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“É tudo uma máfia”: trânsitos e tensões na busca de um lugar no palco

“Todo es una mafia”: tránsitos y tensiones en la búsqueda de un lugar en el escenario

“It’s all a mafia”: transits and tensions in the search for a place on the stage

Resumo

Este artigo explora relações e constrangimentos envolvendo as oportunidades de shows e de progressão na carreira de drag queens iniciantes. Através da análise de material etnográfico, persigo a categoria máfia que, quando empregada, lança suspeita sobre resultados de concursos e a oferta de oportunidades. Seu uso sugere a elevada competitividade no meio artístico drag. Analiso ainda um momento específico durante a pesquisa de campo no qual fui convidado a julgar um concurso. A metodologia consiste em pesquisa etnográfica, observação participante e conversas informais. A pesquisa foi realizada entre 2015 e 2017, tendo como foco o processo de constituição das carreiras artísticas de um grupo de jovens drag queens que, desde Campinas, buscam viabilizar sua participação em concursos e shows para além da cidade.

Palavras-chave:
drag queen; redes de relações sociais; carreira; sexualidade

Resumen

Este artículo explora relaciones y limitaciones que rodean el espectáculo y las oportunidades profesionales de drag queens principiantes. A través del análisis de material etnográfico, persigo la categoría mafia que, cuando utilizada, arroja sospechas sobre los resultados de los concursos y la oferta de oportunidades. Su uso sugiere la gran competitividad en la escena artística drag. También analizo un momento específico durante la investigación de campo en el que me invitaron a juzgar un concurso. La metodología consiste en investigación etnográfica, observación participante y conversaciones informales. La investigación se llevó a cabo entre 2015 y 2017, centrándose en el proceso de constitución de las carreras artísticas de un grupo de drag queens jóvenes que, de Campinas, tratar de hacer posible su participación en concursos y espectáculos más allá de la ciudad.

Palabras clave:
drag queen; redes de relaciones sociales; carrera artística; sexualidad

Abstract

This article explores relations and constraints involving opportunities for performing and career-building of newcomer drag queens. Through the analysis of ethnographic material, I follow the category mafia that, when employed, aims to raise suspicion over drag contests’ results and the availability of opportunities to perform. Its usage suggests the high competitivity in the drag artistic scene. I also analyse a specific moment during research where I judged in a drag contest. The methodology consisted of ethnographic research, participant observation and informal conversations. The study was conducted between 2015 and 2017, focusing on the career-building process of a group of young drag queen artists from Campinas seeking to participate in contests and drag performances beyond the city.

Keywords:
drag queen; social networks; career; sexuality

Quando decidi pesquisar a constituição das carreiras artísticas de jovens drag queens1 1 Concordando com as ponderações de Anna Paula Vencato (2002), utilizo aqui o termo drag queen sem qualquer diferenciação, posto que seu uso já é bastante corrente na língua portuguesa. , minhas primeiras leituras não deixavam de mencionar o clássico “Mother Camp” (1979) de Esther NewtonNEWTON, Esther. 1979. Mother Camp: Female Impersonators in America. 2ª ed. Chicago: University of Chicago Press. 136p.. Ao realizar minhas primeiras incursões a campo, pude ver como uma parte do meio drag2 2 As expressões êmicas e estrangeirismos serão grafados em itálico. Utilizarei aspas para sinalizar falas ouvidas em campo. campineiro também parecia sofrer com problemas com os quais Newton se deparou no fim dos anos 1960 nos Estados Unidos, em especial, a informalidade e irregularidade no trabalho artístico de drag. A atualidade do livro, escrito em 1972, causou-me certo fascínio. A obra é fruto de sua pesquisa de doutorado, uma etnografia sobre drag queens realizada nas cidades de Chicago e Kansas City, feita no fim dos anos 1960 nos Estados Unidos. No momento em que Newton conduziu sua pesquisa, os bares, que muitas vezes operavam à margem da lei, eram tomados de assalto e invadidos pela polícia e pessoas eram espancadas por estarem montadas3 3 Se montar é um processo de modificação corporal analisado em diferentes estudos que vão desde os trabalhos com travestis e transexuais (Benedetti, 2006, Barbosa, 2010, Duque, 2009) até drag queens e crossdressers (Vencato, 2002, 2013). O ato de se montar pode ser entendido como uma exploração de possibilidades corporais distintas, ao adotar um conjunto de elementos relacionados a ideais de feminilidade e masculinidade. Em outro texto (Mascarenhas Neto, 2020), entendo o processo de se montar como a construção de uma personagem drag que vai além da produção de figuras femininas, ensejando possibilidades de produzir também deslocamentos de raça e classe. .

Desde Campinas, a terceira maior cidade do estado de São Paulo, com mais de um milhão de habitantes, pude acessar, a partir do contato mais intenso entre 2015 e 2017 com um grupo de drag queens, os desafios da construção de suas carreiras. Neste artigo, partindo de dados etnográficos, exploro o jogo de relações estabelecidas entre jovens drag queens e atores das iniciativas de mercado, da gestão municipal e do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) nesse processo. Desse modo, me debruço sobre a categoria acusatória máfia, que dá sentido às alianças e disputas que permeiam essas relações.

“É tudo uma máfia” talvez seja uma das expressões mais interessantes que ouvi em campo. Entre as drags, as máfias podem se formar simetricamente às famílias drag4 4 Em outro trabalho exploro a ideia de família drag, a partir do contato com redes de circulação de técnicas, afetos, saberes e objetos que assumiam importância central na composição das carreiras de minhas interlocutoras. Nessas redes, terminologias de parentesco são operacionalizadas para descrever referências artísticas diretas ou indiretas, além de explicitar vínculos profissionais, afetivos e artísticos (Mascarenhas Neto, 2020). (Mascarenhas Neto, 2020)MASCARENHAS NETO, Rubens. 2020. Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira drag queen. 1ª ed. Salvador: Devires . 190p.. As máfias se constituem como formas de associação dinâmicas, influenciadas por afinidades e desavenças, que buscam oferecer meios de ascender na carreira drag. Aliás, é curioso pensar que as máfias no estilo descrito por Mario Puzo e adaptado e dirigido por Francis Ford Coppola, sejam também grandes redes familiares e de alianças nas quais traições e lealdades são constantemente refeitas.

