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Freud, tradutor do instinto

[Freud, translator of instinct]

Resumo

Neste artigo, pretendemos reavaliar a querela tradutória em torno do Trieb freudiano. Primeiro, destacamos trechos em que Freud, ao citar Frazer, Trotter e Le Bon, traduz o termo “instinct” ora por “Instinkt”, ora por “Trieb”, de forma indiferenciada. Também retomamos a tradução que Freud fez de livros de Bernheim, em que emprega “Instinct” para traduzir o “instinct” francês. Na segunda seção do artigo, abordamos criticamente a opção tradutória hoje mais aceita no Brasil: “pulsão”. Esboçamos uma pequena história dessa escolha tradutória, tendo em vista que, enquanto Freud era vivo, ele jamais se opôs ao uso de “instinto”. A escolha por “pulsion” (arcaísmo obsoleto por séculos) ocorreu primeiramente na França, porém não somente por motivos etimológicos ou semânticos, pois também fez parte de toda uma reinterpretação (antinaturalista) da teoria freudiana. O termo “pulsion” - de certa forma o epicentro vocabular dessa releitura francesa - disseminou-se, tornando-se uma verdadeira visão consolidada, aceita tacitamente por boa parte dos tradutores de Freud não só na França, como no Brasil, na Argentina, na Itália. A partir de considerações teóricas sobre o estatuto do Trieb na teoria freudiana, e munidos dos fatos tradutórios discutidos na primeira seção do artigo, esboçamos então uma crítica ao uso de “pulsão”.

Palavras-chave:
Freud; Trieb; Tradução; Instinto; Pulsão

Abstract

In this article, we aim to reopen the translational quarrel around the Freudian concept of Trieb. Firstly, we highlight extracts in which Freud, when citing Frazer, Trotter and Le Bon, translates the term “instinct” either by “Instinkt” or by “Trieb”, in an undifferentiated fashion. We also return to Freud’s translation of Bernheim’s books, in which he employs “Instinct” to translate the French “instinct”. In the second section of the article, we critically approach the translational option that is currently the most accepted in Brazil: “pulsão”. We sketch a brief history of this translational choice, considering that, while alive, Freud never opposed the use of “instinct”. The choice of “pulsion” (an archaism, obsolete for centuries) occurred firstly in France, but not exclusively for etymological or semantic reasons, for it was also part in a whole (antinaturalist) reinterpretation of Freudian theory. The term “pulsion” - in a certain way the lexical epicentre of this French rereading - has spread, becoming a real consolidated vision, tacitly accepted by most of Freud’s translators not only in France, but also in Brazil, Argentina, and Italy. By considering theoretically the status of Trieb in Freudian theory, and armed with the translational facts discussed in the first section of the article, we then criticise the use of “pulsão”.

Key-words:
Freud; Trieb; Translation; Instinct; Pulsion

Uma citação do quarto tomo de Totemism and Exogamy, de James Frazer, contida no último ensaio de Totem e tabu, deu-nos o ensejo para reavivar a querela tradutória em torno do Trieb freudiano. Trata-se de um extenso parágrafo, citado por Freud1 1 Para as citações de Freud, utilizo-me mormente de duas edições: a coletânea em alemão Gesammelte Werke (doravante mencionada como GW) e a tradução brasileira, sob a coordenação de Paulo César de Souza, publicada pela Companhia das Letras (por isso abreviada por CL). Numa nota de rodapé, também citarei a versão argentina, traduzida diretamente do alemão por José L. Etcheverry, publicada pela Amorrortu Editores (AE). Para não confundir o leitor, irei referenciá-las sempre pelas abreviaturas, seguidas pelo volume em questão, indicando, no corpo do artigo, a data de publicação do texto citado. quase que em sua integralidade, no qual Frazer se opõe à hipótese de “uma aversão natural pelo incesto” (a natural aversion to incest), aversão esta que seria resultado de “um instinto natural” (a natural instinct). Freud cita Frazer, deixemos claro desde o início, para se apoiar em sua argumentação; segundo ele mesmo diz, as opiniões serão citadas na íntegra “porque concordam, em essência, com os argumentos desenvolvidos em meu ensaio sobre o tabu” (GW 9: 150).

Mas, antes de copiarmos aqui essa longa citação, expressemos ao leitor algumas informações prévias importantes. Freud se utiliza copiosamente de citações de Frazer; um dos títulos mais mencionados em Totem e tabu é justamente Totemism and Exogamy, obra dividida em quatro tomos. Desde o início de seus ensaios, porém, fica claro que Freud cita a versão original do texto, em inglês. A primeira citação retirada do livro se encontra numa nota de rodapé logo no início do primeiro ensaio, à página 7 da versão das Gesammelte Werke. Reproduzo-a aqui em sua forma original: “F r a z e r, Totemism and Exogamy, Bd. I, p. 53. The totem bond is stronger than the bond of blood or family in the modern sense” (GW 9: 7). Ou seja, Freud apõe a frase de Frazer em inglês, sem dar-se ao trabalho de traduzi-la. Esse procedimento é repetido diversas vezes ao longo de Totem e tabu. Por exemplo, à página 146, Freud cita Frazer da seguinte maneira (reproduzo as duas próximas citações em sua forma original):

„I must request the reader to bear constantly in mind that the two institutions of totemism and exogamy are fundamentally distinct in origin and nature though they have accidentally crossed and blended in many tribes.“ (T. and Ex., I., Vorrede XII.)

Ou, à página seguinte:

„In no other way does it seem possible to explain in all its details a system at once so complex and so regular.“

A referência se encontra grafada dessa vez numa nota de rodapé: “2) Frazer, l. c., p. 106” (GW 9: 147, 148).

Dito isso, podemos agora retornar à extensa citação que prometemos analisar. Ela se encontra à página 150, só que desta vez vem em alemão. Ao que tudo indica, portanto, essa citação é na verdade uma tradução da lavra do próprio Freud. É possível que, por ser longa demais, ele tenha achado melhor vertê-la ao alemão, para facilitar a vida de seu leitor; de toda forma, ao efetuar essa tradução, Freud decididamente deixou traços tradutórios interessantíssimos para os estudiosos de sua obra.

Colocarei, em sequência, a tradução alemã de Freud, a versão original inglesa de Frazer, e a tradução para o português de Paulo César de Souza. Como este último indica, ele traduziu o original inglês. Desta vez, irei sublinhar as palavras que interessam à minha leitura.

Es ist nicht leicht einzusehen, warum ein tief wurzelnder menschlicher Instinkt die Verstärkung durch ein Gesetz benötigen sollte. Es gibt kein Gesetz, welches den Menschen befiehlt zu essen und zu trinken, oder ihnen verbietet, ihre Hände ins Feuer zu stecken. Die Menschen essen und trinken und halten ihre Hände vom Feuer weg, instinktgemäß, aus Angst vor natürlichen und nicht vor gesetzlichen Strafen, die sie sich durch Beleidigung dieser Triebe zuziehen würden. Das Gesetz verbietet dem Menschen nur, was sie unter dem Drängen ihrer Triebe ausführen könnten. Was die Natur selbst verbietet und bestraft, das braucht nicht erst das Gesetz zu verbieten und zu strafen. Wir dürfen daher auch ruhig annehmen, daß Verbrechen, die durch ein Gesetz verboten werden, Verbrechen sind, die viele Menschen aus natürlichen Neigungen gern begehen würden. Wenn es keine solche Neigung gäbe, kämen keine solche Verbrechen vor, und wenn solche Verbrechen nicht begangen würden, wozu brauchte man sie zu verbieten? Anstatt also aus dem gesetzlichen Verbot des Inzests zu schließen, daß eine natürliche Abneigung gegen den Inzest besteht, sollten wir eher den Schluß ziehen, daß ein natürlicher Instinkt zum Inzest treibt, und daß, wenn das Gesetz diesen Trieb wie andere natürliche Triebe unterdrückt, dies seinen Grund in der Einsicht zivilisierter Menschen hat, daß die Befriedigung dieser natürlichen Triebe der Gesellschaft Schaden bringt (GW 9: 150)

A essa citação, segue a brevíssima nota de rodapé com a referência: “1) l. c, p. 97”. Vejamos então a versão original, de Frazer:

It is not easy to see why any deep human instinct should need to be reinforced by law. There is no law commanding men to eat and drink or forbidding them to put their hands in the fire. Men eat and drink and keep their hands out of the fire instinctively for fear of natural not legal penalties, which would be entailed by violence done to these instincts. The law only forbids men to do what their instincts incline them to do; what nature itself prohibits and punishes, it would be superfluous for the law to prohibit and punish. Accordingly we may always safely assume that crimes forbidden by law are crimes which many men have a natural propensity to commit. If there was no such propensity there would be no such crimes, and if no such crimes were committed what need to forbid them? Instead of assuming, therefore, from the legal prohibition of incest that there is a natural aversion to incest, we ought rather to assume that there is a natural instinct in favour of it, and that if the law represses it, as it represses other natural instincts, it does so because civilised men have come to the conclusion that the satisfaction of these natural instincts is detrimental to the general interests of society (Frazer 1910: 97-98).

A tradução de Paulo César de Souza:

Não é fácil ver por que um instinto humano profundo necessitaria ser reforçado por uma lei. Não existe lei ordenando que os homens comam ou bebam, ou proibindo-os de pôr as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantêm as mãos longe do fogo instintivamente, por medo de penalidades naturais, não legais, que seriam trazidas pela violência feita a esses instintos. A lei os proíbe apenas de fazer o que seus instintos os inclinam a fazer; seria supérfluo que a lei proibisse e punisse o que a natureza mesma proíbe e pune. Assim, podemos tranquilamente supor que os crimes proibidos por lei são crimes que muitos homens têm propensão natural a cometer. Se não houvesse tal propensão não haveria tais crimes, e se tais crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Portanto, em vez de supor, pela proibição legal do incesto, que há uma aversão natural ao incesto, deveríamos supor que há um instinto natural para ele, e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é nociva aos interesses gerais da sociedade (CL 11: 190-191).

