Acessibilidade / Reportar erro

Fritz Kalmar: memórias reconstruídas e identidade da Áustria imperial nos Andes bolivianos

Fritz Kalmar: Imperial Austria’s reconstructed memories and identity in the Bolivian Andes

Resumo

Este artigo propõe-se a analisar a trajetória do escritor austríaco Fritz Kalmar e seu conto “Der Austrospinner” (“O austro-louco”), incluído na antologia Das Herz europaschwer, de 1997, à luz das identidades surgidas no contexto da emancipação e da assimilação judaicas na Áustria. Georg von Winternitz, protagonista desta narrativa, encarna, em seu exílio boliviano, os fundamentos de uma identidade austríaca cultivada na velha Monarquia Habsburga, legatária do Sacro Império Romano Germânico, e organiza sua existência no novo país de acordo com valores éticos e com princípios católicos, humanistas e universalistas, cultivados, sobretudo, por literatos austríacos do fim do século XIX e do início do século XX, que se dedicaram à construção da identidade imperial austríaca. Esse sistema de valores, particularmente caro aos judeus austríacos da época do Kaiser Franz Josef, revela uma surpreendente sobrevida nos Andes bolivianos depois de 1938. Ao adotar um menino indígena que está em vias de tornar-se um ladrão, esse personagem não só pretende educá-lo como, sobretudo, pretende fazer dele “um austríaco”, o que significa, para o personagem, nele instilar um sistema de valores vinculado à extinta Áustria imperial. A discussão sobre esse conceito, “o austríaco”, presente na literatura austríaca do século XIX e do início do século XX, é trazida à tona para tentar compreender o que se encontra por trás deste projeto. Para além dessa questão surge, ao longo da narrativa, uma alusão ao fato de que tanto o narrador quanto o protagonista da narrativa são descendentes de judeus que também “se tornaram” austríacos. “Tornar-se austríaco”, assim, e com isto o conceito de gelernter Österreicher, temas inextricavelmente ligados ao processo de emancipação e assimilação judaica na Áustria do século XIX, são questões que ressurgem, de forma distópica e anacrônica, na Bolívia dos anos 1950, na trajetória de Kalmar tanto quanto na de seu personagem.

Palavras-Chave:
Literatura austríaca; literatura judaica; identidade, Império Austro-húngaro; memória

Abstract

This article analyzes Fritz Kalmar’s biography and his short story “Der Austrospinner” in the light of the identities created during the decades of Jewish emancipation in Austria. In his Bolivian exile, Georg von Winternitz, the narrative’s protagonist, embodies the fundamental values of an Austrian identity that was conceived during the final years of the Habsburg Monarchy, heir of the Holy Roman Empire, and that was particularly dear to Austrian Jews since the times of Kaiser Franz Josef. After his exile, von Winternitz organizes his existence in the new country according to this Empire’s system of values. When he adopts an indigenous boy who is about to become a thief, he not only intends to educate him but also intends to turn him into “an Austrian”, which, for him, means instilling in him a system of values belonging to the defunct Austro-Hungarian Empire. The discussion about the meaning of “Austrian” is brought to light, in an attempt to understand von Winternitz’s ideals and projects. Both the narrative’s protagonist and the narrator descend from Jews who also “became” Austrian, and “becoming Austrian” is a fundamental concept both in Kalmar’s personal history and in his books.

Key Words:
Austrian Literature; Jewish Literature; Identity; Austro-Hungarian Empire; Memory

Identidades austríacas e o exílio judaico

Fritz Kalmar nasceu em Viena em 1911, filho de Max Kalmar e Ottilie, nascida Rosenfeld. Os Kalmar eram uma família de judeus assimilados que viviam no IX. distrito de Viena e que, como tantas outras famílias que tinham migrado para a capital vindo das províncias austríacas, tinham deixado para trás os guetos, seus vínculos com a ortodoxia judaica e, sobretudo, as esperanças messiânicas de um retorno milagroso à terra da promissão bíblica, acalentadas nos guetos europeus por séculos a fio, integrando-se à vida austríaca e à deste bairro burguês da Capital do Império Austro-húngaro. Para a geração dos pais e dos avós de Fritz Kalmar, a emancipação dos judeus significara, de certa forma, a promessa de ingresso numa espécie de nova Terra Prometida: aquela da modernidade burguesa sob a égide do Kaiser Franz Josef, que fizera dos judeus do Império habsburgo mais um dos “seus” povos, e onde se anunciava um novo tipo de condição judaica em terras europeias, determinada pelas ideias humanistas e iluministas surgidas na Europa já a partir do fim do século XVIII.

Max Kalmar, o pai de Fritz, era originário de St. Pölten, no Estado da Baixa Áustria. O sobrenome da família fora originalmente Kohn, tendo sido mudado para Kalmar na geração do avô de Fritz, Alexander, provavelmente para encobrir sua origem judaica. Kalmár era um sobrenome húngaro bastante comum, adotado por muitas famílias judias da Hungria a partir de meados do século XIX, na esteira do processo de emancipação e assimilação judaicas. Já o sobrenome anterior, Kohn, indica que a família pertencia, originalmente, à casta dos sacerdotes, isto é, Kohanim, em hebraico.

Esta mudança de sobrenome, bastante frequente à época entre os judeus do Império habsburgo, expressa, de maneira inequívoca, o desejo de assimilação e de integração dos judeus à sociedade mais ampla, sob o reinado do Kaiser Franz Josef, e a criação de novas identidades familiares e culturais que tinham como fulcro o pertencimento à Áustria e a fidelidade a seu Imperador: tendo seus direitos de cidadania plenamente reconhecidos e assegurados pelo Kaiser, os judeus rapidamente passaram da condição de um grupo apartado da sociedade mais ampla e, confinado aos limites estreitos de seus guetos, à de cidadãos de um Estado nacional moderno - um Estado nacional moderno muito peculiar, cuja estrutura social era determinada por uma singular forma de acordo e de equilíbrio entre a dominação cultural aristocrática e a dominação econômica da burguesia, e cuja burguesia, inclusive a emergente burguesia judaica, sintomaticamente, tinha como maior ambição apropriar-se dos atributos dos aristocratas, ainda que frequentemente de forma, por assim dizer, “falsificada”, e adquirir os títulos de nobreza e as condecorações concedidas pelo Imperador aos cidadãos que se mostrassem particularmente úteis aos projetos imperiais, dentre os quais um número considerável de judeus especialmente bem sucedidos no mundo das finanças e da indústria.

A passagem dos judeus da condição de párias para a de parvenus e seu esforço por reconhecimento por parte da oficialidade imperial levou à criação de novas identidades judaicas no seio da sociedade austríaca nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX. Esta transformação é amplamente tematizada por uma série de escritores austríacos e, sobretudo, judeus austríacos do período. Dentre tantos outros nomes, como os de Karl Emi Franzos, Leopold Kompert, Arthur Schnitzler, Joseph Roth e Franz Werfel, gostaria de citar aqui, apenas a título de ilustração, a seguinte passagem do romance Großstadtjuden (1910), de Adolf Dessauer (1849-1916), autor bastante popular em seu tempo, mas hoje completamente esquecido, que aborda, nesse romance, “de maneira irônica e ao mesmo tempo penetrante, o Streben no sentido da transformação social empreendido por famílias judias de diferentes classes sociais, mas invariavelmente de origem provinciana, que lutam pela conquista de posições cada vez mais elevadas na hierarquia social metropolitana.” (Krausz, 2012Krausz, Luis S. Passagens: Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole. São Paulo: Edusp, 2012.: 244):

