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HELEN CALDWELL, CECIL HEMLEY E OS JULGAMENTOS DE DOM CASMURRO1 1 A pesquisa que permitiu localizar os documentos que fundamentam este artigo foi realizada na New York Public Library, em Nova York, EUA, com apoio da Tinker Foundation, e no Center for Portuguese Studies da University of California, Santa Bárbara, com apoio da Fapesp. Agradeço a Robin Hemley pela autorização para publicar as cartas de seu pai, Cecil Hemley.

Resumo

Entre setembro e dezembro de 1952, Helen Caldwell, que acabara de concluir a primeira tradução para o inglês de Dom Casmurro, e o editor Cecil Hemley, que preparava a publicação do livro pela Noonday Press, mantiveram intensa correspondência. Em meio à revisão de detalhes da tradução, expressaram também suas discordâncias em relação à interpretação até então dominante sobre o romance, lançando as bases para uma leitura alternativa da história de Bento Santiago e Capitu. Na correspondência entre Nova York e Los Angeles, formulava-se o dilema que se tornaria o maior lugar-comum produzido a partir da leitura de um texto literário no Brasil: "Afinal, Capitu traiu ou não traiu?" Tomando como base a correspondência entre Helen Caldwell e seu editor, e examinando especialmente quatro cartas traduzidas e incluídas em anexo, este artigo mostra como se forjou a interpretação que mudaria a leitura do livro e do autor mais canônicos da literatura brasileira.

Palavras-chave:
Machado de Assis; tradução; edição; recepção; Helen Caldwell; Cecil Hemley

Abstract

Between September and December 1952, Helen Caldwell, who had just finished her translation of Dom Casmurro into English, and editor Cecil Hemley, who was preparing the publication of the book at the Noonday Press, kept up an intense correspondence. In reviewing the details of the translation, they also expressed their disagreements regarding the until-then prevailing interpretation of the novel, and in so doing set the ground for an alternative reading of the story about Bento Santiago and Capitu. In the letters airmailed between New York and Los Angeles, these two minds formulated the dilemma that would become the greatest commonplace derived from reading a literary text in Brazil: "In the end, did Capitu cheat on Bento or not?" Based on the correspondence between Helen Caldwell and her editor, and paying particular attention to the appended four letters presented in their original format, this article reveals how the interpretation that would change the reading of the most canonical book and author in Brazilian literature was forged.

Keywords:
Machado de Assis; translation; editing; reception; Helen Caldwell; Cecil Hemley

Figura 1:
A professora, crítica e tradutora Helen Caldwell mostra imagem da máscara mortuária de Machado de Assis em foto tirada em 1959 em Los Angeles.

Já que o espírito de Prometeu não morreu, e o espírito de Adão não morreu, aquele 'velho instinto de resistência à autoridade' permanece no fundo de nossas naturezas.

Helen Caldwell, Michio Ito - The Dancer and his Dances.

Em carta de 20 de setembro de 1952 endereçada a Cecil Hemley, editor das primeiras traduções de romances de Machado de Assis publicadas nos Estados Unidos pela Noonday Press, Helen Caldwell apresentava, entre várias considerações sobre a tradução, um diagnóstico para Bento Santiago: "Dom Casmurro com certeza não é nenhum pessimista. Ele é um neurótico, isso sim, com uma bela cisão na sua psique - mas é um grande neurótico."2 2 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 20 set. 1952. Tradução minha.

O comentário da professora, tradutora e crítica norte-americana, que então revisava sua tradução de Dom Casmurro, serviu de gatilho para que Hemley, na sua carta-resposta, expusesse uma leitura nada ortodoxa do romance. Em 8 de outubro de 1952, ele expressava sua opinião com franqueza, mas também com bastante cautela, já que discordava frontalmente de William Grossman, que no início daquele ano havia publicado pela mesma Noonday Press a primeira tradução das Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, intitulada Epitaph of a Small Winner (1952). Num único parágrafo, o editor de Nova York delineava uma interpretação que mais tarde seria expandida e levada às últimas consequências por Caldwell (1960CALDWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1960.) em seu The Brazilian Othello of Machado de Assis:

O dr. Grossman acredita que Dom Casmurro foi de fato traído. Não encontro na história nenhuma evidência objetiva que sustente essa alegação. O máximo que se pode dizer é que uma traição não seria impossível, já que nunca se pode refutar uma negativa. Mas as evidências de Bento são extremamente frágeis - um olhar e uma similaridade aparente. E Machado é muito cuidadoso ao minar essas evidências. Além disso, ele nos dá indicações seguidas do ciúme de Bento. Ele compara Bento a Iago e a Otelo. E suspeito que o irônico Machado sabe muito bem o que está fazendo. Capitu, é verdade, foi apresentada como suficientemente sagaz para enganar; ela, por exemplo, engana a mãe de Bento na primeira parte do livro. Mas esse engano é comparável ao engano de um adultério? Acho que não. Acrescente-se a isso o fato de que a construção do livro estaria toda errada se essa fosse a história de um mero triângulo, e penso que há evidência avassaladora de que a interpretação do dr. Grossman está errada. Se Machado quisesse contar a história do "engano de um homem sensível", por que ele condensaria tudo o que se refere a isso em menos de um terço do livro? Bento, como você diz em uma das suas cartas, é um neurótico. Ele afasta sua mulher, sonha em matar o filho, sem permitir qualquer explicação. Sua tragédia reside no fato de que muito provavelmente ele deixou sua neurose destruir um casamento feliz, privá-lo do filho, envenenar sua vida - E não há qualquer possibilidade de contrastá-lo, já que no final do livro todos os principais personagens, com exceção dele mesmo, estão mortos. Digo muito provavelmente porque, pelas evidências oferecidas, não é impossível que Capitu tenha sido infiel - só não é muito provável. A técnica que Machado usa para relatar a história (narração pelo marido ciumento) contribui para a ambiguidade essencial - uma ambiguidade que a circunstância do narrador não permite esclarecer.

É mais ou menos essa a sua visão? Se não, como você interpreta o romance?

Parece-me que toda essa questão precisa ser debatida antes de eu escrever o texto para a sobrecapa.3 3 Carta de Cecil Hemley a Helen Caldwell, datada de 8 out. 1952. Tradução minha.

O trecho expõe, articuladas, tanto a dúvida sobre a consumação do adultério quanto a problemática situação do narrador em primeira pessoa, que, ao mesmo tempo em que faz emergir a dúvida, torna-a insolúvel.

A resposta de Helen Caldwell viria quatro dias depois. Ela não só demonstra concordância plena com a leitura de Hemley, no todo e nos detalhes, como sugere acalentar, já havia algum tempo, interpretação semelhante a respeito do romance de Bento Santiago e Capitu. Para ela, tratava-se de interpretação óbvia: "Acredito, como você, que toda a história está contida no livro e que um adulto deveria ser capaz de analisá-la. Acredito ainda que até mesmo uma criança sensível poderia perceber a verdade."4 4 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Grifos da autora. Tradução minha.

Ato seguinte, afirma não ter encontrado ressonância da sua opinião na crítica brasileira, o que a levara a certa exasperação e ao projeto de escrever um livro em que expusesse sua visão sobre Dom Casmurro:

Nenhum crítico brasileiro que eu conheça enfrentou de fato a questão da infidelidade de Capitu, ou tentou fazer uma análise séria do livro; muitos, se não a maioria, supõem sua infidelidade. Quando percebi essa grande confusão na nossa grande república irmã, comecei a duvidar da minha própria sanidade, a reexaminar o livro e procurar evidências suplementares em outros escritos de Machado de Assis, tanto os coligidos como os poucos que permaneceram inéditos e que eu pude obter. Reuni um material tão rico que decidi escrever um livro usando minha interpretação de Dom Casmurro como referência para explicar o método e o propósito de Machado de Assis não apenas naquele romance, mas também em outros.5 5 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Tradução minha.

A carta também revela que já em 1952 estava definido o argumento e o título The Brazilian Othello of Machado de Assis, que só seria publicado oito anos mais tarde com a defesa completa e circunstanciada da "inocência" de Capitu.