O que salta aos olhos é que, enquanto Frazer se utiliza tão-somente da palavra “instinct” (e de um advérbio derivado dela: “instinctively”), Freud emprega tanto o termo germânico “Trieb” quanto o latino “Instinkt” para traduzi-la. Toda a argumentação de Frazer parte da suposição de um instinto humano (“a human instinct”) contrário ao incesto e a critica, mostrando que nenhuma lei é necessária para proibir ou exigir atos que a natureza já tenha proibido ou exigido. A natureza, aqui, prescreve leis, leis naturais às quais os seres vivos não podem ou não devem desobedecer (à custa de sofrimento, dor ou mesmo morte). Esse hipotético “human instinct”, Freud o verte por “menschlicher Instinkt”. A ação dos homens de tirar a mão do fogo, então, Frazer a descreve com o advérbio “instinctively”, que Freud traduz por “instinktgemäß”: eles assim agem por medo de uma penalidade não legal, mas natural, que seria trazida pela insubmissão a esse “instinct” - que aqui, no entanto, Freud traduz por “Trieb”. A seguir, Frazer conclui pela existência de um instinto em favor do incesto (“a natural instinct in favour of it”), e a tradução dada por Freud é das mais interessantes: “ein natürlicher Instinkt zum Inzest treibt”. Freud usa o verbo treiben (do qual Trieb é um dos derivados) para dizer da ação do “Instinkt” em favor do incesto (nada de diferença ontológica radical nesse trecho, portanto, entre Instinkt e a ação de treiben). Esse instinto, porém, informa-nos Frazer que a lei o reprime, assim como o faz com outros instintos naturais (“other natural instincts”) - e agora Freud verte para “das Gesetz diesen Trieb wie andere natürliche Triebe unterdrückt”. Por fim, os “natural instincts”, cuja satisfação pode ser tão nociva à sociedade (tese tantas vezes repetida por Freud), são traduzidos por ele por “natürliche Triebe”.

Esse parágrafo em alemão, tradução do punho do próprio Freud, parece ter passado despercebido pelos seus comentadores. Nele, a alternância entre os termos Instinkt e Trieb parece não permitir nenhuma dissociação conceitual entre eles. Com efeito, seria forçado demais dizer que, ali onde Freud traduz “instinct” por “Instinkt”, ele tem em mente os famigerados “instintos dos animais”, enquanto a introdução do “Trieb” sinalizaria o reino do “pulsional”, com todas as suas características diferenciadoras determinantes. Os dois termos parecem permutar-se sem uma verdadeira discriminação conceitual, de forma indiferenciada. Ou melhor: indiferente. Tudo parece indicar que, nesse caso específico, enquanto a língua inglesa se serve de uma palavra apenas (instinct), a língua alemã tem à sua disposição duas que se podem intercambiar: Trieb e Instinkt para traduzi-la.

Sozinha, essa tradução de Freud já nos forneceria muito material para repensarmos a tradução de Trieb. Mas o fato é que Freud, além de neurologista, psicoterapeuta e teórico, foi também um tradutor: traduziu não só algumas das Leçons de Charcot, como dois livros inteiros de Bernheim. Além disso, também num outro momento de sua obra ele tratará da mesma forma alguns textos alheios: em 1921, ao citar Trotter e Le Bon, Freud concede ao “instinct” alheio o mesmo tratamento que concedera em Totem e tabu: ora o verte por “Trieb”, ora por “Instinkt”. Convém analisar, pois, não apenas o Freud teórico do instinto, mas também o Freud tradutor do instinto.

A tradução de Hypnotisme, suggestion, psychothérapie : Nouvelles études, livro publicado por Bernheim em 1891Bernheim, Hippolyte. Hypnotisme, suggestion, psychothérapie : Nouvelles études. Paris: Octave Doin éditeur, 1891., saiu em 1892 com o título Neuen Studien über Hypnotismus, Suggestion und Psychotherapie. Sobre um caso de hipnotismo, Bernheim escreve (grifos nossos): “Le cas de Gabrielle Bompard est sans doute analogue. Elle aussi est esclave de ses instincts; le sens moral fait défaut” (Bernheim 1891: 148); Freud traduz: “Der Fall der Gabriele Bompard ist ohne Zweifel dem vorigen analog. Auch sie ist ihren Instincten blind unterworfen, der moralische Sinn geht ihr ab” (Bernheim 1892: 101). Tradução nossa: “o caso de Gabrielle Bompard é sem dúvida análogo. Também ela é escrava de seus instintos; o senso moral lhe falta”. Ou seja, aqui Freud emprega a tradução literal de “instinct”, ainda numa grafia arcaica, hoje não mais aceita, com c em vez de k. O mesmo ocorre em vários outros trechos do livro, em que “instinct” e seus derivados são vertidos sempre por “Instinct” e derivados. Entre 1892 e 1913, portanto, operou-se uma mudança: em plena produção psicanalítica, já tendo forjado seu próprio conceito de Trieb, Freud passa a verter o “instinct” alheio seja por “Trieb”, seja por “Instinkt”.

É o que vemos, como já adiantamos, em 1921. O capítulo IX da Psicologia das massas e análise do eu se intitula “Der Herdentrieb”, que Paulo César de Souza traduz por “O instinto gregário”. Boa parte dele é dedicada a comentários à teoria de Trotter, cujo livro Instincts of the Herd in Peace and War fora publicado em 1916Trotter, Wilfred. Instincts of the Herd in Peace and War. London: Bouverie House, 1916.. Assim como no caso de Frazer, Freud cita o livro em sua versão original, como se verifica na primeira referência a ele, em nota de rodapé: “1) W. T r o t t er, Instincts of the Herd in Peace and War. London 1916. Zweite Auflage” (GW 13: 130). Como o título do capítulo mostra, Freud discorre nele sobre o “Herdentrieb”; na sua descrição da teoria de Trotter, porém, lemos (grifo nosso): “T r o t t e r leitet die an der Masse beschriebenen seelischen Phänomene von einem Herdeninstinkt (gregariousness) ab, der dem Menschen wie anderen Tierarten angeboren zukommt” (GW 13: 130). Tradução de Paulo César de Souza: “Trotter faz derivar os fenômenos anímicos observados na massa de um instinto gregário (gregariousness), inato no ser humano e em outras espécies animais” (CL 15: 78). Logo a seguir, ainda descrevendo com suas próprias palavras as hipóteses de Trotter, Freud escreve: “Der Einzelne fühlt sich unvollständig (incomplete), wenn er allein ist. Schon die Angst des kleinen Kindes sei eine Äußerung dieses Herdeninstinkts” (GW 13: 131). Tradução brasileira: “O indivíduo sente-se incompleto (incomplete) quando está só. O medo da criança pequena já seria expressão desse instinto gregário” (CL 15: 78-79). Analisemos rapidamente esses passos da escrita de Freud: neles, encontram-se descrições parafrásticas da teoria de Trotter, por meio das quais Freud transmite as ideias do neurocirurgião britânico com suas próprias palavras. Assim, insere uma ou outra palavra inglesa (gregariousness, incomplete), mas translada ao alemão a teoria alheia. Nessa translação, traduz o “instinct” do original por “Instinkt”, muito embora no título ele tenha enunciado o tema do capítulo como Trieb.

Essa permuta entre Trieb e Instinkt é ainda mais patente na descrição dos quatro instincts básicos de Trotter. Grifo novamente os termos que nos interessam: “T r o t t e r gibt als die Reihe der von ihm als primär angenommenen Triebe (oder Instinkte): den Selbstbehauptungs-, Ernährungs-, Geschlechts- und Herdentrieb” (GW 13: 131). A tradução de Paulo César de Souza mantém em alemão os termos por mim grifados: “Trotter oferece a lista dos Triebe (ou Instinkte) por ele aceitos como primários: o de autoconservação, o de alimentação, o sexual e o gregário” (CL 15: 79). Aqui, temos o sintagma extremamente significativo: “Triebe (oder Instinkte)”. Freud opera uma tradução simultânea, por assim dizer, do instinct-Instinkt ao Trieb: aquilo que antes fora traduzido como Instinkt agora é vertido a Trieb. É como se Freud dissesse: “a ideia exposta por Trotter com a palavra instinct, nós podemos em alemão traduzi-la literalmente por Instinkt, mas, na minha própria teoria, eu prefiro empregar o termo Trieb, portanto passarei a utilizar também essa palavra”. Essa permuta indiferenciada entre uma palavra e outra ainda aparecerá em dois momentos desse capítulo: primeiramente, ao tratar das relações entre sugestionabilidade e o instinto gregário, Freud diz que Trotter, sendo contrário à hipótese de o Herdentrieb ser um derivado da sugestionabilidade, prefere a hipótese oposta, segundo a qual ela é que derivaria do... Herdeninstinkt (GW 13: 131-132); em segundo lugar, Freud indica que o Herdeninstinkt não deixa nenhum lugar ao líder do grupo e que, partindo desse Trieb, nenhum caminho conduz à necessidade de um deus (GW 13: 132). E ele completa com um jogo de palavras: “falta o pastor ao rebanho” (es fehlt der Hirt zur Herde). “Hirt” (pastor) é palavra que Freud emprega apena esta vez neste seu livro, ela claramente faz parte de um calembur entre Hirt e Herde: um rebanho requer um pastor, mas a suposição de um instinto gregário inato não permite explicar isso (um dos motivos pelos quais Freud critica Trotter). Isso deve ficar claro por uma razão bem simples: Freud é um escritor, um escritor cuidadoso e esmerado com as palavras, cuja obra é recheada de trocadilhos desse tipo. Ao alternar Instinkt e Trieb em suas paráfrases da teoria alheia, ele não pode estar sendo descuidado.

