Pensar a recepção crítica da obra de Machado de Assis em sua atualidade implica dois movimentos: o de redimensionar a obra do autor, já consagrada pela crítica há mais de um século, assim como o de reconsiderar aspectos ainda pouco explorados da literatura machadiana. Ambos os movimentos se encontram exemplificados nos catorze artigos reunidos no livro organizado por Andréa Sirihal Werkema e João Cezar de Castro Rocha recentemente publicado pela Nankin. O volume, resultado de um evento também organizado por Werkema e Castro Rocha no final de 2019, no Instituto de Letras da UERJ, contribui profundamente para essa chamada atualização.
A dimensão, pois, da atualidade de Machado de Assis torna-se o cerne deste livro. E, nesse sentido, remete-se à condição histórica das leituras críticas de Machado, cuja obra, devido à enorme relevância em nossas letras, demanda, constantemente, sua atualização. Em obra recente, Sônia Netto Salomão destaca a intensificação desse movimento de retorno à literatura de Machado desde os anos 1990, em que a crítica
[...] embora não mais de forma impressionista e ingênua, voltou-se, assim, ao necessário diálogo que cada crítico estabelece com seu próprio objeto, na busca da elucidação das questões que, no seu desafio, a obra lhe propõe. Em relação a Machado de Assis, esse convite ao diálogo faz parte da própria construção retórica dos seus textos e alcança o seu apogeu com as MPBC, de 1881, no seu conhecido processo de chamar em causa o leitor e o crítico em particular, favorecendo uma espécie de integração dos modelos críticos, tanto para seguir os tempos que correm e o tema que enfrentamos. (SALOMÃO, 2016SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: EdUerj, 2016., p. 22-23)
Em outras palavras, a crítica machadiana, hoje já com mais de um século, torna-se também o próprio motivo de discussão deste volume, em que diversos (e distintos) artigos convergem. E, mantendo no horizonte essa fortuna crítica, o livro procura redirecionar determinados sentidos à literatura de Machado.
Ainda em torno dessa tradição crítica, reconhece-se, claramente, o domínio da análise e investigação dos tópicos literários presentes nos principais romances, pertencentes à denominada "segunda fase" do autor, mas sem perder de vista também as suas primeiras experiências romanescas. E os artigos "'Aqui estou, aqui vivo, aqui morrerei': diplomacia e cosmopolitismo no diário do conselheiro Aires", de Andréa Sirihal Werkema; "Helena: proposta para um modelo machadiano de leitura", de Eduardo Luz; "Machado/Shakespeare: Bento Santiago/Leontes: afinidades estruturais", de João Cezar de Castro Rocha; e "Dois romancistas da crise: Laurence Sterne e Machado de Assis", de Sandra Guardini Vasconcelos, procuram dar conta das duas dimensões da produção romanesca de Machado em relação à sua recepção histórica.
Andréa Werkema e Eduardo Luz se debruçam sobre Memorial de Aires e Helena, respectivamente. Essas leituras propõem abordagens mais atentas e pormenorizadas sobre duas obras costumeiramente recebidas com certa frieza pelos leitores e pelos críticos de Machado de Assis. Suas análises procuram adentrar nos processos da composição narrativa do autor a fim de desmobilizar leituras engessadas sobre esses romances - e no significado deles no conjunto total da obra machadiana. Enquanto Andréa Werkema problematiza a relação localismo/cosmopolitismo no romance do conselheiro Aires, Eduardo Luz realiza uma cerrada leitura dos aspectos intertextuais e das estratégias de um romancista ainda em formação na composição de Helena.
João Cezar de Castro Rocha e Sandra Vasconcelos, traçando outros caminhos, vão às duas obras-primas machadianas por excelência: Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, respectivamente. Em ambos os artigos, cada um a seu modo, o que é colocado em evidência e, portanto, sob o olhar da atualização, são as obras de dois modelos literários de Machado de Assis: Shakespeare, na leitura de Castro Rocha, e Laurence Sterne, na análise de Vasconcelos. Embora tais influências sejam já há muito conhecidas na crítica machadiana, é preciso tomar cuidado com as "armadilhas" colocadas por Machado em seus textos, como João Cezar de Castro Rocha aponta em seu artigo, exigindo do leitor atento uma revisão mais cuidadosa dessas filiações de Machado à literatura anglófona.
Mas a atualização da crítica de Machado exige um olhar mais amplo, que dê conta de outras produções do autor, desenvolvidas a partir de gêneros diversos, como a poesia, os contos, a crítica literária e as crônicas. (Cumpre ressaltar que a produção teatral dele permanece, de certo modo, obscura à atualização crítica.) São três os artigos destinados à poesia de Machado: "Uma leitura da poesia de Machado de Assis", de Cláudio Murilo Leal; "'Sob o véu dos versos': as artes sibilinas do poético na obra de Machado de Assis", de Flávia Amparo; e "Americanas, de Machado de Assis: um desafio à interpretação", de José Américo Miranda. Enquanto este artigo dedica-se ao terceiro volume de poemas do autor, destacando a sua diferença em relação ao conjunto poético de Machado, aqueles propõem um olhar mais amplo sobre a produção em versos de Machado, comumente relegada pela crítica a um lugar secundário. O de Flávia Amparo, sobretudo, procura desenvolver uma aproximação dos temas e das escolhas poéticas do autor ao estilo já há muito consagrado pela crítica, mas circunscrito por ela, majoritariamente, aos contos e romances.
