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É a moralidade categórica e inescapável?* 1 Foundations of the Metaphysics of Morals, Sec. II, trans. by L. W. Beck.

Ao ensejo dos 50 anos da publicação de “Morality as a System of Hypothetical Imperatives”, trazemos ao público de língua portuguesa a tradução desse importante clássico da literatura filosófica. Originalmente, o artigo compôs o terceiro número do octágesimo primeiro volume do The Philosophical Review, de 1972, e foi republicado sem alterações significativas no compilado de ensaios de Philippa Foot, “Virtues and Vices”, de 1992. As modificações menores, aqui não reproduzidas, são a nota de rodapé número 8 e alguns parágrafos adicionados ao fim da última nota de rodapé. Uma primeira versão do texto foi apresentada e discutida no Center for Philosophical Exchange no verão de 1971. Intitulada “In defence of the hypothetical imperative”, essa versão anterior do artigo consistia muito mais em uma consideração crítica dos argumentos kantianos contra o imperativo hipotético do que uma contribuição própria e original de Foot ao debate. A versão de 1972, no entanto, não trata apenas das “dificuldades e obscuridades” da filosofia moral kantiana, mas também apresenta a visão de Foot sobre a natureza da moralidade. Por isso, é preciso reconhecer que “Morality as a System of Hypothetical Imperatives” auxiliou tanto no processo de renascimento da ética das virtudes no século XX quanto no fortalecimento da tradição que põe em xeque a suposta categoricidade dos juízos morais.

Em geral, existem duas questões que o texto de Foot suscita. A primeira delas busca questionar o sentido que Kant atribui à ideia de imperativo categórico, bem como mostrar as próprias insuficiências de sua definição a respeito dos imperativos hipotéticos. O ponto da crítica é que Kant desconsidera a “heterogeneidade interna” dos enunciados de tipo hipotético e também falha em dar-se conta que os conceitos normativos como should, must, ought e have to são empregados de forma não-hipotética também em juízos que não são necessariamente morais. Regras de etiqueta, por exemplo, podem ter a mesma força vinculante e o mesmo caráter inescapável que juízos morais supostamente têm. Segundo Foot, isso bastaria para evidenciar o tipo de hedonismo psicológico aceito por Kant no tratamento das ações não-morais. A segunda questão tem a ver com o insight original de Foot ao dizer que a “inescapabilidade” de juízos morais e regras de etiqueta é fruto de uma educação sentimental que nos confere a disposição para sentir que devemos obedecer a uma determinada regra como obrigatória. Poderíamos, então, falar da “inescapabilidade” de qualquer regra ou juízo normativo sem nos comprometermos com uma explicação metafísica como a do “fato da razão” kantiano. Basta que consideremos diferentes tipos de finalidade para ações distintas para que a heterogeneidade interna dos imperativos hipotéticos nos possibilite compreender que nem todas as ações humanas são autointeressadas.

Entre os principais limites que toda a atividade de tradução enfrenta, um dos mais marcantes acontece quando várias expressões da língua traduzida acabam sendo homogeneizadas pelo uso de uma única palavra na língua dos tradutores. É o que ocorre com o uso amplo e generalizado de ‘deve’ na língua portuguesa para expressar o mesmo que se poderia dizer, na língua inglesa, com a ordem plural de: should, ought, must, have to e duty. Uma vez que a distinção conceitual desses termos na língua inglesa é a pedra de toque da argumentação de Foot, decidimos adotar um padrão de tradução para a melhor compreensão do leitor em língua portuguesa. Should foi traduzido pela forma conjugada ‘deve’, ought por ‘é recomendado’, duty pelo infinitivo ‘dever’, must do por ‘nos é requerido fazer’ e, por fim, have to do pela introdução da preposição ‘de’ na expressão ‘temos de fazer’, a qual, na língua portuguesa, expressa um sentido mais próximo ao de obrigação. Quando de sua primeira aparição no texto, optamos por deixar o original em inglês entre parênteses ao lado do termo traduzido. Por exemplo: a sentença “o que se deve (should) ou é recomendado (ought) fazer” que aparece logo no segundo parágrafo do artigo. Há duas razões para isso. A primeira é que é possível expor com mais clareza o papel conceitual que esses termos exercem no texto e a outra é que, muitas vezes, alguns desses termos, como é o caso de must, são empregados por Foot como não tendo um propósito conceitual específico, mas como parte da própria redação do texto. Além dessas distinções conceitualmente determinadas, também optamos por traduzir required de forma padronizada por “exigido”. Nos pareceu que essa opção tornaria o texto mais próximo da argumentação de Foot, segundo a qual há uma inescapabilidade em contextos não-morais.