Com as referências a Le Bon, ainda em 1921, as coisas são ainda mais curiosas. Nesse caso, Freud indica basear-se no livro Psychologie der Massen, e numa nota de rodapé percebemos tratar-se de uma tradução: “1) Übersetzt von Dr. Rudolf E i s l e r, zweite Auflage 1912” (GW 13: 76). Ou seja, desta vez, em vez de citar diretamente do original francês (Psychologie des foules), Freud recorre a uma tradução alemã já existente. Ao descrever com suas próprias palavras o conceito de “alma coletiva” de Le Bon, Freud escreve (grifos nossos): “im Beisammensein der Massenindividuen alle individuellen Hemmungen entfallen und alle grausamen, brutalen, destruktiven Instinkte, die als Überbleibsel der Urzeit im Einzelnen schlummern, zur freien Triebbefriedigung geweckt werden” (GW 13: 84). Tradução de Paulo César de Souza (com grifos nossos): “ao se reunirem os indivíduos numa massa, todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígios dos primórdios do tempo, são despertados para a livre satisfação instintiva” (CL 15: 27). Uma vez mais, numa paráfrase, Freud emprega o termo “Instinkt”, para depois dizer que os instintos encontram uma livre Triebbefriedigung. Há um ajuste, portanto, do vocabulário e da teoria alheia ao seu próprio vocabulário, à sua própria teoria. Há uma permuta, um deslocamento constante entre o léxico latino (que só dispõe da palavra “instinct”) e o léxico psicanalítico (que prefere o Trieb ao Instinkt).

Mas o mais curioso se encontra nas entrelinhas, na passagem do original à tradução utilizada por Freud, e nas alterações que ele mesmo insere nessa tradução. Expliquemo-nos. Numa citação direta de Le Bon, entre aspas, encontramos que, na massa, o indivíduo é “ein Barbar, das heißt ein Triebwesen” (GW 13: 82). No original francês: “c’est un instinctif, par conséquent un barbare” (Le Bon 1937: 19).2 2 Notemos que a versão a que tivemos acesso, de 1937, é a quadragésima edição do best-seller de Le Bon. Mas e na tradução utilizada por Freud, como se encontra grafado esse mesmo trecho? Para nossa surpresa, ele está assim: “...ein Barbar, d. h. ein Instinktwesen” (Le Bon 1908: 16). Ou seja, não somente Freud alterou ligeiramente a locução adverbial alemã (estendendo o “d. h.” por “das heißt”), como também trocou, por conta própria, Instinkt por Trieb. Pouco antes, Freud fizera a mesma coisa. Em outra citação direta de Le Bon, entre aspas, lemos que, estando em uma massa, o indivíduo adquire um sentimento de enorme potência, que lhe permite “Trieben zu fröhnen” (GW 13: 79). Na versão original de Le Bon, lê-se: “... céder à des instincts” (Le Bon 1937: 17). Ora, na tradução de Eisler encontra-se grafado: “Instinkten zu fröhnen” (Le Bon 1908: 14). Novamente vemos um ajuste do termo latino ao termo germânico, do original ao traduzido, do vocabulário alheio ao vocabulário psicanalítico. Freud é tradutor não só do instinct, mas também do Instinkt.

Podemos agora arriscar uma hipótese para aquela mudança léxico-tradutória que diagnosticáramos entre 1892 e 1913. Ao traduzir Bernheim, Freud opta pela tradução mais literal de instinct: Instinct. Já em 1913 e 1921, Freud parafraseia os autores citados, seja alternando Instinkt com Trieb, seja adulterando o Instinkt e substituindo-o pelo seu próprio Trieb. Como indica Luiz Hanns (1996Hanns, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.: 338) em seu Dicionário comentado do alemão de Freud, “em livros de medicina preponderava, há séculos, uma equivalência entre Trieb e Instinkt”; apesar disso, a abrangência de Trieb (cujo escopo vai desde a botânica, a fisiologia e a psicofísica até o romantismo alemão e a religião) é bem maior que a de Instinkt, como o próprio Hanns indica. A esse respeito, lemos no interessantíssimo Dictionnaire des intraduisibles, organizado por Barbara Cassin (2004Cassin, Barbara (Org.). Vocabulaire européen des philosophies - Dictionnaire des intraduisibles. Paris: Éditions du Seuil, 2004.: 1051):

Como é frequente em alemão, lidamos com um duplo germânico-latino: Trieb é uma palavra de raiz germânica que forma uma dupla com a palavra de origem latina Instinkt, cujo emprego se difundiu na literatura científica somente a partir do século XIX (em 1760, H. S. Reimarus intitula seu livro sobre os instintos dos animais Triebe der Thiere). Mas, como também é frequente, os dois termos não são equivalentes. Trieb é uma palavra antiga e de uso corrente, enquanto Instinkt é uma palavra técnica [mot savant], que remete à significação precisa do instinto em biologia, a saber: “[a] tendência inata a atos determinadas (segundo as espécies), executadas perfeitamente sem experiência prévia e subordinadas a condições do meio ambiente” (Le Petit Robert).

Parece-nos que a escolha de Freud por Trieb, e não por Instinkt, deveu-se a uma razão dupla: além de geralmente ter sentidos mais abrangentes do que o Instinkt, Trieb é também uma palavra de uso cotidiano. Trieb é derivada do verbo treiben (impelir, pôr em movimento), cujos derivados prefixados (übertreiben, antreiben, vertreiben, betreiben, auftreiben…)3 3 É interessante notar a esse respeito que, embora o primeiro emprego publicado do vocábulo Trieb por Freud tenha sido apenas em 1905, logo na abertura dos seus Três ensaios, o verbo treiben e seus derivados já eram regularmente utilizados por ele antes disso. são bem comuns na obra freudiana. Trieb não está, evidentemente, entre as dez palavras mais empregadas pelos germanófonos, mas não é palavra esotérica, técnica, reservada aos especialistas. É Instinkt que é essa palavra, ele é um mot savant, um termo empregado pelos médicos, pelos biólogos; em suma, por setores muito específicos da sociedade. E, como é bem sabido, ao forjar paulatinamente o léxico próprio à sua disciplina científica, Freud preferia não empregar termos esotéricos, mas sim termos difundidos, de uso corrente. É o caso, por exemplo, de Anlehnung, cuja tradução por “anaclisis”, de Strachey, foi duramente criticada: se, de um lado, sich anlehnen an conota o ato de apoiar-se, de sustentar-se, de usar um modelo, sendo um verbo utilizado correntemente pelos germanófonos, “anaclisis” é termo completamente desprovido de coloquialidade, que nenhum britânico emprega para se referir ao ato (físico ou figurado) de apoio ou sustentação. O mesmo fato se verifica em outros tantos termos “técnicos” da psicanálise: Verdrängung, Besetzung, Verwerfung, palavras que, embora não sejam assim tão amiúde usadas no dia a dia, são facilmente compreendidas pelo leitor alemão e não carregam a aura técnica e esotérica de algumas de suas traduções (como o “recalcamento”, a “catexia”, a “forclusão”).

A primeira aparição do Trieb na obra freudiana, na abertura dos Três ensaios, é testemunha, porém, de que Freud aproxima a psicanálise não somente da expressão popular, mas também da biologia (sirvo-me da tradução de Paulo César de Souza):

A existência de necessidades sexuais no ser humano e nos animais é expressa, na biologia, com a suposição de um “instinto sexual” [Geschlechtstrieb]. Nisso faz-se analogia com o instinto de nutrição, a fome [mit dem Trieb nach Nahrungsaufnahme, dem Hunger]. A linguagem corrente [Volkssprache] não tem uma designação correspondente à palavra “fome”; a ciência [Wissenschaft] emprega “libido” (GW 5: 33; CL 6: 20).

Por não ter expressão popular, corrente, cotidiana, correspondente a “fome”, Freud tem de recorrer à expressão científica: “libido” (e sabemos quão importante será doravante o conceito de libido na teoria freudiana). Libido está para o Trieb sexual assim como a fome está para o Trieb de nutrição. Freud coloca em comunicação, com um só termo (Trieb), a linguagem da ciência (Wissenschaft) e a linguagem popular (Volkssprache). Ao desenvolver sua teoria, ele a mantém no domínio científico, mas ao mesmo tempo não a mantém nos ares acadêmicos, esotéricos, distantes da linguagem popular. Aliás, sempre que possível, Freud se voltará às expressões idiomáticas, aos trocadilhos cotidianos, à linguagem do dia a dia para reforçar ou endossar suas hipóteses. Em 1926, por exemplo, lemos: “na psicanálise nós gostamos [lieben] de permanecer em contato com o modo popular de pensar e preferimos tornar seus conceitos cientificamente úteis, em vez de rejeitá-los” (GW 14: 222).

Ora, ao alternar Instinkt com Trieb em sua tradução do instinct alheio, Freud está ajustando o vocabulário não-germânico ao germânico, está operando um ajuste do léxico alheio ao seu próprio. Não existe vocábulo neolatino correspondente ao Trieb alemão, mas a ideia do “instinct” é por vezes a mesma ideia contida em “Trieb”. Com efeito, quando Le Bon diz dos “instintos” que são despertos quando da formação de uma massa, ele está se utilizando de uma palavra cotidiana, comum, compreensível a todos os francófonos (não se trata, em hipótese alguma, de “padrões comportamentais”, mas sim de “forças inatas, impulsos corpóreos”); o mesmo se passa com os instincts britânicos de Frazer ou de Trotter. No caso deste último, aliás, as quatro classes de instincts são uma categorização análoga à que faz Freud dos seus Triebe (mas, à diferença do teórico inglês, Freud distingue apenas duas classes, e não quatro). Donde o “Instinkte (oder Triebe)”: Freud sabe que a tradução literal de instinct é Instinkt (por isso às vezes parafraseia a palavra de Trotter usando-se de Instinkt), mas, para mostrar a equivalência do conceito, da ideia expressa pela palavra, ele a alterna com Trieb.

Maior abrangência de sentidos, aproximação da linguagem cotidiana: eis as vantagens do Trieb frente ao Instinkt. Ao recorrer a autores não-germânicos, porém, a palavra que muitas vezes corresponde ao Trieb é muito precisamente o “instinto”. E Freud faz questão de demarcar essa correspondência.