Ainda que não seja possível datar com precisão quando Helen Caldwell começou a se interessar por Machado de Assis, sabemos pela correspondência que ela fizera a primeira leitura de Dom Casmurro e de boa parte da obra de Machado de Assis entre 1942 e 1943.

Em 1950, ela já reunira vasto material sobre a vida e a obra de Machado de Assis, como se depreende da leitura do documento apresentado no International Colloquium on Luso-Brazilian Studies, em Washington. Nesse documento, demonstrava conhecimento amplo e profundo do estado da arte dos estudos machadianos ao propor a elaboração de uma bibliografia completa (nos moldes da que José Galante de Sousa publicaria em 1955SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.) e a publicação organizada das obras de Machado de Assis.6 6 O material foi publicado em 1953 pela Vanderbilt University Press, Nashville, com o título Proceedings of the International Colloquium on Luso-Brazilian Studies, Washington, October 15-20, 1950, under the auspices of The Library of Congress and Vanderbilt University/Atas do Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros. Em outubro de 1951, escreveu um artigo com o título "Our American Cousin, Machado de Assis", no qual aproxima Machado a Shakespeare, comparação que daria o mote para o estudo de 1960.7 7 O ensaio traduzido foi publicado na Machado de Assis em linha (CALDWELL, 2013).

A essa altura, as incursões nos meandros machadianos já haviam produzido em Caldwell uma visão nada abonadora da crítica brasileira, recorrente na sua correspondência com o editor e notável na carta de 12 de outubro:

Os escritores brasileiros - além de dizerem generalidades sobre sua grandeza - têm, no mais das vezes, se dedicado a explicar sua obra à luz da miopia, epilepsia, sangue negro etc. - o grosseiro e abusivo Sílvio Romero até chegou a dizer que ele "gaguejava" no estilo. De maneira frívola, foram repetindo de ouvido informações infundadas, que uma simples leitura dos livros teria desmentido. Não é que a maioria deles não o admire; o fato é que estão subjugados e aturdidos por ele, chamam-no de "mito", "enigma", "esfinge".8 8 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Tradução minha.

Se relevarmos o tom pouco simpático à crítica brasileira, podemos reconhecer a sagacidade de Caldwell ao observar que um dos motivos das omissões se devia ao fato de os críticos brasileiros sentirem-se subjugados pela autoridade de Machado de Assis. Associando os narradores ao escritor, transferiam a autoridade deste para aqueles. Isso tornava mesmo muito difícil produzir uma leitura que contrariasse as versões que Brás Cubas, Dom Casmurro ou o conselheiro Aires apresentam de suas histórias, já que, dentro daquela moldura mental, isso implicaria questionar, ou desautorizar, o grande escritor Machado de Assis, àquela altura transformado em mito nacional.

Por mais dedicada e leal que tenha sido a Machado de Assis, Caldwell em nenhum momento se mostra subjugada à figura monumentalizada do escritor.

A dedicação e a lealdade ficaram muito claras em várias ocasiões, das quais vale registrar dois exemplos.

Em 1953, declarou:

Sobre o meu interesse pelo destino de Dom Casmurro - Já que não sou a autora, mas algo mais parecido com uma empresária, não hesito em dizer a todo mundo como o livro é maravilhoso. Além disso, há o meu afã missionário (beirando o fanatismo) de fazer esse livro entrar em cada valoroso lar americano.9 9 Carta de Helen Caldwell a Arthur Cohen, datada de 11 fev. 1953. Tradução minha.

Em 1966, ao ser convidada pela prestigiosa editora de Alfred Knopf para traduzir Guimarães Rosa, declinou com a seguinte justificativa: "Guimarães Rosa é um escritor excelente, mas acho que sou uma mulher de um homem só. Estou trabalhando agora num livrinho sobre Machado de Assis."10 10 Carta de Helen Caldwell a William A. Koshland/Alfred A. Knopf Inc., datada de 25 set. 1966. Agradeço a Antonio Dimas por ter compartilhado comigo esse achado durante sua pesquisa na Universidade do Texas, em Austin. Tradução minha.

Essa lealdade e também um grande desassombro lhe permitiu lançar-se à empreitada de traduzir Dom Casmurro com uma segurança e uma convicção notáveis, demonstradas tanto no processo como no resultado da tradução.

Como veremos, foi essa independência que também lhe permitiu contrariar a ordem dada pelo narrador já no primeiro capítulo, quando ele diz ao leitor para não consultar dicionários; constatar a divergência entre os sentidos dicionarizados e aqueles propostos pelo narrador; e last but not least, observar que o sentido de "casmurro" proposto pelo romance havia sido incorporado por alguns dicionários brasileiros.

Ou seja, ela mostrava como a autoridade do narrador, afirmada no texto do romance por meio do imperativo desconcertante, continuara a funcionar na sua recepção duradoura. Eis a observação certeira:

Há um dado interessante sobre a palavra casmurro. O romance claramente teve influência sobre os dicionários. Os mais antigos, como o Aulete, dão apenas o sentido de "teimoso, obstinado, cabeçudo". Dicionários mais recentes incluem outro significado, aquele oferecido no Capítulo 1 de Dom Casmurro, e alguns até usam palavras idênticas; o Laudelino Freire cita a frase do início, "Não consultes dicionários".11 11 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 20 set. 1952.

Fechava-se assim o circuito das leituras conformadas à versão do narrador, na medida em que o dicionarista, atentando até mesmo contra seus próprios interesses de autor, chancela o comando do narrador ficcional, obedecendo-o e transferindo-o aos leitores do dicionário. No mesmo ato, instalava dentro do dicionário a possibilidade de desobediência à autoridade do dicionarista, repetindo o efeito que a ordem do narrador produzia no romance.

Caldwell coletava todas as provas da enorme autoridade do narrador, naturalizada ao longo de décadas por um amplo espectro de leitores, incluindo-se aí os melhores críticos e até mesmo dicionaristas.

A resistência à autoridade é justamente o traço, herdado de Prometeu e Adão, que Helen Caldwell reafirma ao resgatar uma frase de Esaú e Jacó que aparece na epígrafe deste texto - "um velho instinto de resistência à autoridade". Essa é a frase de Machado evocada na biografia que publicou em 1977 sobre outro objeto de sua devoção, o coreógrafo japonês Michio Ito, de quem foi pupila na juventude e a quem dedicou um livro, Michio Ito - The Dancer and his Dances (CALDWELL, 1977______. Michio Ito - The Dancer and his Dances. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1977.).

Assim, a possibilidade de uma visão não subjugada e em grande medida autônoma do clássico nacional certamente se deveu ao fato de ter sido feita por alguém que se pautava pela resistência à autoridade, e desde fora dos condicionamentos e constrangimentos culturais brasileiros, o que já foi observado por críticos como John Gledson (1984GLEDSON, John. The Deceptive Realism of Machado de Assis: a Dissenting Interpretation of Dom Casmurro. Liverpool: F. Cairns, 1984. Traduzido como Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro. Trad. Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.) e Roberto Schwarz (1991SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 85-97, mar. 1991. Publicado também em Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 7-41.).

Em complemento a isso, a correspondência entre tradutora e editor mostra que a possibilidade dessa visão alternativa decorreu também do minucioso trabalho tradutório empreendido por Caldwell, que sopesou cada palavra do romance.

Os dilemas sobre o título do romance em inglês, apresentados na carta de 20 de setembro de 1952, constituem um caso exemplar do alcance e do detalhamento da discussão:

Sinto não ser muito útil em relação ao título. Para mim ele está tão prenhe de sentidos que fico que nem o alquimista em relação à palavra "crocodilo". Na quinta de manhã, quando recebi suas cartas, eu as mostrei para o Glenn Gosling, que é o editor da divisão sul da Editora da Universidade da Califórnia e meu mentor local para esses assuntos; dei-lhe uma ideia da história e do problema e deixei uma cópia do manuscrito com ele, para que pudesse ler as primeiras páginas. Ele e sua equipe refletiram durante o restante do dia, dormiram pensando no assunto e vieram com a brilhante solução de não traduzir o título, já que qualquer tradução não funcionaria bem e poderia transmitir alguma falsa impressão - ou seja, fiquei exatamente na mesma. Ele sugeriu, sim, o acréscimo de palavras em inglês, algo como "I am Dom Casmurro", o que talvez conotasse memória, egoísmo e, quem sabe, ficção.

