Acessibilidade / Reportar erro

Literatura Hipercontemporânea

Da fragmentação do espaço e do tempo, própria do Modernismo do princípio do século XX, à fragmentação da imagem do mundo trazida pelas novas tecnologias, a literatura, e aqui, especificamente, a literatura em língua portuguesa, tem sofrido, através do nosso século e do precedente, uma evolução, por vezes violenta, quanto ao fundo e à forma.

Mais do que um neomodernismo, a noção de hipercontemporâneo parece corresponder a uma verdadeira mutação, que nos permite ter uma visão, fictícia, mas talvez mais real do que a verdadeira, do que será o Homem e o seu mundo nas décadas vindouras.

Fruto da globalização, das novas tecnologias, essa literatura que marca os nossos panoramas literários, seja no continente europeu, no americano ou no africano, é um reflexo de um mundo em profunda mutação, no qual as mentes e os corpos se expõem ao domínio da ciência e da tecnologia, integrando-as no seu foro interno. Assim, a literatura contemporânea põe em cena personagens híbridos, homens-máquinas, máquinas antropomórficas, oferecendo-nos uma visão do futuro que nos atemoriza. A violência político-religiosa, que marca profundamente as nossas sociedades, especialmente desde o 11 de Setembro, percorre uma literatura catarsis para as nossas angústias, em que o medo da morte, que tínhamos conseguido eufemizar, volta brutalmente, através da consciência de que esta se pode sobrepor às estruturas sociais, que tinham como objetivo mantê-la a distância, e se revelam impotentes perante a força do tsunami que nos assola, particularmente na Europa.

Os problemas relativos ao meio ambiente transparecem igualmente na produção literária atual, revelando um empenho da parte das jovens gerações e um enraizamento num real que se poderia transformar, e não somente na literatura, mas num cenário, à primeira vista fantástico, de autêntico pesadelo.

Uma outra tendência parece caraterizar parte da produção atual que consideramos hipercontemporânea, isto é, a que foi escrita a partir do ano 2000: um intimismo que simula um voltar as costas a um mundo que é só dispersão e ausência de sentido. A busca de raízes, que a globalização tem tendência a tornar incertas; o mundo virtual que toma o lugar de uma realidade da qual se prefere fugir; a comunicação em tempo real, que influencia o tempo do romance; a multiplicidade das vozes que criam uma narrativa na qual é possível escolher diversos caminhos, sem que o autor opte claramente por uma via, deixam por vezes o leitor num estado de perplexidade quanto aos sentidos a serem percorridos no texto.

A ausência de limites, físicos, morais, de gênero, cria assim uma forma de “desassossego” literário, uma explosão de textos que fogem a uma classificação tradicional. Dentro dessa grande efusão criativa, aparece de forma dominante, especialmente na literatura brasileira, mas não só, a violência, a miséria moral e social, numa viagem através de um processo de desumanização, por vezes labiríntico, que nos permite pensar no estilo neobarroco, como uma das formas utilizadas, desviadas, reconstruídas de modo original na literatura hipercontemporânea.

Do espaço da narração ao espaço do texto, a literatura hipercontemporânea coloca as suas personagens num cenário amiúde politizado, altamente tenso – a questão poderá ser aqui a do papel da literatura atual na vida social e politica dos diferentes países de língua portuguesa. Terá ela uma verdadeira influência nas nossas sociedades?

O regresso do autor, sobretudo na chamada “autoficção” e o seu narrador autodiegético, dá uma consistência maior à narrativa ficcional, apesar da ambiguidade inerente ao gênero. Ela não impede, contudo, a “atração do abismo” que é a de muitos autores atuais, fruto da violência da sociedade em que estão inseridos, da desumanização que ela provoca, como foi dito precedentemente.

Persistindo na escrita do romance como articulação necessária para manter viva uma identidade que corre o risco de se perder nas malhas da Rede, o autor hipercontemporâneo reflete as caraterísticas da sociedade que é a nossa, e à qual a sua escrita se adapta. A sua criação é um testemunho de uma evolução, tecnológica, econômica, social, que o obriga a encontrar novas formas de dizer o indizível, de ordenar o caos, de adivinhar o homem do futuro que ele é já.

Possível será, aqui, tatear essas saliências provocadas pela ruptura, pela fragmentação, pela fratura. Novíssimos textos em língua portuguesa foram contemplados nesta edição da revista Letras de Hoje, em abordagens distintas, mas que efetuam uma análise desta problematização frente a um mundo contemporâneo em crise.

De Portugal, o olhar recai sobre autores bastante diversos. Com quase quarenta anos de produção profícua, num artesanato narrativo altamente peculiar, António Lobo Antunes possui duas de suas últimas obras estudadas neste número de Letras de Hoje. O escritor, conhecido por seus textos (des)costurados por múltiplas vozes em composição dissonante, num mergulho profundo por diferentes consciências em constante apagamento espacial e temporal (e, por consequência, identitário), é analisado a partir de Ontem não te vi em Babilônia. Tatiana Prevedello opera justamente neste escopo, ao investigar o reiterado jogo de afirmação e de negação dos sujeitos ficcionais, num decurso de escamoteamento narrativo, que mais esconde do que mostra. Desta forma, a pesquisadora tece o seu estudo a partir das tensões do eu com o outro, a fim de observar a fragilidade das identidades dispostas e articuladas dentro de um mundo e de um texto em estado contínuo de decomposição. Também Gustavo Henrique Rückert debruça-se sobre uma obra de Lobo Antunes, O meu nome é Legião, agora num estudo comparativo com Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato. Os dois textos apresentam o imigrante em território europeu, submerso nas tensões resultantes deste convívio com o outro europeu, branco, desenvolvido. A partir da formulação de Giorgio Agamben, que ilustra um contemporâneo como “trevas de nosso tempo”, Rückert disseca o sujeito e sua identidade no transcurso da travessia, do movimento, do (des)pertencimento a um território apossado, mas nunca seu, nas obras de Antunes e de Ruffato.

