráter fragmentário. O ópio parece ser um indício de que as representações com caráter fixo podem ser deturpadas. A droga age, assim, como uma espécie de água asiática no corpo da Literatura Ocidental, metamorfoseada em algo que não comporta os clichês do orientalismo ou a construção identitária isenta de transformações. Essas transformações são representadas materialmente, como na própria escrita de Coronis:

„ Ich bewundere ihre Literatur seit zehn Jahren. Ihre Sätze haben etwas Rauschhaftes." Ich hatte mit „rauschhaft"eigentlich ein konkretes Rauschmittel gemeint, das in Coronis' Sätzen materiell zu spüren ist. Aber so direkt wollte ich das nicht sagen. (Tawada 2011: 89) Admiro sua literatura há dez anos. Suas frases têm algo de entorpecedor. Eu tinha me referido com “entorpecedor”, na verdade, a uma substância entorpecente concreta, que pode ser materialmente sentida nas frases de Coronis. Mas não quis dizer isso assim tão diretamente.

As transformações são, assim, concretizadas fisicamente na própria matéria dos seres e discursivamente através da língua. Nesse sentido, é pertinente ressaltar a dimensão material de uma linguagem e, portanto, do discurso. Cada letra pode ser materialmente sentida, assim como a dimensão física da transformação da autora pela água tomada no decorrer de sua viagem pela Transiberiana. A metamorfose ressalta a dimensão material do ser e acaba por (de)formar sua personalidade, mais propensa ao vir a ser, ao transmudar-se.

No que se refere a Coronis, a personagem emigrou e, onde reside, é constantemente perguntada pela origem e observada pelas pessoas, como se houvesse algo de estranho nela, algo de diferente dos demais e que pudesse despertar a atenção dos outros. A palavra fremdländisch, cuja tradução será discutida posteriormente, aparece na descrição desta situação no trecho abaixo:

Coronis wird oft von Passanten betrachtet. Die Augen der Dorfbewohner starren sie an. Die Augen der Großstädter starren sie ebenso an: in Straßenbahnen, in Restaurants, in Kaufhäusern. Das ist insofern rätselhaft, als es bei ihr nichts Auffälliges gibt, was man als fremdländisch empfinden könnte. (Tawada 2011: 90) Coronis é frequentemente observada por passantes. Os olhos dos moradores do vilarejo fitavam-na. Os olhos dos da cidade grande fitavam-na da mesma forma: nos bondes, nos restaurantes, nas lojas de departamento. Isso é tão mais enigmático, pois nela não há nada que chame atenção, algo que se possa sentir como alheio ao lugar.

Fremdländisch pode qualificar aquele que se origina de um outro país ou cultura. A palavra pode apresentar, ainda, a acepção de “exótico” ou “estranho”. Fremd traz, por si só, a conotação de estrangeiro e fremdländisch parece ressaltar a perspectiva do não pertencimento a determinado país. Por isso, optamos por desdobrar a palavra em “alheio ao lugar”, considerando a acepção de fremd como alheio. Ainda nesse campo semântico, é possível notar no trecho abaixo que a palavra ausländisch aparece no contexto de uma língua estrangeira, que, em princípio, ninguém no vagão do metrô poderia compreender:

Das immer lauter werdende Gespräch findet in einer ausländischen Sprache statt, keiner wird sie verstehen. Zufällig ist es aber die Sprache, die Coronis' Mutter gesprochen hat. (Tawada 2011: 80) A conversa que aumentava cada vez mais de volume acontece numa língua outra, ninguém a compreenderá. Mas, por coincidência, é a língua que a mãe de Coronis falava.

A questão que se levanta quanto à tradução de ausländische Sprache seria a diferença em relação a Fremdsprache, esta última traduzida comumente como “língua estrangeira”. Com a finalidade de enfatizar a escolha da autora por uma palavra diferente de Fremdsprache, a alternativa escolhida foi traduzir ausländische Sprache como “língua outra”. A opção “outra língua” também foi considerada, no entanto, essa colocação poderia sugerir que os falantes passaram a se comunicar entre si em uma língua diferente daquela em que começaram a conversa.

Traduzir ausländische Sprache como uma “língua outra” permite contemplar uma gama de significados voltados à estrangeiridade, que ao longo do texto se desdobra em palavras como “estrangeiro” e “alheio”. Ainda no que se refere à passagem acima, mais um aspecto a ser destacado é o fato de que essa língua estrangeira não é estranha para Coronis, pois é a língua de sua mãe, mas tampouco é nomeada como sua língua materna.