E continuava o seu arrazoado sobre o título, esmiuçando as palavras:

Em relação à tradução de cada palavra - Para casmurro se poderia usar curmudgeon [algo como ranzinza], que tem uma coloquialidade semelhante e é, em inglês, o mesmo tipo de palavra onomatopoética que casmurro é em português, com uma vantagem adicional: a definição de curmudgeon pelos dicionários é "pessoa avarenta, gananciosa; mesquinha, grosseira". Como acredito que no uso comum esses sentidos se perderam, acho que no livro traduzido a palavra em português poderia ser mantida. O dom é pior - um título português concedido apenas pelo rei em caso de serviços meritórios (p. ex., a Vasco da Gama por ter descoberto o caminho para as Índias), restrito aos círculos mais altos da aristocracia e a uns poucos clérigos, e geralmente associado a membros da própria família real. Entretanto, ainda hoje alguns nobres perdidos em Portugal usam o título - o que geralmente provoca risos. Minhas sugestões são "Sua Alteza o Ranzinza" [His Highness, The Curmudgeon] ou "O Excelentíssimo Ranzinza" [Old Curmudgeon, Esquire]. Mas francamente não gosto muito de nenhuma delas. Assim, a decisão volta para suas mãos. Espero que tenha uma ideia luminosa."12 12 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, 20 set. 1952. Grifos da autora.

Como se vê, na escolha vocabular há preocupação não só com o sentido, mas também com aspectos sonoros, quando não com ambas as coisas, como é o caso do curmudgeon.

Esse tipo de atenção ao texto levara Helen Caldwell a ouvir já na palavra Casmurro, mantido no título do romance em inglês, a sonoridade "moor"/mouro, que sugeriria uma relação direta do protagonista com o mouro de Veneza, o ciumento Otelo de Shakespeare.

Assim, o trecho do primeiro capítulo:

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. (ASSIS, 1899ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Garnier, 1899.)

foi traduzido como:

Don't consult your dictionaries. Casmurro is not used here in the meaning they give for it, but in the sense in which the man in the streets uses it, of a morose, tight lipped man withdrawn within himself. (ASSIS, 1953ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Translated by Helen Caldwell with an Introduction by Waldo Frank. New York: The Noonday Press, 1953., grifo nosso)

Observe-se que tight lipped man withdrawn within himself daria conta de traduzir o calado e metido consigo, sugerindo o laconismo e a retração do personagem. A palavra morose aparece, portanto, como uma espécie de "excesso explicativo", sugerindo a interpretação do romance pela tradutora, que reforça desde o primeiro capítulo, e, retrospectivamente desde o título, as ligações de Dom Casmurro com Otelo, ambos ciumentos, ambos condenando injustamente as mulheres que amaram.

A associação entre Casmurro e mouro permitiria a Helen Caldwell desenvolver as correlações entre os ciúmes de Bento Santiago e Otelo, entre a "inocência" de Capitu e Desdêmona, e entre a grandeza literária de Machado de Assis e Shakespeare. A tese de The Brazilian Othello, portanto, já estava contida na tradução de Dom Casmurro, "como a fruta dentro da casca", para usar uma metáfora do próprio romance.

Essa explicitação seria feita anos depois em The Brazilian Othello of Machado de Assis, quando ela supõe que Machado intencionalmente tenha escolhido a palavra "casmurro" pela proximidade sonora com "mouro", cifrando aí a referência a Shakespeare:

O ciúme de Otelo o transforma em mouro; o de Bento o transforma em "casmurro". Pois, creio eu, há um trocadilho de Machado de Assis nessa palavra: a palavra inglesa "Moor" e a sílaba intermediária de "casmurro" possuem praticamente o mesmo som. Para todos aqueles que apreciam jogos com palavras, como Machado, tal trocadilho não é absolutamente impossível - ao contrário, chega a ser irresistível e, nisso, ele faz uso de um modelo do próprio Shakespeare, que faz trocadilhos com a palavra "Moor" mais de uma vez. (CALDWELL, 2002______. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Ateliê Editoral, 2002., p. 162)

Também no que diz respeito ao ritmo das frases e à construção dos períodos, Caldwell busca tanto se aproximar do texto em português como fazer valer sua interpretação do romance. Diante da estranheza do editor em relação a algumas construções do romance, eis a defesa da tradutora:

De fato, a parte final do romance é mais difícil (embora só os céus saibam como o romance como um todo é difícil). Como disse antes, quando Dom Casmurro fica emocionalmente confuso, a confusão se reflete na sua prosa (acredito que intencionalmente), de modo que muitos trechos parecem uma mistura de um solilóquio shakespeariano com Gertrude Stein em seus momentos mais lúcidos. Essa é a graça do jogo - mas é duro para o tradutor, que fica no meio de um fogo cruzado. Se ele adota o caminho fácil, isto é, busca uma aproximação simplificadora e retificadora lançando mão de uma explicação verbosa daquilo que está apenas sugerido no original, a tradução soa superficial, se não falsa. Se ele tenta reproduzir o caos emocional do texto em português, corre o perigo de tornar-se obscuro e soar difícil. Admito que, quando tive de escolher entre as duas alternativas, escolhi a última, porque foi isso que o próprio Machado fez. [....] Sinto muito que você esteja preocupado com essas asperezas.13 13 Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 7 nov. 1952. Tradução minha.

Nessa verdadeira exposição de princípios como tradutora, Caldwell não se intimida com as dificuldades expressas pelo editor, a quem ela admira e tem em alta conta. Demonstra convicção do seu compromisso com o escritor, e também com sua interpretação do livro, adotando postura dissonante do que Lawrence Venuti (1995VENUTI, Lawrence. The Translator's Invisibility: a History of Translation. London: Routledge, 1995.) define como tendência dominante na cultura tradutória anglo-saxã - a da invisibilidade do tradutor.

Em vez de adotar uma atitude retificadora e domesticadora, apagando as opacidades do texto de partida, Helen Caldwell opta por bancar as descontinuidades e incongruências do texto em português, reafirmando na tradução sua interpretação do romance, baseada na condição psíquica do narrador, que ela considerara um neurótico.

Ao longo de todo o mês de outubro de 1952, tradutora e editor mantêm uma intensa correspondência, na qual se definem as bases para a interpretação alternativa do romance. Parte dessa correspondência será encaminhada por Cecil Hemley a Waldo Frank, latino-americanista importante e então bastante em evidência, que fora convidado para escrever o prefácio do romance. Eis algumas das recomendações do editor ao prefaciador:

Pensei que, pelas circunstâncias, eu deveria passar-lhe parte da correspondência entre a tradutora, Helen Caldwell, e mim, a respeito do significado de Dom Casmurro. Não sei se concordará com nossa interpretação - tanto eu como a srta. Caldwell gostaríamos de tê-lo no nosso lado - mas isso não é de forma alguma necessário. O livro está indo para a gráfica na segunda-feira e em breve você deverá receber as provas.14 14 Carta de Cecil Hemley a Waldo Frank. Cópia em carbono. Sem data, mas provavelmente escrita em 30 out. 1952. Tradução minha.

Em sua "Introdução" a Dom Casmurro, Waldo Frank encampa a interpretação compartilhada por Hemley e Caldwell, ao se referir à "inocência ou culpa de Capitu" como "a ambiguidade central em Dom Casmurro". Não se decidindo por uma coisa ou outra, Frank afirma que "A ambiguidade compõe a textura e a visão de mundo do livro" (FRANK, 1953FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Trans. Helen Caldwell. New York: Noonday Press, 1953. p. 5-13., p. 11), alinhando-se à visão que Hemley havia expressado na sua carta a Helen Caldwell, na qual se refere à "ambiguidade essencial do romance".