Dizer que algo seja “uma máfia” não possui relação com as organizações criminosas que administravam os bares na pesquisa de Esther Newton e que foram tornadas célebres em “O Poderoso Chefão”. No contexto aqui analisado, trata-se de um conjunto de esforços realizados no sentido de favorecer algumas drags em detrimento de outras. A máfia, muitas vezes, é um arranjo situacional, aos moldes de um acordo temporário que se encerra ao término de uma competição ou evento. Assim, não por acaso, ouvi também a expressão “a máfia daquele concurso” quando uma interlocutora se referia a determinado evento cujo resultado é questionável. Também fazem parte da linguagem que pude observar em campo expressões como a “máfia da Parada” e “máfia de determinado grupo ativista”, que sugerem arranjos mais duradouros, e se referem de maneira pejorativa às oportunidades oferecidas a algumas artistas em eventos da militância. Não obstante, se a nomeação de algo como uma máfia tem como fundamento a suspeição de que alguma decisão ou resultado careça de idoneidade e transparência, seu uso também pode colocar a acusadora em suspeita.

Nesse sentido, a discussão a ser explorada aqui toma a máfia como um aspecto importante nas relações profissionais e políticas das artistas drag. Nas seções a seguir exploraremos as negociações e os constrangimentos enfrentados pelas drags. Dada a necessidade de circular em diferentes espaços para conseguir sustentar os custos da profissão e constituir suas carreiras artísticas, as drags navegam pelas conflituosas redes de alianças das máfias. Em um primeiro momento, exploro a popularização do drag nos últimos anos, no exterior e no Brasil e discorro de maneira breve sobre a os constrangimentos enfrentados na constituição da carreira drag e do impacto de atores do mercado e do movimento na constituição dessas carreiras. Em seguida, exploraremos as negociações que envolvem o acesso ou não aos shows nos eventos da Parada LGBT de Campinas. Por fim, através de um relato etnográfico de um concurso de shows realizado na cidade, no qual fiz parte do painel de juradas e jurados, observaremos as tensões que orbitam a disputa pelo prêmio final, o acesso ao palco do show de encerramento da Parada.

“Que bicho é esse? Prazer, sou arte meu querido então pode me aplaudir de pé”5 5 Trecho da música “Dona” de Glória Groove.

É importante salientar que as drags que conhecemos hoje são tributárias de uma longa história de luta por reconhecimento social e lugar na cena artística brasileira. Os trabalhos de Green (2000)GREEN, James N. 2000. Além do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. 1a ed. São Paulo: Unesp., Bortolozzi (2015)BORTOLOZZI, Remom M. 2015. “A arte transformista brasileira: rotas para uma genealogia decolonial”. Quaderns de psicologia. Vol. 17, nº 3, pp.123-134., Lion (2015)LION, Antônio R. C. de. 2015. “Ivaná: a grande dúvida no teatro de revista dos anos 1950”. Albuquerque: Revista de História. Julho/Dezembro de 2015. Vol. 7, nº 14, pp. 102-120., Trevisan (2018)TREVISAN, João S. 2018. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. 4ª ed. São Paulo: Objetiva. 726p. e Soliva (2016, 2018)SOLIVA, Thiago B. 2018. “Sobre o talento de ser fabulosa: os “shows de travesti” e a invenção da ‘travesti profissional’”. Cadernos Pagu [online] n. 53. Disponível em: https://doi.org/10.1590/18094449201800530014. [Acessado em 5 de Junho de 2021].
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recuperam e analisam as expressões artísticas de travestis e transformistas retraçando e ressaltando a importância do Carnaval (em especial dos bailes de fantasias), do Teatro de Revista e do entretenimento noturno carioca e paulistano desde o início do século XX.

A ditadura militar brasileira (1964-1985) e a epidemia de HIV-AIDS, a partir da década de 1980, impactaram sobremaneira a atividade artística de travestis e transformistas no país. Com a chegada da categoria estrangeira drag no Brasil, na década de 1990, muitas artistas passaram tanto a adotar as novas estéticas e o léxico, quanto como a produzir uma versão local de drag com linguagem e estilos próprios (LaGata/Balzer, 2005LAGATA, Carla/ BALZER, Carsten. 2005. “The Great Drag Queen Hype: Thoughts on Cultural Globalisation and Autochthony”. Paideuma. Vol. 51, pp. 111-131.; Santos, 2014SANTOS, Joseylson Fagner dos. 2014. “’Tupiniqueens’: a invenção drag na cultura brasileira”. História Agora, Vol. 1, nº 15, p. 186-203.; Bragança, 2019)BRAGANÇA, Lucas. 2019. Fragmentos da babadeira história drag brasileira. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Vol. 13, nº 3. Disponível em : <doi:https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1733>. [Acessado em 2 de Junho de 2021]
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Na década de 1990, algumas artistas já chamavam atenção e capitaneavam o crescente mercado GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) brasileiro, terminologia corrente para denominar o segmento comercial focado em LGBT como observam França (2006aFRANÇA, I. 2006a. Cercas e pontes: movimento GLBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo., 2006b)FRANÇA, Isadora L. 2006b. ““Cada macaco no seu galho?”: arranjos de poder, políticas identitárias e segmentação de mercado no movimento homossexual”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Fevereiro de 2006. Vol. 21, nº 60, p. 103-115. e Trevisan (2018)TREVISAN, João S. 2018. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. 4ª ed. São Paulo: Objetiva. 726p.. Alavancadas pelo sucesso no Brasil do programa RuPaul’s Drag Race6 6 RuPaul’s Drag Race é um reality show criado em 2009, capitaneado pela drag queen RuPaul Charles. Na competição, um conjunto de 9 a 14 drag queens competem em uma série de desafios para atingirem o título de “America’s Next Drag Superstar” e um prêmio em dinheiro. Atualmente muitas das drags mais aclamadas pelo público gravam músicas, participam de programas e comerciais de TV, e fazem tours internacionais para suas apresentações, nas quais o Brasil foi um destino privilegiado. Desde 2019, versões estrangeiras do reality-show têm sido produzidas no Reino Unido, Austrália e Canadá. , como sugere Bragança (2019)BRAGANÇA, Lucas. 2019. Fragmentos da babadeira história drag brasileira. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde. Vol. 13, nº 3. Disponível em : <doi:https://doi.org/10.29397/reciis.v13i3.1733>. [Acessado em 2 de Junho de 2021]
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, as drags reconquistaram um lugar importante nos palcos. As mais recentes estrelas drags brasileiras, como Pabllo Vittar, Glória Groove e Lia Clarck e a travesti Mulher Pepita, despontam nas estatísticas de reprodução de suas músicas e álbuns e têm aparecido com força no cenário global, despertando a atenção dos consumidores estrangeiros.