O contato com o estrangeiro se dá, em grande medida, pelo deslocamento das pessoas, de modo que as viagens têm papel fundamental nesse encontro com o Outro e na respectiva atribuição de significados ao desconhecido para tentar decifrá-lo. A personagem Coronis emigrou e, ao chegar no país para o qual se mudou, vagava pela cidade, morando com conhecidos e em busca de trabalho. No trecho abaixo, é possível identificar a estranheza por parte das pessoas e, também, o incômodo gerado nela ao ser perguntada pela origem:

„Wo kommen Sie her?", fragen alle jungen Gemüsehändler, wenn sie Coronis sehen. Die Vorfahren dieser Männer stammen aus einem anderen Land. Coronis versucht zu lächeln. Es ist etwas Natürliches, wenn junge Menschen solche Fragen stellen. Natürlichkeiten können Coronis aber nervös machen.Wo kommen Sie her?", wiederholen die Männer ihre Frage, als hätten sie ein Recht, das zu erfahren. Man darf natürlich nicht jedem Kunden diese Frage stellen, einen einheimischen Mann zum Beispiel darf man nicht einfach fragen, wo er geboren wurde. Aber eine Frau, die sich noch nicht definiert hat, darf man alles fragen. Coronis versucht wie andere Frauen, diese Belästigung in eine Anerkennung ihrer Anziehungskraft umzudeuten. Bei manchen Menschen ist die Frage nach der Herkunft die einzige erotische Frage, die sie noch in der Öffentlichkeit stellen dürfen. Eines Tages erzählt Coronis der Leiterin des Kulturzentrums bei einer Tasse Kaffee von diesem Problem, das sie im Alltag belastet. „Ich möchte Tomaten kaufen dürfen, ohne nach der Herkunft gefragt zu werden." Die Leiterin fühlt sich angegriffen.„Warum darf man Ihnen keine Fragen stellen? Ich glaube, das ist eine gesunde Neugierde."Coronis schweigt. In einer Demokratie ist es ein Tabu, jemandem Fragen zu verbieten. (Tawada 2011: 90) “De onde a senhora vem?”, perguntam todos os jovens vendedores de legumes, quando veem Coronis. Os ancestrais desses homens provêm de um outro país. Coronis tenta sorrir. É algo natural quando pessoas jovens fazem tais perguntas. Mas naturalidades podem deixar Coronis nervosa. “De onde a senhora vem?”, os homens repetem sua pergunta, como se tivessem algum direito de saber disso. Não se pode naturalmente fazer essa pergunta para qualquer cliente, para um homem nativo, por exemplo, não se pode simplesmente perguntar onde ele nasceu. Mas para uma mulher que ainda não se definiu, se pode perguntar tudo. Coronis tenta, como outras mulheres, ressignificar esse assédio em um reconhecimento do seu poder de atração. Para algumas pessoas a pergunta sobre a origem é a única pergunta erótica que ainda podem fazer em público. Um dia, Coronis conta à diretora do centro cultural durante uma xícara de café sobre este problema que a atormenta no cotidiano. “Eu gostaria de poder comprar tomates sem ser perguntada pela origem.” A diretora sentiu-se atingida. “Por que não se pode lhe fazer perguntas? Acho isso uma curiosidade saudável.” Coronis silencia. Numa democracia é um tabu proibir perguntas a alguém.

Como dito anteriormente, essa passagem expressa o desconforto da personagem em relação à insistente pergunta sobre sua origem, assim como a crítica em relação à “naturalidade” que assumem essas perguntas a determinadas mulheres. Tal questionamento ressalta a diferenciação estabelecida entre os que pertencem a um determinado país e os de fora dele. É explícita no texto a contraposição entre certo caráter nacional definido e o que é alheio a essa experiência coletiva de pertencimento nacional. A personagem está na categoria de “estranha” a esse pertencimento em contraponto à diretora que, talvez por jamais ter sido perguntada pela origem, acha saudável tal curiosidade.

No excerto acima, percebemos que, para Coronis, os cidadãos locais (Einheimische) do país para o qual se mudou são considerados os “outros” e o modo como ela os nomeia explicita um tipo de visão com a qual o marido, um cidadão local, se surpreende e se incomoda. Abaixo está transcrito um dos momentos da narrativa em que essa visão é explicitada:

Nach der Emigration heiratete Coronis einen Einheimischen. Schon mehrmals sagte er, sie solle nicht das Wort „Einheimische" benutzen, es höre sich an, als spräche eine Ethnologin von den Wilden. (Tawada 2011: 87) Depois de sua emigração Coronis se casou com um nativo. Já várias vezes ele disse que ela não deveria usar a palavra “nativo”, isso soava como se uma etnóloga falasse dos selvagens.