Er [Leopold] erklärte, er halte es nicht mehr aus, Kohn zu heissen, er gehe daran körperlich und moralisch zugrunde. Und tatsächlich magerte er ab und wurde ganz melancholisch. Schon das Wort ‚Kohn’ auf dem Täfelchen an der Wohnungstür brachte ihn zur Verzweiflung. Wenn ihn jemand, wie es nicht anders möglich war, mit ‚Herr Kohn’ anredete, wechselte er die Farbe und erklärte dann oft, er habe ein Gefühl gehabt, als ob er insultiert worden wäre. Der Kohn würgte ihn angeblich im Halse, er bereitete ihm alle möglichen Beschwerden. Der Arzt, den die besorgte Mutter wegen dieses seltsamen Zustandes konsultierte und der zufälligerweise selbst Dr. Kohn hiess, gab, nachdem er Leopold untersucht, der Befürchtung Ausdruck, daß dessen hochgesteigerte Abneigung gegen den eigenen Namen zur Entstehung einer fixen Idee führen könnte, es bereitete sich hier vielleicht eine, der Medizin bisher noch unbekannte Form der Gemütskrankheit vor. Frau Kohn, wie sie damals noch hiess, ging händeringend umher. ‚Gott, was für eine neue Lad?‘ jammerte sie, ‚Kohn ist eine Krankheit geworden.’ Und sie berstürmte ihren Mann von früh bis spät, den gesundheitsschädlichen Namen abzulegen. Nach heftigem Widerspruch fügte er sich, nicht ohne seinen Ärger über Leopold lauten Ausdruck zu geben. Die Frau suchte ihn zu beschwichtigen. ‚Das Kind hat einen so feinen Geschmack,‘ sagte sie. Sein ästhetisches Gefühl wird durch den Namen beleidigt. (Dessauer, 1910Dessauer, Adolf. Großstadtjuden. Viena: Wilhelm Braumüller, 1910.: 3)

O abandono do sobrenome inconfundivelmente judaico “Kohn” representa, no romance de Dessauer tanto quanto na biografia familiar de Fritz Kalmar, o empenho no sentido de alcançar um novo estatuto e uma nova identidade não mais estigmatizados pelo judaísmo e, consequentemente, pela diferença ou pela exclusão, mas condizentes com as novas posições sociais ocupadas, ou, ao menos avistadas, pelos judeus austríacos.

Seja como for, a vinculação com a religiosidade e com a tradição judaica não era entendida pela família Kohn/Kalmar (assim como não o era, supostamente, para a família retratada por Dessauer em seu romance) como um aspecto fundamental de sua identidade: eles desejavam, sobretudo, ser vistos como austríacos pela sociedade mais ampla, em meio à qual viviam, internalizando, portanto, uma série de conceitos vinculados à criação desta identidade austríaca imperial e supranacional - uma identidade que foi cultivada e expressa por tantos literatos austríacos da passagem do século XIX para o século XX.

Era como súditos de um Império multicultural, multiétnico e multirreligioso, e de um Imperador tolerante, que regia sobre muitos “povos”, que eles se viam, e era assim que desejavam ser vistos pelos outros. Como escreve Anne Saint-Sauveur Henn:

Antes de 1938 não havia, aos olhos de Fritz Kalmar, nenhum tipo de fronteira, no interior da Áustria, entre judeus e não-judeus. Consciente de que o antissemitismo austríaco existira desde sempre, e que era, mesmo, particularmente virulento [...] ele não o sofreu antes de 1938. De uma família judaica liberal totalmente assimilada, sem apegos religiosos, Fritz Kalmar não se sentia bem, em sua juventude, quando se falava de judeidade e talvez até mesmo tivesse “um pouco de vergonha de seu judeu”, atitude que mudou com o passar do tempo.

O caso de Fritz Kalmar, cuja identidade coletiva era concebida não com relação a uma etnia, mas sim a uma cultura e a uma nação, é representativo da violência incompreensível desta súbita fronteira, sentida de maneira mais dolorosa pelos alemães e pelos austríacos privados de consciência política ou de identidade religiosa marcada, fatores que favorecem uma reconstrução pessoal. (Henn 2005Henn, Anne Saint-Sauveur, Frontières infranchissables de l’exil? L’expérience de l’écrivain autrichien Fritz Kalmar. In: Frontières, transferts, échanges transfrontaliers et interculturels - Actes du XXXVI e Congrès de l’Association des Germanistes de l’Enseignement Supérieur. Berlim: Peter Lang, 2005.: 416) 2 2 Avant 1938 il n’éxistait pas aux yeux de Fritz Kalmar de frontière à l’interieur de l’Autriche entre juifs et non-juifs. Conscient que l’antissemitisme autrichien a toujours existé et qu’il était même particulièrement virulent [...] il n’en a pas soufert avant 1938. D’une famille juive libérale totalement assimilé, sans attache réligieuse, Fritz Kalmar ne se sentait pas bien dans sa jeunesse quand on parlait de judéité et il avait même « pêut-être un peu d’honte d’être juif », attitude qui changea par la suite. Le cas de Fritz Kalmar, dont l’identité collective était conçue non par rapport à une ethnie, mais à une culture et une nation, est répresentatif de la violence incompreensible de cette frontière soudaine, ressentie plus douloureusement par les Allemands et Autrichiens dénués de conscience politique ou d’identité religieuse marquée, facteurs qui favorisent une reconstruction personelle.

Uma identidade austríaca, cultural e ética, independente de origem étnica ou mesmo de filiação religiosa, estava no cerne do projeto identitário dos judeus assimilados do mundo em que Kalmar nasceu, e os traços dessa identidade eram derivados de um projeto de Estado acalentado (e parcialmente implementado) sob o reino do longevo Imperador Franz Josef, que regeu entre 1848 e 1916, embora a origem desse projeto possa ser remetida já ao reinado de Josef II (1765-1790).

Uma série de literatos e de dramaturgos austríacos, a partir de Ferdinand Raimund (1790-1836), Johann Nestroy (1801-1862) e Adalbert Stifter (1805-1868), entre outros, lançaram em suas obras as bases do que viria a ser essa identidade austríaca imperial, tão ardentemente desejada pelos judeus, tão difícil de ser definida e, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, tão fácil de ser reconhecida. Estes autores empenharam-se, consistentemente, na criação dos modelos e dos paradigmas do “bom austríaco”. Como escreve Claudio Magris em seu clássico Der habsburgische Mythos in der modernen österreichischen Literatur: “Das alte Österreich [...] präsentierte sich als verführerisches Gesicht der Ordnung, der harmonischen Ganzheit, [...] jene abstrakte Konstruktion, die auf einem Vakuum beruht [...] um welches die Realität sich ordnet.” (Magris 2000: 9-10)

Efetivamente, a velha Áustria-Hungria, com seu velho Kaiser, foi a última coluna sólida do ocidente cristão-universal, e seus valores nacionais e universalistas proporcionavam a seus súditos uma ilusória sensação de confiança nessa identidade e nas instituições criadas para mantê-la. Para Stefan Zweig, assim como para muitos outros, a Áustria fora o lugar onde imperara “...das goldene Zeitalter der Sicherheit. Alles in unserer fast tausendjährigen österreichischen Monarchie schien auf Dauer gegründet und der Staat selbst der oberste Garant dieser Beständigkeit.” (Zweig 1961: 14). Joseph Roth, referindo-se ao desaparecimento do Império, escreveria: “Nur wir, nur unsere Generation, erlebte das Erdbeben, nachdem sie mit der vollständigen Sicherheit der Erde seit Geburt gerechnet hat. Uns allen war es, wie einem, der sich in den Zug setzt, den Fahrplan in der Hand, um in die Welt zu reisen. Aber ein Sturm blies unser Gefährt in die Weite...” (Roth apudMehrens 2000Mehrens, Dietmar. Vom göttlichen Auftrag der Literatur. Hamburgo: Libri Books, 2000.: 184).

A destruição do ecúmeno austríaco com a 1ª Guerra Mundial, o acirramento do antissemitismo e, por fim, a anexação da Áustria ao III Reich em 1938, significaram para os judeus o completo desaparecimento, em apenas duas décadas, de um sonho herdado de pais e de avós. Entre o êxodo do gueto e a expulsão da Áustria a partir de 1938, a busca por uma nova Heimat austríaca, por parte dos judeus, que tinham originalmente como propósito a integração da sociedade imperial, transformou-se num exílio irreversível, sem que em muitos casos essa Heimat vislumbrada tivesse sido, de fato, alcançada. O fracasso de um projeto de pertencimento nacional e territorial que vinha sendo acalentado desde o século XIX, à medida que o processo de emancipação, germanização, integração à lógica política e imperial do Império e assimilação punha-se em marcha, só se tornou completo com o Anschluss.