Referências

  • ANSCOMBE, G. E. M. 1958. Modern Moral Philosophy. The Journal of The Royal Institute of Philosophy, 33(124): 1-19. <https://doi.org/10.1017/S0031819100037943>
    » https://doi.org/10.1017/S0031819100037943
  • KANT, I. 1956. Critique of Practical Reason Trans. L. W. BECK. New York, Liberal Arts Press Book, 208p.
  • KANT, I. 1991. The Metaphysics of Morals Trans. M. GREGOR. New York, Cambridge University Press, 321p.
  • KANT, I. 1959. Foundations of the Metaphysics of Morals Trans. L. W. BECK. Indiana, Bobbs-Merrill, 93p.
  • FOOT, P. 1958-1959. Moral Beliefs. Proceedings of the Aristotelian Society, 5(1): 83-104. <https://doi.org/10.1093/aristotelian/59.1.83>
    » https://doi.org/10.1093/aristotelian/59.1.83
  • *
    Os tradutores agradecem aos editores da The Philosophical Review e, na pessoa de Diane Grosse, a Duke University Press. Os tradutores agradecem a um parecerista anônimo da Unisinos Journal of Philosophy por suas valorosas sugestões e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelo financiamento desse trabalho (Código de Financiamento 001). É a moralidade categórica e inescapável?*
  • 1
    Foundations of the Metaphysics of MoralsKANT, I. 1959. Foundations of the Metaphysics of Morals. Trans. L. W. BECK. Indiana, Bobbs-Merrill, 93p., Sec. II, trans. by L. W. Beck.
  • 2
    Ibid.
  • 3
    Ibid.
  • 4
    De acordo com a posição esboçada aqui, temos três formas de imperativos hipotéticos “Se você quer x você deve fazer y”; “Porque você quer x você deve fazer y”; e “Porque x é de seu interesse você deve fazer y”. Para Kant, a terceira formulação está automaticamente incluída na segunda.
  • 5
    Dizer que, naquele exato momento, alguém quer ser um filosofo respeitável seria outra questão. Tal afirmação requereria uma conexão especial entre o desejo e o momento.
  • 6
    Aqui, estou retornando a algo que afirmei em um artigo anterior (“Moral Beliefs”. Proceedings of the Aristotelian Society, 5(1), 1958-1959FOOT, P. 1958-1959. Moral Beliefs. Proceedings of the Aristotelian Society, 5(1): 83-104. <https://doi.org/10.1093/aristotelian/59.1.83>
    https://doi.org/10.1093/aristotelian/59....
    , pp. 83-104), no qual achei necessário mostrar que a virtude precisa beneficiar o agente. Eu acredito que o resto do que foi dito no artigo pode permanecer sem alterações.
  • 7
    Dizer que considerações morais são chamadas de razões é apenas uma forma descarada de ignorar o problema.
  • 8
    Sou muito grata a Rogers Albritton por chamar minha atenção a este uso interessante dos termos “ter de” e “é requerido”.
  • 9
    Pt. II, Introduction, sec.II.
  • 10
    Immanuel Kant, Critique of Practical ReasonKANT, I. 1956. Critique of Practical Reason. Trans. L. W. BECK. New York, Liberal Arts Press Book, 208p., trans. By L. W. Beck, p. 133.
  • 11
    Ver, por exemplo, The Metaphysics of MoralsKANT, I. 1991. The Metaphysics of Morals. Trans. M. GREGOR. New York, Cambridge University Press, 321p., pt.11, sec. 30.
  • 12
    Ver ANSCOMBE, G. E. M. 1958ANSCOMBE, G. E. M. 1958. Modern Moral Philosophy. The Journal of The Royal Institute of Philosophy, 33(124): 1-19. <https://doi.org/10.1017/S0031819100037943>
    https://doi.org/10.1017/S003181910003794...
    . Modern Moral Philosophy. The Journal of The Royal Institute of Philosophy, 33 (124): 1-19. Minha posição é diferente da de Anscombe, mas aprendi muito com ela.
  • 13
    Muitas pessoas fizeram comentários úteis na preparação desse artigo, de modo que não consigo agradecer a todas. A ajuda de Derek Parfit foi contínua e inestimável, e devo agradecimentos especiais a Barry Stroud. Uma antiga versão desse artigo foi apresentada no Center for Philosophical Exchange, em Brockport, Nova York, e publicado em Philosophical Exchange, na edição de verão de 1971.

A Moralidade como um Sistema de Imperativos Hipotéticos

FOOT, Philippa. 1972. Morality as a System of Hypothetical Imperatives. The Philosophical Review, 81(3): 305-316. Tradução de Felipe Taufer e Lucas Mateus Dalsotto. Revisão de João Carlos Brum Torres.

