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QUINET, Antonio & JORGE, Marco Antônio Coutinho (orgs.). 2013. As homossexualidades na psicanálise - na história de sua despatologização. São Paulo: Segmento Farma Editores. 392 p.

As homossexualidades na psicanálise - na história de sua despatologização é uma coletânea de artigos organizada por Antônio Quinet e Marco Antônio Coutinho Jorge, dois experientes e reconhecidos profissionais no campo da teoria e da clínica psicanalíticas.

Dada a extensão e a diversidade dos trabalhos - 29 artigos mais uma entrevista com os organizadores - é quase impossível resenhar o conteúdo do volume sem cometer injustiça diante da riqueza das discussões levantadas. Ciente da limitação, sublinharei os tópicos que me chamaram a atenção.

Os textos buscam impugnar teoricamente a noção de "homossexualidade" como patologia mediante críticas histórico-genealógicas, clínico-metapsicológicas ou oriundas da psicanálise aplicada à literatura. O gatilho do livro foi um Colóquio ocorrido em 2009 em comemoração aos 40 anos dos protestos de Stonewall, "marco histórico do início do movimento de emancipação e liberação dos homossexuais e do combate à homofobia" (:9). A partir dessa data, homossexuais americanos começaram a lutar contra a patologização da homossexualidade até conseguirem, em 1974, que essa ideia fosse abolida do DSM-II - manual nosológico - pela Associação Americana de Psiquiatria.

Mas dizem os autores que, apesar de a APA redefinir a homossexualidade como estilo de vida sexual e não como patologia, o preconceito contra o chamado homossexualismo persistiu entre os próprios psicanalistas. Daí a releitura do tema nas obras de Freud e Lacan, com o objetivo de mostrar que, do aspecto teórico-clínico, não faz sentido falar de patologia homossexual.

Em linhas gerais, o argumento consiste em afirmar que, não obstante numerosas ambiguidades, nem Freud nem Lacan foram taxativos ao falar de homossexualidade como "patologia". Em primeiro lugar, porque a orientação sexual dirigida a pessoas do mesmo sexo biológico é um traço de conduta independente de quaisquer formações patológicas ou da suposta normalidade estatística da vida psicológica. Em segundo lugar, porque a noção de "sexualidade" nos dois autores - especialmente em Lacan - é incompatível com a noção de "patologização" das diferentes formas de expressão sexual. A única norma sexual psicanalítica é a de não permitir que "regras" permanentes de satisfação, gozo ou prazer determinem os limites da "normalidade" ou da "anormalidade" em matéria de atividade sexual.

De onde viria, então, a tendência de psiquiatras e analistas de pensarem de forma preconceituosa sobre a "homossexualidade"? Os autores se inclinam, em grande parte, a atribuir aos psicanalistas americanos e ingleses sucessores de Freud a responsabilidade pela patologização do desejo ou da prática homossexual. Esses analistas, pelo fato de em sua maioria serem médicos, sucumbiram ao ímpeto de catalogar a sexualidade na rubrica da saúde e da doença. Outras vezes, os descaminhos teóricos são imputados à hegemonia da "psicologia do Ego" na psicanálise anglo-americana, sobretudo nos anos 1940 e 1950. A corrente teórica em questão teria inflacionado a importância da adaptação às condutas sexuais socialmente aprovadas, que nada teriam de "naturalmente" normativas a partir do prisma da realidade psíquica. Por fim, em outras passagens, os autores observam que, no interior do próprio campo lacaniano, a insistência em descrever a "homossexualidade" como uma patologia continua de pé, mesmo na época atual.

Este aspecto é particularmente interessante por abrir novos horizontes de reflexão sobre o problema. Os autores criticam o estereotipado senso comum psiquiátrico-psicanalítico sobre a sexualidade biológica e os gêneros sexuais apoiados, sobretudo, em duas construções teóricas de Lacan: 1. o objeto a; 2. o processo de sexuação dos sujeitos.