De fato, em meio ao turbilhão gerado, no século XIX, pelo avanço da economia capitalista sobre a Áustria e, ao mesmo tempo, pelo empenho na manutenção dos seus valores aristocráticos - estas forças opostas que, afinal, se sobrepuseram à busca pelo acordo e pela reconciliação tão características da política imperial austríaca - criaram-se projetos de novas identidades judaicas, longe dos guetos e da tradição religiosa, que nunca chegaram a constituir algo sólido e duradouro, não obstante as aparências. Ao mesmo tempo, um vácuo e uma incerteza acerca da própria identidade parecem ter sido sempre o destino dos judeus austríacos - quando não dos austríacos de um modo geral. Como escreve Egon Schwarz, “Kein wunder, daß in einem Jahrhundert, in dem der Begriff der Nation mehr und mehr in den Vordergrund trat, Denker und Dichter immer wieder die Suche nach der Identität dieses Staates initiierten, daß allenthlaben der Ruf ‚Was ist Österreich?‘ ausgestoßen wurde, nicht etwa als Frage, auf die eine Antwort erteilt werden konnte, sondern als Verzweiflungsschrei.“ (Schwarz 2014: 8)

É sobre a permanência deste vácuo, um vácuo singularmente capaz de constelar e de organizar realidades à sua volta, e sobre a sua memória e sobrevida num contexto surpreendente - aquele dos Andes bolivianos nos anos 1950 - que tratará este artigo.

Aleida Assmann escreve que a memória é, ou pode ser, o fundamento da identidade, reconstruindo testemunhos significativos para o presente:

Während die Fama vorwärtsgerichtet ist [...], ist das Gedächtnis rückwärtsgerichtet und dringt durch den Schleier des Vergessens in die Vergangenheit; es geht verschütteten, verschollenen Spuren nach und rekonstruiert Zeugnisse, die für die Gegegnwart bedeutsam sind. Dieses Interesse an Geschichte als einer Auskunft über die eigene Herkunft und Identität ist nicht erst im 19. Jahrhundert mit den Nationalstaaten aufgekommen. In der Renaissance bereits kam es zu einer Konjunktur der Hofhistoriographie und dynastischen Geschichtsschreibung. [...] Das war die „Zeit der Archivare, Chronisten und Historiker.“ [...] [Es war] zu einer Vervielfältigung der geschichtsmächtigen Subjekte gekommen. Adelshäuser, Patrizierfamilien, Städte konstruierten sich als Subjekte, die durch rekonstruktive Geschichtserzählungen ihre Identität profilierten und ihre Legitimität untermauerten. (Assmann 2018Assmann, Aleida. Erinnerungsräume: Formen und Wandlungen des kulturellen Gedächtnisses. Munique: C. H. Beck, 2018.: 48)

O caso de Fritz Kalmar - tanto de sua trajetória pessoal quando da temática abordada por sua literatura, em especial no conto “Der Austrospinner, incluído na antologia Das Herz europaschwer (1998), parece ilustrar de maneira exemplar o papel da memória nas tentativas de reconstrução identitária dos judeus austríacos assimilados e exilados que, imaginando possuir um duplo pertencimento - ao mundo judaico tanto quanto à Áustria - viram-se perdidos em terras de ninguém a partir de 1938, ano da anexação da Áustria ao III Reich.

Fritz Kalmar e o exílio judaico na Bolívia

Formado em direito, Fritz Kalmar trabalhava num escritório de advocacia em 1938. Imediatamente impedido de exercer sua profissão por força das leis raciais do Reich, que passaram a vigorar na Áustria anexada, ele e sua família trataram de deixar o país quando isto já se tornara praticamente impossível. Isto porque, já desde 1936 e 1937, a maioria dos países do mundo havia fechado suas portas à imigração de judeus - fossem eles austríacos, pretensamente austríacos ou de qualquer outra nacionalidade.

Graças à ajuda de um armador norueguês, que lhe arranjou emprego num navio petroleiro, Kalmar conseguiu emigrar em dezembro de 1938. Alcançou a Bolívia, que era então um dos poucos países que permaneciam abertos à entrada de judeus no início de 1939. Ali reuniu-se a seus dois irmãos e à sua mãe.

A ruptura das relações diplomáticas entre a Bolívia e a Alemanha nazista em 1942, em decorrência de pressões exercidas pelos EUA, fez com que alguns dos refugiados judeus austríacos que viviam no país decidissem criar a pequena Federación de Austriacos Libres, instituição que, de início, contava com pouco apoio, já que a maioria dos cerca de 1.200 judeus austríacos radicados em La Paz não via motivo algum para apoiar uma organização que se vinculava a um país onde tinham sido perseguidos, já mesmo antes do Anschluss, e cuja população, majoritariamente, acolhera com entusiasmo a entrada das tropas nazistas em Viena.

Kalmar foi um dos fundadores dessa Federación que, de início, congregava cerca de 250 membros. Seu propósito declarado era lutar pela libertação da Áustria do jugo nazista, congregando austríacos independentemente de raça ou orientação política. Nos estatutos da Federación lê-se:

Die Federación de austríacos libres en Bolivia: Kämpft für die Befreiung Österreichs von der nationalsozialistischen Gewaltherrschaft, gemeinsam mit den übrigen, gleichartigen Vereinigungen in der Welt und zusammen mit allen demokratischen Institutionen, die das dritte Reich bekämpfen. Lässt in ihren Reihen keine Partei- oder Rassenpolitik zu, mischt sich nich in die innere und äußere Politik Boliviens, ist doch jederzeit bereit, dieses Land in einem Abwehrkampf gegen den Totalitarismus zu unterstützen. Akzeptiert den Beitritt von Mitgliedern, die durch entsprechende Dokumente die Zugehörigkeit zur österreichischen Nation nachweisen können und sich unbedingt zu den demokratischen Prinzipien bekennen. (Zwerger 2016Zwerger, Veronika. Eine kleine Gruppe Entschlossener...The Federación de Austriacos Libres. in Bolivia. In: Schreckenberger, Helga (org.) Networks of Refugees from Nazi Germany. Amsterdam: Brill, 2016.: 113).

Neste sentido, se, por um lado, o credo da Federación era o de que os verdadeiros inimigos dos refugiados não eram os austríacos e sim os nazistas que se haviam assenhorado da Áustria, por outro, essa instituição desejava ardentemente manter vivas uma identidade e um pertencimento cultural que talvez não tenha sido mais do que uma ilusão, cultivada pelos descendentes daqueles que tinham deixado para trás os guetos da velha Áustria em direção às grandes cidades, especialmente Viena, e que, tendo alcançado uma efêmera integração e ascensão social, logo se viram confrontados com a expulsão, o exílio e o extermínio.

Além de seus objetivos políticos, a Federación tinha como propósito reafirmar a identidade e a cultura austríacas, distinguindo-as das alemãs, por meio do cultivo da literatura, do cinema, das artes etc., assim recriando uma espécie de lar no exílio, a fim de manter viva a ligação dos refugiados com seu país de origem e, sobretudo, a fim de cultivar aqueles valores percebidos como genuinamente austríacos, que, supostamente, tinham sido destruídos por meio da ascensão do nazismo: “Es galt, der älteren Generation für das Verlorene irgendeinen Erstaz zu bieten, der Jugend aber wenigstens Bruchteile dessen, was sie an heimatlicher Erziehung entbehren musste.” (Zwerger 2016Zwerger, Veronika. Eine kleine Gruppe Entschlossener...The Federación de Austriacos Libres. in Bolivia. In: Schreckenberger, Helga (org.) Networks of Refugees from Nazi Germany. Amsterdam: Brill, 2016., 116)

Conforme escreve Anne Saint-Sauveur Henn:

No plano cultural, todas as ações da Federação dos Austríacos Livres (F.A.I.) visava à criação daquilo que os relatórios qualificam de Heimat in der Fremde. [...] Esta ação repousava sobre uma definição de Áustria não estritamente política, mas cultural, proposta em 1945 num relatório intitulado Österreichisches Theater auf 3700 Meter Höhe: “Österreich ist heute kein bloss geographischer, noch weiniger ein nur politischer Begriff, sondern ein Seelenzustand und noch dazu ein irgendwie und auf geheimnisvolle Weise produktiver Seelenzustand.” (Henn 2005Henn, Anne Saint-Sauveur, Frontières infranchissables de l’exil? L’expérience de l’écrivain autrichien Fritz Kalmar. In: Frontières, transferts, échanges transfrontaliers et interculturels - Actes du XXXVI e Congrès de l’Association des Germanistes de l’Enseignement Supérieur. Berlim: Peter Lang, 2005.: 422)

Mais adiante, em outra citação de documentos da F.A.I., lê-se:

Menschen, die ihre Heimat hatten verlassen müssen, die sich aber trotzdem entschlossen hatten, ihre österreichische Heimat nicht abzuschreiben, sondern trotzdem aufrechte und tätige Österreicher zu bleiben und zu beweisen, dass man diesem Land Unrecht und Gewalt angetan hatte. So wurden sie von Menschen, die zu Opfern gemacht wurden, zu Idealisten, die Opfer zu bringen gewillt waren. (Henn, 2005Henn, Anne Saint-Sauveur, Frontières infranchissables de l’exil? L’expérience de l’écrivain autrichien Fritz Kalmar. In: Frontières, transferts, échanges transfrontaliers et interculturels - Actes du XXXVI e Congrès de l’Association des Germanistes de l’Enseignement Supérieur. Berlim: Peter Lang, 2005.: 425)

Em outras palavras, o que se tentava fazer na Bolívia era manter viva, no exílio, uma forma de cultura surgida na Áustria imperial, no contexto da emancipação e da assimilação dos judeus, e com ela também uma singular forma de identidade que se tornara impossível na Europa: a dos judeus germanizados que, tendo deixado para trás tudo o que dizia respeito aos guetos judaicos e à tradição judaica, imaginavam ter encontrado na Áustria do Kaiser Franz Josef uma solução para a milenar questão do exílio judaico.