Existem muitas dificuldades e obscuridades na filosofia moral de Kant, e poucos moralistas contemporâneos tentarão defendê-la de todas elas; a maioria, por exemplo, concorda em rejeitar a derivação kantiana dos deveres da mera forma da lei expressa em termos de uma vontade legisladora universal. Não obstante, é geralmente assumido, mesmo por aqueles que não poderiam nem sonhar em ser chamados de seus seguidores, que Kant estabeleceu algo para além de qualquer dúvida - notadamente, a necessidade de distinguir juízos morais de imperativos hipotéticos. A ideia de que juízos morais não possam ser imperativos hipotéticos parece ter se tornado uma verdade inquestionável. Argumentarei aqui que este não é o caso.

Ao discutir minuciosamente um conceito tão kantiano quanto o de imperativo hipotético, seria natural começar perguntando o que o próprio Kant quis dizer com esse termo, e pode ser muito útil falar um pouco sobre a ideia de um imperativo tal como ela aparece nas obras de Kant. Ao escrever sobre imperativos, Kant parece estar pensando tanto em enunciados sobre o que se deve (should) ou é recomendado (ought) fazer, quanto em injunções expressas no modo prescritivo. Ele inclusive descreve como um imperativo a afirmação de que seria “bom fazer ou omitir algo”1 1 Foundations of the Metaphysics of Morals, Sec. II, trans. by L. W. Beck. e explica que, para uma vontade que “nem sempre faz algo porque lhe é representado que é bom fazê-lo”, isto possui a força de um comando da razão. Podemos, portanto, pensar os imperativos de Kant como enunciados no sentido de que é recomendado fazer algo ou de que seria bom fazê-lo.

A distinção entre imperativos hipotéticos e categóricos, que desempenha um papel tão importante na ética de Kant, aparece de uma forma característica nas seguintes passagens da Fundamentação da Metafísica dos Costumes:

Todos os imperativos ordenam ou hipoteticamente ou categoricamente. Os hipoté-ticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de al-cançar alguma outra coisa que alguém deseja (ou que é possível que deseje). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma ação que é em si mesma objetivamente necessária, sem depender de qualquer outro fim. 2 2 Ibid.

Se uma ação é boa somente enquanto meio para algum outro fim, o imperativo é hipotético; mas se ela é representada como boa em si mesma e, por conseguinte, como necessária em uma vontade em si conforme à razão na qualidade de prin-cípio da vontade, o imperativo é categórico. 3 3 Ibid.

Da forma como Kant o define, o imperativo hipotético “diz apenas que uma ação é boa de acordo com algum propósito”, o qual, ele explica, pode ser possível ou real. Entre os imperativos relacionados a propósitos reais, Kant menciona as regras de prudência, porque acredita que todos os homens necessariamente desejam sua própria felicidade. Sem nos comprometer com essa visão, será útil seguir Kant ao classificar como “imperativos hipotéticos” tanto aqueles que dizem a um homem aquilo que é recomendado que ele faça porque (ou se) quer algo, quanto aqueles que lhe dizem o que é recomendado que ele faça baseado em seu autointeresse. A opinião popular concorda com Kant ao insistir na ideia de que é requerido de um homem moral que ele aceite a regra do dever (duty), quaisquer que sejam seus interesses ou desejos.4 4 De acordo com a posição esboçada aqui, temos três formas de imperativos hipotéticos “Se você quer x você deve fazer y”; “Porque você quer x você deve fazer y”; e “Porque x é de seu interesse você deve fazer y”. Para Kant, a terceira formulação está automaticamente incluída na segunda.

Dada essa breve descrição da classe de imperativos hipotéticos kantianos, talvez seja útil apontar para sua heterogeneidade interna. Por vezes, o que um homem deve fazer depende de sua inclinação imediata, como quando deseja seu café quente e, para tanto, deve esquentar o bule. Em tantas outras, isso depende de um projeto a longo-prazo, como quando seus sentimentos e inclinações momentâneas são irrelevantes para o objetivo. Se alguém deseja ser um filósofo respeitado, deve se levantar todas as manhãs e trabalhar, muito embora, justamente nos momentos em que deva fazer isso, a ideia de ser um filósofo respeitado não o motive. Contudo, é verdadeiro dizer que, naquele exato momento, ele deseja ser um filosofo respeitado5 5 Dizer que, naquele exato momento, alguém quer ser um filosofo respeitável seria outra questão. Tal afirmação requereria uma conexão especial entre o desejo e o momento. , e que isso pode ser a base de um imperativo hipotético dependente-de-desejo. Tal como usado na explicação original do imperativo hipotético, o termo “desejo” tinha o significado de um substituto gramaticalmente conveniente para “querer”, e não pretendia implicar o significado de qualquer inclinação, em oposição a um objetivo ou projeto de longo-prazo. Mesmo a palavra “projeto”, tomada em sentido estrito, introduz restrições indesejáveis. Se alguém é devotado à sua família, ao seu país ou a qualquer outra causa, existem certas coisas que ele quer, as quais podem ser a base de certos imperativos hipotéticos sem que seus projetos ou inclinações sejam exatamente o que está em questão. Agora, já deve estar claro que imperativos hipotéticos são extremamente diversos; outra importante distinção é entre os que dizem respeito a um indivíduo e os que dizem respeito a um grupo. Os desejos dos quais um imperativo hipotético depende podem ser os de um homem, ou podem ser assumidos como pertencentes a várias pessoas engajadas em alguma espécie de projeto comum, ou que compartilham objetivos comuns.

