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Heterossexualidades, contracepção e aborto: Uma pesquisa em quatro capitais latino-americanas

DOSSIER N.1

Heterossexualidades, contracepção e aborto: Uma pesquisa em quatro capitais latino-americanas

Maria Luiza Heilborn

Doutora em Antropologia - Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - Instituto de Medicina Social (CLAM / IMS / UERJ), Rio de Janeiro, Brasil> heilborn@ims.uerj.br

Este dossiê traz um conjunto de artigos que apresentam resultados coletados pela pesquisa socioantropológica Heterossexualidades: contracepção e aborto (HEXCA) em quatro metrópoles latino-americanas: Bogotá/Colômbia, Buenos Aires/Argentina, Rio de Janeiro/Brasil e Montevidéu/Uruguai. A investigação, iniciada em 2007, foi financiada pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e realizada, inicialmente, em parceria com outros dois centros de pesquisa – a Escuela de Estudios de Género da Universidad Nacional de Colombia/Bogotá e o Centro de Estudios de Estado y Sociedad e a Universidad de Buenos Aires (UBA)/Argentina. Em 2010, uma equipe da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación – Universidad de La República del Uruguay se integrou ao projeto com o objetivo de realizar pesquisa similar em Montevidéu. Além de ter contado com financiamento independente, a investigação uruguaia seguiu de modo parcial o protocolo da investigação consensualizado entre as três primeiras instituições.

O abortamento voluntário é tema de intensa disputa em fóruns de debate locais e internacionais. Estado, sociedade civil, grupos religiosos, pesquisadores acadêmicos e de organizações não governamentais, órgãos internacionais, mídia, entre outros atores relevantes, têm se engajado neste campo. Por um lado, busca-se legitimar a interrupção voluntária da gravidez em condições seguras como um direito das mulheres, salientando tratar-se do reconhecimento de sua autonomia sobre a regulação do próprio corpo – tema que desde a década de 1990 foi encampado pela designação de direitos reprodutivos. Por outro, tenta-se fazer reconhecer que a vida se inicia a partir da concepção, o que implicaria a necessidade de também assegurar o "direito" do feto. Polêmicas à parte, o aborto é uma importante e persistente questão de saúde pública que afeta as vidas de milhares de mulheres em todo o mundo.

Uma socióloga feminista, Paola Tabet (1998), demonstrou cabalmente o equívoco contido na ideia de fecundidade natural, dado o seu comprometimento com pressupostos biologizantes acerca da reprodução. Em todas as sociedades, a regulação dos nascimentos é acionada e condicionada por diversos meios que definem ritmo, número e condições em que indivíduos vêm ao mundo. Frutos da sexuação dos corpos humanos, eles podem conhecer destinos outros que não a permanência em vida, seja por não chegarem a nascer (são fetos) ou ainda pelos chamados infanticídios.

O aborto está presente como prática mais ou menos regular em diversos grupos e sociedades. Esta diversidade cultural sobre o aborto é o argumento central para os que se colocam ao lado da defesa do direito à interrupção de uma gestação. Tal postura é frequentemente tachada de contaminada pelo relativismo cultural, responsável pelo mal maior das sociedades modernas em que os universais morais deixaram de ter significado para o refreamento das condutas. Para muitas religiões e seus adeptos, o aborto é um ato intolerável, monstruoso, pois atinge a categoria dos desvalidos, daqueles que não têm voz. Contudo, pesquisas empíricas, quantitativas e qualitativas têm constatado que, apesar da crença religiosa, em determinadas circunstâncias, a interrupção de uma gravidez se impõe na vida de mulheres.

A Igreja Católica e outras denominações religiosas têm usado cada vez mais na defesa intransigente da condenação do aborto (em todos os casos), argumentação sustentada por "evidências científicas" de que haveria vida desde a fecundação. Decerto as tecnologias de visualização intrauterina permitiram a difusão das imagens de um feto desconectado do corpo da mãe. Os que assim advogam imaginam que tal defesa da sacralidade da vida se constitui como bastião da vida societária, capaz de guiar outros comportamentos morais.