* * *

Em sua tradução da Psicologia das massas e análise do eu, Paulo César de Souza apõe uma importantíssima nota de rodapé à citação que recém-citamos, aquela em que Le Bon diz que o indivíduo, estando na massa, pode “céder à des instincts”. Reproduzo aqui a nota em sua inteireza:

É interessante observar que o texto francês de Le Bon traz instincts nesse ponto, vertido por Triebe na tradução citada por Freud, mas a nova edição francesa modifica o original, utilizando pulsions. Durante décadas, enquanto viveu, Freud acompanhou traduções de suas obras para o inglês, o francês, o italiano e o espanhol, nas quais se empregava “instinto” pata verter Trieb, e nunca fez objeções ao termo (embora notando sua insuficiência). A nova tradução francesa não apenas desconsidera esse fato como chega ao ponto de “corrigir” um autor francês que escreveu no final do século XIX (seu livro é de 1895), para adequá-lo à posição teórica que determina ser errado traduzir Trieb por outro termo que não “pulsão” (CL 15: 20).4 4 Como se pode notar, Paulo César de Souza erra ao dizer que na tradução usada por Freud já se encontra o Trieb, quando na verdade foi o próprio Freud quem adulterou a tradução para o alemão.

Com essa nota, adentramos a grande polêmica tradutória da obra freudiana: o embate entre “instinto” e “pulsão”. Como se pode depreender do comentário de Paulo César de Souza, nesse caso específico a tradução francesa (encabeçada por Jean Laplanche) agiu, senão de má-fé, no mínimo com descuido em seu tratamento do texto de Le Bon. Não só traduziu o “Trieb” por “pulsion”, mas também o próprio “instinct” francês!5 5 Em sua tradução ao espanhol, na edição Amorrortu, José L. Etcheverry comete um equívoco similar. Na citação de Frazer sobre o “instinto natural” de aversão ao incesto, fica claro que o tradutor argentino não foi à fonte original, mas traduziu apenas a tradução freudiana. Ao operar essa tradução da tradução, verteu “Instinkt” por “instinto” e “Trieb” por “pulsión” (AE 13: 126), e com isso Frazer, autor inglês que só empregara “instinct”, está de repente falando de instintos e pulsões como se fossem duas coisas diferentes! Mas, no caso de Le Bon, Etcheverry não fez como os franceses, e traduziu sempre o “instinct” por “instinto”, mesmo onde Freud o vertera para “Trieb” (AE 18: 71, 73). Curiosamente, no entanto, o título do capítulo IX da Psicologia das massas e análise do eu, “Der Herdentrieb”, em alemão, foi vertido para o espanhol como “El instinto gregario” (AE 18: 111), e com isso Etcheverry comete o “equívoco” de traduzir “Trieb” por “instinto”. Definitivamente, Freud deflagrou uma grande confusão em seus tradutores ao traduzir, de forma indiferente, “instinct” (e “Instinkt”) por “Trieb” e “Instinkt”. A hipótese que pretendemos demonstrar doravante é a seguinte: a tradução francesa, ao utilizar o vocábulo “pulsion”, adultera não só o texto de Le Bon, como também o do próprio Freud.

Não tencionamos defender a tradução de “Trieb” por “instinto”, como se a palavra latina fosse completamente suficiente ou plenamente adequada (coisa que ela não é). Um amplo balanço das semelhanças e diferenças das duas palavras já foi feito, à exaustão, por Hanns (1996Hanns, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.: 338-346) em seu dicionário já citado; ademais, uma clara e elegante defesa desse tipo já foi feita por Richard Simanke (2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.; 2014b), em dois artigos. Ao cabo de nossa análise, “instinto” emergirá como uma possível tradução, apenas parcialmente adequada. O problema, em nossa opinião, reside na palavra “pulsão”, empregada primeiro na França e que depois se alastrou por boa parte da comunidade psicanalítica de línguas românicas.

Entendamos primeiro um pouco da história dessa opção tradutória, para depois analisá-la. Como mostra o já citado Dictionnaire des intraduisibles, em 1927, um ano após a fundação da Société Psychanalytique de Paris, uma “Comissão Linguística” decidiu-se unanimemente por traduzir “Trieb” por “pulsion”, um arcaísmo francês ausente na maioria dos dicionários, mas que constava no “Grand Dictionnaire français-latin de Jacob Stoer (Genebra, 1625) no sentido de ‘ação de impulsionar [pousser]’” (Cassin 2004Cassin, Barbara (Org.). Vocabulaire européen des philosophies - Dictionnaire des intraduisibles. Paris: Éditions du Seuil, 2004.: 1050). O próprio Voltaire a utilizou uma vez, indica o dicionário. Apesar da decisão da comissão, as traduções francesas subsequentes de Freud (assim como as traduções inglesa, espanhola, brasileira e italiana) utilizaram quase uniformemente a palavra “instinct” para traduzir o “Trieb”. “Foi, portanto, o Vocabulaire de la psychanalyse que fixou o uso de pulsion por traduzir Trieb, uso reafirmado nas Œuvres complètes de Freud/Psychanalyse (PUF)” (Cassin 2004: 1053-1054). O Vocabulaire mencionado, como se sabe, foi empreendido por Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis (cuja primeira publicação é de 1967), e as Œuvres completes foi uma tradução coletiva encabeçada por Laplanche (iniciada também na década de 60).

Laplanche e Pontalis, ex-lacanianos, dissidentes do mestre polêmico, retiveram ao menos essa sua opção tradutória, extremamente significativa. Com efeito, nos Écrits só encontramos a “pulsion” para traduzir “Trieb”, e aqui e ali Lacan salpica suas justificativas a um só tempo exegéticas e semânticas: “é preciso lembrar ainda o caráter inerentemente dissidente da noção de pulsão em Freud, a disjunção do princípio e da tendência, da sua direção e de seu objeto [...]?” (Lacan 1966: 543). Para Lacan, é claro, Trieb é noção totalmente distinta do “instinto”, e essa diferenciação conceitual radical se vincula para ele à importância da linguagem em Freud: “quando ele [Freud] denuncia uma tendência, aquilo que ele chama Trieb, uma coisa totalmente diferente de um instinto, o frescor da descoberta nos mascara o que o Trieb implica em si de um advento do significante” (Lacan 1966: 597).

Conquanto não concordassem inteiramente com a aproximação entre Trieb e significante, tantas vezes atestada por Lacan, Laplanche e Pontalis mantiveram a escolha lacaniana, mantiveram o arcaísmo “pulsion”. Na França, país em que a sombra de Lacan parece ser demasiado grande, essa escolha tradutória foi, ao que tudo indica, aceita tacitamente. No Dictionnaire des intraduisibles, a opção por “pulsion” é simplesmente dita ser a mais apropriada - e as autoridades citadas para sustentar essa posição? Ninguém menos que Laplanche e Pontalis. Essa escolha francesa fez escola e se disseminou em vários outros países: na Argentina, José Etcheverry traduz “Trieb” sempre por “pulsión”; no Brasil, nas Obras incompletas de Sigmund Freud, da editora Autêntica, opta-se sempre também por “pulsão”; na Itália, numa das edições mais recentes, da Newton Compton Editori, o importante artigo metapsicológico de 1915 recebeu o título “Le pulsioni e loro vicissitudini”.6 6 Essa reviravolta meio lacaniana, totalmente francesa, pode ter-se difundido também, como que num contágio curioso, para a tradução brasileira de outros autores de língua alemã. Na tradução brasileira da Dialética Negativa, de Adorno (cujo original está repleto de Triebe e derivados e contém somente duas aparições de “Instinkt”), lemos: “Freud, o especialista nessas pulsões...” (Adorno 2009: 289). Nessa edição, “Trieb” vem sempre traduzido por “pulsão”. Enquanto as primeiras traduções para essas línguas traziam sempre “instinto”, as mais recentes quase sempre rejeitaram essa palavra julgada “biologicista” demais, aderindo ao arcaísmo francês.7 7 Com a evidente exceção da tradução realizada por Paulo César de Souza, na qual nos baseamos.

Como argumenta Simanke (2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 79), trata-se de uma visão consolidada, “isto é, uma concepção aceita sem grandes questionamentos, pelo peso da tradição, por hábito ou por certa inércia do pensamento”. Operou-se uma grande reviravolta lexical nos leitores e comentadores de Freud, a ponto de “pulsão” ser aceita quase tacitamente, como se fosse a única ou melhor opção tradutória a priori, de forma autoevidente:

Seja como for, onde a influência de autores como Lacan e Laplanche se fez sentir mais intensamente, o uso do termo “pulsão” tornou-se tão disseminado que sua tradução por “instinto” - na edição standard inglesa e na brasileira, traduzida a partir daquela, por exemplo - passou a soar como bizarra e anacrônica e a ser entendida como o resultado de um erro básico de tradução e de interpretação conceitual (Simanke 2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 79).

Peças-chave de tamanha reviravolta lexical na psicanálise em línguas românicas, Laplanche e Pontalis justificam de que forma sua adesão tão peremptória à “pulsion”? No vocábulo “Instinto”, de seu Vocabulaire, encontra-se a definição: “Classicamente, esquema de comportamento herdado, próprio de uma espécie animal, que pouco varia de indivíduo para outro”. Este, para eles, é o “sentido clássico” do instinto, do qual “a concepção freudiana do Trieb, como força impulsionante relativamente indeterminada quanto ao comportamento que induz e quanto ao objeto que fornece a satisfação, difere nitidamente”. Assim, o instinto seria um esquema fixo de comportamento, com objetos e sequências estímulo-resposta rígidas, biologicamente herdadas; por outro lado, o Trieb freudiano seria uma força bem mais indeterminada, sem ativação nem objeto fixos. Para os dois psicanalistas franceses, portanto,

A escolha do termo instinto como equivalente inglês ou francês de Trieb não é só uma inexatidão de tradução, como ameaça introduzir uma confusão entre a teoria freudiana das pulsões e as concepções psicológicas do instinto animal, e apagar a originalidade da concepção freudiana, particularmente a tese do caráter relativamente indeterminado do impulso motivante e as noções de contingência de objeto e da variabilidade de metas (Laplanche; Pontalis 2001Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.: 241-242).