É necessário mencionar também o espraiamento de pesquisas sobre as experiências drag por todo o Brasil7 7 Faço a ressalva de que os textos mencionados aqui são apenas parte de um numeroso conjunto de trabalhos em diversos campos disciplinares, como, por exemplo, Antropologia, História, Comunicação e Pedagogia. Seria necessária uma análise mais ampla e extensa sobre a produção brasileira sobre drags, o que foge do escopo do presente artigo. , observável desde o início dos anos 2000, com os trabalhos de Jayme (2001)JAYME, J.. 2001 Travestis, transformistas, drag-queens, transexuais: personagens e máscaras no cotidiano de Belo Horizonte e Lisboa. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas. e Vencato (2002)VENCATO, A. 2002. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays na Ilha de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina. que, respectivamente, se ocuparam de analisar as experiências drag em Belo Horizonte, Lisboa, e Florianópolis. Gadelha (2009)GADELHA, J. 2009. Masculinos em mutação: a performance drag queen em Fortaleza. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Ceará. e Santos (2012)SANTOS, J. 2012. Femininos de montar - uma etnografia sobre experiências de gênero. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte., refletindo sobre as dissidências sexuais de gênero a partir das drag queens em Fortaleza e Natal, respectivamente, contribuíram para a reflexão sobre a montagem dos corpos drag em diálogo com a teoria queer. Como exemplo de produções mais recentes e com novas abordagens, destaco os trabalhos de Bentes (2020)BENTES, Juliano. 2020. Ekoaoverá: um estudo sobre a territorialidade nos processos identitários das drags/demônias. 1ª ed. Salvador: Devires. 166p., acerca das territorialidades e processos identitários de artistas drag em Belém, e Santana (2021)SANTANA, W. 2021. Gerações Drag Queens Em Campo Grande: Entre Espaços, Memórias, Disputas e (Re)Afirmações. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. que, ao analisar duas gerações de artistas em Campo Grande, registra as tensões intergeracionais que permeiam a atividade drag.

Também assistimos nos últimos 20 anos uma intensificação da atuação do movimento LGBT no Brasil, como nos mostra Facchini (2005)FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond . 304p., marcada, dentre outros fatores, pela organização de Paradas do Orgulho LGBT, eventos de grande porte que contam com uma significante participação de artistas drag queens. As drags, que até então se limitavam às boates e ao chamado gueto gay onde encontravam uma boa recepção, passaram a apresentar e animar paradas por todo o país.

Campinas atingiu notoriedade nas duas últimas décadas em função do surgimento de grupos militantes que se destacaram no cenário nacional, como o Identidade, o Aos Brados e o E-Jovem; da criação e implantação da primeira política pública voltada para LGBT no Brasil, o Centro de Referência LGBT; e do primeiro ponto de cultura voltado para LGBT jovens, a Escola Jovem LGBT, mantida pela parceria entre a rede nacional de jovens LGBT E-Jovem, e o governo do estado de São Paulo (Duque, 2012DUQUE, Tiago. 2012. “Reflexões teóricas, políticas e metodológicas sobre um morrer, virar e nascer travesti na adolescência”. Revista de Estudos Feministas. Agosto de 2012. Vol. 20, nº 2, p. 489-500.; Santos 2010SANTOS, Paulo R. 2010. “Tensões e desafios: LGBTS e o poder público?”. Revista de Psicologia da UNESP. Vol. 9, nº 2, p. 147-164.; Zanoli 2020)ZANOLI, Vinícius. 2020. Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação. 1ª ed. Salvador: Devires . 250p.. Na década de 1990, a cidade foi o berço de um dos primeiros grupos ativistas transexuais, o Movimento Transexual de Campinas (Carvalho & Carrara, 2013)CARVALHO, Mario & CARRARA, Sérgio. 2013. “Em direito a um futuro trans?: contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil”. Sexualidad, Salud y Sociedad. Agosto de 2013. Dossiê II, nº 14, p. 319-351.. Em termos de mercado segmentado, apesar de possuir um bom número de estabelecimentos voltados para o público LGBT, a cidade não conta com muitas casas noturnas que contratam shows de drag queens regularmente.

As drag queens, em boa parte do ano, são trabalhadoras do mercado de entretenimento, o que não significa necessariamente que seus rendimentos venham unicamente da atividade drag. Estão inseridas nas dinâmicas de mercado tanto em

Campinas, quanto nas cidades onde há oferta de shows ou a possibilidade de participarem de concursos. Em ambos os casos, as remunerações, quando existentes, muitas vezes cobrem apenas parte das despesas investidas para o show. O período de shows nas casas noturnas não obedece a uma marcação temporal rígida, visto que depende da disponibilidade dos espaços comerciais em organizarem eventos com drags que não estão no elenco da casa. Quando realizam concursos, as boates parecem ter certo cuidado em não coincidir suas etapas, para evitar o esvaziamento de público e de atrações.

Ainda, as drags utilizam seus shows como um instrumento de militância, em um sentido mais genérico. Entendem que sua participação, quando não mediada pelo pagamento de cachês8 8 Não tomei ciência de nenhum espaço considerado “militante” no qual as interlocutoras desta pesquisa tenham recebido um cachê. Suas bonificações, quando existentes, se resumem a custeio do transporte ou ingresso no evento. , é feita por afinidade política ou como uma contribuição artística para a existência de espaços e eventos organizados pelo movimento. Nesses casos, as negociações giram em torno das possibilidades de divulgação de seu trabalho artístico e do prestígio decorrente da participação diante de um público muitas vezes numeroso, especialmente no que se refere às Paradas do Orgulho LGBT. O calendário de militância possui certa estabilidade, visto que os espaços e eventos que oferecem possibilidade de shows são pensados em termos de regularidade e em sintonia uns com os outros. Ao observar o circuito de Paradas isso se torna mais nítido.

Durante a realização da pesquisa de mestrado9 9 Pesquisa realizada entre 2015 e 2017, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, com período sanduíche em Birkbeck, Universidade de Londres. O projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por meio do Programa de Bolsas no País, e do Programa de Bolsas e Estágios de Pesquisa no Exterior. , observei atores do mercado e do movimento circulando em espaços, dentro e fora de Campinas, apreciando os trabalhos de outras drags. O registro em vídeo dos shows e sua divulgação nas redes sociais e no YouTube contribui para despertar o interesse destes atores pelo material artístico de uma drag. Não obstante, os conflitos pessoais também se manifestam nos momentos de escolha das participantes como um contrapeso à qualidade do show a ser apresentado.