A posição assumida pela pesquisa HETEROSSEXUALIDADES, CONTRACEPÇÃO E ABORTO (HEXCA) é a do reconhecimento da diversidade moral e cultural como fato etnográfico. Reconhece que o aborto é dilema moral de difícil trato para as sociedades contemporâneas, pois incide no embate entre "direitos" concebidos como antagônicos, a saber: o da autonomia feminina, o do porvir de um feto em pessoa humana e o da participação masculina na fecundação (Badinter, 2005). Este assunto nos traz para a pauta da ponderação de direitos. Tratar todos os sujeitos de direito como se fossem iguais conduz a caminhos sem saída, pois em diversas situações os entes morais não estão plenamente autonomizados uns em face dos outros.

A investigação buscou situar o aborto como um processo decisório que uma gravidez imprevista pode suscitar e, sobretudo, inscrevê-lo no quadro mais geral do exercício da sexualidade. A reprodução tem sido analisada como desconectada do cenário mais amplo que a envolve – a heterossexualidade e o manejo contraceptivo. Ora, considerar a heterossexualidade – em suas formas plurais – significa examinar o quadro de relações entre os gêneros, a não equivalência dos corpos na divisão do trabalho reprodutivo (a mulher é quem engravida) e a participação (ou a omissão) dos homens no evento. Nesse sentido, a abordagem socioantropológica coloca em foco a teia de relações sociais que balizam a ocorrência de uma gestação para demonstrar a complexidade e o atravessamento de relações de poder que condicionam a prática do aborto.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (2004), 95% dos casos de aborto inseguro acontecem em países em desenvolvimento.

No Brasil, os resultados preliminares da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA),1 1 A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) é um levantamento de dados sobre o aborto no Brasil realizado por amostragem aleatória estratificada entre mulheres de 18 a 39 anos residentes em áreas urbanas. O objetivo da pesquisa é subsidiar políticas públicas para mulheres em idade reprodutiva (Diniz & Monteiro, 2010). realizada em 2010, apontam que 15% das mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos, residentes em áreas urbanas, já realizaram ao menos um aborto ao longo da vida. Diniz e Monteiro (2010) ressaltam que, ainda que expressivos os dados da PNA, eles não podem ser considerados representativos da magnitude do aborto induzido no Brasil, já que contemplam apenas as mulheres residentes em centros urbanos e alfabetizadas. Este cenário é agravado pelo contexto de ilegalidade ao qual a prática é submetida, o que corrobora para sua realização em circunstâncias inseguras.

Na Argentina, na Colômbia e no Brasil, o aborto induzido é criminalizado com poucas exceções, e o mesmo ocorria, até recentemente, no contexto uruguaio. Cabe destacar que as legislações de Argentina e Brasil sobre o tema são bastante semelhantes. A prática do aborto em território brasileiro configura crime com punição de um a três anos de prisão; já na Argentina, a pena varia de um a quatro anos. Entretanto, nesses e nos demais países da América Latina, há permissividade da Justiça para com os casos em que a manutenção da gravidez acarreta risco para a vida da mulher, quando se trata de gestação decorrente de estupro, e quando se constata que o feto é anencéfalo. Na Argentina, há ainda a possibilidade de interrupção da gestação no caso de mulheres mentalmente deficientes e consideradas incapazes. Em situações como esta, exige-se que um representante legal da gestante peça autorização judicial para realização do procedimento. No Brasil, a descriminalização do abortamento de fetos anencéfalos ocorreu no ano de 2012, após decisão do Supremo Tribunal Federal.

Na Colômbia, a partir de 2006, o aborto foi reconhecido pelo Estado como um problema de saúde pública. Não obstante, de modo similar à maioria dos países latino-americanos, o procedimento só foi descriminalizado em caso de gravidez resultante de intercurso sexual envolvendo violência, de risco à saúde da gestante e de má formação do feto, incompatível com a vida. Portanto, como no Brasil e na Argentina, a mulher pode recorrer aos serviços públicos e privados de saúde para realização do abortamento desde que comprove que engravidou em determinadas circunstâncias previstas pela legislação. Contudo, recorrer à lei nesses casos tem se revelado um percurso muito difícil, fazendo com que o recurso à clandestinidade permaneça como a opção possível e atrativa, sobretudo para as mulheres pobres.