Primeira pergunta: em quem se baseiam Laplanche e Pontalis para nos fornecer esse “sentido clássico” - tão autoevidente - do instinto? Nunca saberemos. Eles apenas escrevem o advérbio “classicamente” e o sintagma “sentido clássico”, e esperam que acreditemos neles.8 8 A propósito, a acepção denominada “clássica” por Laplanche e Pontalis tinha cerca de trinta anos quando da composição do Vocabulaire. “Durante o final do século XIX e início do século XX, o uso indiscriminado e exagerado do termo ‘instinto’, por muitos psicólogos, reduziu o termo a uma explicação generalizada para comportamentos que não eram bem compreendidos” (Zuanon 2007: 340). Esse é o caso dos autores citados por Freud: Le Bon, Trotter, Frazer, todos se situam nesse limiar entre os séculos, todos empregam “instinct” de forma indiscriminada. Foi somente com a fundação da etologia que o termo começou a ser utilizado de forma mais discriminada e bem definida. Em seu artigo, Zuanon estuda a importância de Konrad Lorenz nesse processo, que apenas na década de 30 definiu o “instinto” como um “padrão fixo de ação”. Assim, fica a pergunta: em que medida uma definição de “instinto” praticamente contemporânea a Laplanche e Pontalis pode ser alcunhada “clássica”? Convém relembrar ainda que, em etologia, a noção de “instinto” não é tão simples e rígida como a dupla francesa insinua; da década de 30 em diante, foi (e ainda é) centro de extensos debates que envolveram Lorenz, Tinbergen, von Frish e outros etólogos (Zuanon 2007: 344). Como qualquer dicionário pode provar, o termo “instinto” tem muitos outros significados em qualquer língua neolatina (observe-se, por exemplo, um dos seus usos mais corriqueiros: o “instinto de sobrevivência”, que, em sua acepção popular, denota uma força inata, vital, e não um padrão comportamental). No alemão, como vimos, trata-se de um mot savant, palavra empregada por academicistas e teóricos, mas nem sempre com essa conotação tão engessada: basta retornar aos trechos do próprio Freud, em que ele traduz Bernheim, Frazer, Trotter e Le Bon, para ver que, ali onde Instinkt aparece, não é jamais com o sentido de “padrão comportamental herdado”.

Ademais, para a eminente dupla francesa, “Freud usa por diversas vezes o termo Instinkt no sentido clássico” (Laplanche; Pontalis 2001Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.: 242). Este, então, um dos argumentos mais fortes dos defensores do arcaísmo “pulsão”. Esse argumento, algo enviesado, tem um quê de verdade. Em 1915, por exemplo, Freud diz: “se há no homem formações psíquicas herdadas, algo análogo ao instinto [Instinkt] dos animais, isso então constitui o núcleo do Ics” (GW 10: 294). Esse núcleo do inconsciente, como vários comentadores perceberam, seriam as fantasias originárias (Urphantasien) - de castração, sedução e cópula paterna -, como fica claro no relato de caso do Homem dos Lobos (publicado em 1918) e em uma das Novas Conferências (1932). Segundo a análise de Freud, esse paciente muito provavelmente não assistiu presencialmente a um coito entre os pais, mas mesmo assim fabricou uma fantasia desse ato: “nós temos apenas à nossa disposição uma excelente analogia com o extenso conhecimento instintivo [instinktiven] dos animais” (GW 12: 156). Poucas linhas adiante, vemos repetir-se a tese de 1915: “esse algo instintivo [Instinktive] seria o núcleo do inconsciente, uma atividade primitiva do espírito [Geistestätigkeit]” (GW 12: 156).9 9 Note-se que esta é uma das raras aparições do termo “Geist” em Freud - mas nem por isso cogitamos fazer dele um conceito. Em 1932, penúltima aparição do sentido “clássico” de Instinkt, dessa vez claramente conectada à teoria do Trieb: “as migrações de desova dos peixes, talvez o voo dos pássaros, possivelmente tudo aquilo que designamos como manifestação do instinto [Instinktäußerung] nos animais, ocorre sob o ditame da compulsão à repetição, que expressa a natureza conservadora dos Triebe” (GW 15: 113). Deixemos um comentário a essa última citação: nela, o “instinto dos animais” é uma expressão da natureza conservadora dos Triebe, ou seja, eventos biológicos repetitivos, padronizados, não ocorrem numa lógica oposta ao funcionamento do Trieb, ao contrário, são uma plena expressão dele. O Trieb é a força vital básica; os comportamentos padronizados, apenas uma das formas de expressão dele. A última aparição de Instinkt consta no texto de velhice sobre Moisés e a religião monoteísta; nele, Freud fala que os “assim chamados instintos [Instinkte] dos animais” encontram um análogo no homem: “sua [do homem] própria herança arcaica corresponde ao instinto [Instinkt] dos animais, embora com outro alcance e conteúdo” (GW 16: 207-208). Por fim, vemos que também a existência humana não escapa a algo similar aos assim chamados Instinkte.

Mas voltemos aos pulsionalistas. São essas as vezes em que Freud utiliza o termo “Instinkt” em sua acepção “clássica”: são quatro vezes, numeral determinado que se torna o adjetivo indeterminado e multiplicador “diversas” sob a pena de Laplanche e Pontalis. Temos aqui uma multiplicação de peixes, ou melhor, de Instinkte (em sentido “clássico”) no corpus freudiano.

Como vimos, Freud utiliza também se utiliza “diversas vezes” do termo “Instinkt” para traduzir o “instinct” alheio. Nesses momentos, ele não é carregado do seu sentido delimitado de “padrão comportamental herdado”. Além disso, apesar de aparecer muito raramente no corpus freudiano, o latinismo Instinkt emerge aqui e ali, e por vezes num sentido muito mais vago do que o assim chamado sentido “clássico”. Numa das Conferências Introdutórias de 1916, por exemplo, lemos: “como vocês sabem, a humanidade tem um empenho defensivo instintivo [instinktiv] contra novidades intelectuais” (GW 11: 219). Tratar-se-ia de um comportamento padronizado, feito a dança comunicacional das abelhas ou a migração das aves? Parece-nos que não. Segundo exemplo: no prefácio à segunda edição da Traumdeutung, de 1908, Freud afirma que seus pontos de vista sobre os sonhos não mudaram muito, à diferença do que ocorrera tantas vezes em suas hipóteses sobre a neurose. E segue uma afirmação mordaz sobre seus críticos: “meus numerosos adversários científicos mostram, portanto, um instinto [Instinkt] certeiro quando não querem me seguir justamente no campo da pesquisa onírica” (GW 2-3: X). Essa recusa dos adversários de Freud, seria ela um padrão comportamental herdado filogeneticamente? É evidente que não: trata-se, antes, de um “impulso”, de um “instinto” em sentido vago, de um comportamento irrefletido qualquer. Último exemplo, também da Traumdeutung: após relatar um sonho seu em que uma empregada doméstica aparece, Freud admite que, apesar de ela ser velha e ranzinza, é uma pessoa “de instintos de limpeza” (von reinlichen Instinkten) (GW 2-3: 243). Os homens teriam herdado de seus ancestrais a vontade de limpar? Para a teoria freudiana, isso não faria o menor sentido (para Freud, aliás, a pureza, beleza, limpeza, higiene pessoal etc. são todas formações reativas contrárias aos Triebe).

Como esses exemplos mostram, diferentemente do Trieb, o Instinkt em Freud não é um conceito. O Trieb traz consigo aquela aura centrífuga de todo conceito, aquele aviso solene ao leitor: Cuidado, eis aqui uma palavra importante. Com o Instinkt, por sua vez, não ocorre o mesmo. No caso do Homem dos Lobos ele parece aproximar-se do conceito, mas trata-se de uma aparição esporádica, muito distinta da quase ubiquidade do Trieb no corpus freudiano. Ademais, nas últimas citações que vimos, Freud também emprega “Instinkt” num sentido muito mais vago do que a definição “clássica” tão acentuada por Laplanche e Pontalis. Assim, essa pode ser uma de suas conotações mais habituais, mas isso não significa que Freud faça do Instinkt um conceito psicanalítico. Como pudemos ver, esse latinismo não é um conceito em Freud. Ele pode aparecer com o sentido “clássico”, mas também é empregado por Freud seja num sentido muito mais vago, seja numa tradução do “instinct” alheio. “Instinkt” é uma palavra qualquer no corpus freudiano, ela é tão pouco formalizada quanto, digamos, as palavras “Erscheinung” e “Nachahmung” - tornadas conceitos, todavia, por outros autores.

Como vimos, no entanto, a justificação da “pulsão”, de Laplanche e Pontalis, é baseada em dois argumentos. Um deles refere-se ao sentido “clássico” do “instinto”, que não se sustenta após uma leitura mais pormenorizada do uso (esporádico, não formalizado) que faz Freud dessa palavra. O segundo, porém, é uma verdadeira interpretação da teoria freudiana, segundo a qual o termo “instinto”, se usado para traduzir “Trieb”, arriscaria apagar a “originalidade” da concepção freudiana da sexualidade. Em seu artigo contrário ao uso de “instinto” para traduzir “Trieb”, Silveira (2014Silveira, Léa. Fantasia, analogia e narcisismo: Um argumento contra a tradução de “Trieb” por “instinto”. Cadernos de Filosofia Alemã, v. 19, n. 1, 189-204, 2014.: 189) afirma que a escolha por “instinto” acarretaria muito provavelmente “uma redução dos principais conceitos freudianos à biologia”. A autora demonstra com clareza que as teses freudianas não podem sofrer uma tal redução, e ela tem total razão quando atesta uma especificidade epistemológica do discurso freudiano. Mas daí a concluir que o “instinto” equivaleria a essa redução, eis um salto lógico que nos parece indefensável. Em nossa opinião, é justamente o oposto o que ocorre quando se recorre ao termo “pulsão”: toda a relação da psicanálise com a biologia é apagada, e o conceito parece alçar-se fora de qualquer lógica evolutiva ou fisiológica. Não à toa, Laplanche (1985: 128, 87) irá afirmar com todas as letras que, “na sexualidade humana, o instinto, força vital, se desqualifica e se perde na pulsão”, e que a sexualidade em Freud “exclui a vida do seu campo, tomando dela apenas protótipos para suas fantasias”. Ou seja, total descolamento entre o biológico e o “pulsional”, entre os objetos de estudo das ciências da natureza e os objetos fundamentalmente psicanalíticos, entre, por fim, o homem e os outros animais (atitude de claro cunho antropocêntrico, que contraria abertamente a teorização freudiana).10 10 Cf., por exemplo, o que Freud diz em sua carta a Einstein intitulada Warum Krieg?, de 1932. Após argumentar que os homens amiúde resolvem seus conflitos com meios violentos, Freud completa: “Assim é em todo o reino animal, do qual o homem não tem como se excluir” (GW 16: 14). Este é apenas um exemplo; em várias outras passagens, Freud assevera categoricamente o pertencimento do homem ao reino animal, e se mostra contrário a qualquer entronização da espécie humana num mundo à parte, fora do Tierreich.