Fecha-se aqui outro circuito, o da leitura alternativa do romance, no qual tradutora, editor e crítico transformavam o clássico brasileiro do adultério feminino, até então amplamente tomado como líquido e certo, num romance calcado na ambiguidade, na incerteza e na loucura masculina.

***

Pois bem, e o resto?

Até agora o marco inicial da extraordinária viravolta interpretativa relativa a Dom Casmurro esteve vagamente associado à publicação de The Brazilian Othello of Machado de Assis, em 1960. A correspondência entre Helen Caldwell e Cecil Hemley mostra que é preciso recuar esse marco para o início da década de 1950, pelo menos.

Isso significa que os efeitos da inflexão interpretativa foram ainda mais lentos, retardados e silenciados do que se sabia até agora.

Parece-me muito intrigante que, numa cultura como a brasileira, tão atenta e sensível ao que se diz sobre ela no exterior, especialmente nos Estados Unidos, exista ainda hoje um desconhecimento generalizado sobre a abrangência e longevidade do projeto intelectual levado a cabo por Helen Caldwell.

The Brazilian Othello of Machado de Assis é praticamente o único trabalho pelo qual Helen Caldwell é lembrada no Brasil. Pelo que há no livro de exagero interpretativo, certo anacronismo crítico e clara antipatia pela crítica brasileira, ele foi rapidamente tachado de extravagante.

Entretanto, esse livro corresponde a uma fração pequena do que Caldwell produziu sobre Machado de Assis e acabou por ofuscar a amplitude do seu projeto crítico, as imbricações entre o trabalho crítico e a atividade como tradutora e também a dimensão do abalo que causou na leitura do romance mais canônico da literatura brasileira.

Ainda que sua leitura do romance, baseada no estudo de personagens e no intencionalismo, pudesse soar anacrônica já no início da década de 1960 e envelhecido bastante desde então, e mesmo que alguns de seus achados interpretativos, como a inocência de Capitu, sejam questionáveis, a importância histórica tanto do livro como de sua autora ainda está por ser melhor conhecida e reconhecida.

Caldwell dedicou-se por mais de quatro décadas a Machado de Assis, tendo produzido dois livros de crítica (The Brazilian Othello of Machado de Assis, 1960; Machado de Assis - The Brazilian Novelist and his Novels, 1970), tradução de quatro romances (Dom Casmurro, 1953; Esau and Jacob, 1965; Counselor Ayres Memorial, 1972; Helena, 1984) e cotradução com William Grossman de um volume de contos (The Psychiatrist and Other Stories, 1963).

Detentora dos direitos sobre a tradução de Dom Casmurro, Caldwell tornou-se uma espécie de representante informal para tudo que se relacionasse aos direitos de tradução e adaptação da obra de Machado de Assis fora do Brasil, incluindo traduções para outras línguas que não o inglês e adaptações para o cinema, cogitadas mas nunca realizadas.

Na década de 1960, com a venda da Noonday Press para a Farrar, Straus & Cudahy Inc., que mais tarde se tornaria a Farrar, Straus & Giroux, tudo indica que Helen Caldwell teve papel importante na transferência, de Nova York para a Califórnia, do centro das publicações em torno de Machado de Assis. Esse movimento teve como marco justamente a publicação de The Brazilian Othello of Machado de Assis, pela University of California Press. A editora incorporaria outros cinco títulos relativos a Machado de Assis em seu catálogo, que abrigou pouquíssimos autores de ficção.

Não é que Helen Caldwell tenha sido completamente ignorada. Entretanto, sua presença se fez principalmente, e paradoxalmente, pelo silêncio.

Não foram poucas as reações imediatas ao livro, logo depois de sua publicação. Em geral, a leitura de Helen Caldwell foi considerada "puramente lexicológica", ou seja, muito dependente dos sentidos dados pelos dicionários, o que não deixa de ser irônico. Além disso, segundo os críticos que se pronunciaram no primeiro momento, faltava a Helen Caldwell, que até 1961 não estivera no Brasil, "vivências brasileiras", motivo pelo qual ela não teria compreendido bem o romance.15 15 Para o detalhamento sobre a recepção imediata de The Brazilian Othello por parte da crítica norte-americana e brasileira, ver Guimarães (2017).

No final da década de 1960, seu nome é mencionado, en passant, em dois dos ensaios mais influentes sobre Machado de Assis publicados no período, respectivamente "Esquema de Machado de Assis", de Antonio Candido (1970CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970. p. 13-32.), e "Retórica da verossimilhança", de Silviano Santiago ([1968] 2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança [1969]. In: ______. Uma literatura nos trópicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46.). Candido menciona o julgamento alternativo de Dom Casmurro para sugerir sua irrelevância diante das consequências sofridas pelo personagem-narrador. Santiago vê na alegação da inocência de Capitu, feita por Caldwell, uma grande ingenuidade crítica.

Decorreriam três décadas até que a magnitude do abalo começasse a ser reconhecida.

Em 1994BAPTISTA, Abel Barros. O Legado Caldwell ou o paradigma do pé atrás. Portuguese Studies, Santa Barbara, n. 1, p. 145-177, 1994., Abel Barros Baptista publica o ensaio "O Legado Caldwell ou o paradigma do pé atrás", no qual identifica em The Brazilian Othello of Machado de Assis o marco inaugural de leituras dos romances baseadas na não-confiabilidade do narrador, estabelecendo uma linhagem crítica que incluiria Silviano Santiago, John Gledson e Roberto Schwarz. Ao mesmo tempo que reconhecia a extensão das consequências do estudo de Caldwell para a crítica machadiana, refutava Caldwell e todo o paradigma ao apontar argumentos inconsistentes e raciocínios falaciosos.

Em "A poesia envenenada de Dom Casmurro", Roberto Schwarz (1991SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 85-97, mar. 1991. Publicado também em Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 7-41.) mostrava que o problema não se restringia à interpretação do romance, mas tocava em uma questão recepcional, que por sua vez remetia a um problema cultural amplo e de longo alcance:

Acaso ou não, só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance, uma professora norte-americana (por ser mulher? por ser estrangeira? por ser talvez protestante?) começou a encarar a figura de Bento Santiago - o Casmurro - com o necessário pé atrás. É como se para o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de autoridade fossem menos visíveis. (SCHWARZ, 1991SCHWARZ, Roberto. A poesia envenenada de Dom Casmurro. Novos Estudos CEBRAP, n. 29, p. 85-97, mar. 1991. Publicado também em Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 7-41., p. 9)

Schwarz tocava o nervo da questão, mostrando como justamente o estranhamento das "vivências brasileiras" teria permitido a leitura alternativa da crítica norte-americana. Provavelmente foram esses mesmos motivos - ser mulher, norte-americana, ao que tudo indica não protestante, mas ateia,16 16 August Frugé, ao lembrar de sua visita ao Brasil em 1961, na qual esteve acompanhado pela esposa e por Helen Caldwell, comenta: "I get ahead of myself once more but would like to record that Helen Caldwell, who had never before been to Rio de Janeiro but knew the streets from her studies, led Susan and me through the old districts where Machado de Assis had lived and worked in the century before. And in Salvador da Bahia, the old northeastern capital city, the three of us got caught up in a popular religious procession, hundreds of people who had walked and sung from the basilica of Bon Fim in the outskirts, five miles away. They filled the narrow street from wall to wall and swept us along, with Helen singing 'Ave María' at the top of her voice and muttering under her breath, 'And I come from five generations of atheists'" (FRUGÉ, 1993, p. 113). e ter desenvolvido seu trabalho à margem de Departamentos de Espanhol e Português e do seu enquadramento institucional como professora de latim e grego - que pesaram no veto que lhe foi imposto, por tanto tempo, no Brasil.

A questão em torno do traiu-ou-não-traiu, que o livro de Helen Caldwell consagrou, continuou provocando reações de leitores ilustres, como Otto Lara Resende (1992RESENDE, Otto Lara. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 jan. 1992.), para quem "dar o Bentinho como o 'nosso Otelo' é pura fantasia. Bestialógico mesmo" e Dalton Trevisan (2013TREVISAN, Dalton. Capitu sem enigma. In: ______. Até você, Capitu? Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 13-19.), que a partir de "Capitu sem enigma" e em vários de seus textos ficcionais ridiculariza a presunção de inocência de Capitu.

