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Onde Estão as Cores?

Where are the Colors?

RESUMO

Neste artigo, exploramos alguns prospectos e problemas da análise disposicional das cores como compromisso entre o fisicalismo e o eliminativismo. Para o fisicalismo, cores podem ser identificadas com propriedades físicas dos objetos, enquanto que para os eliminativistas, como Galileu, cores são meros nomes para as sensações. Percorrendo as ideias de Barry Stroud, David Hilbert e Joshua Gert, pensamos que o fenômeno da constância da cor pode ser mais bem compreendido a partir da ideia de que a cor objetiva é uma disposição para produzir cores aparentes em circunstâncias variadas. Finalmente, apontamos a razão pela qual o fato do senso comum não encarar a cor como uma disposição pode ser explicado por uma diferença entre as disposições para produzir aparências e as disposições mais comuns do mundo físico como solubilidade e maleabilidade. Diferentemente destas, as cores, como disposições para produzirem aparências, têm amplas e cotidianas condições de manifestação, com pequeno hiato temporal entre a existência das condições de manifestação e a própria manifestação.

Palavras-chave:
Análise disposicional; refletância; constância da cor; metamerismo; Joshua Gert

ABSTRACT

In this article we explore some prospects and problems of the dispositional analysis of colors as a compromise between physicalism and eliminativism. For physicalism, colors can be identified with physical properties of objects, while for eliminativists such as Galileo, colors are mere names for sensations. Going through the ideas of Barry Stroud, David Hilbert and Joshua Gert, we think that the phenomenon of color constancy can be better understood from the idea that objective color is a disposition to produce apparent colors in varied circumstances. Finally, we point out the reason why the fact that common sense does not regard color as a disposition can be explained by a difference between dispositions to produce appearances and the more common dispositions of the physical world such as solubility and malleability. Unlike these, colors, as dispositions to produce appearances, have broad and everyday conditions of manifestation, with a small temporal gap between the existence of the conditions of manifestation and the manifestation itself.

Key-words:
Disposicionala analysis; reflectance; color constance; metamerism; Joshua Gert

Introdução

Uma das feições mais notáveis do nosso mundo são as cores. A atribuição mais comum destas se dá em relação aos objetos. Com algum refinamento, podemos falar de cores de superfícies e volumes. Há exceções como no caso da cor do céu e das cores do arco-íris, que não associamos aos objetos, mas ainda localizamos no mundo exterior. Temos também, ao modo das exceções, as “after images”, quando pressionamos os olhos, que tendemos a considerar como não estando no mundo externo. No todo, consideramos que as cores são feições relativamente estáveis dos objetos externos. Tudo isso é algo muito corriqueiro para o senso comum.

Por outro lado, parte do grande debate ocorrido no século 171 1 Com raízes no pensamento grego, a distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias afirma-se definitivamente no período moderno, envolvendo nomes como Descartes, Locke, Boyle, Galileu, dentre outros. Tal consolidação está intimamente ligada com a Revolução Científica e o quadro subjacente da teoria corpuscular. A experiência sensorial nos apresenta variadas propriedades. De um lado, temos extensão, tamanho, forma, movimento e posição, etc. De outro, temos cor, som, gosto, calor (quente e frio) e assim por diante. As propriedades ou qualidades do primeiro grupo são ditas primárias e, as do segundo grupo, secundárias. Tal terminologia, como a conhecemos hoje, foi introduzida por Boyle em 1666 e vulgarizada por Locke em 1689. A distinção mobilizou e ainda mobiliza discussões em metafísica, percepção, filosofia da mente, filosofia da ciência, para citar apenas algumas áreas problemáticas. , sobre as qualidades primárias e secundárias, colaborou para consolidar a tese de que os objetos físicos não possuem cores propriamente ditas, sendo esta um efeito do mundo externo em nosso aparato perceptual, relativamente supérfluo para explicação do funcionamento do mundo físico. Estamos diante da famosa tensão entre imagem científica e imagem manifesta de Sellars (Sellars, 1962SELLARS, W. 1962. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: SOSA & MARTINICH (Eds.). Analytic Philosophy: an Anthology. Malden, Blackwell Publishing., p. 473-496). Apesar dessa tese principal, tanto no século 17 quanto em nossos dias, há grande equivocidade na localização da cor e, portanto, sobre o seu caráter objetivo e/ou subjetivo e também quanto a que tipo de propriedade seria. A cor também é notável por estar presente em todas as partes do mundo externo acompanhando as qualidades primárias de extensão e forma.