Como demonstra Simanke (2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 78), trata-se de uma refundamentação teórica da psicanálise, tipicamente francesa, baseada num antinaturalismo acentuado: “autores como Lacan e Laplanche são emblemáticos dessa tendência voltada para uma radical desnaturalização do Trieb freudiano, tanto no plano teórico como terminológico”. Assim, nessa releitura de Freud, encontra-se

Uma recusa em admitir a significação biológica que Freud tão claramente atribuiu ao seu conceito de “instinto”. Essa recusa manifestou-se em um esforço de refundamentação da teoria freudiana em outras bases (antropológicas ou linguísticas, como aconteceu, por exemplo, com a psicanálise lacaniana). No plano da tradução, essa atitude resultou, entre outras coisas, na rejeição total do vocabulário biológico - do qual o termo “instinto” evidentemente faz parte - e na invenção de um neologismo para substituí-lo, a saber, o francês “pulsion”, que se difundiu então para outras línguas neolatinas (Simanke 2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 78).

Os defensores da “pulsão” têm portanto um grave, porém evidente problema em sua cruzada anti-instintiva: para defender seu ponto de vista, tentam ser mais freudianos do que o próprio Freud; para eles, é como se pudessem ou tivessem de explicar os conceitos freudianos melhor do que Freud. Com isso, é claro, duvidam da capacidade teórica do pai mesmo da teoria que procuram elucidar. Essa atitude está bem representada em diversos pontos da cuidadosa biografia escrita por Elisabeth Roudinesco (2016Roudinesco, Elisabeth. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016.: 237), segundo a qual Freud trouxe ao mundo “uma revolução de cujo alcance sem dúvida não fazia ideia”.11 11 Sobre James Strachey, por exemplo, Roudinesco (2016: 321) diz que ele “cometeu o erro de traduzir pulsão (Trieb) por instinct”, sem dar, é claro, nenhuma razão para essa reprovação. Essa única e singela frase é enviesada em mais de um sentido: Roudinesco diz que Strachey traduziu “pulsão” por “instinct”, quando isso é totalmente errado; ele traduziu “Trieb” por “instinct”, e não “pulsão”. Nem Strachey nem Freud cogitavam o termo “pulsion” para traduzir seu “Trieb”. Essa atitude perpassa a escolha pela palavra “pulsão”, na medida em que interpreta o conceito freudiano de forma antinaturalista; os defensores do arcaísmo francês por vezes situam a psicanálise entre as ciências humanas e chegam a impingir a Freud uma “filosofia do sujeito”,12 12 A biografia de Roudinesco (2016) está recheada de frases dessa natureza. Ela diz, por exemplo, que Freud inventou “um sujeito moderno dividido entre Édipo e Hamlet” (99); em outro momento, ela escreve: “Freud acrescentou [...] a ideia de que a psicanálise, como disciplina, propunha um descentramento do sujeito que passava por três humilhações narcísicas” (144). Sim, para Freud a psicanálise era a terceira das feridas narcísicas da história da humanidade, mas ele nunca usou o sintagma (altamente lacaniano) “descentramento do sujeito”. Ademais, para Freud as feridas narcísicas acabam por retirar o homem de seu pedestal antropocêntrico, fazendo-o ter de lidar com seu próprio pertencimento ao reino animal e natural - coisa que a biógrafa antinaturalista evidentemente não menciona. coisas que ele nunca afirmou ter feito.

Com efeito, Freud sempre defendeu o pertencimento da psicanálise às ciências da natureza, e é muito frequente que ele a coloque explicitamente numa fronteira epistemológica com a biologia. Como diz Simanke (2009Simanke, Richard Theisen. A psicanálise freudiana entre ciências naturais e ciências humanas. Scientiae Studia, v. 7, n. 2, 221-235, 2009.: 233), “Freud era intransigentemente naturalista” e parecia pensar as ciências sociais de forma naturalista: no amplo debate, contemporâneo a ele, entre as Naturwissenschaften e as Geisteswissenschaften, ele sempre se manteve resoluto, situando a psicanálise no campo das ciências da natureza. “Tudo se passa como se Freud jamais tivesse considerado a possibilidade de outro modelo de ciência que não fosse o das ciências da natureza” (Simanke 2009: 225). Em seu inacabado Esboço de psicanálise (publicado postumamente em 1940), tudo é muito escancarado: “a psicologia é também uma ciência da natureza. O que mais ela deveria ser?” (GW 17: 143). Em 1932, ao recusar à psicanálise qualquer visão de mundo (Weltanschauung) total e acabada (elemento típico, para Freud, dos sistemas religiosos e filosóficos de pensamento), ele a arrola entre as ciências da natureza e a caracteriza “como uma ciência especial [Spezialwissenschaft], um ramo da psicologia - psicologia profunda ou psicologia do inconsciente” (GW 15: 170-171). Aliás, quando das teorizações mais agudas, é sempre da fronteira com a biologia que Freud fala ao caracterizar a psicanálise como ciência especial. No terceiro prefácio aos Três ensaios, por exemplo, redigido em 1914, encontra-se escrito: “minha meta era, no entanto, explorar tanto quanto se pode inteligir [erraten] sobre a biologia da vida sexual humana com os meios da investigação psicológica” (GW 5: 30). É a biologia da vida sexual humana o objeto dos ensaios, mas tais fenômenos serão acessados e analisados mediante um método psicológico: a psicanálise enquanto ciência autônoma só pode, pois, ser pensada a partir do estabelecimento dessa fronteira com a biologia.

Mas o mais importante para nós é a definição do Trieb como conceito-limite (Grenzbegriff). Como foi repetidamente comentado, o conceito freudiano se situa na fronteira entre o corpo e a alma, entre o soma e a psique. Isso é asserido por Freud repetidas vezes. Esse caráter limítrofe do conceito, todavia, não se refere apenas ao nó (Zusammenhang) entre duas dimensões ontológicas distintas (o corpo e a alma), mas também ao nó entre duas dimensões epistemológicas distintas - muito precisamente, a psicologia e a biologia. Como se lê em 1913: “não podemos evitar [conceituar] o ‘Trieb como um conceito-limite [Grenzbegriff] entre a concepção psicológica e a biológica” (GW 8: 410-411). Não foram poucas as vezes, aliás, que Freud diagnosticou um limite à pesquisa analítica - limite orgânico, biológico, para-além do qual o método analítico de nada vale. Em 1910, por exemplo, tendo descrito como um órgão pode se comportar como um genital e sofrer alterações tóxicas, Freud enxerga aí uma encruzilhada da pesquisa analítica: “da psicanálise se bifurca ainda uma outra linha de pensamento, que chega até a pesquisa orgânica” (GW 8: 101). Dez anos depois, ao descrever um caso de homossexualidade feminina, Freud diz com todas as letras que “a psicanálise não tem a missão de solucionar o problema da homossexualidade”; ela pesquisa os mecanismos que levaram à escolha de objeto, revelando aí o que ele chama de Triebanlagen (“disposições dos Triebe”): “ela então se interrompe e deixa o restante à pesquisa biológica” (GW 12: 301). A psicanálise investiga o fenômeno psíquico até certo limite - a partir dele, é a pesquisa biológica que tem de tomar a dianteira.

O Trieb, por fim, é conceito freudiano forjado por empréstimos abertos à biologia. Não é idêntico ao Trieb da biologia, é claro, mas tampouco é completamente distante ou alheio a ele. Em 1915, ele é claramente subsumido no conceito maior de estímulo: “como se relaciona então o ‘Trieb com o ‘estímulo’? Nada nos impede de subsumir o conceito de Trieb no de estímulo: o Trieb seria um estímulo para o psíquico” (GW 10: 211). Em 1920, ao reelaborar sua Trieblehre, Freud irá maciçamente basear-se em pesquisas da embriologia, e o Trieb, que até então jazia nesse limiar entre corpo e alma, agora será conceituado como uma força vital pertencente a todos os seres vivos: amebas, corvos, cervos, homens e ouriços. Diz Simanke (2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 76) a esse respeito (traduzindo “Trieb” por “instinto”): “O conceito de ‘instinto’ adquire, assim, uma significação abertamente biológica, e sua expressão psicológica aparece como derivada de sua natureza biológica fundamental e como um caso particular de sua manifestação”.

Ademais, ao darem tamanha ênfase ao uso, por Freud, da noção “clássica” do Instinkt, Laplanche e Pontalis acabam reduzindo (e muito) a complexidade do discurso freudiano acerca dos animais. Em sua conferência de 1932 sobre a feminilidade, por exemplo, Freud discorre páginas a fio sobre os animais e a complexidade de seu comportamento (GW 15: 122 ss).13 13 Este é somente um exemplo; considerações sobre os Tiere se encontram, esparsas, aqui e ali em todo o corpus freudiano. Faz isso, aliás, a fim de conseguir melhor definir a feminilidade e a psicologia das mulheres - que não se encontram num mundo “à parte”, fora da animalidade. Para Freud, pois, os animais não são meras máquinas, cujos comportamentos seriam ativados mecânica e subitamente pelos instintos. Isso pode ocorrer, mas não é sempre o caso. Disso, e de tudo que vimos, se pode depreender: para Freud também os animais são governados pelos Triebe, cujos objetos, metas e ativações são variados. Essa atuação plástica e mutável dos Triebe não é um privilégio da espécie humana, como insistentemente asserem Lacan e Laplanche. Afirmar isso é, sem sombra de dúvidas, contrariar a letra freudiana.