Em 1999, ao recompor a polêmica recepção de Dom Casmurro, no que diz respeito especificamente à consumação ou não do adultério, a Folha de S. Paulo reuniu trechos de José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer, Antonio Candido, Silviano Santiago, Antonio Callado, Dalton Trevisan, Otto Lara Resende, John Gledson e Roberto Schwarz. Sintomaticamente, o nome de Helen Caldwell não aparecia em parte alguma, ainda que ela fosse a grande referência implícita (CAPITU, 1999CAPITU. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 28 mar. 1999. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs28039910.htm >. Acesso em: 8 maio 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/f...
).

Nada é mais eloquente desse silenciamento do que o fato de terem decorrido 42 anos para a publicação de O Otelo brasileiro de Machado de Assis, em 2002. Às vésperas de se completarem 60 anos da publicação de The Brazilian Othello of Machado de Assis a voz de Helen Caldwell continua a se ouvir em surdina e anonimamente no que talvez seja o maior lugar-comum jamais produzido em relação a um fenômeno literário no Brasil - "Afinal, Capitu traiu ou não traiu?" - que teve nela a principal artífice.

Tudo isso faz pensar em como os dispositivos para calar vozes dissonantes e atrevidas, acionados em Dom Casmurro pela autoridade do personagem-narrador, atravessaram todo o século XX, e se reencenaram na história da tradução do romance e de sua difusão internacional, por meio da invisibilização da tradutora e pelo silenciamento da crítica audaz.

CARTA DE HELEN CALDWELL, DE 20 DE SETEMBRO DE 1952

Universidade da Califórnia

Departamento de Letras Clássicas

Los Angeles 24, Califórnia

20 de setembro de 1952

Sr. Cecil Hemley

Editor-chefe

The Noonday Press

77 Irving Place

Nova York 3, Nova York

Prezado sr. Hemley:

Fiquei lisonjeada ao receber duas cartas suas numa mesma remessa, ainda que nelas você de fato se repita um pouco. Obrigada pelas palavras gentis sobre Dom Casmurro. Tentei ser fiel a Machado de Assis em letra e espírito, já que ele tem sido meu amigo e companheiro constante há quase dez anos. Além disso, M. A. Zeitlin, da nossa universidade, que é um excelente acadêmico da área de português e tem olhos de águia, cotejou com cuidado a tradução e o original, capítulo por capítulo. Ainda agora estou mais uma vez repassando tudo com Ilda Stichini (a atriz portuguesa), para captar nuances, especialmente aquelas relativas ao humor, ou alusões que possam ter me escapado. Eu leio em português, em voz alta, enquanto ela acompanha em inglês.

Sinto não ser muito útil em relação ao título. Para mim ele está tão prenhe de sentidos que fico que nem o alquimista em relação à palavra "crocodilo". Na quinta de manhã, quando recebi suas cartas, eu as mostrei para o Glenn Gosling, que é o editor da divisão sul da Editora da Universidade da Califórnia e meu mentor local para esses assuntos; dei-lhe uma ideia da história e do problema e deixei uma cópia do manuscrito com ele, para que pudesse ler as primeiras páginas. Ele e sua equipe refletiram durante o restante do dia, dormiram pensando no assunto e vieram com a brilhante solução de não traduzir o título, já que qualquer tradução não funcionaria bem e poderia transmitir alguma falsa impressão - ou seja, fiquei exatamente na mesma. Ele sugeriu, sim, o acréscimo de palavras em inglês, algo como "I am Dom Casmurro", o que talvez conotasse memória, egoísmo e, quem sabe, ficção.

Em relação à tradução de cada palavra - Para casmurro se poderia usar curmudgeon [algo como ranzinza], que tem uma coloquialidade semelhante e é, em inglês, o mesmo tipo de palavra onomatopoética que casmurro é em português, com uma vantagem adicional: a definição de curmudgeon pelos dicionários é "pessoa avarenta, gananciosa; mesquinha, grosseira". Como acredito que no uso comum esses sentidos se perderam, acho que no livro traduzido a palavra em português poderia ser mantida. O dom é pior - um título português concedido apenas pelo rei em caso de serviços meritórios (p. ex., a Vasco da Gama por ter descoberto o caminho para as Índias), restrito aos círculos mais altos da aristocracia e a uns poucos clérigos, e geralmente associado a membros da própria família real. Entretanto, ainda hoje alguns nobres perdidos em Portugal usam o título - o que geralmente provoca risos. Minhas sugestões são "Sua Alteza o Ranzinza" [His Highness, The Curmudgeon] ou "O Excelentíssimo Ranzinza" [Old Curmudgeon, Esquire]. Mas francamente não gosto muito de nenhuma delas. Assim, a decisão volta para suas mãos. Espero que tenha uma ideia luminosa.

Há um dado interessante sobre a palavra casmurro. O romance claramente teve influência sobre os dicionários. Os mais antigos, como o Aulete, dão apenas o sentido de "teimoso, obstinado, cabeçudo". Dicionários mais recentes incluem outro significado, aquele oferecido no Capítulo 1 de Dom Casmurro, e alguns até usam palavras idênticas; o Laudelino Freire cita a frase do início, "Não consultes dicionários".

A tradução das palavras que deixei em português não será um problema - eu já tentei várias soluções. Vou inserir as traduções numa lista de correções que estou preparando. Também há algumas expressões sobre as quais gostaria de saber sua opinião. Assim que puder, enviarei a lista.

Estou contente que tenha pedido ao Dudley Fitts para escrever a introdução. Já que na resenha que escreveu sobre Epitaph of a Small Winner [Memórias póstumas de Brás Cubas] ele disse que Dom Casmurro deveria ser traduzido, seria muito difícil para ele recusar tal convite, não acha? Além disso, nós, classicistas renegados, precisamos nos unir.

Esperemos que ele não caia na história do pessimismo. Mesmo que Machado tenha deixado alguns retratos de pessimistas, eu não consigo ver isso aplicado a ele de maneira geral. Entretanto, isso tem sido dito à exaustão, com um crítico repetindo o outro impensadamente e ad nauseam; e acho mesmo que isso afasta os leitores. Dom Casmurro com certeza não é nenhum pessimista. Ele é um neurótico, isso sim, com uma bela cisão na sua psique - mas é um grande neurótico.

Nessa altura você deve estar dando graças às estrelas por 4.800 km separarem Nova York e Los Angeles. Prometo ser mais rápida e menos prolixa numa próxima vez. No que puder ajudar, me avise. Pode me dizer com franqueza o que quiser, sem medo de me magoar. Embora eu seja muito cordata e modesta em muitos sentidos, quando se trata de Machado de Assis eu sou uma completa megalomaníaca, a ponto de achar que ninguém no mundo, ou em qualquer outro lugar, realmente o compreende e aprecia como eu.

Obrigada pelas suas simpáticas cartas.

Atenciosamente,

Helen Caldwell

P.S. Passei uma cópia da tradução para nosso cônsul brasileiro, para que enviasse ao ministro, e escrevi para o genro dele que está lá e (felizmente) acaba de ser promovido.

Se algum dia quiser me contatar por telefone, ou enviar alguma encomenda, melhor usar o endereço do meu apartamento: 1022 Tiverton Av., Los Angeles 24. Telefone: ARIZONA 9-1890. Ninguém fica em casa quando não estou, de modo que pode fazer uma chamada interurbana.

***

CARTA A HELEN CALDWELL, DE 8 DE OUTUBRO DE 1952

Out. 8, 1952

Estimada srta. Caldwell,

É bom que seja rápida em suas respostas. Também gosto do seu método de fazer correções e, de agora em diante, vou adotá-lo. Quanto às alterações, concordo com elas - com uma exceção. Por favor, não troque "cocada" e "Cocadinha". Sei que estou sendo contraditório mais uma vez, mas aí me parece que o inglês é, e deve ser, capenga em relação ao original. Pelo contexto, não é difícil entender, então por que enfraquecer o trecho que é mesmo muito charmoso? (p. 49)

Estão avançando rapidamente por aqui. O livro deve ser impresso em duas semanas, e estamos pensando em publicá-lo em março. Isso nos coloca a questão da sobrecapa. A única coisa que me preocupa é uma questão de interpretação e gostaria muito de saber sua opinião. O dr. Grossman [William Grossman, tradutor de Memórias póstumas de Brás Cubas] e eu não concordamos de modo algum a respeito do assunto do livro. Ele escreveu ao Brasil e eu recorri à Mavis MacIntosh, e até agora a minha opinião tem, em grande medida, se confirmado.