Os valores percebidos como “genuinamente austríacos” não são outros senão aqueles que fundamentavam a identidade austríaca imperial, construída pelos literatos austríacos do século XIX, e ligados a um sistema de valores universalista, e a uma ética fundamentada no catolicismo e no humanismo, mas que, no exílio boliviano, são cultivados exclusivamente pelos refugiados judeus, portanto, uma espécie de relíquia de um passado parcialmente real, parcialmente idealizado.

Os austríacos representavam uma minoria em meio a uma população de refugiados judeus de língua alemã no país andino, estimada entre 5.000 e 7.000 pessoas. Leo Spitzer, filho de refugiados austríacos na Bolívia, cujos pais eram, igualmente, membros e frequentadores da Federación, afirma: “...nostalgic memory had animated and shaped it as a social and cultural institution reproducing elements of a ‘lost homeland’ in the Bolivian refuge.” (Spitzer 1999: 154)

Para Spitzer, o sentimento de nostalgia em relação à Áustria era o que baseava os encontros dos membros da Federación. Spitzer afirma também que, no pós-guerra, as atividades da Federación representavam o empenho dos refugiados em recuperar os vínculos com um país e com uma tradição cultural da qual tinham sido excluídos.

É igualmente importante enfatizar que este apego a uma identidade destruída pelos acontecimentos políticos na Europa de língua alemã nos anos 1930 não era uma unanimidade entre os refugiados judeus na Bolívia. Egon Schwarz, por exemplo, outro escritor judeu austríaco refugiado na Bolívia, relaciona-se com este legado de maneira completamente diversa e, ao contemplar o universo de suas origens pessoais e familiares, nele enxerga aspectos que foram obliterados da visão nostálgica de Kalmar e dos seus colegas da Federación de Austriacos Libres:

Die Keime des modernen, dem Hochkapitalismus entsprechenden Judenhasses sind überall in Europa anzutreffen; dem österreichischen Kaiserreich bleibt die zweifelhafte Auszeichnung, die Wiege eines ganz neuartigen Antisemitismus gewesen zu sein, sozusagen das Laboratorium eines sozialen Experiments. Ich fasse bereits vorwegnehmend zusammen, daß durch alle diese in anderen Ländern entweder nicht vorhandenen oder unvollständig ausgebildeten Umstände Österreich die moderne Entwicklung zerstörerischer erlbet hat und daß auch das weitere Schicksal der Juden sich hier mit erschreckender Deutlichkeit zu erkennen gibt. (Schwarz 2014Schwarz, Egon. Wien und die Juden. Munique: C. H. Beck, 2014.: 9)

A nostalgia, a identificação com a Áustria, apesar dos acontecimentos, e o anseio por algum tipo de retorno no pós-guerra, claramente presentes nos propósitos dos membros da F.A.I., encontram-se igualmente ausentes dos horizontes de Schwarz. Como ele mesmo escreve:

Meine Heimat Wien hat mir in meiner frühen Jugend übel mitgespielt, so daß ich das nun einmal stark in mir lebende Gefühl der Anhänglichkeit und Dazugehörigkeit schon aus Überlebensgründen bekämpfen mußte und schließlich verloren habe. [...] An mein Gymnasium habe ich nur wenige gute Erinnerungen. Es war damals eine autoritäre, auf schlimme Weise politisierte und keinesweg jugendfreundliche Anstalt. [...] Meine Rückkehr nach Wien spielt sich indes ganz unemotional ab, so als führe ich nach Mexiko oder Australien, was ja auch gelegentlich geschieht. (Schwarz 2014Schwarz, Egon. Wien und die Juden. Munique: C. H. Beck, 2014.:147-148)

A Bolívia é descrita, num manual para a emigração publicado em 1939 pelo Hilsfverein der Juden in Deutschland como “um dos mais pobres e economicamente menos desenvolvidos países da América do Sul, politicamente instável...” (1939: 21-22) Em 1938, o país ainda se encontrava sob o impacto da derrota sofrida perante o Paraguai durante a chamada “Guerra do Chaco”, na qual cerca de 60.000 bolivianos perderam suas vidas e, em decorrência da qual, a região petrolífera ao pé dos Andes foi perdida para o país vizinho. Assim, era um destino de imigração pouco atraente.

Em La Paz, Kalmar trabalhou como speaker para um programa de rádio em alemão e em inglês, e foi ator num grupo de teatro austríaco para o qual também criou várias peças.

Em 1945, com o término da 2ª Guerra Mundial e com o ressurgimento da Áustria como uma república independente, Kalmar enunciou, num discurso, os novos propósitos da Federación: “Ein Stückchen gutes Österreich in der Fremde zu bilden, nicht nur die Erinnerung sondern auch die lebendige Verbindung mit der Heimat zu pflegen.” (Zwerger 2016Zwerger, Veronika. Eine kleine Gruppe Entschlossener...The Federación de Austriacos Libres. in Bolivia. In: Schreckenberger, Helga (org.) Networks of Refugees from Nazi Germany. Amsterdam: Brill, 2016.: 119)

Ainda naquele mesmo ano, a Federación passou a arrecadar fundos que deveriam ajudar a reconstrução da Áustria no pós-guerra, assim como amparar seus cidadãos.

Também em 1945, Kalmar dirigiu-se ao recém-nomeado chanceler austríaco Karl Renner, informando-o acerca da comunidade de austríacos residente na Bolívia e pedindo-lhe que designasse, o quanto antes, alguma pessoa de sua confiança para o cargo de representante diplomático da Áustria no país andino. Este pedido, porém, somente foi acatado pelo governo da 2a República austríaca em 1949, com a nomeação de um cônsul austríaco em La Paz.

Em 1953, Kalmar casou-se com Erna Terret, viúva e participante do mesmo grupo de teatro do qual ele mesmo participara. Ambos se mudaram para Montevidéu, onde ele passou a trabalhar como diretor de óperas, ensaísta e correspondente, para a América do Sul, de jornais de língua alemã como a Frankfurter Allgemeine Zeitung, a Neue Zürcher Zeitung e Die Presse, assim como para a rede estatal de rádio austríaca ORF. De 1953 até 1990, Kalmar ocupou o cargo de Cônsul Geral Honorário da Áustria em Montevidéu.

Kalmar viveu a ambivalente situação de estar visceralmente ligado à Áustria, ou a uma ideia de Áustria e a uma identidade austríaca sepultadas sob os escombros da 2a Guerra Mundial e, ao mesmo tempo, de passar sua vida no exílio por causa de sua origem judaica - um exílio irrevogável, do qual não parecia haver nenhuma possibilidade de retorno, pois, ainda que não houvesse qualquer impedimento legal de retornar à Áustria no pós-guerra, este retorno parecia moralmente inaceitável à grande maioria dos judeus austríacos depois do genocídio. Um dos lemas de sua vida era “Extra Austriam non est vita”, ou seja, não há vida fora da Áustria. E o outro era “Zwei halbe Heimaten werden nie eine ganze”, ou seja, “dois meios lares não se tornam, jamais, um inteiro”. Por meio deste último, ele se referia ao fato de que nunca mais sentiu-se em casa em nenhum lugar depois de sua emigração, seja na Bolívia, seja no Uruguai, seja na Áustria do pós-guerra, à qual passou a retornar, com certa frequência, a partir de meados dos anos 1950, mas onde voltava sempre a confrontar-se com a memória dos crimes perpetrados tanto quanto com o arrependimento fingido de tantos de seus compatriotas, o que tornava, aos seus olhos, inaceitável a ideia de um retorno à Áustria, já que o país distanciara-se, consideravelmente, sob a 1ª República e sob o nazismo, daqueles fundamentos da identidade austríaca imperial que ele, implicitamente, sentia como sua verdadeira Heimat, seu verdadeiro lar nacional.