A opção por “instinto”, assim, não acarretaria uma redução do discurso freudiano à biologia. É a “pulsão” que acaba deletando do discurso freudiano as relações, patentemente asseveradas pelo próprio Freud, entre psicanálise e biologia. “Seja como for, no que se refere a Freud, não se trata tanto de ‘naturalizar’ os conceitos psicanalíticos, mas de resgatar sua significação naturalista originária, rejeitada por sua recepção posterior” (Simanke 2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 78). Se Lacan, Laplanche e quaisquer outros autores desejam reler Freud de forma antinaturalista e desviar a ciência freudiana do leito das Naturwissenschaften, introduzindo-a nas ciências humanas, não há nenhum problema: o discurso freudiano é notavelmente rico, cheio de sinuosidades e, como toda teoria tornada clássica, jaz à espera de inúmeras e inúmeras releituras. Mas é preciso deixar claras as diferenças entre o conceito de um autor (com seus contornos, nuances e dificuldades) e a releitura que se faz, a posteriori, dele. Em Freud o Trieb decididamente não está descolado do campo da vida, ele não é privilégio do gênero humano. Mesmo os famígeros “instintos dos animais” são pensados por Freud, como vimos, como uma expressão da lógica repetitiva dos Triebe, as forças vitais mais basilares, inerentes a qualquer organismo vivo.

A tradução de “Trieb” por “instinto”, embora claramente insuficiente, revela ser mais adequada do que a por “pulsão”. Com efeito, a palavra “instinto” nas línguas neorromânicas não tem apenas o sentido “clássico” de “padrão comportamental herdado”; ela é polissêmica, usada correntemente não só por cientistas e teóricos, mas também no cotidiano. “Instinto” pode ser qualquer estímulo interno, irracional, inconsciente, que impele um organismo a agir; pode ser uma percepção irrefletida ou imediata; pode ser uma inclinação julgada natural.14 14 Oswald de Andrade (1974), por exemplo, em Um homem sem profissão, diz: “Por instinto e depois conscientemente, sempre repeli esse Direito ali ensinado para engrossar a filosofia do roubo que caracteriza o capitalismo” (48). Algumas páginas adiante, lemos: “Eu sentia o enorme antagonismo que separava disso meu instinto de homem livre” (79). “Instinto de homem livre” - haverá expressão menos conforme aos argumentos dos pulsionalistas? Oswald ainda emprega o termo mais uma vez nesse mesmo livro: “Seu Andrade com um instinto terrível sente o meu desligamento crescente da francesa” (83). Nesse último caso, trata-se claramente de uma percepção irrefletida, imediata. Experimente o leitor trocar o “instinto”, nesses trechos, pela “pulsão” - o resultado será no mínimo decepcionante. Isso não cobre todos os sentidos do “Trieb” alemão, mas é semanticamente similar a ele em vários momentos. Dependendo da situação, “Trieb” pode ser traduzido por “tendência”, “vontade”, “impulso” ou... “instinto”. Basta enfim lembrar que o termo alemão, de uma polissemia notável, pode ter significações biológicas muito marcadas. Citemos Simanke (2014aSimanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.: 83) uma vez mais:

Isso não significa, evidentemente, que o termo “Trieb” tenha necessariamente uma significação biológica ou, sequer, que seja a principal significação ou a significação mais frequente e comum do vocábulo. De fato, no seu sentido mais geral de “impulso”, o termo aparece no vocabulário de diversas outras correntes filosóficas ou científicas que também tiveram influência sobre Freud (Nietzsche, o pensamento romântico etc.). Basta [...] evidenciar que o termo pode ter uma significação biológica, que essa significação, quando presente, tem afinidades com o que a biologia chama de “instinto” e que o termo foi, de fato, concretamente utilizado dessa maneira.

Lembremos, por fim, das lições que aprendemos do Freud tradutor do instinto. Ele mesmo demonstrava conhecer a polissemia do termo (francês, inglês) “instinct”. Não é à toa que o tenha traduzido mais de uma vez por “Trieb”, não é à toa que tenha preferido por vezes a tradução literal “Instinkt”. Como arguimos previamente, a escolha por Trieb não se deu por conta das suas discrepâncias com os “instintos dos animais” - afirmar isso é hipostasiar a aparição marginal dessa noção dita “clássica” de instinto no corpus freudiano. Trieb foi a opção de Freud, assim nos parece, por ser um termo que engloba o Instinkt, por ser mais abrangente, por ter significações amplas e polissêmicas (dentre elas a biológica) e por ser palavra de uso cotidiano. Trata-se de uma palavra usada há séculos pelos germanófonos, totalmente isenta dos ares esotéricos do Instinkt.

E é aqui que o termo “pulsão” revela uma de suas maiores fraquezas. “Pulsion” é arcaísmo na França, tornado obsoleto por séculos (o que já é problemático para uma tradução de Freud, que jamais ou raramente se serviu de arcaísmos), e é neologismo no Brasil (o que é ainda mais problemático).15 15 Freud, diferentemente de Lacan, não era um neologista muito prolífico. Seus neologismos, aliás, são de fácil compreensão: Libidoorganisation, por exemplo, ou os mais importantes Über-Ich e Todestrieb. Quanta diferença frente aos neologismos lacanianos... Com “pulsão”, o Trieb freudiano se descola quase totalmente das ciências da vida, e aufere ao vocabulário psicanalítico um certo ar hermético ou no mínimo esotérico (ai de ti, candidato a psicanalista, se não souberes as diferenças entre “instinto” e “pulsão”!). É como se Freud tivesse forjado um conceito cujo nome fosse completamente despojado de coloquialidade e de conexão com outras áreas do saber. A biologia pode falar de instintos ou de respostas instintuais, a língua popular pode falar do instinto materno, dos instintos dos bichos ou mesmos usar o advérbio “instintivamente” para se referir a ações humanas irrefletidas e irracionais, mas a psicanálise não, a psicanálise não fala de instintos (coisas demasiado biológicas!), ela fala de pulsões (esse baluarte das humanidades!). Ora, essa posição é completamente contrária à do próprio Freud. Em vez de optar por Instinkt, latinismo acadêmico e esotérico, Freud preferiu a opção Trieb, palavra usada cotidianamente pelos germanófonos e com utilização corrente em diversas ciências da natureza (fisiologia, psicofísica...) do seu tempo. Ou seja, bem diferente do que fizeram seus tradutores franceses, Freud não recorreu a um quase-neologismo extravagante para dar nome a um de seus conceitos mais basilares. Qual é o sentido de, no Brasil, se recorrer a um neologismo importado de uma tradição antinaturalista, para traduzir uma palavra - empregada havia séculos - de um autor abertamente naturalista? Em que sentido isso é ser fiel à letra e à teorização freudianas?

O termo “pulsão”, enfim, é que é acadêmico, técnico e esotérico.16 16 Marilene Carone, em sua tradução da Verneinung freudiana, deu argumentos muito similares aos nossos para justificar sua preferência pelo termo “negação”, em detrimento do termo “denegação” (proposto, como não é de espantar, por Lacan e seus seguidores). “Ora, ‘negar’ e ‘negação’ são termos correntes da fala cotidiana, ao passo que ‘denegar’ e ‘denegação’ são termos intelectualizados, sofisticados, distantes do nosso ‘modo popular de pensar’” (Carone 1983: 126). Ele é reservado aos analistas, e somente a eles (e a quem concordar com sua doutrina antinaturalista da diferença entre instinto e pulsão). Que biólogo fala das pulsões das cegonhas ou dos besouros? Que pessoa diz das suas pulsões sexuais ao confidenciar segredos picantes aos amigos? Quem, ao dizer de um erro ou de um ato irrefletido, diz que agiu “pulsionalmente”? Que sentido existe em falar de uma “pulsão da nutrição” ou da “pulsão de autoconservação”? Assim, sob o ponto de vista semântico, “pulsão”, nas línguas românicas, se comporta de modo similar ao “Instinkt” germânico, enquanto, por outro lado, é o “instinto” neolatino que se porta de forma similar ao “Trieb” germânico (embora não seja igualmente abrangente, não nos furtemos a repeti-lo). Encontramos, por fim, o exato oposto do que argumentam os defensores do arcaísmo afrancesado “pulsão”.

Os tradutores franceses semearam vento, e a tempestade pulsional foi colhida não só na França, mas também na Argentina, no Brasil, na Itália, na Catalunha...17 17 Há um interessante artigo em catalão de Joan Estruch (1991) intitulado Un altre Freud, si us plau, que basicamente repete os argumentos algo tendenciosos de Laplanche e Pontalis em favor da tradução de “Trieb” por “pulsió” - e, o que é mais importante, repete-o sem citá-los diretamente nessa passagem de sua argumentação, o que é evidência de que uma tradição, uma visão consolidada já se instaurou sub-repticiamente. Cumpre a nós livrar-nos dela para enfim chegarmos ao porto freudiano. Nesse porto germânico há o Trieb, é verdade, não há o Instinkt, mas não nos esqueçamos das lições do Freud tradutor, da sua marcada indiferença entre o Instinkt e o Trieb para verter o “instinct” alheio. Não nos esqueçamos que Freud, conhecedor do espanhol, do inglês, do italiano e do francês, nunca se opôs à tradução de “Trieb” por “instinto”. Não nos esqueçamos do “Triebe (oder Instinkte)”. Do copo d’água semântico (límpido, potável), não convém fazer uma tempestade tradutória.