Nomes mais recentes da literatura portuguesa igualmente são perscrutrados nesta edição. Caroline Valada Becker estuda diferentes textos de Rui Zink em sua proposta de compor uma tetralogia sobre a crise. Becker focaliza o lugar de uma Europa contemporânea em estado de inquietação, a partir de O Destino Turístico, A Instalação do Medo, A Metamorfose e Outras Formosas Morfoses e Osso, obras que desenham, não raro através da alegoria, um homem contemporâneo perdido e assombrado, frente a um mundo de extrema violência. Um dos escritores mais prestigiados da nova literatura portuguesa, Valter Hugo Mãe, também está presente neste número. Bruno Mazolini de Barros e Luara Pinto Minuzzi pesquisam a imaginação material, a partir de conceituação cunhada por Bachelard, na obra o apocalipse dos trabalhadores. O personagem Andriy, ucraniano que vai a Portugal com sonhos de um futuro próspero e sofre um processo de maquinização, é examinado à luz da teorização do imaginário, com ênfase no elemento terrestre, proposto pelo filósofo francês. Também a poesia portuguesa tem espaço nesta edição, com o artigo de José Ricardo da Costa sobre Vasco Graça Moura, falecido em 2014. Costa mergulha no poema “a bacante”, a fim de resgatar dos versos de Graça Moura o lugar de Portugal no século XXI em meio a um cenário escorregadio e híbrido.

A literatura brasileira hipercontemporânea também está presente. Ilana Heineberg debruça-se sobre outra obra de Luiz Ruffato, desta vez Eles eram muitos cavalos, e investiga o seu estilhaçamento narrativo enquanto impulso para a crítica social. Heineberg sustenta a convocação, no texto, de uma ideologia marcada com os problemas sociais do Brasil, partilhada em vozes díspares que enunciam uma ética ruffatiana. Taíssi Alessandra Cardoso da Silva e Ana Cláudia Munari lançam-se à obra de Ricardo Lísias, com especial atenção aos indícios da autorreferência e da escrita do eu, acrescidos do diálogo com a sociologia e com a comunicação. O céu dos suicidas, Divórcio, Delegado Tobias e alguns textos publicados na mídia são analisados não apenas sob o olhar da autoficção, mas também a partir de estratégias que podem ser aproximadas às da publicidade. Valdemar Valente Junior explora o mundo diminuto, engolido por técnicas consumistas predatórias, de A paixão de Amâncio Amaro, estreia literária de André Laurentino, diretor televisivo. O atraso, o esvaziamento social e cultural da região, a alienação e a precariedade da população são examinados por Valente Junior em seu artigo.

“Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso”. O conto “Totonha”, extraído da obra Contos negreiros, de Marcelino Freire, é esmiuçado por Rejane Pivetta de Oliveira, com foco no papel da escrita enquanto representação dos sujeitos excluídos do mundo letrado, numa tessitura que também se revela resistência. A trilogia de Ana Paula Maia – Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, O trabalho sujo dos outros e Carvão animal – é decomposta por Ricardo Barberena, que resgata dos subterrâneos da obra de Maia personagens sitiados num ambiente de humilhação e exclusão. O investigador debruça-se sobre essas identidades marginais, tirando-as das sombras e dos rastros de sangue e conferindo-lhes protagonismo. Ascensión Rivas Hernández, por sua vez, investiga Outra vida, de Rodrigo Lacerda. O casal e a filha que aguardam um ônibus num terminal rodoviário escondem e revelam anseios tão particulares quanto universais, tecendo – não raro em silêncio – uma rede angustiante e conflituosa sobre a condição humana e o mundo contemporâneo.

Finalmente, há também a produção que focaliza os textos africanos de expressão portuguesa. Silvia Valencich Frota percorre uma transparência, que é quase invisibilidade, desenhada por Ondjaki a seus personagens. Na leitura sobre Os transparentes, Frota pesquisa o lugar, na literatura hipercontemporânea, do nacionalismo e das identidades nacionais, e como o contato com diferentes outros passa por estereotipizações, simplificações, apagamentos. Jorge Alves Santana estuda o processo pós-colonial de Moçambique, através da obra de Mia Couto, Terra sonâmbula. O pesquisador investiga, com ênfase na percepção da convivência entre o velho e o novo, a reconfiguração de novos espaços que permitam o escape do círculo vicioso da guerra e a (re)construção da nação moçambicana. Também João Marques Lopes explora a obra de Mia Couto, agora em O outro pé da sereia, mais especificamente interessado no estudo do seu colonialismo interno, expressão cunhada por Walter Mignolo. Lopes identifica um padrão de personagens que desenvolveriam um discurso em nome da perpertuação das hierarquias do colonialismo, em confronto com Mwadia, personagem que procura romper este sistema da colonialidade de poder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Porto Alegre - RS, 90619-900, Tel: 3320-3500 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: letrasdehoje@pucrs.br