O objeto a é tudo que causa o desejo e é visado por ele. Na teoria, como mostra Jorge, o objeto a pode assumir vários semblantes. Todos, entretanto, ocultam duas de suas características fundamentais: a) a incomensurabilidade em relação à expectativa dos seres humanos quanto à satisfação sexual; b) a falta de substrato empírico apreensível de forma positiva (:213). O objeto a designa o lugar do apelo ao sexo, mas por ser um existente negativo, sem substância e atributos fixos, não pode determinar quais traços o objeto sexual deverá ter para ser um objeto de desejo saudável ou psicologicamente normativo. O que o sujeito deseja é o objeto a, entretanto, o suporte desse objeto varia segundo as contingências biográficas de cada um. Não se pode, assim, justificar a pretensa adequação "natural" ou "normal" entre sujeito e objeto sexual, já que o objeto a não possui aparência fenomênica ontologicamente estável. Criar um tipo lógico de um fenômeno único, irrepetível e imprevisível é um contrassenso empírico e teórico.

O processo de sexuação do sujeito, por sua vez, mostra que masculino ou feminino é uma forma de o sujeito se relacionar com o desejo e o objeto sexuais que independe das identidades de gênero e sexo biológico culturalmente dominantes (:138-139). A forma masculina de sexuação obedece à lógica da exceção constitutiva. Nessa lógica, um dado termo X1 do conjunto de itens X é autorreferente, ou seja, é um item que possui, de forma inerente, as qualidades instanciadas nos demais itens. Em outras palavras, a identidade excepcional do termo é imaginariamente concebida como "não relacional", em contraste com os outros componentes do conjunto, cujo valor - no caso, promessa de gozo - decorre da comparação ou da relacionalidade entre eles.

O item X1, assim, não pertence à mesma classe lógica dos demais itens. Ele nomeia, predica os itens incluídos como membros do conjunto X, porém independe deles para tornar-se o qualificador dos predicados que conferem unidade ao conjunto considerado. Da perspectiva imaginária, o item X1 é concebido como um ente ao mesmo tempo vazio de conteúdo e pleno de gozo. Aquele que acredita possuí-lo não sabe dizer o que ele é, mas se atribui a prerrogativa de encarnar a "exceção constitutiva" com o poder extra-ordinário de decretar como todos os outros exemplares do conjunto devem desejar, pensar, agir.

A forma feminina, ao contrário, não exibe o item da exceção. Cada termo tem sua marca singular, sem referência a um termo geral que totalize o conjunto e o torne membro de uma classe de itens equivalentes. Na lógica feminina, portanto, os indivíduos formam uma cadeia aberta, sem fronteiras de pertencimento, delimitadas por um indexador comum ou qualificador geral autorreferido, como no caso da lógica masculina.

Em função disso, apenas a forma masculina da sexuação pressupõe um termo X1 que estipule: a) quais termos devem ser excluídos do conjunto dos membros de sua classe; b) quais valores devem organizar os outros membros da classe em tipos hierárquicos. O termo X1 representa a função fálica responsável pela divisão dos sujeitos em os que possuem imaginariamente o falo e os despossuídos dele; entre os subordinados e os dominantes; entre os incluídos e os excluídos; entre os normais e os desviantes; entre o "nós" e os "outros" etc. Aí estaria a matriz do preconceito.

Na sexuação feminina, no entanto, a ideia de equivalência e relacionalidade referidas ao elemento fora da série dá lugar à ideia de pluralidade e incomparabilidade entre os indivíduos, ideia esta incompatível com a normatização das formas de desejo, prazer e gozo sexuais.

O argumento é consistente e convincente, o que torna ainda mais imperativa a seguinte pergunta: por que, mesmo sabendo disso, os analistas continuam a negar o que a teoria mostra? Não me refiro apenas à teoria de Lacan, que só recentemente veio a ser difundida. Antes disso, eles dispunham não apenas de Freud, mas do que disseram sobre sexualidade Kinsey, Stoller e tantos outros, para não citar o luminoso trabalho de Marcuse. Como explicar, então, a inércia das mentalidades? Como deixar de constatar que militantes gays, psiquiatras anglo-saxônicos e outros cidadãos, sobretudo ingleses e americanos, se mostraram bem mais receptivos à nova redescrição da homossexualidade do que os analistas de todas as nacionalidades que parecem ter perdido o bonde da história?