Como pretendo demonstrar, as redes pelas quais circulam os atores - que muitas vezes participam das iniciativas de mercado e do movimento - nos permitem pensar o espectro de possibilidades e de oportunidades de show para as novatas. Um exemplo de sujeitos que compõem, e por vezes enlaçam as redes das iniciativas de mercado e do movimento, são as drag queens mais experientes. Se, por um lado, um número considerável delas tem boas relações com o empresariado local, o que permitiu que elas se mantivessem na carreira drag por muito tempo, por outro, elas também costumam ter fortes relações com algumas entidades do movimento LGBT, uma vez que algumas delas, no passado, chegaram a fundar e atuar em alguns grupos da cidade.

“Para subir no palco tem que participar das reuniões”: disputas políticas e pessoais por um lugar de destaque

No decorrer da pesquisa etnográfica, fui sendo posicionado em campo como “organizador de eventos”, “o menino lá da Parada” e até “empresário”. Mesmo tendo sido membro da Associação da Parada do Orgulho LGBT de Campinas (APOLGBT), nunca fui uma figura que subia no palco ou no trio elétrico. Nunca trabalhei em casas noturnas e tampouco organizei festas ou eventos. Mas, os papéis que a mim foram atribuídos dizem muito sobre a dinâmica do campo. Ser visto como uma dessas duas figuras me concedia certo ar de atratividade mesmo não compartilhando da atividade artística como drag. Evidente que o meu “charme” desaparecia assim que eu revelava para as pessoas que eu não “tomava decisões” na Parada, e que minha inserção dentro das iniciativas de mercado era nula. Me indago ainda se eu também era visto como parte de alguma “máfia”, uma vez que eu era entendido como alguém que poderia facilitar que as drag queens subissem no palco.

Iniciativas de mercado segmentado e movimento LGBT são duas importantes fontes de oportunidades de show para drag queens. As relações de colaboração e ao mesmo tempo de conflito entre mercado e movimento, especialmente no contexto das Paradas, têm sido analisadas pelos trabalhos de Facchini (2005)FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond . 304p., Simões e França (2005)SIMÕES, Júlio A. & FRANÇA, Isadora L. 2005. “Do ‘gueto’ ao mercado ”. In: GREEN, J. & TRINDADE, R. (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos.1ª ed. São Paulo: Editora Unesp. 342p. e de França (2006aFRANÇA, I. 2006a. Cercas e pontes: movimento GLBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo., 2006bFRANÇA, Isadora L. 2006b. ““Cada macaco no seu galho?”: arranjos de poder, políticas identitárias e segmentação de mercado no movimento homossexual”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Fevereiro de 2006. Vol. 21, nº 60, p. 103-115., 2012FRANÇA, Isadora L. 2012. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e produção de subjetividades na cidade de São Paulo. 1ª ed. Rio de Janeiro: EdUERJ. 272p.). França (2006a)FRANÇA, I. 2006a. Cercas e pontes: movimento GLBT e mercado GLS na cidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo. observou na cidade de São Paulo, que nos anos 1990, a partir de significativas mudanças no outrora chamado “gueto homossexual”, que se transformou em um mercado GLS, os empresários do setor passaram a assumir um certo “discurso ativista” e se reconhecerem como tal. Como a autora assevera, essa assumpção de uma identidade ou um “discurso ativista” não se deu sem tensões, e tampouco significou um apagamento das diferenciações na fala de seus interlocutores “militantes” e “empresários”. Não obstante, se as iniciativas de mercado são uma dimensão importante na carreira drag, elas estão longe de serem a única. O movimento se faz presente na formação das novatas como um espaço de divulgação de seus trabalhos.

A Parada do Orgulho LGBT de Campinas teve sua primeira edição em 2001, contando com a articulação entre atores do mercado e do movimento, de modo semelhante ao que acontecia na cidade de São Paulo. Segundo Zanoli (2020)ZANOLI, Vinícius. 2020. Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação. 1ª ed. Salvador: Devires . 250p., os ativistas dos grupos organizados de Campinas já participavam da organização da Parada do orgulho LGBT de São Paulo desde 1997. Foi a partir da atuação na organização da Parada de São Paulo que os ativistas de Campinas decidiram organizar a primeira Parada da cidade. No primeiro ano, a passeata aglomerou um pequeno número de militantes (alguns membros de coletivos como Identidade e o Aos Brados), que caminhou por poucas quadras de uma rua do centro cidade, acompanhados por um veículo de um sindicato. Ao menos até meados de 2016, a Parada passou a contar com um alto número de pessoas, na casa das centenas de milhares, com pelo menos um trio elétrico, e com um palco para os shows de encerramento. Além disso, o trajeto, prolongado ao longo das edições, passa hoje por importantes ruas e avenidas da região central da cidade.

Durante o Mês da Diversidade em Campinas, são organizados um conjunto de eventos que antecedem a Parada do Orgulho LGBT, geralmente agendada em data próxima ao dia 28 de junho. Nesses eventos, drags jovens e experientes são convidadas a se apresentar. São nesses momentos, também, que alianças pessoais se formam e rivalidades emergem, e muitas dessas tensões são interpretadas como negociações questionáveis fruto das máfias. Não obstante, ainda que o Mês da Diversidade concentre eventos voltados para LGBT, em outras épocas do ano ocorrem eventos organizados por setores do movimento LGBT local. A Fejuka da Diversidade, organizada pelo Aos Brados10 10 O Aos Brados!! foi fundado em 2002 por duas militantes lésbicas. Sua atuação tem como foco questões relacionadas a LGBT, negras e negros, e moradores da periferia. O grupo organiza, além de ações político-culturais na cidade, caravanas para as Paradas do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro e de São Paulo (Zanoli, 2020). é um exemplo. Trata-se de uma feijoada preparada ritualmente e servida a um público composto por militantes de diversos movimentos sociais acompanhada de atrações artísticas. Nesse evento, drags são convidadas a apresentar shows variados sempre com algum elemento ligado à valorização da negritude e da cultura da periferia.

Em Campinas, gestores estatais, atores das iniciativas de mercado e do movimento compunham a antiga APOLGBT, e construíam eventos organizados em torno do Mês da Diversidade Sexual. Esses múltiplos pertencimentos e vinculações, como observou Zanoli (2019)ZANOLI, Vinícius. 2019. “’Mais Ativista do que Gestora’: Ativismo Institucional no Campo do Movimento LGBT em Campinas”. Sociologia & Antropologia [online]. Vol. 9, nº 2, pp. 495-517. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752019v927>. [Acessado em 9 de Junho de 2021]
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no caso dos “gestores-ativistas”, borram as fronteiras entre o que se entende como Estado e como ativismo. No caso do movimento LGBT, as iniciativas de combate à epidemia de HIV-Aids, na década de 1990, já teriam facilitado e promovido os trânsitos entre gestores e ativistas (Facchini, 2005)FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de letrinhas: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond . 304p..