Assim, será que Kant está correto em dizer que juízos morais são imperativos categóricos e não hipotéticos? Pode parecer que esteja, pois encontramos em nossa linguagem dois usos diferentes de palavras/expressões como “deve” e “é recomendado”, aparentemente correspondendo aos imperativos hipotéticos e categóricos de Kant, e encontramos os juízos morais compondo o conjunto dos categóricos. Suponhamos, por exemplo, que tenhamos aconselhado um viajante dizendo-lhe que deveria tomar um certo trem porque acreditamos que ele está voltando para casa. Se descobrirmos que decidiu ir para outro lugar, provavelmente iremos retirar o que dissemos: o “deveria” agora não terá mais o que o sustente e carecerá de fundamento. De modo similar, precisamos estar preparados para retirar nossa declaração sobre o que alguém deveria fazer se descobrirmos que a relação correta entre a ação e sua finalidade não se sustenta - que ela ou não é uma maneira possível de alcançar o que se quer (ou de fazer o que se quer fazer) ou já não se encontra entre os meios de ação possíveis. Todavia, o uso de “deve” e “é recomendado” em contextos morais é bem diferente. Quando dizemos que um homem deve fazer algo ao realizarmos um juízo moral, não precisamos fundamentar o que afirmamos em considerações sobre seus interesses ou desejos; se nenhuma conexão for encontrada, o “deve” não precisa ser retirado. Disso se segue que o agente não pode refutar uma afirmação sobre o que, em termos morais, deve fazer apenas mostrando que determinada ação não o auxilia na realização de seus interesses ou desejos. Sem tal conexão, o “deve” não fica sem base e carente de fundamento, pois o fundamento que ele requer é de outro tipo.6 6 Aqui, estou retornando a algo que afirmei em um artigo anterior (“Moral Beliefs”. Proceedings of the Aristotelian Society, 5(1), 1958-1959, pp. 83-104), no qual achei necessário mostrar que a virtude precisa beneficiar o agente. Eu acredito que o resto do que foi dito no artigo pode permanecer sem alterações.

Existe, então, uma diferença clara entre os juízos morais e a classe dos “imperativos hipotéticos” discutidos até agora. Nestes últimos, “deve” é empregado “hipoteticamente” no sentido definido acima, e se Kant estivesse meramente chamando a atenção para essa variação do uso linguístico, seu ponto teria sido facilmente provado. Porém, obviamente Kant quer dizer algo além disso; ao descrever os juízos morais como não-hipotéticos - ou seja, como imperativos categóricos -, ele lhes atribui uma dignidade e necessidade especiais que este uso não pode fornecer. Os filósofos modernos seguem Kant ao falar, por exemplo, sobre a “exigência incondicional” expressa em juízos morais. Tais juízos nos dizem o que temos de fazer, sejam quais forem nossos interesses ou desejos, e é em virtude de sua inescapabilidade que se distinguem dos imperativos hipotéticos.

O problema reside em encontrar provas para essa característica especial dos juízos morais. Se alguém deixa de ver a lacuna a ser preenchida, será útil chamar sua atenção para o fato de que encontramos o termo “deve” sendo empregado não-hipoteticamente em algumas afirmações não-morais, às quais ninguém atribui a dignidade e a necessidade especiais fornecidas pela descrição “imperativo categórico”. Por exemplo, encontramos esse uso não-hipotético de “deve” em sentenças que enunciam regras de etiqueta, tal como a de que um convite feito em terceira pessoa deve ser respondido em terceira pessoa, onde a regra não deixa de se aplicar a alguém que possua suas próprias boas razões para ignorar essa bobagem, ou a quem simplesmente não se importa sobre o que deveria fazer conforme o ponto de vista da etiqueta. Da mesma forma, há um uso não-hipotético de “deve” em contextos nos quais algo como a norma de um clube está em questão. O secretário do clube, que tiver observado a um associado que ele não deve trazer moças para a área de fumantes, não dirá: “Desculpe, eu estava errado”, quando informado de que esse membro deixará de ser sócio no dia seguinte e não se importa com a sua reputação no clube. Na ausência de conexão com os desejos ou interesses do agente, esse “deve” não fica “sem suporte e carente de fundamento”, pois requer apenas o respaldo da regra. O uso de “deve” é, portanto, “não-hipotético” no sentido definido.