A palavra Einheimische causa certo estranhamento nas primeiras ocorrências do texto, até que o marido de Coronis compartilha, por assim dizer, desse efeito causado pelo uso da palavra. A conotação de Einheimische, segundo a perspectiva do marido, está vinculada aos selvagens, uma categoria da qual ele naturalmente não faz parte.

Diante disso, algumas possibilidades de tradução como “local” ou “natural do lugar” não explicitariam o tom irônico presente no texto de partida. A alternativa “nativo”, por sua vez, pode expressar de modo mais contundente o distanciamento entre o Eu e o Outro, desvelando uma lógica inversa a certa visão já naturalizada por grupos que exercem algum tipo de dominação ou suposta supremacia, de modo que se veem, eles mesmos, colocados na posição de estranhos e alheios perante esses outros olhos.

O deslocamento do olhar em direção à alteridade pode acontecer por diversos caminhos. Acreditamos que um deles, o que motivou nossa pesquisa, é a obra de escritores e escritoras com uma bagagem linguístico-cultural múltipla, que escrevem em uma língua estrangeira e mostram uma face profícua da permeabilidade das fronteiras. Esperamos ter demonstrado que o estudo sobre Yoko Tawada e sobre Ópio para Ovídio: um Livro do Travesseiro de 22 mulheres está intimamente ligado ao exercício tradutório. Sendo assim, consideramos que a pesquisa e a tradução se explicam mutuamente, num movimento em busca da simplicidade do texto, de sua fragmentação e ironia, da lida com suas máscaras num universo ficcional onde o trivial é o vir a ser.