Como vice-cônsul honorário e, posteriormente, como cônsul honorário da Áustria em Montevidéu, Kalmar também participou ativamente de um círculo de diplomatas europeus que se empenhavam em dar asilo e em ajudar aqueles que eram perseguidos pela ditadura militar de direita que governou o país de 1973 a 1985, uma das mais brutais e violentas da América do Sul, na qual milhares de pessoas foram torturadas e mortas.

Falando a respeito deste período a Gert Eisenbürger e Gaby Küppers, Kalmar afirma:

Insgesamt war ich 37 Jahre - von 1953 bis 1990 - als konsularischer Vertreter Österreichs in Uruguay tätig. Ich habe eigentlich mein ganzes Leben in den Dienst Österreichs gestellt und heute frage ich mich manchmal, warum. So gut haben sie sich nach dem Krieg auch nicht benommen. Aber es war halt mein Land, Sie kennen ja mein Büchlein vom Heimweh. (Eisenbürger 2000Eisenbürger, Gert; Küppers, Gaby. Vom Emigrantes zum Konsul - Der Wiener Fritz Kalmar in Bolivien und Uruguay. In: ILA - Das Lateinamerika Magazin, v. 240, 11/2000.)

O “livrinho a respeito da saudade”, mein Büchlein vom Heimweh, ao qual Kalmar se refere nesta entrevista, é sua obra de estreia, Das Herz europaschwer, publicado pela primeira vez em Viena em 1997 e reeditado já no ano seguinte e que elabora literariamente e representa a particular condição existencial de Kalmar e de seus companheiros de destino, judeus austríacos que se sentiam perfeitamente em casa em Viena, ou ao menos assim imaginavam, e que, de um momento para outro, viram-se condenados a passar o resto de suas existências numa espécie de Zwischenwelt, num mundo intermediário, nem aqui, nem lá, sentindo-se estrangeiros em toda a parte, ao mesmo tempo em que cultivavam ardentemente a memória de uma Áustria desaparecida - aquela dos ideais ecumênicos do Império Austro-húngaro que tinham sido tão atraentes para os judeus, emancipando-os e abrindo-lhes as portas para o ingresso na sociedade e na cultura imperiais.

Kalmar dedica-se, nesta sua obra, a registrar algumas histórias de refugiados na Bolívia e no Uruguai. Assim como ele mesmo, eles não são simplesmente fugitivos do nazi-fascismo que encontraram abrigo no país andino ou às margens do Prata, mas são, sobretudo, os órfãos de um sonho de integração política, social e cultural num império que via a si mesmo como multicultural, cosmopolita e ecumênico, e onde os judeus esperavam tornar-se, ou supunham terem se tornado, mais um dos “povos do Imperador”, assim como todos os outros súditos dos Habsburgos.

Este sonho da emancipação judaica do século XIX desfez-se no nada, depois da 1ª Guerra Mundial, com a ascensão cada vez mais vertiginosa dos diferentes nacionalismos e do antissemitismo nas antigas terras da coroa habsburga, na Europa Central.

Os personagens que Kalmar retrata neste volume habitam, como ele mesmo habitou, um estranho país imaginário, constituído só de retalhos e de fragmentos cada vez mais desgastados de um mundo já inexistente e de um sistema de valores e de princípios que se tornaram anacrônicos na Europa de língua alemã desde o fim da 1ª Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, confrontam-se, dia após dia, com realidades da vida latino-americana diante das quais permanecem sempre um tanto distantes e alheios.

Este país imaterial, ao qual retornam a cada reunião, seja na sede da Federación de Austríacos Libres, seja em torno das mesas do café Danubio Azul, na capital boliviana, onde são servidas tortas e bebidas preparadas segundo antigas receitas austríacas é, para eles, uma espécie de lar reconstruído.

É nesses lugares que eles podem se encontrar com seus companheiros de destino, continuar a falar o alemão das antigas terras, existir, por algumas horas, como se tudo o que aconteceu não tivesse acontecido e, sobretudo, como se o projeto existencial de perfeita integração num ecúmeno austríaco imperial, pronto a acolher a todos, acalentado pela geração dos refugiados tanto quanto pela de seus pais e avós, não tivesse sido obliterado.

É por estes mundos artificiais, meio palpáveis, meio metafísicos, onde alguns objetos passam a fazer as vezes de pátria e onde algumas relíquias se transfiguram para se tornarem verdadeiros santuários, que circula o narrador de Das Herz europaschwer.

Em seu posfácio a este livro, Ursula Seeber escreve:

Was den authentischen Charme von Kalmars Miniaturen ausmacht, sind ihre Schauplätze im Alltag der Südamerika-Flüchtlinge, Emigranten-Cafés und deutsche Ausflugslokale. [...] Die Texte spiegeln Strategien des Überlebens. Fritz Kalmar erzählt in seinem Buch von dem, was Exil bedeuten kann: von Beheimatung in der Fremde und imaginierter Heimkehr, von „übersetzten“ Gefühlen und Sprachlosigkeit, von exotischen Zwischenwelten (Seeber 1998Seeber, Ursula. Nachwort. In: Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus Verlag, 1998.: 191)

Talvez o mais estranho e singular destes “mundos intermediários” ou Zwischenwelten retratados por Kalmar juntamente com seus peculiares habitantes seja a propriedade rural A.E.I.O.U., nos Andes bolivianos, nas cercanias de Cochabamba, com seu aristocrático proprietário Georg von Winternitz. Ambos são descritos na última narrativa do volume, intitulada “Der Austrospinner” (“O austro-louco”).

A velha Áustria nos Andes

Georg von Winternitz é um velho aristocrata austríaco que vive sozinho em sua propriedade e cuja grande esperança na vida é um dia receber a visita do herdeiro da coroa austríaca ou ao menos de algum membro da família real dos Habsburgos. O nome de sua propriedade, A. E. I. O. U., é uma referência direta à sequência de vogais que se encontram numa série de objetos de arte, livros e edifícios da época do Imperador Frederico III (1415-1493), Imperador Romano-Germânico de 1452 até a sua morte, e o último da dinastia dos Habsburgos a ser coroado pelo Papa em Roma, numa época em que as dimensões mitológicas da figura do Imperador ainda permaneciam inquestionadas.

Frederico III marcava com esta insígnia uma série de objetos que lhe eram importantes, como era costume no fim da Idade Média. O significado desta sequência de vogais, porém, nunca foi devidamente esclarecido, e mesmo à época de Frederico III circulavam várias versões a seu respeito.

No século XVII surgiu e cristalizou-se a interpretação de que esta sigla estaria ligada às ambições dos Habsburgos de reinarem sobre um império mundial, significando “Alles Erdreich ist Österreich untertan” ou, em latim, “Austriae est imperare orbi universo”.

Ao atribuir este nome à sua propriedade, von Winternitz evidentemente identifica-se com a mitologia cristã-habsburga e com a ideia da Áustria imperial como império católico, portador de uma mensagem espiritual destinada à humanidade como um todo, vinculando-se, assim, à esperança messiânica do grande império católico.

Ele não faz segredo de sua esperança de receber em sua propriedade o herdeiro da coroa habsburga, numa espécie de restauração doméstica do antigo sonho imperial: fala a respeito dela no estreito círculo dos refugiados de língua alemã que vivem em Cochabamba e, não só isso, conserva cuidadosamente, num armário de cristal na sala - ou Salon - de sua residência, uma garrafa de vinho tinto francês Chateauneuf du Pape, destinada a ser aberta no dia em que este ilustre visitante vier. Assim, entre os refugiados de língua alemã de Cochabamba, ele adquiriu o pouco lisonjeiro apelido de Austrospinner.