Disso se segue que se um uso hipotético de “deve” resulta em um imperativo hipotético, e se um uso não-hipotético de “deve” resulta em um imperativo categórico, então enunciados do tipo “deve” baseados em regras de etiqueta, ou em normas de um clube, são imperativos categóricos. Uma vez que isso não seria aceito pelos defensores do imperativo categórico em ética, que insistiriam que esses outros enunciados do tipo “deve” resultam em imperativos hipotéticos, então eles precisam estar empregando essa expressão em algum outro sentido. Por isso, precisamos perguntar o que eles têm em mente ao afirmarem que “Você deve responder ... em terceira pessoa” é um imperativo hipotético. De modo muito genérico, a ideia parece ser a de que alguém pode razoavelmente perguntar por que qualquer pessoa deve se incomodar sobre o que devee (deve do ponto de vista da etiqueta) ser feito, e de que tais considerações não mereceriam atenção a menos que alguma razão lhe seja apresentada. Portanto, embora as pessoas ofereçam como uma razão para fazer algo o fato de que isso é exigido pela etiqueta, não tomamos essa consideração como, em si mesma, nos dando uma razão para agir. As considerações de etiqueta não possuem nenhuma força justificatória automática, e um homem poderia estar certo se negasse que tinha uma razão para fazer “o que fez”.

Isso parece nos levar ao cerne da questão, pois, em contraste com as considerações de etiqueta, supõe-se que as considerações morais necessariamente fornecem razões para agir a todos nós. É claro que a dificuldade está em defender essa proposição, a qual é muito mais repetida do que explicada. A menos que se diga, implausivelmente, que todas as afirmações do tipo “deve” ou “é requerido” nos deem razões para agir, o que implicaria abandonar o velho problema da atribuição de um estatuto categórico especial aos juízos morais, precisamos de uma resposta a respeito do que torna o “deve” em contextos morais significativamente diferente do “deve” que aparece em afirmações normativas de outros tipos.7 7 Dizer que considerações morais são chamadas de razões é apenas uma forma descarada de ignorar o problema. Algumas vezes, foram feitas tentativas na direção de mostrar que há algum tipo de irracionalidade envolvida quando se ignora o “deve” da moralidade: como quando se diz “Sim, é imoral - e daí?” ou “Não é como convém - mas e daí?”. Porém, até onde sou capaz de ver, todas elas se apoiam em alguma suposição ilegítima, como, por exemplo, a de pensar que o homem amoral, aquele que concorda que alguma parte de uma determinada conduta seja imoral, mas não toma conhecimento disso, está inconsistentemente desconsiderando uma regra de conduta que aceitou; ou ainda a de pensar que é inconsistente desejar que os outros não façam a si o que se tem o propósito de fazer a eles. O fato é que o homem que rejeita a moralidade por não ver razão para obedecer a suas regras pode ser condenado por vilania, mas não por inconsistência. Nem sua ação será, necessariamente, considerada irracional, pois ações irracionais são aquelas nas quais um homem, de alguma forma, malogra seus próprios propósitos, tornando o que fora calculado desvantajoso ou frustrando seus próprios fins. A imoralidade não envolve, necessariamente, esse tipo de coisa.