O dr. Grossman acredita que Dom Casmurro foi de fato traído. Não encontro na história nenhuma evidência objetiva que sustente essa alegação. O máximo que se pode dizer é que uma traição não seria impossível, já que nunca se pode refutar uma negativa. Mas as evidências de Bento são extremamente frágeis - um olhar e uma similaridade aparente. E Machado é muito cuidadoso ao minar essas evidências. Além disso, ele nos dá indicações seguidas do ciúme de Bento. Ele compara Bento a Iago e a Otelo. E suspeito que o irônico Machado sabe muito bem o que está fazendo. Capitu, é verdade, foi apresentada como suficientemente sagaz para enganar; ela, por exemplo, engana a mãe de Bento na primeira parte do livro. Mas esse engano é comparável ao engano de um adultério? Acho que não. Acrescente-se a isso o fato de que a construção do livro estaria toda errada se essa fosse a história de um mero triângulo, e penso que há evidência avassaladora de que a interpretação do dr. Grossman está errada. Se Machado quisesse contar a história do "engano de um homem sensível", por que ele condensaria tudo o que se refere a isso em menos de um terço do livro? Bento, como você diz em uma das suas cartas, é um neurótico. Ele afasta sua mulher, sonha em matar o filho, sem permitir qualquer explicação. Sua tragédia reside no fato de que muito provavelmente ele deixou sua neurose destruir um casamento feliz, privá-lo do filho, envenenar sua vida - E não há qualquer possibilidade de contrastá-lo, já que no final do livro todos os principais personagens, com exceção dele mesmo, estão mortos. Digo muito provavelmente porque, pelas evidências oferecidas, não é impossível que Capitu tenha sido infiel - só não é muito provável. A técnica que Machado usa para relatar a história (narração pelo marido ciumento) contribui para a ambiguidade essencial - uma ambiguidade que a circunstância do narrador não permite esclarecer.

É mais ou menos essa a sua visão? Se não, como você interpreta o romance?

Parece-me que toda essa questão precisa ser debatida antes de eu escrever o texto para a sobrecapa.

Agora, vamos aos detalhes, que você encontra em anexo.

Atenciosamente,

***

CARTA DE HELEN CALDWELL, DE 12 DE OUTUBRO DE 1952

Universidade da Califórnia

Departamento de Letras Clássicas

Los Angeles 24, Califórnia

Outubro 12, 1952

Caro sr. Hemley,

Não há nada a "debater" sobre a interpretação do livro: sua análise está correta in toto e nos detalhes. E eu fico muito feliz que Machado de Assis tenha um editor inteligente e cuidadoso para o seu Dom Casmurro em inglês - é mais do que ele teve em vida para o livro em português. Acredito, como você, que toda a história está contida no livro e que um adulto deveria ser capaz de analisá-la. Acredito ainda que até mesmo uma criança sensível poderia perceber a verdade. Quando se trata da "crítica" brasileira, bem... Foram escritas sobre Machado de Assis centenas de livros, artigos, ensaios, monografias etc. Nenhum crítico brasileiro que eu conheça enfrentou de fato a questão da infidelidade de Capitu, ou tentou fazer uma análise séria do livro; muitos, se não a maioria, supõem sua infidelidade. Quando percebi essa grande confusão na nossa grande república irmã, comecei a duvidar da minha própria sanidade, a reexaminar o livro e procurar evidências suplementares em outros escritos de Machado de Assis, tanto os coligidos como os poucos que permaneceram inéditos e que eu pude obter. Reuni um material tão rico que decidi escrever um livro usando minha interpretação de Dom Casmurro como referência para explicar o método e o propósito de Machado de Assis não apenas naquele romance, mas também em outros. Eu já tinha começado a escrevê-lo quando Mavis McIntosh me desviou para essa tradução. Mas ainda estou trabalhando no livro. O título é (acho) "The Brazilian Othello of Machado de Assis" - o que vai lhe sugerir as conclusões a que minhas descobertas me levaram.

Voltando aos "críticos" brasileiros: - Um crítico, bastante bom, José Veríssimo, contemporâneo e amigo de Machado de Assis, embora de modo geral parecesse acreditar na infidelidade de Capitu, de fato sugeriu de leve que o ódio de Bento poderia tornar seu testemunho suspeito. [Creio que um crítico moderno também menciona isso, mas no momento não me lembro de quem foi.] Mas não deixe que os "críticos" brasileiros o influenciem. Não há nenhum estudo sério sobre Machado de Assis. Os escritores brasileiros - além de dizerem generalidades sobre sua grandeza - têm, no mais das vezes, se dedicado a explicar sua obra à luz da miopia, epilepsia, sangue negro etc. - o grosseiro e abusivo Sílvio Romero até chegou a dizer que ele "gaguejava" no estilo. De maneira frívola, foram repetindo de ouvido informações infundadas, que uma simples leitura dos livros teria desmentido. Não é que a maioria deles não o admire; o fato é que estão subjugados e aturdidos por ele, chamam-no de "mito", "enigma", "esfinge". Os poucos críticos que tiveram ideias boas e profundas não deram seguimento a elas. Até hoje, o Brasil não produziu sequer uma biografia, pequena ou grande, que não esteja repleta de informações questionáveis, e nenhuma bibliografia, mesmo parcial, que valha a pena (Lúcia Miguel Pereira tem, de fato, algum material bibliográfico disperso ao longo do seu livro). Em 1939, o Instituto Nacional do Livro anunciou que publicaria uma bibliografia em dois volumes. Em 1948, escrevi para Augusto Meyer, seu diretor, e perguntei sobre o andamento dessa bibliografia. Ainda que tenha me escrito duas cartas e me presenteado com um par de livros sobre Machado de Assis, ele não respondeu minha questão. A única bibliografia de fato que eu conheço é aquela que está na tese de doutorado de Benjamin Woodbridge Jr. sobre Machado de Assis (Harvard, 1949WOODBRIDGE, Benjamin M.. Pessimism in the Writings of Machado de Assis: a Study in the Development of an Attitude and its Expression. Ph.D. Dissertation. Harvard University, 1949.), e ele não tinha a pretensão de fazer algo completo.

Isso não é delírio meu; a opinião de Woodbridge é ainda mais contundente que a minha. Há dois anos escrevi para o International Colloquium on Luso-Brazilian Studies, que se realizou em Washington, um pequeno documento sobre a necessidade de se realizarem estudos acadêmicos sobre Machado de Assis. O professor Woodbridge apresentou o documento, discutiu-o em português, enfatizando e desdobrando algumas questões a partir do seu próprio conhecimento e da sua experiência amarga. Embora houvesse entre 300 e 400 "acadêmicos" presentes, e uma boa parte deles brasileiros, não houve nenhuma voz dissonante - e olha que era um público bastante questionador.