No caso de posições eliminativistas/subjetivistas, parece que somos levados inevitavelmente à atribuição de um erro massivo ao senso comum, uma vez que este atribui cores aos objetos externos. Seria algum tipo de ilusão incorrigível do tipo Müller-Lyer2 2 A ilusão Müller-Lyer (ver desenho baixo) consiste em vermos 2 segmentos de reta de tamanhos idênticos como sendo diferentes devido ao contexto imagético. Mesmos quando medimos os 2 segmentos, a ilusão persiste. ? Nessa perspectiva, o mundo externo não teria a cor como um de seus determináveis. O que isto poderia significar? O mundo externo é em alguma medida transparente? No limite, invisível? (e as cores seriam atribuídas às sensações e seriam mentais?).

Por outro lado, se tentamos fisicalizar as cores, por exemplo, dizendo que são frequências do espectro eletromagnético, nós já não reconhecemos as cores como nos são dadas à percepção. Mais, se a cor é uma propriedade física, parece que ela é fenomenologicamente indisponível, uma vez que nossa experiência dela não nos dá acesso às propriedades físicas dos corpos. As cores, como nos são dadas à experiência, são qualidades de uma superfície, não estando qualquer quantidade física (por exemplo, tamanho, forma, movimento) em jogo. Sellars, por exemplo, comentando sobre um cubo de gelo rosa, diz

O cubo de gelo manifesto se apresenta como algo que é Rosa em sua inteireza, como um Rosa contínuo, todas as regiões das quais, mesmo as menores, são rosa. Ele se apresenta como ultimamente homogêneo ( Sellars, 1962 SELLARS, W. 1962. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: SOSA & MARTINICH (Eds.). Analytic Philosophy: an Anthology. Malden, Blackwell Publishing. , p. 488, tradução nossa) 3 3 The manifest ice cube presents itself to us as something which is Pink through and through, as a Pink continuum, all the regions of which, however small, are pink. It presents itself to us as ultimately homogeneous (Sellars, 1962, p. 488). .

Sellars, neste ponto, contrapõe a nossa percepção de cor com a natureza corpuscular da matéria de que nos informa a ciência. Os corpúsculos e suas propriedades não nos são dados em nossa experiência essencialmente qualitativa das cores.

Diante dos impasses do fisicalismo acerca da cor e da dificuldade de ter que admitir, com os eliminativistas, um erro massivo na atribuição de cores aos objetos, nós objetivamos neste artigo examinar os prospectos e problemas com a teoria disposicionalista das cores, avaliando sua fecundidade ainda nos dias atuais. Brevemente, a teoria disposicionalista afirma que as cores são meras disposições nos objetos para produzirem sensações características em nós.