A esperança cultivada pelo protagonista desta narrativa corresponde às de todo o círculo dos legitimistas austríacos, participantes de um movimento conservador que se formou após 1918 e que continuou empenhado, até a anexação da Áustria pelo Reich, na luta pela restauração da monarquia austríaca, reunindo mais de 50 agremiações e grupos políticos. Os principais representantes deste movimento, do qual participou inclusive o escritor Joseph Roth, passaram a reunir-se, depois de 1938, no exílio parisiense, em torno da figura de Otto von Habsburg, o herdeiro da coroa e seu propósito era, ostensivamente, o de trazer de volta à vida um projeto de Estado ecumênico, tal e qual o acalentado pelo Kaiser Franz Josef, assim como uma concepção de Áustria que, transcendendo o puramente nacional, aspirava a um estatuto universal.

O encontro do narrador em primeira pessoa deste conto com o Austrospinner se dá de maneira inesperada. Ele conta que, durante uma viagem de negócios a Cochabamba, encontrava-se na mercearia de outro refugiado, Herr Kohler, um alemão de Hamburgo, abastecendo-se para seu lanche noturno, quando se deparou com um adolescente índio que, falando o mais perfeito alemão austríaco, dirigiu-se ao dono da mercearia para fazer seu pedido: “Zehn Deka Schinken, zehn Deka Salami, ein Stückerl Käs, so wie immer ein kleines Packerl Butter und ein Brot.” (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 139)

Intrigado, o narrador observa o jovem índio e, depois de sua partida, informa-se com Herr Kohler a seu respeito. Este lhe conta que, anos antes, o menino tentara roubar a carteira de von Winternitz. Este o apanhou e, em vez de entregá-lo à polícia, resolveu adotá-lo, educá-lo, criá-lo e, sobretudo, educá-lo de maneira a fazer dele “um austríaco”. O que se entende aqui por “austríaco” está, como veremos adiante, diretamente vinculado àquele projeto identitário e nacional cultivado pelos literatos da Áustria imperial.

Movido pela curiosidade, o narrador entrega a Herr Kohler um cartão de visita dirigido a von Winternitz, com um pedido: ele gostaria de visitá-lo. Afinal, como austríacos exilados, ambos eram companheiros de destino, o que de antemão estabelecia entre eles um certo tipo de vínculo.

Um aspecto importante da iniciativa de von Winternitz é o fato de que ele não pretende simplesmente educar o menino que resgatou do crime e assim proporcionar-lhe um futuro melhor, mas principalmente “fazer dele um austríaco”.

O significado deste propósito deve ser buscado justamente nos antigos ideais da Áustria Imperial, na própria ideia imperial da velha Áustria, cujos fundamentos filosóficos provêm do Sacro Império Romano Germânico, o portador da mensagem espiritual cristã e da civilização católica, dirigida à humanidade como um todo. Estes eram os ideais que, estando presentes de forma ostensiva na literatura austríaca do século XIX, como já foi dito, influenciaram, dentre outros, os projetos identitários nacionais e imperiais dos reinados do Kaiser Josef II e do Kaiser Franz Josef, responsáveis, respectivamente, pela consolidação territorial e posteriormente cultural da Áustria sobre o Leste da Europa - e também por sua política no sentido da integração dos judeus ao Império.

Um Império não é simplesmente uma unidade política ou territorial, porém um Estado que se caracteriza por determinado projeto espiritual ou ideológico, por uma ideia imperial, por uma ideia de civilização. Segundo Mehrens:

Roth erweckt den Eindruck, als ob in seiner Vorstellungswelt die immanente habsburgische Monarchie bzw. deren Reinstitution gleichbedeutend mit transzendenter Rettung, sozusagen heilsentscheidend, ein Himmelreich auf Erden geworden wäre und der Kaiser, in einer Erweiterung der Idee des Gottesgnadentums, der Messias.” (Mehrens 2000Mehrens, Dietmar. Vom göttlichen Auftrag der Literatur. Hamburgo: Libri Books, 2000.: 31).

É como um civilizador que von Winternitz contempla a família de índios da qual nasceu Miguel, o adolescente por ele adotado. Ele conta ao narrador que o menino era filho de uma mãe solteira, que tinha vários irmãos e que, quando ele o levou consigo à sua propriedade, lhe deu permissão para decidir se desejaria permanecer com ele ou se desejaria voltar para a casa da mãe, onde, segundo von Winternitz, ele não era bem tratado nem educado adequadamente.

Von Winternitz afirma: “Ich lege Wert darauf, dass er möglichst viel lernt. Dinge ganz verschiedener Art - Servieren, Gartenarbeit, Gemüseanbau, Behandlung von Obstbäumen, Hausreparaturen, Chauffieren, vor allem aber muss er studieren. Er besucht die Schule.” (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 145). E, logo a seguir: “Vor allem aber will ich sein Österreichtum festigen, das ist mir wichtig.” (Kalmar 1998: 146).

Aqui, von Winternitz faz uma referência bastante evidente a um conceito fundamental da velha identidade austríaca imperial: o de gelernter Österreicher, ou seja, alguém que aprendeu a ser austríaco, um conceito presente, especialmente, no universo literário austro-judaico da passagem do século XIX para o século XX.

Friedrich Torberg (1908-1979), por exemplo, considerava que, para se tornar um gelernter Österreicher era preciso, primeiro, alcançar o grau de geübter Österreicher (Johnston 2010Johnston, William. Friedrich Torberg und die Rolle der Juden als Träger der Eigenart Österreichs. In: Der österreichische Mensch: Kulturgeschichte der Eigenart Österreichs. Böhlau Verlag: Viena, 2010.: 296) e nesta sua afirmativa ele se refere a uma alegação de outro literato judeu austríaco, Daniel Spitzer (1835-1893). Spitzer, em sua saudação pelo 80o aniversário de Grillparzer, afirmou: “um daher zu allen Zeiten ein guter Österreicher zu sein muss man vor allem ein sehr geübter Österreicher sein.” (Johnston 2010: 296)

Spitzer refere-se, aqui, àqueles traços de caráter louvados por Grillparzer como a essência da austricidade: a disposição para a conciliação, a coragem na tolerância e o conservadorismo.

Franz Werfel, outro dos literatos judeus da velha Áustria que se debruçaram sobre a questão da identidade austríaca imperial, discute o conceito de gelernter Österreicher ao evocar, em seu ensaio “The meaning of Imperial Austria”, a figura do Príncipe Eugênio de Savóia (1663-1736) que, italiano de origem e francês de nascimento, serviu, durante mais de 52 anos, aos imperadores austríacos Leopoldo I, José I e Carlos VI. O Príncipe Eugênio derrotou os turcos otomanos na Batalha de Zenta, em 1697, tornando-se, então, figura admirada nas cortes da Europa. Werfel refere-se a ele com as seguintes palavras:

O Príncipe Eugênio é o melhor exemplo daquilo que, na monarquia, costumava ser chamado de gelernter Österreicher, isto é, de alguém que aprendeu a ser austríaco. Quando se compreende esta ideia em toda sua extensão e profundidade, chega-se à conclusão de que um bom austríaco só pode ser alguém que aprendeu a ser austríaco, isto é, só pode ser alguém que se tornou austríaco e não alguém que nasceu austríaco. Pois ser austríaco significa exatamente isto: transcender os instintos ligados ao sangue, transcender o demoníaco, para então renascer, como ser humano ocidental e universal, na tradição do Império. (Werfel 1937Werfel, Franz. Twilight of a World. Nova York: Viking Press, 1937.: 36)

Este “ser austríaco”, portanto, seria algo adquirido, algo indissociável da educação. O propósito da Áustria Imperial era o de construir um Estado que manifestasse materialmente em seu território e em sua população uma ideia transcendente. É esta ideia transcendente que von Winternitz focaliza não só em seu propósito com relação ao índio Miguel, mas em sua própria forma de vida. Como ele mesmo diz, referindo-se ao dia em que receberá a visita do herdeiro do trono austríaco: “Ich werde, wenn ich mein Glas zu Ehren des Besuchers hebe, nicht ihm selbst, sondern dem Geist Österreichs zutrinken, an den ich trotz allem glaube. Das ist meine Spinnerei. Sonst nichts.” (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 173) Ora, o “espírito austríaco” ao qual se refere von Winternitz não é outro senão aquele fundamental a uma forma específica de identidade nacional, cultivada nas décadas finais de existência da Monarquia habsburga.