Quanto às formas narrativas breves, os contos e as crônicas, o livro nos apresenta o seguinte conjunto de artigos: "A besta do apocalipse e a produção de sentidos em Papéis avulsos", de Jacyntho Lins Brandão; "'Virginius' e os direitos humanos", de Regina Zilberman; "Shakespeare revisitado nas 'Badaladas' do Dr. Semana", de Sílvia Maria Azevedo. Nesses trabalhos, voltamos a alguns tópicos reconhecidos da literatura de Machado: a formação do conjunto de contos e os temas literários apresentados em Papéis avulsos (uma das obras inaugurais da chamada fase madura do autor e que enlaça uma série de narrativas interdependentes); a preocupação com a nossa formação enquanto jovem sociedade que se desejava (sonhava) moderna e livre da presença da escravidão, recuperando o conto "Virginius", da fase inicial do autor, e que já conteria o germe de discussões políticas e sociais desenvolvidas em narrativas posteriores; e, novamente, a presença marcante da obra de Shakespeare na composição literária de Machado, mas agora na produção do cronista e jornalista.
Em relação aos gêneros experimentados pelo bruxo, um artigo dará conta também da crítica literária: "'Que os Estados Unidos começam a galantear-nos, é coisa fora de dúvida': o pan-americanismo de Machado de Assis", de Greicy Pinto Bellin. A pesquisadora apresenta uma fonte outra para a percepção crítica de Machado, consagrada no seminal "Notícia da atual literatura brasileira": a obra do autor norte-americano Edgar Allan Poe, cujo poema mais famoso, como todos sabemos, fora traduzido por Machado de Assis, mas do que não sabemos é o quanto a perspectiva crítica de Poe teria influenciado a percepção de Machado sobre a própria literatura brasileira.
Por fim, os artigos que completam o volume dão conta de dois aspectos caros à formação do nome Machado de Assis: a sua presença marcante na produção e circulação de textos jornalísticos do oitocentos, formando não apenas seu estilo literário, mas, também, estabelecendo o nome do autor na cultura nacional; e o processo de internacionalização de seu nome, por meio das traduções para outras línguas. No caso das investigações sobre a relação da literatura e do jornalismo em Machado, os artigos "Do periódico ao livro: (des)limites da ficção de Machado de Assis", de Lúcia Granja, e "Da corte às províncias: Machado de Assis nas folhas públicas", de Valdiney Valente Lobato de Castro, compõem o quadro de formação e publicização do estilo e do nome Machado de Assis em nossa literatura. Pablo Rocca, em "Machado e seus precursores (fortuna editorial em espanhol: três momentos, 1902-1982)", apresenta e analisa os trabalhos de tradução da obra de Machado para o castelhano em três momentos distintos ao longo do século XX, quando os romances do autor passaram gradativamente a ganhar espaço nas edições estrangeiras. A pesquisa de Rocca oferece ao leitor brasileiro trechos de tradutores e editores estrangeiros de Machado de Assis em que se observam avaliações importantes a respeito da recepção da obra do autor desde as primeiras décadas do século XX, como a do dominicano Henríquez Ureña, ao afirmar que “el verdadero artista de la novela fue Machado de Assis, un creador de caracteres, dotado de singular habilidad para el detalle psicológico, un refinado sentido del humor y un límpido estilo” (HENRÍQUEZ UREÑA, 1980HENRÍQUEZ UREÑA, Pedro. Las corrientes literarias en America hispânica. In: Obras completas - Tomo X. Santo Domingo: EdUNPHU, 1980., p. 192).
Atravessando, portanto, os diversos gêneros literários desenvolvidos por Machado e problematizando aspectos seja da composição literária, seja da formação do nome do autor nas letras nacionais (e para além delas), o livro promove um revigoramento das possibilidades críticas da obra de Machado de Assis. Os catorze autores que formam o volume, cada um em torno de suas próprias questões machadianas, permitem, a partir de suas pesquisas, a abertura de novas ideias, problemas e análises literárias a serem fecundados em outros olhares críticos de professores e pesquisadores da literatura brasileira.
Referências
- HENRÍQUEZ UREÑA, Pedro. Las corrientes literarias en America hispânica. In: Obras completas - Tomo X. Santo Domingo: EdUNPHU, 1980.
- SALOMÃO, Sonia Netto. Machado de Assis e o cânone ocidental: itinerários de leitura. Rio de Janeiro: EdUerj, 2016.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Mar 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
02 Set 2022 -
Aceito
28 Nov 2022