Esses borramentos e múltiplos pertencimentos geram conflitos no interior das organizações como a APOLGBT de Campinas. E as drag queens tomavam parte e partido nessas disputas. Muitas drags mais experientes tem ou já tiveram contato com grupos que compõem o movimento LGBT campineiro; algumas são filiadas a partidos políticos e, ainda, atuam/atuaram como colaboradoras em órgãos públicos como o Centro de Referência LGBT, as secretarias municipais ou o Programa Municipal de Prevenção de DST-Aids. Já as drags mais novas passaram a ter contato com um espectro mais amplo de atividades a partir da APOLGBT, se aproximando de grupos e órgãos públicos da cidade.

É importante ressaltar que algumas drags mais experientes também mencionaram uma atuação para a além da cidade a partir da interlocução com ONGs e grupos ativistas de outras cidades do estado e do país. Seria necessário um estudo mais detalhado para conseguir mapear as redes pelas quais muitas drags campineiras circulam. Observo que muitas das iniciantes já lograram sucesso em estabelecer contato com artistas, ativistas, gestores e atores das iniciativas de mercado em cidades mais próximas de Campinas, chegando a viabilizarem sua participação em Paradas e eventos voltados para LGBT.

Assim, é possível sugerir que as drag queens, muitas vezes, navegam por diferentes posições, transitando por espaços do movimento social, das iniciativas de mercado e das ações organizadas pelos órgãos públicos. Esse processo de constituição enquanto ativistas, colaboradoras ou militantes, não se dá sem tensões e disputas com outros atores e com outras drags. Para além das tensões entre atores do mercado e do movimento, as drags novas se esforçam para conquistar um lugar no palco, o que gera tensões tanto com os demais membros da APOLGBT (seja do mercado, ou do movimento), quanto com drags veteranas. As dificuldades e constrangimentos encontrados são, algumas vezes, entendidas como resultado da formação de máfias, que regulariam as oportunidades disponíveis às artistas.

As disputas por espaços de show na Parada se configuram como disputas por visibilidade, tendo em vista a dimensão que o evento assume e a estrutura material que ele demanda. Visto que não há pagamento de cachê, uma drag iniciante, ao ser convidada a compor o elenco de artistas do show de encerramento, acaba, por vezes, até se endividando para reunir perucas, roupas, maquiagem e salto “à altura” do desafio. Nessa ocasião, há uma tensão visível entre membros que atuam como “empresários” de algumas drags (geralmente as veteranas e mais estabelecidas), e atores do movimento que assumem uma postura mais inclusiva e agregadora. O motivo é justamente a escolha das drag queens que participarão do evento a cada ano. Salvo no caso da vencedora do Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta11 11 O Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta é um concurso de shows de drag queens e transformistas organizado anualmente no Espaço Cultural Maria Monteiro, na Vila Padre Anchieta na região noroeste de Campinas. Tratarei do concurso na seção seguinte. , que tem lugar garantido, a composição do elenco é permeada por debates e avaliações da qualidade do trabalho daquelas que pleiteiam um lugar no palco.

Mesmo sem a contrapartida financeira do cachê, existe grande interesse por parte das artistas da cidade e, por vezes, da região, em participar do show de encerramento da Parada. Isso ocorre porque o convite para participar, seja como madrinha, apresentadora, ou como artista no palco de encerramento confere prestígio às drag queens, podendo gerar oportunidades de emprego no mercado de entretenimento local e regional.

Justamente por ser um espaço disputado, a divulgação das artistas que se apresentam não se faz sem certa dose de conflito. Algumas das artistas deixadas de fora dos shows vêm a público criticar a organização e questionam os critérios de seleção. Por esse motivo, a Associação passou a exigir que as artistas interessadas em se apresentar na Parada participassem das reuniões quinzenais de organização dos eventos do Mês da Diversidade Sexual. No entanto, a presença das drags não reduziu as tensões, tampouco as críticas daquelas que não podiam participar das reuniões para viabilizar sua inserção no elenco do show. Uma alternativa encontrada por algumas artistas foi a participação de seus maridos nas reuniões e, posteriormente a formalização destes como membros da Associação. Como integrantes da APOLGBT de Campinas os maridos passaram a representar os interesses das drags além de colaborarem com a organização dos eventos.

As novatas também foram convidadas a participar das reuniões da APOLGBT, como forma de garantirem sua participação nos shows. Tal como as outras drags, muitas novatas não conseguiam comparecer às reuniões quinzenais em função da pouca disponibilidade de recursos, horários de trabalho apertados e dificuldades no custeio do transporte. Contudo, se para as mais estabelecidas o papel de representação de seus interesses se deu através da participação dos maridos que conseguiram se estabelecer enquanto membros da Associação, para as novatas, suas possibilidades de apresentação ficaram a cargo de alguns setores do movimento social que possuíam espaço dentro da Associação. Tais pertencimentos ativistas emergiram muitas vezes como contraposição à ação das máfias.

“Da plateia para perto do palco”: ocupando um lugar no júri do Concurso de Novos Talentos da Comunidade Padre Anchieta

As oportunidades agenciadas pelas drag queens em meio à organização da Parada do Orgulho LGBT de Campinas e outros eventos do movimento compõem juntamente com os concursos esse rol de possibilidades de um lugar no palco para as drags iniciantes. Aqui, trataremos do Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta. A Vila Padre Anchieta está localizada no Distrito de Nova Aparecida, na Zona Oeste de Campinas. Composta por edifícios da COHAB, habitações populares e estabelecimentos comerciais, suas ruas são asfaltadas e um terminal de ônibus, o Padre Anchieta tem uma população estimada em mais de 30 mil habitantes.