É talvez a este mesmo espírito que Joseph Roth, um dos mestres na arte da rememoração da velha Áustria, refere-se ao dizer que a Monarquia habsburga não era uma nação, mas uma Übernation: “Österreich sei kein Staat, keine Heimat, keine Nation, es sei eine Religion und dabei die einzige Übernation, die es je gegeben habe.” (Roth 1999: 422)

De fato, von Winternitz, conforme descrito por Kalmar, encarna aquelas mesmas virtudes austríacas representadas e louvadas por Grillparzer tanto quanto por Joseph Roth e Franz Werfel. Ao afirmar, por exemplo, que “Zufriedenheit ist im Grunde die Kunst des Verzichtens.” (Kalmar 1998: 176), von Winternitz está evocando toda a tradição espiritual do cristianismo medieval, que desempenha um papel fundamental naquele modelo identitário criado e cultivado pelos literatos austríacos do século XIX e do início do século XX.

Dúvidas e ambivalências quanto ao que seria, afinal, esta identidade austríaca, tão difícil de ser definida, tampouco estão ausentes do discurso de von Winternitz, como fica claro no seguinte diálogo entre o narrador e esse personagem:

„Was meinen Sie mit ‚mein Österreich‘?“

„Nun, jeder hat doch ein anderes. In Österreich selbst hat man das nicht so gemerkt, aber in der Emigration, da wurde es klar. Sie waren doch sehr aktiv in der österreichischen Vereinigung in La Paz, da haben Sie das doch sicher auch beobachtet.“

„Was Österreich dem einzelnen bedeutet, merkt man an der Art seines Heimwehs. [...] Man findet es in den verschiedensten Schattierungen, von einer billigen, inhlatlosen Melancholie bis zu einer tiefen, schmerzenden Sehnsucht, sogar Trauer. [...] Da sehnt sich einer nach den Bergen, ein anderer nach seinem Kaffehaus, was dem einen Schubert ist, das sind dem anderen die Schrammeln.“ (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 165)

Logo adiante, von Winternitz enfatiza o caráter multiétnico e multicultural dessa Áustria idealizada, da qual o melhor paradigma seria Viena. Ele afirma:

Viele Völker haben sich vermischt, ehe ‚der Österreicher‘ entstanden ist - übrigens eine zweifelhafte Figur. Hier denke ich allerdings wieder an Wien, wo diese Vermischung vornehmlich stattgefunden hat. Es ist ja auch gerade der Wiener, der sich für den typischen Österreicher hält. (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 171)

O projeto levado a cabo por von Winternitz de redimir e de transformar em seu herdeiro espiritual um menino índio, que está em vias de tornar-se um ladrão, coincide com a ideia de que, ao aprender a ser austríaco, ele poderá, de fato, ser redimido. Trata-se, sem dúvida, de um passo ousado - sobretudo diante do fato de que, na Bolívia, ainda hoje, o contato e as relações entre brancos e índios são marcados pelo distanciamento e pela desconfiança mútua, que se cristalizaram ao longo de séculos de opressão, que criaram grandes abismos sociais.

O próprio Kalmar parece endossar as palavras de seu personagem von Winternitz ao afirmar, em entrevista concedida e Gert Eisenbürger:

Zwischen einem Indio und seiner Umwelt steht eine Mauer, da kommt man nicht durch. Er schaut ein unbewegtes Gesicht an, sagt nichts. Natürlich hat man mit der Zeit auch Bolivianer kennengelernt. Aber als ich wegfuhr, dachte ich mir, den Freund, den du in Bolivien gesucht hast, hast du in fast 14 Jahren nicht finden können. Ich hatte keinen einzigen bolivianischen Freund. Bekannte ja, aber einen Freund, mit dem man sich aussprechen hätte können, nicht einen. Trotzdem fiel es mir sehr schwer, als ich aus Bolivien wegging. (Eisenbürger 2000Eisenbürger, Gert; Küppers, Gaby. Vom Emigrantes zum Konsul - Der Wiener Fritz Kalmar in Bolivien und Uruguay. In: ILA - Das Lateinamerika Magazin, v. 240, 11/2000.)

É este mesmo projeto existencial e identitário imperial austríaco que fundamenta a forma de vida que von Winternitz construiu para si mesmo em sua propriedade rural nas cercanias de Cochabamba: um projeto que tem como pressuposto o triunfo de um sistema de valores humanísticos de validade universal, uma mensagem formada por valores espirituais que se dirigem à humanidade como um todo e que corresponde aos ideais cultuados na Áustria do Imperador Franz Josef.

Aprender a ser austríaco, aprender a ser desterrado

A propriedade de von Winternitz junto a Cochabamba, relembra em tudo as propriedades rurais da velha Áustria - e sobretudo do Leste do velho Império - descritas por autores como Soma Morgenstern, Gregor von Rezzori e o próprio Joseph Roth. Em todo o lugar há ordem e a dignidade da autossuficiência, da independência orgulhosa e do vínculo com o solo e com os ideais imperiais sobrepõe-se às ambições e aos projetos titânicos do progresso burguês, da urbanização, da acumulação incessante de capitais. A vida, neste contexto, segue uma ritualística própria, que remete às construções de literatos que retratam existências agrárias e aristocráticas que encontram significado em si mesmas e que espelham, por assim dizer, uma ordem cósmica. O lugar ocupado por cada um nesta estrutura social corresponde a uma hierarquia percebida como sagrada e inabalável.

Ao ler a descrição que Kalmar faz de von Winternitz e de sua propriedade é impossível não se lembrar das páginas de Roth que descrevem a vida quotidiana do Capitão Distrital von Trotta, no romance Marcha de Radetzky, com seu conservadorismo orgulhoso, com sua reserva, com sua certeza sobre o próprio lugar na sociedade, no mundo e no cosmos, e, sobretudo, com sua disposição a preservar a própria dignidade por meio da renúncia.

Orgulhoso, von Winternitz conduz o narrador numa visita a suas plantações, assim descritas:

Da waren sorgfältig abgesteckte Felder, und Winternitz begann zu erklären: „Dieses ist für den Anbau von Kohl, da, gegenüber, ist Kraut, Sauerkraut und Rotkraut, und hier Paradeiser. Bitte kommen Sie weiter, dort drüben haben wir Erdäpfel in Menge, das kleinere Feld trägt Karfiol, weiter draussen steht Kukuruz.“ [...] „Mit Gemüse und Obst können wir uns selbst versorgen.“ (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 151).

Von Winternitz chegou até mesmo a importar da Europa mudas de abetos, árvores típicas das florestas temperadas de altitude da Europa Central (Kalmar 1998Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.: 152). Embora ele nada tenha dito a respeito do propósito de seus abetos, estas árvores parecem cumprir a função de lhe proporcionar a ilusão de que, na verdade, ele não se encontra na Bolívia, mas sim ainda lá, do outro lado, na terra onde crescem os abetos, e não hoje, mas num passado que parece tanto mais idealizado quanto mais distante se torna no tempo.

A trajetória, o nome e a situação de von Winternitz, este verdadeiro emblema da Áustria Imperial perdido em meio aos Andes bolivianos, apontam, além disto, muito sutilmente, para o fato de que ele mesmo provavelmente também fosse, como o próprio Kalmar e seus antepassados, um gelernter Österreicher.

Kalmar não escreve uma única palavra a respeito da origem étnica de von Winternitz, e tampouco oferece qualquer tipo de explicação para o fato de que este aristocrata austríaco tenha sido obrigado a refugiar-se na Bolívia. Da mesma forma, o fato de ele ser o único representante vivo de toda a sua linhagem é apresentado sem qualquer tipo de comentário. Discretamente von Winternitz também menciona que do patrimônio de sua família na Europa só o que restou são as ações que seu pai comprara décadas antes de um pequeno banco suíço e que lhe proporcionam uma certa renda anual.

O sobrenome von Winternitz remete a uma família conhecida no mundo literário: a da primeira esposa de Stefan Zweig, Friederike von Winternitz, nascida Burger. Von Winternitz era o sobrenome do primeiro marido de Friederike, Felix Edler von Winternitz. Judia de nascimento, Friederike convertera-se ao catolicismo em 1905, assim como seu marido, Dr. Felix Edler von Winternitz, nascido em 1877, que, em 1901, aos 24 anos de idade, deixou a comunidade judaica para batizar-se.