Referências bibliográficas

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  • 2
    Este artigo apresenta alguns dos pontos abordados na dissertação de mestrado da mesma autora (Vale, 2017) realizada na Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Letras Modernas (Alemão).
  • 3
    As traduções contidas neste artigo foram feitas por mim, salvo as citações que não constam na língua de origem em nota. Nesse caso, o tradutor ou a tradutora constará nas referências bibliográficas. Texto original: Das war für mich etwas Besonderes, diese sehr langsame Fahrt nach Europa gemacht zu haben; nicht wie die meisten Besucher oder Touristen, die sofort ankommen und nur mit Augen die fremde Kultur wie eine Landschaft wahrnehmen, sondern dass man in der Fahrt sich selbst langsam verändert (…) Ich habe zum Beispiel geschrieben, dass der Mensch zu 80 Prozent aus Wasser besteht, das heißt, wenn ich während dieser Fahrt, immer fremdes Wasser trinke, ein europäisches Wasser oder ein Wasser, das jeden Tag europäischer wird, dann werde ich ja selbst anders wenn ich ankomme.
  • 4
    Sonst heißt fremd bleiben ja oft, jemand hat es nicht geschafft, sich zu integrieren. Das meine ich nicht. Fremd sein ist eine Kunst. (...) Fremd sein braucht der Autor immer, auch im eigenen Land, dass man nicht ein blinder Teil von einem Ganzen ist, dass man Distanz hat, dass man nicht einverstanden sein kann oder selbstverständlich empfindet, dass man immer denken kann, es könnte anders sein, das ist fremd sein. (…) Ich konnte nur deshalb eine neue Sprache und eine neue Kultur als Erwachsene lernen, weil ich versucht habe, fremd zu sein. Es geht darum, eine Sprache zu finden, die die Differenzen beschreiben kann und zwar nicht nur die zwischen Kulturen, sondern auch die innerhalb von einer Kultur und innerhalb von einem Kopf. Auch die eigene Sache verwandelt sich, zwei Sachen gehen ineinander und vermischen sich, und zwar nicht unbedingt aus zwei Kulturen, sondern auch manchmal aus einer einzigen unmöglichen oder wunderbaren Verhaltensweise, die von zwei Menschen ganz anders wahrgenommen wird (…) Jeder muss seine Fremdheit finden, entdecken, wir müssen fremd sein, sonst gibt es keine Integration in einer Gesellschaft, wo viele verschiedene Menschen leben.
  • 5
    Wieviel Eigenes, wie viel Fremdes braucht der Mensch? Wir hören heute nicht nur die Stimmen postmoderner Autoren, die eine neue Epoche der Transkulturalität ausrufen, in der eine globale Durchmischung der Rassen, Kulturen, Medien und Lebensformen herrscht und in der es `kein strikt Fremdes und kein strikt Eigenes mehr gibt (Welsch 1994)`.Wir hören auch die Stimmen der Fundamentalisten . Und hören die Stimmen postkolonialer Autoren, die sich nach einer langen Geschichte der Unterdrückung und Vernichtung auf die Suche nach ihren eigenen Kulturen begeben und die Erfindung eigener Traditionen machen. Unsere Welt nimmt weiterhin an Homogenisierung wie an Differenzierung zu: Grenzen werden permanent durchlässig und abgebaut, aber woanders auch neu aufgerichtet.
  • 6
    Je mehr sich das kontrollierende Bewusstsein eines Menschen auflöst und die Fassade seiner Selbst-Inzenierung brüchig wird, desto mehr Raum wird geschaffen für die Erfahrung von Alterität und Nicht-Identität.
  • 7
    Eine literarische Übersetzung muß obsessiv der Wörtlichkeit nachgehen, bis die Sprache der Übersetzung die konventionelle Ästhetik sprengt. Eine literarische Übersetzung muß von der Unübersetzbarkeit ausgehen und mit ihr umgehen, statt sie zu beseitigen. Es ist einfach, eine Übersetzung zu kritisieren. Besonders bei modernen Gedichten sprechen gebildete und eingebildete Leser gerne über die die mangelhaft Leistung der Übersetzer. Dabei wird oft übersehen, wie wie die Übersetzung mit der Unübersetzbarkeit umgeht. Eine interessante Verschiebung, eine erfrischende Entstellung oder eine wahnhafte Verrückung in die eigene Sprache ist doch eher eine Leistung der Übersetzung. Andererseits ist es genauso einfach, eine Übersetzung zu loben. Triviale Münder loben sie, wenn die Sprache der Übersetzung natürlich klingt. Die Übersetzung lasse den Leser vergessen, daß eine Übersetzung sei. Dieses Lob zeugt von einer verdrehten Logik. Man sagt doch auch nicht: Diese Literatur ist gut, weil man fast vergißt, daß es Literatur ist. Für mich besteht der Reiz einer Übersetzung darin, daß sie den Leser die Existenz einer ganz anderen Sprache spüren läßt. Die Sprache der Übersetzung tastet die Oberfläche des Textes vorsichtig ab, ohne sich von seinem Kern abhängig zu machen.
  • 8
    Schreiben heißt zunächst, Buchstaben zu setzen und damit alphabetische Körper in die Welt zu setzen, ohne an ihre unbeschränkte Verwandlungsfähigkeit zu denken.
  • 9
    Das Modewort „Identitätsverlust” hat den Begriff der Verwandlung in die Ecke verdrängt. Die Verwandlung ist aber seit der Antike - sei es der griechischen oder der chinesischen - eines der wichtigen Motive der Literatur.
  • 10
    In Ovids `Metamorphosen` wird im ersten Kapitel auf eine Weise von der Entstehung der Welt erzählt, die gleichzeitig eine Erklärung für die Verwandelbarkeit der Einzelnen Wesen ist. Die Vorstellung, dass ein Wesen sich überhaupt in ein anderes verwandeln kann, stammt aus der Erinnerung an die Zeit, in der die Gestalten der Lebewesen und der Dinge noch nicht bestimmt waren. NT. Nota-se que Tawada utiliza o termo “Kapitel” (capítulo) para se referir ao que seria o primeiro “Livro” (Buch) das Metamorfoses de Ovídio.
  • 11
    Es gibt eine interessante Redewendung im Deutschen: „Bei dem piept es”. Eine Stimme, wahrscheinlich die eines Vogels, spricht dann, und die Denkweise einer Person, bei der „es piept”, wird von der Stimme beeinflußt.
  • 12
    „Im Japanischen gibt es bekanntlich kein selbständiges Pronomen für «ich», auch der Begriff «Identität» taucht allenfalls im psychiatrischen Fachjargon auf. Die buddhistische Vorstellung der Wiedergeburt kennt kein in sich geschlossenes Ich, sondern eine endlose Abfolge von Verwandlungen, auch über Gattungsgrenzen hinweg. Im christlich geprägten Europa dagegen ist jeder Mensch ein einmaliges Wesen, dessen Existenz einen Anfang und, in der Heilslehre, ein Ziel hat. [...] Im Japanischen hätte ein solches Experiment keinen Sinn gehabt.»
  • 13
    Die Erwartungen der Betrachter erzeugen Masken, und die wachsen ins Fleisch der Fremden hinein. So werden stets die Blicke der anderen ins eigene Gesicht eingeschrieben. Ein Gesicht kann mehrere Schichten erhalten. Vielleicht kann man ein Gesicht wie einen Reisebericht umblättern.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Mar 2018
  • Aceito
    12 Jun 2018
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