O evento acaba assumindo uma forma híbrida, reproduzindo o formato de concurso tão presente nas iniciativas de mercado, mas com uma forte influência do ativismo e o apoio institucional do poder público12 12 Categoria que nomeia a administração e o legislativo municipais. . Em 2013 foi sancionada a Lei 14.657, de 17 de julho de 2013CAMPINAS. Lei Nº 14.657, de 17 de julho de 2013. Institui no Calendário Oficial do Município de Campinas o “Concurso Novos Talentos da Vila Padre Anchieta”, Diário Oficial do Município de Campinas, Campinas, SP, Nº 10.669, 18 de julho de 2013, p. 1., que institui no calendário do município de Campinas o Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta13 13 Ver Diário Oficial de Campinas, nº10. 669. . A lei, além de ressaltar o caráter anual do evento, fixa o terceiro sábado do mês de junho como data oficial do concurso. O evento ocorre no Espaço Cultural Maria Monteiro, um centro comunitário mantido na região pela Prefeitura Municipal de Campinas. No dia a dia o local sedia uma série de atividades artísticas e de educação física oferecidas à comunidade. Além de oferecer um espaço de apresentação, o Concurso é uma via de acesso à vitrine que é o palco da Parada do Orgulho LGBT, já que a vencedora ganha um espaço para participar do show de encerramento. Curiosamente, não há no texto da Lei nenhuma frase que singularize o evento como um concurso de apresentações de drag queens, formato através do qual ele foi concebido no começo dos anos 2000.

O evento consiste em uma sequência de apresentações artísticas de dançarinas e dançarinos da comunidade, apresentações de drag queens consagradas no mercado GLS e um concurso de performances de jovens drag queens. Tanto nas apresentações da abertura, quanto no concurso, muitas das artistas que se apresentam são oriundas da própria comunidade. As apresentações são avaliadas por um júri composto de membros da Associação da Parada LGBT de Campinas, empresários do mercado segmentado, políticos envolvidos com a comunidade e drag queens experientes. A organização do evento é composta por moradores da vila, sendo que boa parte deles estão ligados a atividades artístico-culturais e alguns se apresentam como drag queens. Seu público é composto em sua maioria também por residentes na região. No concurso, a drag vencedora ganha uma quantia não estabelecida em dinheiro e um lugar nas apresentações do palco principal da Parada LGBT de Campinas.

Vale a pena ressaltar o modo como o evento singulariza as pessoas participantes do concurso diante dos demais moradores da Vila Padre Anchieta. A partir de uma atividade artística em que aspectos relacionados a gênero e sexualidade estão em evidência, o evento inaugura a possibilidade de circulação de jovens drag queens ou aspirantes a drag queens em Paradas e estabelecimentos comerciais de Campinas e região e a construção de uma carreira artística profissional.

Uma vez que o Concurso de Novos Talentos da Comunidade Padre Anchieta conta com uma participação mais numerosa de jovens drag queens entre as competidoras, sua vencedora, ao participar do show de encerramento da Parada do Orgulho LGBT, passa a ter a companhia no palco, não mais de jovens aspirantes, mas de drags consagradas, deslocando-se para um espaço não apenas geograficamente, mas também simbolicamente diferente do espaço da Vila Padre Anchieta. De certo modo, a apresentação marca a entrada numa carreira e uma trajetória de aprendizado. O Concurso se coloca então como uma chance de driblar os constrangimentos da construção da carreira e ao mesmo tempo os constrangimentos relacionados à segregação espacial urbana: a articulação entre a associação de bairro, a associação que realiza a Parada e o poder público oferece uma malha pela qual jovens drag queens se arriscam a navegar em busca de oportunidades de atuação profissional e de circulação.

É justamente pela importância do Concurso que, ao receber um convite para compor sua mesa de jurados em 2016, fiquei igualmente animado e preocupado. Como jurado, deveria atribuir notas às performances de algumas interlocutoras e outras pessoas com as quais interagi em campo, além daquelas que já se engajavam na organização do evento. Mesmo com certa ressalva, aceitei o convite e passei da condição confortável de espectador à condição desconhecida e instável de jurado. Se em outros momentos, a mim era atribuída uma imagem de facilitador que não era real, ao aceitar o convite para ser jurado, passei a tomar parte na decisão naquele ano. Aliás, é interessante ter sido colocado naquela posição como antropólogo, visto que desafia, de certo modo, a pretensa neutralidade científica conferida ao pesquisador e borra os já nebulosos limites entre observação e participação.

A entrada, tal como nos anos anteriores, era um quilo de alimento não perecível, que seria destinado a pessoas carentes na comunidade. Na chegada, reconheci algumas artistas que estavam em processo de maquiagem no vai-e-vem dos camarins. Me dirigi à sala de teatro onde alguns organizadores que trabalhavam na parte técnica faziam os últimos preparativos e testes do equipamento de som, iluminação e cenário. Como de praxe, o Concurso teve naquele ano um atraso protocolar.

A comissão organizadora do concurso é composta por drag queens e membros da comunidade (sendo em sua maioria LGBT), que se reúnem a cada ano para definir um tema que deve orientar as apresentações das competidoras. Cabe à comissão, ainda, receber as inscrições das competidoras e realizar, quando há um número muito grande de inscrições, uma etapa preliminar de eliminação sem a presença do público. Não possuo dados exatos dos números de inscritas e competidoras em outros anos, mas, em 2016, 15 artistas concorreram.

Naquele ano, o tema “Manicômio Macabro”, teve inspiração em filmes de terror, o que fomentou um considerável investimento artístico das participantes. Quando me ofereci para ajudar a equipe a fazer alguns ajustes finais encontrei Jane14 14 Os pseudônimos são empregados como forma de proteger as e os interlocutores da pesquisa. , drag negra e campineira de 24 anos de idade, que vestia uma camisola de algodão branca e ainda não tinha colocado a peruca. Ela me contou que faria uma apresentação simples em termos de material, mas com um considerável esforço de atuação. Ela iria encenar uma possessão demoníaca inspirada no filme “O Exorcista”.

A sequência de apresentações do evento geralmente é a mesma. As apresentações iniciais são realizadas por grupos de dança, artes marciais e teatro que utilizam o Espaço Cultural ao longo do ano. Trata-se de uma deferência por parte da comissão organizadora e evidencia as relações de colaboração entre os grupos artísticos.

Em seguida, ocorre uma apresentação de abertura composta pelas artistas drag queens da comissão organizadora, que, em geral, têm mais experiência ou que já venceram o concurso em outros anos. Esse momento é interessante do ponto de vista da transmissão de conhecimento e da relação entre gerações. Os ensaios que antecedem o concurso e as reuniões de organização são momentos possíveis para o estreitamento de laços pessoais e profissionais. Ainda, as mais experientes acabam por disponibilizar às demais, seu conhecimento em coreografia, vestimenta, maquiagem, interpretação e experiência em cena15 15 Importante mencionar que desses encontros de gerações também se produzem estranhamentos por parte das mais experientes quanto à estética ou escolhas artísticas das jovens artistas, algo que foi observado também por Santana (2021). .