1. A Análise Disposicional da Cor

A análise filosófica mais influente sobre as chamadas qualidades secundárias e das cores em particular, com raízes no pensamento de Locke, é a análise disposicional. Se quando creio que determinado objeto é vermelho, atribuo a mesma propriedade ao objeto que a propriedade dada à percepção e se a física me informa que os objetos não possuem cores como percebidas, a saída é atribuir um erro massivo às nossas crenças no domínio das cores (o mesmo valendo para as qualidades secundárias em geral). Para evitar essa conclusão, a teoria disposicional, em uma de suas formas, adota uma conexão indireta entre percepção e pensamento. A propriedade que nós atribuímos a um objeto quando cremos que é vermelho não é a mesma propriedade que é dada à percepção (Stroud, 2000STROUD, B. 2000. The Quest for Reality: subjectivism & the metaphysics of colour. Oxford, Oxford University Press., p. 118 e ss.)4 4 A seguinte passagem de Stroud (2000) é ilustrativa: “An object thought as of yellow would not be to thought to have that feature that serves to identify a perception as perception or “sensation” of yellow” (p. 120). Stroud chama essa posição de “indirect view”, não identificando de forma imediata com a teoria disposicional. . Quando dizemos, em uma formulação simplificada da teoria diposicional, que algo é azul se e somente se parece azul, a crítica mais evidente é a carga de circularidade. Várias saídas são possíveis. Ler “parece azul” como não-composicional5 5 Uma expressão é lida não composicionalmente quando o seu significado não advém da dos significados de suas partes. Um exemplo particularmente interessante é a expressão “passar dessa para melhor” significando a morte. e considerar como algo que conhecemos por ostensão6 6 Dizemos que o significado de um termo é apreendido por ostensão, e não por definição, quando é suficiente que algo nos seja apresentado por ocasião da enunciação. seria uma saída. A interpretação que estamos considerando procura escapar da circularidade dizendo que o termo para a cor, que ocorre em ambos os lados do bicondicional, nomeia propriedades diferentes. Grosseiramente, o “azul” que é dado à percepção é diferente do “azul” dado ao pensamento. Em termos gerais, é o que encontramos em Locke quando diz que cores são meramente poderes para produzir em nós certas ideias e o mesmo vale para todas as qualidades secundárias (Locke, 1690bLOCKE, J. 1690b. Ensaio sobre o Entendimento Humano. Calouste Gulbenkian, Lisboa., Livro II, capítulo VIII).

A teoria disposicional adota em geral o seguinte bicondicional:

Disp: um objeto tem uma determinada cor C se e somente se tem a capacidade de produzir em seres humanos normais, sob condições normais, a experiência característica nomeada por C.

Obviamente, as condições de normalidade são difíceis de precisar. Elas incluem, por exemplo, distância adequada do objeto, iluminação suficiente pela luz do dia, dentre outras. Não temos o domínio completo sobre quais condições são relevantes para a produção de determinada cor. Lembrando sempre que Disp é pensado em geral para analisar as chamadas qualidades secundárias e não apenas as cores. Embora a teoria disposicional localize as cores no mundo, certa subjetividade está implícita nela. As condições de verdade do bicondicional Disp dependem do que é dado à percepção. O que se segue ou não desta concepção é bem sintetizada por Stroud:

A cor de um objeto sob este ponto de vista é uma propriedade diferente da que nós vemos quando vemos a cor. A cor de um objeto é algo relacional, não uma feição categórica que um objeto possui independentemente de todas as possíveis reações humanas a ela. É neste sentido que a cor é algo “subjetivo” ou dependente ou relativo às respostas humanas ou de outros sentientes. Tal posição não implica que objetos no mundo não são coloridos ou que o único lugar para a cor no mundo é como algo percebido ou como uma feição de uma “sensação”. Nem haveria erros sistemáticos ou ilusão envolvida em nossas crenças sobre as cores ( Stroud, 2000 STROUD, B. 2000. The Quest for Reality: subjectivism & the metaphysics of colour. Oxford, Oxford University Press. , p. 123, tradução nossa) 7 7 The colour of an object on this view is a different property from what we see when we see colour. The colour of a physical object is something relational, not a categorical feature that an object possesses independently of all possible human reactions to it. It is in that sense that on this view colour is something “subjective” or dependent on or relative to human or other sentient responses. The view does not imply that objects in the world are not coloured or that the only place for colour in the world is as something perceived or as a feature of a “sensation”. Nor would there have to be systematic error or illusion involved in our beliefs about the colours of things. (Stroud, 2000, p. 123). .

Podemos ver o papel da subjetividade, ainda que limitado, na determinação das cores. Só podemos nomear as cores a partir do que nos é dado na percepção. Até aqui, as coisas correm bem do ponto de vista de uma análise filosófica. Há uma discussão na literatura que lança certa dúvida sobre o grau de concordância entre a teoria disposicional e o senso comum. À primeira vista, temos que, embora a teoria disposicional salve o senso comum do erro em atribuir cores aos objetos, ela não resgata completamente a visão comum. Parece que o senso comum atribui cores ao mundo externo como as percebemos e não como poderes ou disposições. Notar que a palavra “capacidade” na formulação de Disp. introduz certa força modal que aponta para poderes ou disposições. Se a humanidade não existisse, as cores ainda existiriam no mundo, apenas não teríamos como saber o valor de verdade de proposições atribuindo-as a objetos a partir do mundo atual. É isso que Stroud tem em mente na citação acima. Incomoda Stroud sobremaneira que haja uma discrepância, para ele insuperável, entre a propriedade da cor como percebida e a propriedade da cor como pensada. Há uma falta de integração entre ver e acreditar. Vejo a cor como uma propriedade categórica, mas acredito que a mesma é uma mera disposição.