Nos serviços de saúde públicos e privados, em geral, os profissionais têm autorização judicial para realizar o aborto nas pacientes nos casos determinados pela lei. Não raro, esse processo pode levar um período maior que o permitido para a realização do procedimento (em média, não muito além de 12 semanas de gestação). Acrescentem-se as pressões que, não raro, esses profissionais exercem sobre as mulheres para que não interrompam a gestação; e as situações de maus-tratos a que, por vezes, elas são submetidas por estarem recorrendo ao aborto. A prática abortiva permanece, assim, com forte caráter clandestino na América Latina, mesmo em situações em que sua realização é reconhecida como legal por afetar gravemente a saúde física e/ou mental das mulheres. Apenas em Cuba, na Cidade do México e no Uruguai, o aborto é completamente descriminalizado.

O Uruguai foi o segundo país latino-americano2 2 O primeiro país a descriminalizar a interrupção da gravidez na região foi Cuba, em 1965. A permissão não impõe qualquer restrição à prática, desde que ocorra até a 10ª semana de gestação. a tornar o aborto voluntário uma prática descriminalizada em outubro de 2012. Somente após a 12ª semana de gestação são estabelecidos limites para a interrupção da gravidez: casos de estupro; risco de vida à saúde da mulher; má formação fetal; e/ou "penúria econômica" – entendida como a limitação de recursos materiais que impossibilite prover as necessidades básicas de uma criança. A descriminalização do aborto não se deu, contudo, sem a imposição de que mulheres que optassem por interromper uma gestação fossem submetidas à avaliação de um grupo de especialistas (ginecologista, psicólogo/a e assistente social), que devem informá-la sobre os riscos do procedimento e as alternativas em relação a ele. Após o encontro, é imposto um período de cinco dias de reflexão à reivindicante do procedimento abortivo.

Desse modo, mesmo descriminalizada, a prática do aborto no Uruguai continua a supor que a gestante obtenha o aval de agentes do Estado para interromper a gravidez em uma instituição hospitalar credenciada. Isto demonstra que, embora o avanço na legislação uruguaia seja uma conquista de grande importância para o reconhecimento do aborto como problema de saúde pública, ainda vigora uma postura tutelar sobre as mulheres que decidem pela prática e o não reconhecimento de se tratar de um direito individual dessas mulheres. Deve-se ressaltar que a burocratização e o confinamento da prática do aborto ao ambiente hospitalar, bem como a submissão da decisão feminina à avaliação de um comitê podem também corroborar para que, até que se perceba a gravidez imprevista e se desenrole o processo de decisão sobre levá-la ou não a termo, já não haja tempo para realização do procedimento de forma legal e segura.

Tendo em vista o complexo cenário do aborto clandestino e seu impacto para a saúde das mulheres na América Latina, consideramos urgente encarar as disputas políticas envolvendo a reprodução, os corpos das mulheres e o sexo, bem como compreender as realidades sociais em que elas e seus parceiros cogitam, negociam e decidem sobre os desfechos de suas gravidezes imprevistas.

A pesquisa HEXCA investigou processos de negociação e decisão em torno da interrupção de gravidezes imprevistas, bem como os itinerários percorridos por mulheres e homens até a realização do aborto, a partir das narrativas sobre suas trajetórias afetivo-sexual, reprodutiva e contraceptiva. Buscou-se investigar como essas trajetórias se articulam com os contextos sociais mais amplos nos quais estão inseridos os participantes da pesquisa, sempre considerando fatores como: relações familiares, escolaridade, classe social e, em alguns contextos, raça/etnia etc. A análise dos dados coletados nos quatro países procura evidenciar as interconexões de projetos de vida, relações de gênero e o exercício da heterossexualidade envolvidos no planejamento reprodutivo.