Os motivos para a confusão da crítica brasileira sobre Machado de Assis são vários e remontam ao seu período de vida - alguns eu entendo, outros não. Mas a razão para a concepção errônea sobre o episódio Bento-Capitu eu acredito que seja principalmente a seguinte. O personagem Dom Casmurro torna-se tão verdadeiro que o leitor fica tentado a identificá-lo com Machado de Assis, e isso, claro, põe toda a narrativa de Dom Casmurro fora de perspectiva. Machado criou Dom Casmurro e deixou-o contar sua própria história e, como ocorre com muitos outros criminosos, ele inadvertidamente deixa suas marcas [tip his own hand]. As personagens de Machado de Assis são Machado de Assis provavelmente na mesma medida em que Macbeth, Falstaff, Juliet e Dame Quickly são Shakespeare. E eu acho que Dom Casmurro tem em si menos de Machado de Assis do que as personagens de algumas de suas outras obras. De fato, acredito que Machado se manteve de propósito na retaguarda, deixando o campo livre para Dom C. Há apenas um momento no livro em que suspeito vislumbrar Machado de Assis - isso ocorre na sátira a d. Pedro II, filantropo e patrono das artes e das ciências, que muitos brasileiros costumavam chamar de "Pedro Bananas". O devaneio tem a ver, é claro, com a facilidade com que Bento acredita em milagres, mas o humor me parece ter um toque de leveza e liberdade mais de acordo com o estilo de Machado de Assis do que com o de Dom Casmurro. Eu não me espantaria se Machado tivesse se deixado mostrar um pouco ali (Por falar nisso, ninguém, pelo menos que eu saiba, jamais atentou para essa pequena joia como uma sátira, e não se trata da única ocasião em que Machado de Assis cutucou o velho e bom imperador).

Bem, da próxima vez você pensará duas vezes antes de pedir minha opinião.

Anexo quatro páginas de crítica textual. Fico contente que sua esposa também esteja revisando a tradução. Quanto mais, melhor.

Talvez eu devesse lhe dizer que na edição em português de Dom Casmurro os títulos dos capítulos estão listados num índice, ao final do livro. Eu os omiti da tradução porque para mim eles são como pequenas pontes a fazer a transição do final de um capítulo ao seguinte. Como títulos listados numa página, separados daquilo que imediatamente os precede no texto, penso que não fazem muito sentido; e na versão em inglês, na qual seriam colocados no início do livro, penso que seria muita coisa para atravessar antes de chegar à história. Entretanto, não tenho opinião fechada sobre o assunto, caso queira manter o índice.

Atenciosamente,

Helen Caldwell

***

BILHETE DE CECIL HEMLEY, SEM DATA

Prezado sr. Frank17 17 A cópia carbono do bilhete não apresenta data, mas pode ser datado de 30 out. 1952 pela referência feita a ele em carta de Waldo Frank a Cecil Hemley, de 14 nov. 1952.

O sr. Cohen me diz que você concordou em escrever uma Introdução para Dom Casmurro, e estou, claro, contente. Pensei que, pelas circunstâncias, eu deveria passar-lhe parte da correspondência entre a tradutora, Helen Caldwell, e mim, a respeito do significado de Dom Casmurro. Não sei se concordará com nossa interpretação - tanto eu como a srta. Caldwell gostaríamos de tê-lo no nosso lado - mas isso não é de forma alguma necessário. O livro está indo para a gráfica na segunda-feira e em breve você deverá receber as provas.

Cordialmente,

Cecil Hemley

Editor-chefe

***

CARTA DE HELEN CALDWELL, DE 7 DE NOVEMBRO DE 1952

Universidade da Califórnia

Departamento de Letras Clássicas

Los Angeles 24, Califórnia

7 de novembro de 1952

Caro sr. Hemley,

De fato, a parte final do romance é mais difícil (embora só os céus saibam como o romance como um todo é difícil). Como disse antes, quando Dom Casmurro fica emocionalmente confuso, a confusão se reflete na sua prosa (acredito que intencionalmente), de modo que muitos trechos parecem uma mistura de um solilóquio shakespeariano com Gertrude Stein em seus momentos mais lúcidos. Essa é a graça do jogo - mas é duro para o tradutor, que fica no meio de um fogo cruzado. Se ele adota o caminho fácil, isto é, busca uma aproximação simplificadora e retificadora lançando mão de uma explicação verbosa daquilo que está apenas sugerido no original, a tradução soa superficial, se não falsa. Se ele tenta reproduzir o caos emocional do texto em português, corre o perigo de tornar-se obscuro e soar difícil. Admito que, quando tive de escolher entre as duas alternativas, escolhi a última, porque foi isso que o próprio Machado fez. Machado de Assis foi um inovador no que diz respeito à língua portuguesa: a maioria dos portugueses e muitos brasileiros consideram algumas de suas construções estranhas e bárbaras (do mesmo modo que ocorreu com os contemporâneos de Shakespeare), e em várias passagens não o compreendem absolutamente. É uma situação difícil. Sinto muito que você esteja preocupado com essas asperezas.

Quanto à tradução do Miomandre, quero alertá-lo contra a tentativa de adequar a minha tradução à dele. Estou familiarizada com ela pelo seguinte motivo: - A edição de Dom Casmurro da Garnier tem uma série de gralhas. A maioria delas foi corrigida na edição da Jackson; mas a edição da Jackson tem gralhas que não estão na Garnier. Miomandre utilizou a Garnier (a Jackson ainda não tinha sido publicada à época da sua tradução). Eu utilizei a Jackson e a cotejei com a Garnier. Nem Berkeley nem a UCLA têm a Garnier (ainda que a biblioteca daqui venha tentando obter um exemplar há vários anos), de modo que tive de tomá-la emprestada da Biblioteca do Congresso pelo serviço entre bibliotecas. O empréstimo é por uma semana; demora de um mês a um mês e meio para o livro chegar; há uma regra que impõe um intervalo de tempo entre empréstimos de uma mesma biblioteca; em dezembro, nada é emprestado; e em algumas ocasiões em que estive com o livro, estava atarefada demais para examiná-lo. Com isso, quase não pude me beneficiar da edição Garnier. Nessas ocasiões, utilizei o Miomandre como substituto - eu o lia toda vez que completava a tradução de cinco capítulos e marcava as dúvidas para conferir quando novamente tivesse acesso à Garnier. As emendas da Jackson, de maneira geral, são boas, e concordei com todas, exceto duas ou três. Vou lhe dar um exemplo:

No capítulo 115, a Garnier traz "tristezas de Olympio" - o que não faz sentido. Olympio é um sobrenome, há até um escritor brasileiro bastante conhecido que tem esse sobrenome, mas ainda assim não faz sentido. (Miomandre manteve o nome.) A Jackson corrige para "tristezas do Olympo", fazendo uma clara alusão aos Lusíadas, o que é cabível.

Além dessas diferenças textuais - Miomandre cometeu alguns deslizes. Eu lhe darei alguns exemplos da parte final do livro, que calhou de eu anotar:

No Cap. 143 ele põe "grand'mère" onde devia ter posto "grand-père", ou seja, ele leu avó em vez de avô.

115 "ou de vieilllesse de pensionnaire". No português está "ou de ancianidade viçosa, à escolha... " Ele deve ter lido "à escolar" em vez de "à escolha" e manteve o "viçosa". Claro que isso mudou todo o sentido.

117 "Je haletais un peu, mais peut-être à cause de la mer, qui était à demi agitée." Haletais deveria ser respirai e o "qui était à demi agitée" deveria ser "je haletais un peu", como se pode ver pela oração anterior.

118 "intimité" Ele aparentemente leu "íntimo” em vez de "intimativo", e "intimativo" não tem nada a ver com "intimité" (a palavra tem a mesma base do "intimidate" em inglês).

136 "sa main sur la hanche" para "a mão nas costas da cadeira" - o que significa "his hand on the back (or shoulder) of the chair", nada mais; se tivesse dúvida, bastava retornar ao cap. 120 "a mão esquerda no dorso de uma cadeira", que ele mesmo traduziu "la main gauche sur le dossier d'une chaise". Dificilmente se espera que alguém mude de posição numa fotografia, e isso vale até mesmo para o Dom Casmurro.

Além desse tipo de erro, ele costuma mudar a pessoa e o número dos verbos e pronomes, por exemplo: 144 "naturellement ils s'étonnaient de cet intrus". Deveria ser "il s'étonnait". Dom C. se refere a uma árvore. A pontuação em português deixa isso muito claro, "A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de recto, como outr'ora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso". "pasmava" é sing.

145 "je lui expliquai qu'il avait réellement peu changé" "il avait" deveria ser "j'avais" - o que também fica bem claro pelo contexto.

134 "quoique je voltigeasse avec elle" deveria ser "quoique elle voltigeât avec elles".