É possível pensar, como descrevemos há pouco, um percebedor ingênuo que toma as cores dos objetos externos como sendo exatamente as cores tais como percebidas. Por outro lado, faz sentido também considerar um percebedor sofisticado que toma as cores como sendo disposições para produzir as experiências cromáticas. Tomada grosseiramente, essa ideia coaduna-se bem com o que está em Locke (ou na chamada tradição Descartes-Locke, ver Maund (1995MAUND, B. 1995. Colours: their nature and representation. Cambridge, Cambridge University Press. )). Não é claro, portanto, que o senso comum não possa alcançar uma posição disposicionalista. É possível que haja mais integração e proximidade do que pensa Stroud entre disposição e manifestação no caso das cores. Ainda voltaremos a este ponto.

De um ponto de vista interno, a teoria disposicional enfrenta certas dificuldades. Devemos notar bicondicional Disp vale também para as chamadas qualidades primárias. Um objeto com a forma quadrada, por exemplo, produz, nas condições de normalidade, a percepção da forma quadrada. E a percepção de uma forma quadrada, nas mesmas condições, remete a um objeto quadrado. Isto deixaria as qualidades primárias em pé de igualdade com as secundárias, tornando-as subjetivas no sentido assinalado acima. Claramente, isso não é uma boa consequência para os defensores da teoria disposicional. Deveria haver, então, uma maneira de qualificar o Disp para que mantenhamos a distinção entre qualidades primárias e secundárias. A tentativa mais óbvia é dizer que, para as qualidades secundárias e as cores em particular, o bicondicional Disp representa uma verdade necessária8 8 Isto é, um objeto de cor verde necessariamente produziria a experiência característica (parecer verde) para todos os percebedores. Estaríamos diante de uma verdade não-contingente. . Vários exemplos sofisticados, como os famosos espectros invertidos9 9 Nas discussões sobre espectros invertidos, explora-se a possibilidade da existência de pessoas que usam as palavras para as cores como nós, mas tem percepções qualitativamente distintas, sendo tais diferenças impossíveis de serem detectadas. , lançam dúvida sobre a necessidade de Disp. A ideia geral é que coisas azuis, por exemplo, poderiam produzir percepções não caracteristicamente azuis. Não aprofundaremos este ponto, notando apenas que filósofos empiricamente orientados, como Hardin, sugerem que o espaço de cor humano (e dos primatas) é assimétrico o que dificultaria a existência de espectros invertidos indetectáveis (Harding, 1997HARDIN, C. L. 1997. Reinverting the Spectrum. In: BYRNE & HILBERT (Eds.). Readings on Color. Cambridge, The Mit Press.).

Uma maneira de avançar é dizer, com McGinn, que ser azul consiste em parecer azul (e assim para as demais qualidades secundárias), enquanto que ser quadrado, por exemplo, não consiste em parecer quadrado. McGinn explica o “consiste em” dizendo que algo é azul porque parece azul, ao passo que algo parece quadrado porque é quadrado (McGinn, 1983McGINN, C. 1983. The Subjective View: secondary qualities and indexical thoughts. Oxford, Oxford university Press. , p. 6). O que está em jogo é algo como uma disposição que só pode ser caracterizada por sua manifestação, não havendo qualquer caracterização independente para esta disposição. De uma maneira que considero equivalente, Crispim Wright mantém que a disposição para aparecer de certa maneira determina a extensão dos predicados para cor, enquanto que os predicados para as qualidades primárias apenas rastreiam a extensão10 10 “The proposal is that the beliefs, if any, which we (would) have formed, or will or would form, under the relevant C-conditions, serve to determine the extension of the concept red. And this claim is to be understood by contrast with the thought that such beliefs keep track of an extension which is independently determined” (Wright, 1988, p. 18). .