Sugiro que talvez se possa abordar com proveito a questão, revendo-a através de dois aspectos. O primeiro consiste em separar consciência teórica de moralidade social. Os analistas, como teóricos, sabem que tipificar a "normalidade sexual" dos sujeitos significa correr o risco de avalizar o ideário sexista vigente. A sexualidade, no rigor da letra, seria a-tipitificável. A moralidade social, contudo, exige o contrário. A admissão da diversidade sexual depende das fronteiras morais de cada cultura. Evocando o problema, diz Colette Soler:

Ora, não temos outro limite a opor aos eventuais excessos da pulsão, a não ser os direitos do homem, com sua exigência de igualdade e de respeito. [...] os direitos do homem se esforçam por submeter à ideologia contratual a perversão generalizada. Sem dúvida, é melhor assim, pois seria exorbitante incriminar a barreira tão frágil dos direitos do homem (:127).

Em outros termos, a diversidade sexual, na lógica feminina, é avessa ao ponto capitonado da lógica masculina, que se impõe, entretanto, por uma demanda da moralidade social. A grande questão, portanto, não é epistêmica. Não se trata da falsa consciência ou da ignorância de quem desconhece a natureza daquilo sobre o que fala. A questão é que a defesa da diversidade expressiva da vida sexual implica dizer até onde a variação é aceitável. O fantasma dos excessos reais ou imaginários está sempre à espreita, levando os analistas a recuarem em suas posições supostamente liberais ou libertárias nestas questões. Nos casos individuais, é relativamente fácil ser receptivo à polimorfia do desejo sexual; se se trata, entretanto, de lidar com a liberalidade como atitude socialmente desejável, as reticências e os poréns começam a pulular. As exceções à regra se multiplicam, e cada um parece arbitrar o que "a psicanálise" diz ser admissível ou não em matéria de satisfação sexual.

O segundo aspecto é uma decorrência do primeiro. A interrogação aqui é: por que a sexualidade ou aquilo que a representa no imaginário cultural ocupa tamanho espaço na engrenagem dos preconceitos? Sugiro que a lógica masculina, novamente, pode ajudar a entender o que se passa nesse terreno. Se pensarmos que a sexualidade descrita na pureza do texto tem outra tradução na psicopatologia da vida cotidiana, talvez seja mais fácil entender o peso dado às práticas sexuais na esfera moral.

A sexualidade, como mostraram, entre outros, Marcuse, Rieff e Foucault, tornou-se um significante do cuidado de si na cultura ocidental contemporânea. O sexo passou a ser não apenas um simples representante do falo, mas um representante idealizado, próximo da reificação fetichista. Embora sem conhecermos o que seria a essência, o solo inamovível e irredutível do sexo ou do "verdadeiro sexo", agimos, pensamos e sentimos como se alguém ou alguma instância cognoscente soubesse. E aquele ou aqueles que supostamente conhecem afirmam que o "sexo bem conhecido e bem vivido" nos torna mais livres, mais felizes, mais autônomos, em suma, seres humanos mais perfeitos e realizados.

Uma vez elevada à função de avalista da felicidade e da boa vida, a sexualidade inevitavelmente se converteu no "sexo-rei" de Foucault. Na gramática psicanalítica, isto equivale a dizer que a ideologia sexual hegemônica se estruturou de modo a fazer do "significante sexo" o termo exterior ao conjunto dos seres sexuados, termo que os define como normais ou desviantes, aceitáveis ou inaceitáveis etc. E, obviamente, quem diz quais são os "verdadeiros limites aceitáveis das expressões sexuais" não é quem conhece a teoria psicanalítica, mas quem tem poder de estigmatizar, condenar e infelicitar quem não é espelho de próprio narcisismo.

Parafraseando Marx, diria que o "sexo", na moralidade atual, não é, como foi a religião, o ópio do povo, mas o "dinheiro" do povo. Assim como o dinheiro se emancipou da condição de equivalente geral do valor das mercadorias para se tornar um fetiche com valor autônomo que mede o das outras mercadorias, o "sexo" dos supostos "mestres" passou a ter o valor de um fetiche que define o valor humano de quem o sente, pensa ou pratica. Nesse contexto, a sexualidade psicanalítica pode apontar, uma vez mais, para o mal-estar na cultura, mas dificilmente transformar visões de mundo.

Em resumo, um belo livro. Um instrumento indispensável para os interessados em saber por que podem agir como se não soubessem o que fazem, e continuar a acreditar que conhecem as causas ou as razões de seus atos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2014
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