É óbvio que o caráter normativo de um juízo moral não garante a sua força justificatória. Juízos morais são normativos, mas também o são os juízos de etiqueta, os enunciados das normas de um clube e tantos outros. Por que o primeiro tipo de juízo deveria nos dar razões para agir e os outros não? Em cada um desses casos, há uma lição prévia sobre o modo como o “deve” não-hipotético pode ser empregado. O comportamento é necessariamente exigido e não apenas recomendado; porém, ainda permanece a questão do porquê devemos fazer o que nos é exigido fazer. É verdade que regras morais são frequentemente aplicadas de forma mais estrita do que as regras de etiqueta e nossa relutância em empregar o “deve” não-hipotético em casos desse último tipo talvez seja uma razão de por que pensamos nas regras de etiqueta como imperativos hipotéticos. Haveremos, então, de dizer que não há nada por trás da ideia de que juízos morais são imperativos categóricos além do rigor relativo de nossa educação moral? Creio que isso possa ter mais a ver com a questão do que os defensores do imperativo categórico gostariam de admitir. Porque se considerarmos o que se diz em sua defesa, podemos ficar confusos até sobre o significado das palavras usadas, a menos que as conectemos com os sentimentos inculcados por essa educação rigorosa. As pessoas falam, por exemplo, sobre “a força vinculante” da moralidade, mas não está claro o que isso significa, a não ser que nos sentimos incapazes de escapar dela. De fato, a “inescapabilidade” das exigências morais é frequentemente citada quando contrastada com os imperativos hipotéticos. Costuma-se dizer que ninguém escapa das exigências da ética por possuir ou não interesses ou desejos particulares. De uma parte, isso apenas reitera o contraste entre o “deve” da moralidade e o “deve” hipotético e, mais uma vez, coloca a moralidade no mesmo plano da etiqueta. Ambos são inescapáveis no sentido de que o comportamento não deixa de desrespeitar a moralidade e a etiqueta por ser o agente indiferente aos propósitos delas e à desaprovação que sofrerá por desprezá-las. Mas se supõe que a moralidade é inescapável de uma forma que lhe é especial e, no fundo, isso pode acabar sendo apenas o reflexo do modo como ela é ensinada. Sem dúvidas, precisamos buscar outras formas de expressar essa ideia de inescapabilidade. Pode-se dizer, por exemplo, que os juízos morais possuem algum tipo de necessidade, uma vez que nos dizem o que “nos é requerido fazer” (must do) ou o que “temos de fazer” (have to do), sejam quais forem nossos interesses e desejos. Novamente, o significado disso é obscuro. Às vezes, quando nos valemos de tais expressões, estamos nos referindo a compulsões físicas ou mentais. (Um homem tem de seguir em frente se for puxado por homens fortes e ceder se for torturado além de sua resistência). Contudo, é apenas na ausência dessas condições que os juízos morais se aplicam. Outro sentido mais comum dessas palavras é encontrado em sentenças tais como “Eu peguei um resfriado forte e tive de ficar de cama”, nas quais uma penalidade por agir de outra forma é eminente. Não se supõe, contudo, que a necessidade de agir moralmente dependa de tais penalidades. Outra série de exemplos, não necessariamente relacionados a penalidades, encontra-se onde há uma aceitação inquestionada de algum projeto ou função, como no caso de uma enfermeira que nos comunica que tem de realizar as suas rondas em determinados horários, ou quando dizemos que temos de correr para não perdermos o trem.8 8 Sou muito grata a Rogers Albritton por chamar minha atenção a este uso interessante dos termos “ter de” e “é requerido”. Mas estes usos também são irrelevantes no presente contexto, uma vez que a condição de aceitação pode sempre ser revogada.

Sem dúvida, pode-se sugerir que é em algum outro sentido do uso dos termos “ter de” ou “é requerido” que uma pessoa tem de fazer ou requer-se que ela faça o que a moralidade lhe exige. Mas por que alguém deveria insistir no fato de que existe um sentido especial quando é tão difícil dizer o que isso é? Deveríamos supor que aquilo que assumimos como um pensamento confuso não é, na verdade, pensamento algum, mas apenas o reflexo de nossos sentimentos sobre a moralidade? Talvez não faça sentido dizer que “temos de” nos submeter à lei moral ou que a moralidade é “inescapável” em algum sentido especial. Pois, assim como uma pessoa pode sentir como se estivesse caindo sem acreditar que esteja se movendo para baixo, ela também pode sentir como se tivesse de fazer o que lhe é moralmente exigido sem acreditar que esteja sob compulsão física ou psicológica, ou prestes a incorrer em alguma penalidade, caso não aja de tal modo. Se a palavra “caindo” for usada em um enunciado que relata as sensações de alguém, ninguém pensa que ela deva ser empregada em um sentido especial. Porém, esse tipo de erro pode estar envolvido na procura pelo sentido especial em que alguém “tem de” fazer o que a moralidade lhe exige. Não há dificuldade sobre a ideia de que sentimos que temos de nos comportar moralmente e, dadas as condições psicológicas de aprendizado do comportamento moral, é natural que tenhamos tais sentimentos. O que não podemos fazer é citá-los como um argumento em defesa da doutrina do imperativo categórico. Então, parece que na medida em que a doutrina do imperativo categórico é sustentada por enunciados acerca do sentido de que a moral é inescapável, ou de que temos de fazer o que nos é moralmente exigido, é incerto até mesmo se tal doutrina faz sentido.

A conclusão que devemos tirar disso é a de que juízos morais não estão em melhor posição para serem imperativos categóricos do que os enunciados sobre regras de etiqueta. De fato, as pessoas podem seguir ou a moralidade ou a etiqueta sem nem mesmo perguntar o porquê deveriam fazer isso, mas também podem não seguir. Podem pedir por razões e razoavelmente se recusar a segui-las, caso estas não sejam encontradas.