As qualidades primárias podem ser caracterizadas de forma independente e eventuais erros perceptuais podem ser retificados por meio de procedimentos de medida. A atribuição de cores, por outro lado, depende das condicionantes da nossa experiência como iluminação, funcionamento do aparelho perceptivo, dentre outras, que são consideradas típicas. Bem entendido, assim como temos instrumentos de medida para as qualidades primárias, seria possível que tivéssemos instrumentos capazes de atribuir cores como nós fazemos, até mesmo corrigindo certa atribuição de cor. Seria o que Barry Maund chamou de termômetro para as cores. O ponto crucial é que este instrumento teria que assumir as condicionantes típicas de nossas atribuições de cores, não sendo este o caso com as qualidades primárias11 11 Em reflexão independente, Joshua Gert caminha na mesma direção quando diz “a mechanical color-detector has no authority of its own: it must initially be calibrated by comparison with a competent human judge” (Gert, 2008, p. 140). . Assim, parece-me precipitado a conclusão de Keith Campbell no sentido de abolir a distinção entre qualidades primárias e secundárias quando diz

A classe das qualidades secundárias parece fadada a uma carreira em declínio, com investigação instrumental do calor e som já sendo uma realização, trabalho sobre olfato avançando, e apenas gosto e cor, na medida em que eu conheço, permanecendo resolutamente secundário ( Campbell, 1972 CAMPBELL, K. 1972. Primary and Secondary Qualities. Canadian Journal of Philosophy, 2(2): 219- 232. , p. 226, tradução nossa) 12 12 The class of secondary qualities seems doomed to a career of declining membership, with instrumental investigation of warmth and sound already na accomplished fact, work on smell proceeding, and only taste and colour, so far as I know, remaining resolutely secondary (Campbell, 1972, p. 226). .

Nem mesmo para o calor, a questão é clara. O termômetro mede energia cinética, mas qual a relação disto com a sensação de quente e frio? Nos casos típicos, não notamos sequer a correlação destas sensações com algum tipo de movimento13 13 Obviamente, existem exceções. Durante um dia muito quente posso perceber a dilatação das minhas mãos. Fora do nosso corpo, lembremo-nos do exemplo baconiano da água fervente, onde movimento e calor se mostram correlacionados. . Em princípio, parece forçado identificar a sensação com seu correlato objetivo. De todo modo, no caso da cor, o próprio Campbell admite que não temos ainda feito muito progresso14 14 Claro está que progressos foram feitos nos 50 anos após o texto de Campbell. Mas são ainda inconclusivos. .

2. A Constância da Cor

Um fenômeno que tem recebido muita atenção na literatura recente em ciência da cor e filosofia da cor é o da constância da cor. Não é incomum, quando falamos da cor, que se acentue o seu caráter variável quanto à percepção de cada individuo e, principalmente, quanto a sua variabilidade no que tange aos diversos cenários de iluminação, perspectiva e outras circunstâncias do entorno. Esta ênfase, contudo, nos distrai do fato de que o mais notável sobre as cores é justamente o oposto - sua estabilidade e constância. A muitas vezes falada subjetividade e variabilidade das cores encobrem não só o fato, que pode ser constatado facilmente, do grande consenso que temos em nosso uso delas em nossa comunicação, mas também - e este é o ponto principal - sua grande constância sob as mais diversas circunstâncias. Notamos que existe um fenômeno menos comum das flash lights, quando, por exemplo, olhamos o verso de um disco de cd ou vemos reflexos transitórios de luz sobre superfícies.

A definição da constância da cor, vinda de cientistas da cor, é “is the constancy of the perceived colours of surfaces under changes in the intensity and spectral composition of the illumination” (Foster et al, 1997FOSTER, D. H. et al. 1997. Four Issues concerning Colour Constancy and Relational Colour Constancy. Vision Research. 37(10): 1341-1345. ). Creio seguro afirmar, como um dado disponível ao senso comum, que a constância da cor é mais notável que sua variabilidade, significando, para o nosso ponto central, a atribuição da mesma cor a um objeto sob variação das nossas sensações cromáticas. Claramente, isso é uma descrição grosseira, já que não adentra a quantificação precisa da constância e a caracterização das circunstâncias em que ela ocorre, mas será suficiente para a nossa discussão.