Ao final da abertura, a apresentadora do evento foi convidada ao palco. Há algum tempo, o evento tem sido apresentado por uma conhecida drag caricata da cidade. Foi no momento de sua entrada, que um rápido esquete cômico se desenrolou em sintonia com a plateia, no qual a artista interagia com algumas pessoas que reagiam às suas piadas e provocações. Em geral, as piadas satirizavam a condição de precariedade e falta de recursos compartilhada por muitos dos presentes. As pessoas riam dos locais onde moravam, das suas comunidades, da falta de dinheiro, das imitações jocosas de pessoas ricas e da idade das drags que iriam se apresentar.

Em seguida, foram anunciadas as pessoas que iriam compor o júri. Reconheci algumas delas, como uma militante lésbica importante da cidade que se sentou ao meu lado, um fotógrafo profissional que ajudava drags nas divulgações e uma gestora municipal vinculada à Secretaria de Cultura. Membros da equipe de apoio do evento nos entregaram fichas de avaliação, nas quais deveríamos registrar o nome da participante e atribuir notas de 0 a 10 em critérios como: performance, roupa, concordância com o tema, animação do público e maquiagem. Conforme as fichas eram preenchidas, um membro da equipe de apoio as recolhia e se encarregava de fazer a somatória das notas que ranquearia as participantes. As três finalistas receberiam troféus e outros brindes doados por apoiadores do evento, e a artista vencedora teria um espaço garantido no show de encerramento da Parada.

A sequência de apresentações das competidoras se iniciou, com alguns momentos de bastante entusiasmo da plateia. Além de dublarem, algumas competidoras levaram apetrechos temáticos para criar uma cena conforme sua ideia de apresentação. Pelos gritos, era possível identificar, inclusive, algumas candidatas que teriam levado seu público, estratégia interessante para aumentar as chances de vitória, em especial neste concurso, em que a animação da plateia era um dos critérios de avaliação. Boa parte das pessoas que participavam da algazarra eram figuras que eu já havia encontrado em outros concursos, shows e excursões. Em se tratando de competidoras mais jovens, era possível ouvir vez ou outra um grito de suporte das mães drag que estavam na plateia.

Chamo a posição de jurado de instável justamente porque ela pode ser alvo de questionamentos e resultar em tensões. Felizmente no ano em que participei da mesa não houve discordâncias com o resultado e tampouco descontentamentos. Mas nos casos de tensão, o júri em sua totalidade passa a ser considerado parte da chamada máfia do concurso, categoria que aglutina jurados, organizadores e a vencedora em uma espécie de conluio formado para a fraude dos resultados.

Questionar o painel de jurados é uma atitude séria, posto que coloca em xeque a capacidade de avaliar artisticamente de sujeitos que tem certa proeminência16 16 O que não era exatamente o meu caso quando fui jurado, uma vez que fui equivocadamente anunciado como Nelson, estudante de Midialogia. naquele meio. Não obstante, a sugestão de que razões de cunho pessoal e político levariam à opção ou favorecimento de determinada artista colocam em evidência dois aspectos importantes e interligados: a permeabilidade das disputas e a escassez de oportunidades naquele segmento artístico. Em ambas, militantes, atores ligados ao mercado e gestores municipais podem potencialmente disputar espaço.

Na posição de jurado, é possível sentir e ser influenciado pela agitação do público. Não são raros os momentos nos quais as tensões entre competidoras e júri em função de notas baixas resultam em protestos no palco e comentários (sonoros) de pessoas na plateia. Na edição de 2017, uma dessas situações se desenrolou envolvendo uma artista que, em função de seu engajamento político, teria sofrido retaliações de um membro do júri. Como me relataram alguns interlocutores em conversas informais, o resultado da avaliação dos juízes descontentou uma parte significativa do público, que chegou a questionar a idoneidade do painel. A drag, por sua vez, evitou tecer quaisquer comentários acerca do resultado, fato que poderia aumentar as tensões e impactar negativamente sua carreira.

Penso na permeabilidade das disputas como esse momento de transposição de conflitos oriundos, por exemplo, das tensões políticas dentro da Associação da Parada, para um espaço como o Concurso de Talentos. A aproximação ou simpatia de uma competidora a um determinado grupo ativista, a um empresário ou a um gestor municipal, pode pesar no momento em que a atribuição de notas e a vitória em um concurso poderia mudar o quadro de apresentações esperadas no show de encerramento da Parada; ou mesmo, projetar para espaços do mercado, artistas que discordam da visão de determinados jurados.

A vitória ou simplesmente uma boa colocação em um concurso podem auxiliar na criação ou multiplicação de oportunidades. Em sentido oposto, uma reprovação pública, a desqualificação por mal comportamento, uma briga entre apoiadores ou mesmo um bate-boca na saída do concurso também podem se tornar justificativas para o preterimento da contratação ou convite de uma artista. Desse modo, as máfias podem aproximar ou afastar as drag queens dos palcos: as alianças tais como as desavenças impactam sobremaneira nas possibilidades de apresentação dessas artistas.

Conclusão

Em “Mother Camp”, Esther Newton (1979)NEWTON, Esther. 1979. Mother Camp: Female Impersonators in America. 2ª ed. Chicago: University of Chicago Press. 136p. observou o papel da máfia em Chicago na administração dos estabelecimentos clandestinos onde as drags encontravam oportunidades de show. Por se tratar de uma atividade ilegal, gerida e administrada por organizações fora-da-lei, as relações entre artistas e gerentes eram carregadas de tensão e risco iminente de violência. De fato, ali se manifestava a máfia na sua acepção mais corriqueira.

As máfias de que tratamos nesse artigo felizmente não possuem um caráter ilegal, tampouco recorrem à violência física para solucionar suas tensões. Contudo, é no mínimo curioso que conluios e conchavos também sejam nomeada como tal. Sua nomeação sugere claramente que determinados resultados em concursos ou convites para shows na Parada e eventos organizados por ativistas seriam fruto de negociatas. Curioso notar também que, apesar da aparente reprovação desse tipo de relação, as drags entendem que, no exercício de sua arte, é por vezes necessário navegar pelas tortuosas máfias que ora as prejudicam, ora as beneficiam.

Como categoria acusatória, atribuir à máfia o resultado de uma decisão, evidencia o grau de competitividade no meio artístico drag e o peso das relações pessoais e políticas. Remetendo-se menos a uma organização definida, a máfia entre as drags com que tive contato me pareceu ser um arranjo situacional entre partes com objetivos de beneficiar algumas pessoas em detrimento de outras. Nesse sentido, as máfias reais e imaginárias nos dão pistas sobre as condições e possibilidades de circulação e de progressão em uma carreira artística marcada por inventividade, criatividade e, também, por competitividade.