Pode-se mesmo dizer que essa maneira de compreender as considerações morais é totalmente destrutiva da moralidade, uma vez que ninguém poderia sequer agir moralmente a não ser que aceitasse tais considerações como sendo, em si mesmas, razões para a ação. Ações que são verdadeiramente morais devem ser realizadas “por si mesmas”, “porque são certas”, e não em vista de alguma outra finalidade. Devemos examinar esse argumento com cuidado, pois a doutrina do imperativo categórico deve muito à sua persuasão.

Há algo a ser dito a respeito da tese de que um homem verdadeiramente moral age “por respeito à lei moral” ou de que faz o que é moralmente correto porque isso é moralmente correto? O fato de que tais proposições não sejam prima facie absurdas depende de que o próprio juízo moral diga respeito tanto às razões de um homem para agir, quanto ao que ele faz. O direito e a etiqueta somente exigem que certas coisas sejam feitas e outras não, mas ninguém é tido como caridoso se der esmolas “para ter o louvor dos homens”, e aquele que é honesto apenas porque vale a pena ser honesto não possui a virtude da honestidade. Tal espécie de consideração foi crucial na formação da filosofia moral de Kant. Muitas vezes, ele contrasta agir por respeito à lei moral com agir por um motivo oculto e, mais ainda, pelo interesse próprio. Nas Lições de Ética, Kant apresentou o princípio de dizer a verdade sob um sistema de imperativos hipotéticos como o de não mentir, caso isso prejudicar alguém. Já na Metafísica dos Costumes, afirma que a ética não pode partir dos fins que um homem propõe a si mesmo, porque que todos esses são “egoístas”.9 9 Pt. II, Introduction, sec.II. E na Crítica da Razão Prática, argumenta explicitamente que, ao agir não por respeito à lei moral, mas por “uma máxima material”, os homens fazem o que fazem por causa do prazer ou da felicidade.

Todos os princípios práticos são, enquanto tais, no seu conjunto de uma e mesma espécie e incluem-se no princípio geral do amor de si ou da felicidade própria. 10 10 Immanuel Kant, Critique of Practical Reason, trans. By L. W. Beck, p. 133.

Na verdade, Kant era um hedonista psicológico em relação a todas as ações, exceto aquelas realizadas por causa da lei moral, e essa teoria defeituosa da natureza humana foi uma das coisas que o impediu de perceber que a virtude moral pode ser compatível com a rejeição do imperativo categórico.

Se deixarmos de lado esta teoria da ação humana e aceitarmos como fins as coisas que parecem ser fins, o quadro muda. Certamente será permitido que, independentemente das ideias de dever, um homem possa se importar com o sofrimento dos outros, tendo um senso de identificação com eles e querendo ajudá-los se puder. Claro que ele deve querer não a reputação de caridoso, nem mesmo um papel gratificante por ajudar os outros, mas simplesmente o bem deles. Se é isso com o que ele se importa, então ele se comprometerá com o fim próprio da virtude da caridade e não será possível compará-lo com alguém que age por um motivo oculto (mesmo que seja um motivo oculto respeitável). Nem será meramente contingente a conformidade de sua ação com a regra da caridade. A ação honesta pode acontecer para promover a carreira de um homem; ações caridosas não acontecem para promover o bem dos outros.

Pode um homem que só aceite imperativos hipotéticos possuir outras virtudes além da caridade? Ele poderia ser justo ou honesto? Este problema é mais complexo porque não há nenhum fim relacionado a tais virtudes da mesma forma que o bem dos outros está relacionado à caridade. Mas que razão poderia haver para nos recusarmos a chamar um homem de justo se este agir com justiça porque ama a verdade e a liberdade e porque quer que todo homem seja tratado com um mínimo de respeito? E por que um homem verdadeiramente honesto não deveria agir como tal por causa do bem que a conduta honesta traz aos homens? Claro, as dificuldades usuais podem ser suscitadas no raro caso em que nenhum bem é previsto em um ato individual de honestidade. Porém, mesmo nessa hipótese, não é evidente que os desejos de um homem não possam lhe dar razões para agir honestamente. Ele quer viver de modo transparente e de boa fé com seus vizinhos; para ele, mentir e omitir não são a mesma coisa.