A analogia com a qualidade da forma nos é útil aqui, pois o funcionamento quanto à percepção é semelhante. Posso manusear uma moeda perfeitamente circular, tendo dela diferentes sensações conforme o ângulo de visão. Se giro uma moeda, tenho sucessivas impressões que vão da forma elíptica até uma linha quando ela está de perfil. O fato interessante é que não deixo de atribuir a propriedade circular à moeda. Isto é, algum mecanismo estabiliza as sensações diversas e mutáveis e permite a atribuição de determinada propriedade ao objeto. O caso da cor é análogo. Atribuo certa cor a uma superfície, sob várias circunstâncias de iluminação, ângulo de visão, distância, etc., que produzem uma diversidade de sensações em mim. Um exemplo de Joshua Gert aponta outro tipo de situação curiosa quanto a percepção da cor quando estendida no espaço (Gert, 2013GERT, J. 2013. Color constancy and dispositionalism. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, 162(2): 183-200., p. 189). Olho em direção a um muro azul, pintado com uma tinta do mesmo galão, e atribuo um azul uniforme, ainda que haja zonas mais brilhantes e mais escuras. Devemos lembrar que, tecnicamente, o brilho é parte da caracterização da cor, mas o exemplo mostra que, embora ele influencie as nossas sensações, é descontado na atribuição de cor aos objetos. Não é claro como esse processo ocorre. Seria uma inferência? Animais e crianças têm demonstrado percepção da constância da cor e devemos, portanto, evitar a hiperintelectualização do processo (Hilbert, 2005HILBERT, D, 2005. Color Constancy and the Complexity of Color. Philosophical Topics, 33(1): 141-158., p. 147)15 15 “The appearance of sameness color across changing viewing conditions seems paradigmatically sensory rather than cognitive” (Hilbert, 2013, p. 147). .

O que parece estar em jogo então é que nossa visão possui um mecanismo que recupera a cor propriamente dita descontando certas variações da iluminação e talvez outros fatores. Segundo David Hilbert, o grande fisiologista Helmholtz teve a intuição fundamental que embasa boa parte da discussão contemporânea sobre a constância da cor:

O fundamental insight de Helmholtz, de que a percepção é devotada a recuperar informação acerca das causas distais do estímulo proximal, é incorporada na mais influente abordagem corrente para explicar a constância da cor ( Hilbert, 2005 HILBERT, D, 2005. Color Constancy and the Complexity of Color. Philosophical Topics, 33(1): 141-158. , p. 149, tradução nossa) 16 16 Helmholtz’s fundamental insight, that perceptual processing is devoted to recovering information about the distal causes of proximal stimuli, is embodied in the most influential current approach to explaining color constancy (Hilbert, 2005, p. 149). .

Hilbert se refere à teoria computacional da percepção. Nesta, um processo, indisponível para a consciência, consiste em tomar um sinal de cor (color signal) sobre a retina e computar uma quantidade independente da iluminação - para os fisicalistas, a tão procurada cor. Para Hilbert, um fisicalista, esta quantidade nada mais é do que uma refletância (tecnicamente, Surface Spectral Reflectance ou SSR). Grosso modo, a refletância de um objeto é, para cada comprimento de onda do espectro visível, a quantidade de luz que o objeto reflete neste comprimento. Como o próprio Hilbert admite, nem sempre a refletância é a quantidade escolhida17 17 There are exceptions to this focus on reflectance and thus algorithms that aim at other relatively illumination-independent features of a scene (Hilbert, 2005, nota 9). .