O que pretendi aqui não foi denunciar qualquer tipo de irregularidade em determinados concursos, posto que não há material para sustentar uma ilação tão séria. Aliás, tal sugestão, como vimos, pode macular a carreira de uma drag caso a adesão à sua história não se sustente. Tampouco, quero colocar em dúvida a capacidade dos painéis de jurados, uma tarefa árdua que pude também experimentar, ou das comissões que organizam shows na parada. Aqui, o objetivo foi justamente acompanhar essas artistas, na sua circulação pelo ativismo, mercado e poder público, perseguindo um aspecto que permeia a constituição de suas carreiras. Olhar para as relações costuradas com diferentes atores, como no âmbito da Associação da Parada e do Concurso de Novos Talentos em Campinas, revela a complexidade do cuidadoso processo de constituição da carreira dessas jovens artistas.

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  • ZANOLI, Vinícius. 2020. Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação 1ª ed. Salvador: Devires . 250p.

Notas

  • 1
    Concordando com as ponderações de Anna Paula Vencato (2002)VENCATO, A. 2002. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays na Ilha de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina., utilizo aqui o termo drag queen sem qualquer diferenciação, posto que seu uso já é bastante corrente na língua portuguesa.
  • 2
    As expressões êmicas e estrangeirismos serão grafados em itálico. Utilizarei aspas para sinalizar falas ouvidas em campo.
  • 3
    Se montar é um processo de modificação corporal analisado em diferentes estudos que vão desde os trabalhos com travestis e transexuais (Benedetti, 2006BENEDETTI, Marcos R. 2005. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond. 144p., Barbosa, 2010BARBOSA, B. 2010. Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo., Duque, 2009DUQUE, T. 2009. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construção das travestilidades na adolescência. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos.) até drag queens e crossdressers (Vencato, 2002VENCATO, A. 2002. “Fervendo com as drags”: corporalidades e performances de drag queens em territórios gays na Ilha de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina., 2013VENCATO, Anna Paula. 2013. Sapos e princesas: prazer e segredo entre praticantes de crossdressing no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Annablume. 274p.). O ato de se montar pode ser entendido como uma exploração de possibilidades corporais distintas, ao adotar um conjunto de elementos relacionados a ideais de feminilidade e masculinidade. Em outro texto (Mascarenhas Neto, 2020)MASCARENHAS NETO, Rubens. 2020. Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira drag queen. 1ª ed. Salvador: Devires . 190p., entendo o processo de se montar como a construção de uma personagem drag que vai além da produção de figuras femininas, ensejando possibilidades de produzir também deslocamentos de raça e classe.
  • 4
    Em outro trabalho exploro a ideia de família drag, a partir do contato com redes de circulação de técnicas, afetos, saberes e objetos que assumiam importância central na composição das carreiras de minhas interlocutoras. Nessas redes, terminologias de parentesco são operacionalizadas para descrever referências artísticas diretas ou indiretas, além de explicitar vínculos profissionais, afetivos e artísticos (Mascarenhas Neto, 2020)MASCARENHAS NETO, Rubens. 2020. Da praça aos palcos: caminhos da construção de uma carreira drag queen. 1ª ed. Salvador: Devires . 190p..
  • 5
    Trecho da música “Dona” de Glória Groove.
  • 6
    RuPaul’s Drag Race é um reality show criado em 2009, capitaneado pela drag queen RuPaul Charles. Na competição, um conjunto de 9 a 14 drag queens competem em uma série de desafios para atingirem o título de “America’s Next Drag Superstar” e um prêmio em dinheiro. Atualmente muitas das drags mais aclamadas pelo público gravam músicas, participam de programas e comerciais de TV, e fazem tours internacionais para suas apresentações, nas quais o Brasil foi um destino privilegiado. Desde 2019, versões estrangeiras do reality-show têm sido produzidas no Reino Unido, Austrália e Canadá.
  • 7
    Faço a ressalva de que os textos mencionados aqui são apenas parte de um numeroso conjunto de trabalhos em diversos campos disciplinares, como, por exemplo, Antropologia, História, Comunicação e Pedagogia. Seria necessária uma análise mais ampla e extensa sobre a produção brasileira sobre drags, o que foge do escopo do presente artigo.
  • 8
    Não tomei ciência de nenhum espaço considerado “militante” no qual as interlocutoras desta pesquisa tenham recebido um cachê. Suas bonificações, quando existentes, se resumem a custeio do transporte ou ingresso no evento.
  • 9
    Pesquisa realizada entre 2015 e 2017, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, com período sanduíche em Birkbeck, Universidade de Londres. O projeto foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, por meio do Programa de Bolsas no País, e do Programa de Bolsas e Estágios de Pesquisa no Exterior.
  • 10
    O Aos Brados!! foi fundado em 2002 por duas militantes lésbicas. Sua atuação tem como foco questões relacionadas a LGBT, negras e negros, e moradores da periferia. O grupo organiza, além de ações político-culturais na cidade, caravanas para as Paradas do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro e de São Paulo (Zanoli, 2020ZANOLI, Vinícius. 2020. Bradando contra todas as opressões! Ativismos LGBT, negros, populares e periféricos em relação. 1ª ed. Salvador: Devires . 250p.).
  • 11
    O Concurso de Novos Talentos da Vila Padre Anchieta é um concurso de shows de drag queens e transformistas organizado anualmente no Espaço Cultural Maria Monteiro, na Vila Padre Anchieta na região noroeste de Campinas. Tratarei do concurso na seção seguinte.
  • 12
    Categoria que nomeia a administração e o legislativo municipais.
  • 13
    Ver Diário Oficial de Campinas, nº10. 669.
  • 14
    Os pseudônimos são empregados como forma de proteger as e os interlocutores da pesquisa.
  • 15
    Importante mencionar que desses encontros de gerações também se produzem estranhamentos por parte das mais experientes quanto à estética ou escolhas artísticas das jovens artistas, algo que foi observado também por Santana (2021)SANTANA, W. 2021. Gerações Drag Queens Em Campo Grande: Entre Espaços, Memórias, Disputas e (Re)Afirmações. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul..
  • 16
    O que não era exatamente o meu caso quando fui jurado, uma vez que fui equivocadamente anunciado como Nelson, estudante de Midialogia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2018
  • Aceito
    17 Maio 2021
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