A metodologia qualitativa adotada constituiu-se com a escolha por entrevistas em profundidade a partir de roteiro semiestruturado. O roteiro foi elaborado coletivamente pelas equipes de investigação brasileira, colombiana e argentina, visando à comparabilidade dos dados a serem produzidos. Posteriormente, houve adaptações locais julgadas necessárias pelas coordenadoras responsáveis pela investigação em cada cidade. Todos os questionários contemplavam características sociodemográficas, trajetórias biográficas, relações familiares, o calendário da trajetória sexual, contracepção, reprodução, aborto, além de informações sobre valores e representações acerca dos temas centrais da pesquisa. Nos quatro países, equipes de pesquisadores com formação em antropologia, sociologia e saúde coletiva entrevistaram homens e mulheres de distintas faixas etárias (18 a 24 anos e 40 a 49 anos) e segmentos sociais (camadas médias e populares) com ao menos uma experiência de aborto em suas trajetórias.

As cotas estabelecidas inicialmente previam a realização de 60 entrevistas: 10 entrevistas com mulheres entre 40 e 49 anos, de classe popular; 05 entrevistas com mulheres de 40 a 49 anos, de camadas médias; 10 entrevistas com homens de 40 a 49 anos, de camadas populares; 05 entrevistas com homens entre 40 e 49 anos, de classe média; 10 entrevistas com mulheres entre 18 e 27 anos, de classe popular; 05 entrevistas com mulheres de 18 a 27 anos, de camadas médias; 10 entrevistas com homens de 18 a 27 anos, de camada popular; 05 entrevistas com homens entre 18 e 27 anos, de classe média. Dificuldades enfrentadas ao longo do trabalho de campo e interesses específicos surgidos localmente determinaram maior ou menor proximidade da meta de cotas inicialmente estabelecida.

Na Argentina, atrelou-se a classificação de pertencimento a segmento social dos entrevistados (camadas médias ou populares) a maior ou menor nível de escolaridade. A escolaridade mínima para um(a) entrevistado(a) ser considerado(a) de classe média seria o nível secundário completo. As entrevistas distribuíram-se da seguinte forma: 10 moças de classe popular; 5 moças de classe média; 10 mulheres mais velhas de classe popular; 5 mulheres mais velhas de classe média; 10 rapazes de classe popular; 6 rapazes de classe média; 6 homens mais velhos de classe popular; e 8 homens mais velhos de classe média.

No Uruguai, tomou-se a decisão de entrevistar apenas mulheres em razão das condições locais de financiamento. Tendo em vista um roteiro estruturado e alguns pressupostos compartilhados sobre abordagens teóricas acerca da construção social da realidade e da modelação cultural da sexualidade, os autores mantiveram a liberdade de análise dos dados produzidos, e nós esperamos, em breve, poder avançar no exame comparativo dos resultados.

Referências bibliográficas

BADINTER, Elizabeth. 2005. Rumo equivocado: alguns destinos do feminismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

DINIZ, D. & MEDEIROS, M. 2010. "Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna". Ciência e saúde coletiva. Vol. 15, supl. 1, p. 959-966.

TABET, Paola. 1998. "Fertilité naturelle, reproduction forcée". In: ___. La construction sociale de l’inégalité des sexes. Des outils et des corps. Paris: L’Harmattan, Bibliothèque du féminisme.

  • BADINTER, Elizabeth. 2005. Rumo equivocado: alguns destinos do feminismo Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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    A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) é um levantamento de dados sobre o aborto no Brasil realizado por amostragem aleatória estratificada entre mulheres de 18 a 39 anos residentes em áreas urbanas. O objetivo da pesquisa é subsidiar políticas públicas para mulheres em idade reprodutiva (Diniz & Monteiro, 2010).
  • 2
    O primeiro país a descriminalizar a interrupção da gravidez na região foi Cuba, em 1965. A permissão não impõe qualquer restrição à prática, desde que ocorra até a 10ª semana de gestação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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