Se alguém deseja saber se pode haver um homem verdadeiramente moral que aceite os princípios morais como regras hipotéticas de conduta, da mesma forma que muitas pessoas aceitam as regras de etiqueta como regras hipotéticas, então ele precisa considerar o tipo correto de exemplo. Um homem que exigisse que a moralidade fosse compreendida a partir do autointeresse não seria um bom candidato, nem o seria qualquer pessoa que se dispusesse a ser caridosa e honesta apenas na medida em que se sentisse inclinada a isso. Uma causa como a da justiça faz exigências altíssimas, mas isso não é peculiar à moralidade, e os homens estão preparados para trabalhar em prol de muitos fins não endossados pela moral. Que estejam preparados para lutar tanto por fins morais - por exemplo, por liberdade e justiça - depende do fato de serem esses os tipos de fins que despertam devoção. Para se sacrificar nesse grau por causa da etiqueta, uma pessoa precisaria estar sob o encanto do enfático “é recomendadoe”. Dificilmente ela poderia se devotar a comportar-se como conveniente.

Apesar de tudo o que foi defendido em favor do imperativo hipotético da ética, estou certa de que muitas pessoas não serão convencidas e argumentarão que ainda falta um elemento essencial à virtude moral. Essa característica ausente é o reconhecimento de um dever de adotar aqueles fins que atribuímos ao homem moral. Já dissemos que este efetivamente se importa com os outros e com causas como a da liberdade e da justiça; e que, por essa razão, aceitará um sistema de moralidade. Mas e se tal indivíduo nunca tivesse se importado com essas coisas ou se deixasse de se importar? Não é verdade que lhe é recomendado se importar com elas? Isso é exatamente o que Kant diria, pois embora algumas vezes ele pareça como se pensasse que a moralidade não diz respeito a fins, em outras, ele insiste que a adoção de fins, como a felicidade dos outros, é em si mesma ditada pela moralidade.11 11 Ver, por exemplo, The Metaphysics of Morals, pt.11, sec. 30. Como essa proposição deveria ser considerada por um agente que rejeita todo o debate sobre a força vinculante da lei moral? Ele concordará que um homem moral tenha fins morais e não possa ser indiferente a questões como sofrimento e injustiça. Além disso, reconhecerá no enunciado de que é recomendado que nos importemos com essas coisas uma aplicação correta do “é recomendado” moral não-hipotético por meio da qual a sociedade consegue expressar suas exigências. Contudo, ele não tomará o fato de que lhe é recomendadom ter determinados fins como uma razão, em si, para adotá-los. Se ele for mesmo um homem moral, então se importará com tais coisas, mas não “porque lhe é recomendado”. Se for um homem amoral, ele poderá negar que tenha qualquer razão para se preocupar com essa ou com qualquer outra exigência moral. É claro que poderá estar enganado e sua vida, assim como a dos demais, poderá ser arruinada por seu egoísmo. Mas não é isso o que é preconizado por aqueles que pensam que podem encerrar o assunto com um uso enfático do “é recomendado”. Meu argumento é o de que eles estão apoiados em uma ilusão, como se estivessem tentando atribuir ao “é recomendado” moral uma força mágica.12 12 Ver ANSCOMBE, G. E. M. 1958. Modern Moral Philosophy. The Journal of The Royal Institute of Philosophy, 33 (124): 1-19. Minha posição é diferente da de Anscombe, mas aprendi muito com ela.

Como eu disse, essa conclusão pode parecer perigosa e subversiva da moralidade. Temos tendência a entrar em pânico com a ideia de que nós mesmos, ou outras pessoas, podemos parar de nos importar com as coisas com as quais nos importamos e sentimos que o imperativo categórico nos oferece algum controle sobre a situação. No entanto, é interessante que o povo de Leningrado não ficou igualmente impactado com a ideia de que foi apenas o fato contingente de que outros cidadãos compartilhassem sua lealdade e devoção à cidade o que os separou dos alemães durante os anos terríveis do cerco. Talvez devêssemos ficar menos preocupados do que estamos com o medo da deserção da causa moral; talvez devêssemos ter ainda menos razões para temê-la se as pessoas se unissem e se considerassem voluntárias para lutar pela liberdade e justiça e contra a desumanidade e opressão. Frequentemente se sente, ainda que obscuramente, que há um elemento de engano na linha oficial sobre a moralidade. E enquanto alguns foram persuadidos pelo discurso sobre a autoridade da lei moral, outros se afastaram com uma sensação de desconfiança.13 13 Muitas pessoas fizeram comentários úteis na preparação desse artigo, de modo que não consigo agradecer a todas. A ajuda de Derek Parfit foi contínua e inestimável, e devo agradecimentos especiais a Barry Stroud. Uma antiga versão desse artigo foi apresentada no Center for Philosophical Exchange, em Brockport, Nova York, e publicado em Philosophical Exchange, na edição de verão de 1971.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2021
  • Aceito
    08 Out 2021
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