Referências bibliográficas

  • Adorno, Theodor. Dialética Negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
  • Andrade, Oswald de. Um homem sem profissão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
  • Bernheim, Hippolyte. Hypnotisme, suggestion, psychothérapie : Nouvelles études. Paris: Octave Doin éditeur, 1891.
  • Bernheim, Hippolyte. Neuen Studien über Hypnotismus, Suggestion und Psychotherapie. Tradução de Sigmund Freud. Wien: Franz Deuticke, 1892.
  • Carone, Marilene. “A Negação”: um claro enigma de Freud. Discurso, v. 15, 125-132, 1983.
  • Cassin, Barbara (Org.). Vocabulaire européen des philosophies - Dictionnaire des intraduisibles. Paris: Éditions du Seuil, 2004.
  • Estruch, Joan. Un altre Freud, si us plau. Papers: revista de sociologia, 117-131, 1991.
  • Frazer, James George. Totemism and Exogamy, Vol. IV. London: MacMillan and Co, 1910.
  • Freud, Sigmund. Gesammelte Werke, in 18 Bänden. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1999.
  • Freud, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud, em 20 volumes. Tradução ao português e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010-2021.
  • Freud, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud, en 24 volúmenes. Tradução ao espanhol de José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1982.
  • Hanns, Luiz. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • Lacan, Jacques. Écrits. Paris : Éditions du Seuil, 1966.
  • Laplanche, Jean. Vida e morte em psicanálise. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
  • Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. Tradução de Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • Le Bon, Gustave. Psychologie der Massen. Tradução de Rudolf Eisler. Leipzig: Verlag von Dr. Werner Klinkhardt, 1908.
  • Le Bon, Gustave. Psychologie des foules. Quarantième édition. Paris: Librairie Felix Alcan, 1937.
  • Roudinesco, Elisabeth. Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2016.
  • Silveira, Léa. Fantasia, analogia e narcisismo: Um argumento contra a tradução de “Trieb” por “instinto”. Cadernos de Filosofia Alemã, v. 19, n. 1, 189-204, 2014.
  • Simanke, Richard Theisen. A psicanálise freudiana entre ciências naturais e ciências humanas. Scientiae Studia, v. 7, n. 2, 221-235, 2009.
  • Simanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reprodução. Scientiae Studia, v. 12, n. 1, 73-95, 2014a.
  • Simanke, Richard Theisen. O Trieb de Freud como instinto 2: agressividade e autodestrutividade. Scientiae Studia, v. 12, n. 3, 439-464, 2014b.
  • Trotter, Wilfred. Instincts of the Herd in Peace and War. London: Bouverie House, 1916.
  • Zuanon, Átima Clemente Alves. Instinto, etologia e a teoria de Konrad Lorenz. Ciência & Educação (Bauru), v. 13, 337-349, 2007.
  • 1
    Para as citações de Freud, utilizo-me mormente de duas edições: a coletânea em alemão Gesammelte Werke (doravante mencionada como GW) e a tradução brasileira, sob a coordenação de Paulo César de Souza, publicada pela Companhia das Letras (por isso abreviada por CL). Numa nota de rodapé, também citarei a versão argentina, traduzida diretamente do alemão por José L. Etcheverry, publicada pela Amorrortu Editores (AE). Para não confundir o leitor, irei referenciá-las sempre pelas abreviaturas, seguidas pelo volume em questão, indicando, no corpo do artigo, a data de publicação do texto citado.
  • 2
    Notemos que a versão a que tivemos acesso, de 1937, é a quadragésima edição do best-seller de Le Bon.
  • 3
    É interessante notar a esse respeito que, embora o primeiro emprego publicado do vocábulo Trieb por Freud tenha sido apenas em 1905, logo na abertura dos seus Três ensaios, o verbo treiben e seus derivados já eram regularmente utilizados por ele antes disso.
  • 4
    Como se pode notar, Paulo César de Souza erra ao dizer que na tradução usada por Freud já se encontra o Trieb, quando na verdade foi o próprio Freud quem adulterou a tradução para o alemão.
  • 5
    Em sua tradução ao espanhol, na edição Amorrortu, José L. Etcheverry comete um equívoco similar. Na citação de Frazer sobre o “instinto natural” de aversão ao incesto, fica claro que o tradutor argentino não foi à fonte original, mas traduziu apenas a tradução freudiana. Ao operar essa tradução da tradução, verteu “Instinkt” por “instinto” e “Trieb” por “pulsión” (AE 13: 126), e com isso Frazer, autor inglês que só empregara “instinct”, está de repente falando de instintos e pulsões como se fossem duas coisas diferentes! Mas, no caso de Le Bon, Etcheverry não fez como os franceses, e traduziu sempre o “instinct” por “instinto”, mesmo onde Freud o vertera para “Trieb” (AE 18: 71, 73). Curiosamente, no entanto, o título do capítulo IX da Psicologia das massas e análise do eu, “Der Herdentrieb”, em alemão, foi vertido para o espanhol como “El instinto gregario” (AE 18: 111), e com isso Etcheverry comete o “equívoco” de traduzir “Trieb” por “instinto”. Definitivamente, Freud deflagrou uma grande confusão em seus tradutores ao traduzir, de forma indiferente, “instinct” (e “Instinkt”) por “Trieb” e “Instinkt”.
  • 6
    Essa reviravolta meio lacaniana, totalmente francesa, pode ter-se difundido também, como que num contágio curioso, para a tradução brasileira de outros autores de língua alemã. Na tradução brasileira da Dialética Negativa, de Adorno (cujo original está repleto de Triebe e derivados e contém somente duas aparições de “Instinkt”), lemos: “Freud, o especialista nessas pulsões...” (Adorno 2009: 289). Nessa edição, “Trieb” vem sempre traduzido por “pulsão”.
  • 7
    Com a evidente exceção da tradução realizada por Paulo César de Souza, na qual nos baseamos.
  • 8
    A propósito, a acepção denominada “clássica” por Laplanche e Pontalis tinha cerca de trinta anos quando da composição do Vocabulaire. “Durante o final do século XIX e início do século XX, o uso indiscriminado e exagerado do termo ‘instinto’, por muitos psicólogos, reduziu o termo a uma explicação generalizada para comportamentos que não eram bem compreendidos” (Zuanon 2007: 340). Esse é o caso dos autores citados por Freud: Le Bon, Trotter, Frazer, todos se situam nesse limiar entre os séculos, todos empregam “instinct” de forma indiscriminada. Foi somente com a fundação da etologia que o termo começou a ser utilizado de forma mais discriminada e bem definida. Em seu artigo, Zuanon estuda a importância de Konrad Lorenz nesse processo, que apenas na década de 30 definiu o “instinto” como um “padrão fixo de ação”. Assim, fica a pergunta: em que medida uma definição de “instinto” praticamente contemporânea a Laplanche e Pontalis pode ser alcunhada “clássica”? Convém relembrar ainda que, em etologia, a noção de “instinto” não é tão simples e rígida como a dupla francesa insinua; da década de 30 em diante, foi (e ainda é) centro de extensos debates que envolveram Lorenz, Tinbergen, von Frish e outros etólogos (Zuanon 2007: 344).
  • 9
    Note-se que esta é uma das raras aparições do termo “Geist” em Freud - mas nem por isso cogitamos fazer dele um conceito.
  • 10
    Cf., por exemplo, o que Freud diz em sua carta a Einstein intitulada Warum Krieg?, de 1932. Após argumentar que os homens amiúde resolvem seus conflitos com meios violentos, Freud completa: “Assim é em todo o reino animal, do qual o homem não tem como se excluir” (GW 16: 14). Este é apenas um exemplo; em várias outras passagens, Freud assevera categoricamente o pertencimento do homem ao reino animal, e se mostra contrário a qualquer entronização da espécie humana num mundo à parte, fora do Tierreich.
  • 11
    Sobre James Strachey, por exemplo, Roudinesco (2016: 321) diz que ele “cometeu o erro de traduzir pulsão (Trieb) por instinct”, sem dar, é claro, nenhuma razão para essa reprovação. Essa única e singela frase é enviesada em mais de um sentido: Roudinesco diz que Strachey traduziu “pulsão” por “instinct”, quando isso é totalmente errado; ele traduziu “Trieb” por “instinct”, e não “pulsão”. Nem Strachey nem Freud cogitavam o termo “pulsion” para traduzir seu “Trieb”.
  • 12
    A biografia de Roudinesco (2016) está recheada de frases dessa natureza. Ela diz, por exemplo, que Freud inventou “um sujeito moderno dividido entre Édipo e Hamlet” (99); em outro momento, ela escreve: “Freud acrescentou [...] a ideia de que a psicanálise, como disciplina, propunha um descentramento do sujeito que passava por três humilhações narcísicas” (144). Sim, para Freud a psicanálise era a terceira das feridas narcísicas da história da humanidade, mas ele nunca usou o sintagma (altamente lacaniano) “descentramento do sujeito”. Ademais, para Freud as feridas narcísicas acabam por retirar o homem de seu pedestal antropocêntrico, fazendo-o ter de lidar com seu próprio pertencimento ao reino animal e natural - coisa que a biógrafa antinaturalista evidentemente não menciona.
  • 13
    Este é somente um exemplo; considerações sobre os Tiere se encontram, esparsas, aqui e ali em todo o corpus freudiano.
  • 14
    Oswald de Andrade (1974), por exemplo, em Um homem sem profissão, diz: “Por instinto e depois conscientemente, sempre repeli esse Direito ali ensinado para engrossar a filosofia do roubo que caracteriza o capitalismo” (48). Algumas páginas adiante, lemos: “Eu sentia o enorme antagonismo que separava disso meu instinto de homem livre” (79). “Instinto de homem livre” - haverá expressão menos conforme aos argumentos dos pulsionalistas? Oswald ainda emprega o termo mais uma vez nesse mesmo livro: “Seu Andrade com um instinto terrível sente o meu desligamento crescente da francesa” (83). Nesse último caso, trata-se claramente de uma percepção irrefletida, imediata. Experimente o leitor trocar o “instinto”, nesses trechos, pela “pulsão” - o resultado será no mínimo decepcionante.
  • 15
    Freud, diferentemente de Lacan, não era um neologista muito prolífico. Seus neologismos, aliás, são de fácil compreensão: Libidoorganisation, por exemplo, ou os mais importantes Über-Ich e Todestrieb. Quanta diferença frente aos neologismos lacanianos...
  • 16
    Marilene Carone, em sua tradução da Verneinung freudiana, deu argumentos muito similares aos nossos para justificar sua preferência pelo termo “negação”, em detrimento do termo “denegação” (proposto, como não é de espantar, por Lacan e seus seguidores). “Ora, ‘negar’ e ‘negação’ são termos correntes da fala cotidiana, ao passo que ‘denegar’ e ‘denegação’ são termos intelectualizados, sofisticados, distantes do nosso ‘modo popular de pensar’” (Carone 1983: 126).
  • 17
    Há um interessante artigo em catalão de Joan Estruch (1991) intitulado Un altre Freud, si us plau, que basicamente repete os argumentos algo tendenciosos de Laplanche e Pontalis em favor da tradução de “Trieb” por “pulsió” - e, o que é mais importante, repete-o sem citá-los diretamente nessa passagem de sua argumentação, o que é evidência de que uma tradição, uma visão consolidada já se instaurou sub-repticiamente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2022
  • Aceito
    26 Fev 2022
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