Estaria inclinada a considerar isso tudo como erro de impressão, se não fossem tão numerosos (Provavelmente foi a frequência desses dois tipos de deslize que fez com que a tradução fosse tão criticada no Brasil, uma vez que a maioria dos brasileiros educados também lê francês).

Eu também questiono algumas das suas interpretações (mas isso pode ser a minha megalomania dando as caras); "ressac", por exemplo. Embora a palavra luso-brasileira "ressaca" tenha o mesmo sentido no francês, o uso brasileiro é diferente, e isso, me parece, fica claro pelo contexto. Mas simpatizo com ele (Miomandre), porque todo esse negócio dos olhos é difícil de traduzir, e difícil de evitar que soe ridículo - ainda assim, eu realmente considero "yeux de ressac" uma opção particularmente infeliz.

Fiz toda essa longa arenga porque sua carta me deu a impressão de que você achou que eu estava lhe escondendo algo maravilhoso ao não chamar sua atenção para a tradução do Miomandre. Nunca sequer cogitei fazer isso - se tivesse cogitado, ficaria muito contente de escondê-la de você. E espero que faça o mesmo com o Waldo Frank - isso por causa dos prefácios, que me incomodam particularmente. Aquele sobre "Machado de Assis", por exemplo, afirma: "Ele publicou duas comédias". Pelo menos 5 comédias foram publicadas por Machado em livro; pelo menos 12 foram escritas e encenadas (Não estou incluindo as traduções que ele fez). Para se referir a 140 contos (ou mais, dependendo de como se define o termo), para não mencionar os poemas, a crítica etc., o termo "quelques recueils" soa como um eufemismo (Nem todos esses escritos foram reunidos em livro durante a vida de Machado, mas a maioria sim - pelo que me lembro, 28 vols. foram publicados em vida). Quando Miomandre diz "sa mère" ele se refere à "madrasta". Em relação aos "ouvrier nègre", "femme du peuple", "blanchisseuse", "timidité" - até onde sei, tudo isso se baseia em rumores e suposições, eu diria: "prove ou fundamente suas afirmações". No "Prefácio", os dois primeiros parágrafos são bastante bons, o terceiro não é ruim, quanto ao resto, Hmmm (Há um livro com informações precisas sobre a vida e a obra de Machado - o catálogo do centenário, “Exposição Machado de Assis”, lançado pelo Ministério da Educação e Saúde, Rio, 1939. Ele contém um excelente prefácio de Augusto Meyer, boas notas, e muita machadiana até então inédita. Tenho certeza de que já o viu).

Voltando a assuntos sérios - acho muito bom separar os capítulos.

Atenciosamente,

Helen Caldwell

Referências

  • BAPTISTA, Abel Barros. O Legado Caldwell ou o paradigma do pé atrás. Portuguese Studies, Santa Barbara, n. 1, p. 145-177, 1994.
  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Garnier, 1899.
  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Translated by Helen Caldwell with an Introduction by Waldo Frank. New York: The Noonday Press, 1953.
  • CALDWELL, Helen. The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1960.
  • ______. Michio Ito - The Dancer and his Dances. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1977.
  • ______. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Trad. Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Ateliê Editoral, 2002.
  • ______. Nosso primo americano, Machado de Assis. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 1-13, jun. 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S1983-68212013000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 09 maio 2019. doi:10.1590/S1983-68212013000100002.
    » https://doi.org/10.1590/S1983-68212013000100002» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S1983-68212013000100002&lng=pt&nrm=iso
  • CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970. p. 13-32.
  • CAPITU. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, São Paulo, 28 mar. 1999. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs28039910.htm >. Acesso em: 8 maio 2019.
    » https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs28039910.htm
  • FRANK, Waldo. Introduction. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Trans. Helen Caldwell. New York: Noonday Press, 1953. p. 5-13.
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  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
  • PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. 4. ed. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, [1936] 1949.
  • RESENDE, Otto Lara. Folha de S. Paulo, São Paulo, 8 jan. 1992.
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  • VENUTI, Lawrence. The Translator's Invisibility: a History of Translation. London: Routledge, 1995.
  • WOODBRIDGE, Benjamin M.. Pessimism in the Writings of Machado de Assis: a Study in the Development of an Attitude and its Expression. Ph.D. Dissertation. Harvard University, 1949.
  • 1
    A pesquisa que permitiu localizar os documentos que fundamentam este artigo foi realizada na New York Public Library, em Nova York, EUA, com apoio da Tinker Foundation, e no Center for Portuguese Studies da University of California, Santa Bárbara, com apoio da Fapesp. Agradeço a Robin Hemley pela autorização para publicar as cartas de seu pai, Cecil Hemley.
  • 2
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 20 set. 1952. Tradução minha.
  • 3
    Carta de Cecil Hemley a Helen Caldwell, datada de 8 out. 1952. Tradução minha.
  • 4
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Grifos da autora. Tradução minha.
  • 5
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Tradução minha.
  • 6
    O material foi publicado em 1953 pela Vanderbilt University Press, Nashville, com o título Proceedings of the International Colloquium on Luso-Brazilian Studies, Washington, October 15-20, 1950, under the auspices of The Library of Congress and Vanderbilt University/Atas do Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros.
  • 7
    O ensaio traduzido foi publicado na Machado de Assis em linha (CALDWELL, 2013______. Nosso primo americano, Machado de Assis. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, São Paulo, v. 6, n. 11, p. 1-13, jun. 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S1983-68212013000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 09 maio 2019. doi:10.1590/S1983-68212013000100002.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    ).
  • 8
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 12 out. 1952. Tradução minha.
  • 9
    Carta de Helen Caldwell a Arthur Cohen, datada de 11 fev. 1953. Tradução minha.
  • 10
    Carta de Helen Caldwell a William A. Koshland/Alfred A. Knopf Inc., datada de 25 set. 1966. Agradeço a Antonio Dimas por ter compartilhado comigo esse achado durante sua pesquisa na Universidade do Texas, em Austin. Tradução minha.
  • 11
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 20 set. 1952.
  • 12
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, 20 set. 1952. Grifos da autora.
  • 13
    Carta de Helen Caldwell a Cecil Hemley, datada de 7 nov. 1952. Tradução minha.
  • 14
    Carta de Cecil Hemley a Waldo Frank. Cópia em carbono. Sem data, mas provavelmente escrita em 30 out. 1952. Tradução minha.
  • 15
    Para o detalhamento sobre a recepção imediata de The Brazilian Othello por parte da crítica norte-americana e brasileira, ver Guimarães (2017GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Editora Unesp, 2017.).
  • 16
    August Frugé, ao lembrar de sua visita ao Brasil em 1961, na qual esteve acompanhado pela esposa e por Helen Caldwell, comenta: "I get ahead of myself once more but would like to record that Helen Caldwell, who had never before been to Rio de Janeiro but knew the streets from her studies, led Susan and me through the old districts where Machado de Assis had lived and worked in the century before. And in Salvador da Bahia, the old northeastern capital city, the three of us got caught up in a popular religious procession, hundreds of people who had walked and sung from the basilica of Bon Fim in the outskirts, five miles away. They filled the narrow street from wall to wall and swept us along, with Helen singing 'Ave María' at the top of her voice and muttering under her breath, 'And I come from five generations of atheists'" (FRUGÉ, 1993FRUGÉ, August. A Skeptic Among Scholars: August Frugé on University Publishing. Berkeley: University of California Press, 1993. Disponível em: <Disponível em: http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft2c6004mb/ >. Acesso em: 18 maio 2019.
    http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft2c6004...
    , p. 113).
  • 17
    A cópia carbono do bilhete não apresenta data, mas pode ser datado de 30 out. 1952 pela referência feita a ele em carta de Waldo Frank a Cecil Hemley, de 14 nov. 1952.
  • 18
    HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor livre-docente na Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq; desenvolve atualmente o projeto de pesquisa "Efeitos da tradução sobre a recepção e a consagração de Machado de Assis" com Bolsa Produtividade PQ (nível 2). http://orcid.org/0000-0002-2054-2689. E-mail: hsg@usp.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2019
  • Aceito
    27 Maio 2019
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