O sobrenome Winternitz não era muito comum na Áustria, mas era relativamente comum entre judeus austríacos. Na ala judaica do cemitério central de Viena, por exemplo, encontram-se cerca de 150 túmulos de pessoas com este sobrenome, sepultadas, em sua maioria, entre as décadas de 1860 e de 1930, enquanto que entre as certidões de nascimento vienenses deste mesmo período encontram-se 290 registros de judeus chamados Winternitz, dentre os quais, diga-se de passagem, o de Elisabeth Theresia Pokorny, minha bisavó, filha de Maria Winternitz e de Karl Franz Pokorny.

O sobrenome Winternitz aparece, igualmente, mais de 500 vezes na lista de vítimas do genocídio nos arquivos do instituto histórico israelense Yad Va-Shem.

A aquisição de títulos de nobreza por judeus, e consequentemente da partícula “von” no sobrenome, não era um fenômeno tão raro na Áustria de Franz Josef. Nas duas seções judaicas do cemitério central de Viena encontram-se mais de uma centena de túmulos e de jazigos de famílias judias que receberam títulos de nobreza, muitos deles de um esplendor impressionante.

Assim, é possível pensar na história do Austrospinner como uma tentativa de recriar, de maneira particular, aquilo que, afinal, talvez a Áustria pudesse ter vindo a ser: a materialização de um sistema de ideias filosóficas humanísticas que foram adotadas com grande entusiasmo pelos judeus austríacos emancipados, assimilados e esperançosos de plena integração numa Europa cosmopolita, multicultural e multiétnica, mas que foram varridas da face da Europa Central durante as décadas de 1930 e 1940, isto é, uma Heimat. De fato, como escreve W. G.Sebald:

Das Thema Heimat tritt in der österreichischen Literatur des 19. und 20. Jahrhunderts nicht zuletzt deshalb so sehr in den Vordergrund, weil es für die Schrifsteller jüdischer Proveninez während des gesamten Zeitalters der Assimilation und Westwanderung tatsächlich von übergeordneter Bedeutung gewesen ist. Wenn die Juden in der Diaspora immer dazu tendierten, mit ihrem Gastland sich zu identifizieren, so war ihr Attachement an Österreich doch ein Phänomen besonderer Art. (Sebald 1985Sebald, W. G. Unheimliche Heimat - Essays zus österreichischen Lietaratur. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1985.: 12)

Se, no contexto da emancipação e assimilação dos judeus austríacos, a aquisição de um título de nobreza representava, por assim dizer, o zênite no longo caminho que levava da exclusão dos guetos e da segregação para o ingresso na modernidade imperial, o caso de von Winternitz, o Austrospinner, emblematiza a permanência de um sonho que se tornou distópico e anacrônico, e o apego a uma ideia de Heimat que foi sepultada sob os escombros da história do século XX. Falando sobre as ideias de Heimat entre os literatos austríacos, especialmente os de origem judaica, Sebald escreve, ainda:

Der Heimatbegriff ist verhältnsmäßig neuen Datums. Er prägte sich in eben dem Grad aus, in dem in der Heimat kein Verweilen mehr war, in dem einzelne und ganze gesellschaftliche Gruppen sich gezwungen sahen, ihr den Rücken zu kehren und auszuwandern. Der Begriff steht somit, wie das ja nicht selten der Fall ist, in reziprokem Verhältnis zu dem, worauf er sich bezieht. Je mehr von der Heimat die Rede ist, desto weniger gibt es sie. [...] (Sebald 1985Sebald, W. G. Unheimliche Heimat - Essays zus österreichischen Lietaratur. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1985.: 11-12)

A Heimat - de Roth, de Kalmar e dos outros artistas e escritores judeus da Áustria, tais como Stefan Zweig - tornou-se uma abstração, uma memória do paraíso perdido, um topos de estatura mítica cujas emanações acompanhariam a geração dos exilados por todas as partes do mundo. Transfiguradas pela memória, essas ideias e essas esperanças ressurgem nos livros - e também nos Andes bolivianos e em tantas outras moradas espalhadas pelo mundo - como paradigmas de um mundo melhor e mais justo que, no entanto, talvez nunca tenha existido fora da cabeça de outros tantos Austrospinners - dentre os quais talvez estivesse também o próprio Kalmar.

O personagem Von Winternitz, e de certa maneira também o próprio Fritz Kalmar, assim como seus pais e avós, percorreram integralmente o longo caminho que levou dos guetos para a ilusão de integração, e desta para o exílio, a nostalgia e o cultivo de uma Heimat artificial, isto é, passaram do estatuto de gelernte Österreicher para o de gelernte Heimatlose (Sebald 1985Sebald, W. G. Unheimliche Heimat - Essays zus österreichischen Lietaratur. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1985.: 142), mas mantiveram viva, com singular persistência, uma ideia de si mesmos em cujo centro se encontra uma Áustria que parece tão metafísica quanto a Jerusalém celestial desejada pelos judeus ao longo de seus séculos de exílio e de esperanças messiânicas.

Referências Bibliográficas

  • Assmann, Aleida. Erinnerungsräume: Formen und Wandlungen des kulturellen Gedächtnisses. Munique: C. H. Beck, 2018.
  • Dessauer, Adolf. Großstadtjuden. Viena: Wilhelm Braumüller, 1910.
  • Eisenbürger, Gert; Küppers, Gaby. Vom Emigrantes zum Konsul - Der Wiener Fritz Kalmar in Bolivien und Uruguay. In: ILA - Das Lateinamerika Magazin, v. 240, 11/2000.
  • Henn, Anne Saint-Sauveur, Frontières infranchissables de l’exil? L’expérience de l’écrivain autrichien Fritz Kalmar. In: Frontières, transferts, échanges transfrontaliers et interculturels - Actes du XXXVI e Congrès de l’Association des Germanistes de l’Enseignement Supérieur. Berlim: Peter Lang, 2005.
  • Johnston, William. Friedrich Torberg und die Rolle der Juden als Träger der Eigenart Österreichs. In: Der österreichische Mensch: Kulturgeschichte der Eigenart Österreichs. Böhlau Verlag: Viena, 2010.
  • Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus, 1998.
  • Krausz, Luis S. Passagens: Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole. São Paulo: Edusp, 2012.
  • Magris, Claudio. Der habsburgische Mythos in der modernen österreichischen Literatur. Viena: Zsolnay, 2000.
  • Mehrens, Dietmar. Vom göttlichen Auftrag der Literatur. Hamburgo: Libri Books, 2000.
  • Roth, Joseph. Die Kapuzinergruft. Colônia: Kiepenheuer & Witsch, 1999.
  • Schwarz, Egon. Wien und die Juden. Munique: C. H. Beck, 2014.
  • Sebald, W. G. Unheimliche Heimat - Essays zus österreichischen Lietaratur. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1985.
  • Seeber, Ursula. Nachwort. In: Kalmar, Fritz. Das Herz europaschwer. Viena: Picus Verlag, 1998.
  • Spitzer, Leo. Hotel Bolivia. Nova York: Hill & Wang, 1999.
  • Werfel, Franz. Twilight of a World. Nova York: Viking Press, 1937.
  • Zweig, Stefan. Die Welt von gestern. Detmold: Bertelsmann, 1961.
  • Zwerger, Veronika. Eine kleine Gruppe Entschlossener...The Federación de Austriacos Libres. in Bolivia. In: Schreckenberger, Helga (org.) Networks of Refugees from Nazi Germany. Amsterdam: Brill, 2016.
  • 2
    Avant 1938 il n’éxistait pas aux yeux de Fritz Kalmar de frontière à l’interieur de l’Autriche entre juifs et non-juifs. Conscient que l’antissemitisme autrichien a toujours existé et qu’il était même particulièrement virulent [...] il n’en a pas soufert avant 1938. D’une famille juive libérale totalement assimilé, sans attache réligieuse, Fritz Kalmar ne se sentait pas bien dans sa jeunesse quand on parlait de judéité et il avait même « pêut-être un peu d’honte d’être juif », attitude qui changea par la suite. Le cas de Fritz Kalmar, dont l’identité collective était conçue non par rapport à une ethnie, mais à une culture et une nation, est répresentatif de la violence incompreensible de cette frontière soudaine, ressentie plus douloureusement par les Allemands et Autrichiens dénués de conscience politique ou d’identité religieuse marquée, facteurs qui favorisent une reconstruction personelle.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2019
  • Aceito
    24 Fev 2020
Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/; Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã Av. Prof. Luciano Gualberto, 403, 05508-900 São Paulo/SP/ Brasil, Tel.: (55 11)3091-5028 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: pandaemonium@usp.br