Algumas inadequações tornam a interpretação fisicalista da constância da cor problemática do ponto de vista de uma teoria geral da cor. É fato conhecido que objetos com diferentes refletâncias (SSRs) aparecem como indistinguíveis - fenômeno do metamerismo. Hilbert tenta tornar isso mais palatável dizendo que a cor é uma refletância-tipo. Assim, existiria, por exemplo, um SSRverde que coletaria todas as refletâncias associadas a nossa percepção de verde, sendo, portanto, uma propriedade disjuntiva. Como o próprio Hilbert reconhece, a refletância-tipo não é uma propriedade muito interessante do ponto de vista da física. Ela se reveste de significado para nós apenas em função de aspectos específicos de nosso sistema perceptivo, levando Hilbert a denominar a sua posição de realismo antropocêntrico (Hilbert, 1997HILBERT, D; BYRNE, A. 1997. Color and Reflectances. In: BYRNE & HILBERT (Eds.). Readings on Color. Cambridge, The Mit Press.). Assim, uma propriedade como SSRverde é altamente disjuntiva e, no final das contas, tem natureza disposicional o que parece retirar-lhe a vantagem inicial. A abordagem fisicalista também viola o que, sobretudo na discussão mais recente sobre cores, é chamado de princípio de disponibilidade perceptual - estamos justificados em fazer certa atribuição de cores unicamente com base em nossa percepção visual (Jonhston, 1997JOHNSTON, M. 1997. How to Speak of the Colors. In: BYRNE & HILBERT (Eds.). Readings on Color. Cambridge, The Mit Press.). Fazemos isso desde sempre, sem qualquer conhecimento científico e mesmo sem muita reflexão. Também não consideramos verde como uma propriedade disjuntiva18 18 Segundo Harding, há pelo menos 15 processos físicos diferentes responsáveis pelas cores, incluindo espalhamento, reflexão, difração polarização, dentre outros (Harding, 1988, p. 2-3). . Teríamos que dizer que o verde, por exemplo, é ou a propriedade física P1 ou P2 ou P3 e assim por diante.

Gostaríamos de mencionar, de passagem, que a fenomenologia da cor, interpretada através do esquema de Hering para as cores, tem estrutura oponente. Simplificadamente, o vermelho se opõe ao verde e o azul ao amarelo. Nunca veremos, por exemplo, um vermelho-esverdeado. Entretanto, nenhum processo físico conhecido, subjacente às nossas experiências cromáticas, tem estrutura oponente. A interseção entre um feixe de luz vermelha com um feixe de luz verde aparece como amarela, mas o amarelo não aparece perceptualmente como uma mistura entre o vermelho e o verde. A mistura física nem sempre se traduz em mistura perceptual (Harding, 1997HARDIN, C. L. 1997. Reinverting the Spectrum. In: BYRNE & HILBERT (Eds.). Readings on Color. Cambridge, The Mit Press.). Isto nos ajuda a compreender melhor a inadequação da teoria física.

Daí, somos levados a pensar que devemos voltar a examinar o disposicionalismo não-fisicalista. O fenômeno do metamerismo19 19 No fenômeno do metamerismo, duas superfícies de constituição diferentes podem ter a mesma cor ou cor diferente dependendo da iluminação. No exemplo típico, duas superfícies são de um verde idêntico na luz do dia, mas, sob a luz de tungstênio, uma se mostra verde e a outra marrom. mostra que refletâncias diferentes podem ter a mesma disposição para produzir a aparência de uma determinada cor, mostrando ainda que a cor fenomenal não está sobre a superfície dos objetos. O que está mais próximo de nossa experiência perceptiva então é uma disposição e não sua base física. E a maneira mais usual de criar uma taxonomia das disposições é através de suas manifestações. Uma das questões é saber se tais disposições têm disponibilidade perceptual. O fenômeno da constância da cor indica que, enquanto temos variação nas sensações, fazemos também a atribuição de algo constante que chamamos de cor. Joshua Gert, por exemplo, diz:

Um ponto interessante é que para uma propriedade visível ser representada em uma espécie de experiência que alguém tem quando olha para algo com aquela propriedade é que ela não necessita ser representada (inteiramente) na experiência visual. Isto é, a experiência de coisas visíveis não é (inteiramente) experiência visual ( Gert, 2013 GERT, J. 2013. Color constancy and dispositionalism. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, 162(2): 183-200. , p. 184, tradução nossa) 20 20 One interesting point is that for a visible property to be represented in the kind of experience one has when one looks at something with that property, it need not be represented (entirely) in visual experience. That is, experience of visible things is not (entirely) visual experience (Gert, 2013, p. 184). .

Um dos argumentos para essa conclusão consiste em notar que quando olhamos um objeto e vemos certa cor aparente, mas não estamos certos de sua cor, mudamos a perspectiva (por exemplo, aproximando ou alterando o ângulo de visada em relação ao objeto) para nos certificarmos da cor objetiva. Para Gert, o disposicionalismo precisa ser reformulado para que a cor seja uma disposição complexa que leva de circunstâncias variadas para diversas cores aparentes21 21 Tanto quanto conheço, o primeiro autor a sugerir esta abordagem foi Justin Broackes. Ele diz: to be dark blue is not crudely to have a disposition to present a single appearance in a single kind of lighting; it is to present a variety of appearances in a variety of kinds of lightning, according to a constant pattern. (Broackes, 1997, p. 215). . A cor não é uma aparência única sob condições ideais, ela é aquele algo que induz várias aparências características a partir da diversidade das condições de observação (luminosidade, contraste do entorno, etc.). Ela mapeia circunstâncias em aparências. O percebedor sabe22 22 Talvez seja uma forma de saber como, cuja aquisição e funcionamento deve ser detalhado pela psicologia cognitiva. que variações no ângulo de visão, distância do objeto, iluminação, dentre outras, estabilizam em uma cor objetiva. Assim, na própria percepção, há uma integração entre a cor como disposição e suas manifestações. Nesse sentido, é razoável dizer que um percebedor sofisticado tem experiência da cor como uma disposição.

Alguns mistérios, no entanto, permanecem. O que exatamente é a cor? Para cada cor como disposição, qual a faixa de circunstâncias e a latitude das aparências que são permissíveis? Esta última questão é reminiscente de dificuldade semelhante da formulação canônica dos disposicionalismo, na qual temos que definir as condições de normalidade para aferição da cor. A cor é identificada como certa aparência em condições ótimas. Na versão mais sofisticada que estamos discutindo, a cor é algo que sobrevive à mudança de circunstâncias e aparências. Este algo parece ser acessível apenas através de suas manifestações. Nesse sentido, a cor como disposição não se parece com a solubilidade ou maleabilidade, por exemplo, já que conseguimos fisicalizar estas, descrevendo a sua estrutura física ou química.

Outro ponto que - tanto como conhecemos - não mereceu a devida atenção na literatura é o fato de que as cores, enquanto disposições, têm manifestação constante (ou quase), bastando que estejamos de olhos abertos e não haja completa escuridão, duas situações bastante incomuns no estado de vigília. Solubilidade, maleabilidade, fragilidade, dentre outras, possuem condições muito mais específicas de manifestação, sendo, portanto, casos mais transparentes de disposições. Este fato pode ser explorado como uma explicação da razão pela qual nós não percebemos a cor como disposicional. Há bastante similaridade entre a nossa percepção da cor e da forma, por exemplo, como mostra a nossa discussão do caso da moeda circular, lembrando que a distinção entre os dois tipos de propriedades já foi elaborada em outras bases. É uma explicação bastante plausível, em minha opinião, que o caráter disposicional das cores é encoberto pelo caráter constante de sua manifestação. Para o disposicionalismo clássico, isso é menos evidente, pois a manifestação da cor se dá em uma condição muito específica de normalidade (de iluminação, aparato perceptivo, etc). O disposicionalismo de Gert e outros sugere23 23 Observando que Gert não é propriamente um defensor da análise disposicional, tendo se definido recentemente como primitivista. Ver o seu livro “Primitive Colors” (2017). que a disposição da cor está em manifestação permanente24 24 No caso de Gert, a disposição da cor se manifesta mesmo no escuro, produzindo uma aparência, embora essa aparência não dê qualquer informação sobre a cor dos objetos (Gert, 2013, p. 190). (ou quase), produzindo as chamadas cores aparentes. Se levarmos isso a sério, entendemos como o senso comum pode tomar a cor com sendo uma propriedade não-disposicional. As disposições que operam principalmente dentro do mundo físico, tendo condições de manifestação específicas a altamente intermitentes - muitas vezes com hiato temporal considerável entre a condição de manifestação e a própria manifestação - transparecem como disposições. Ao revés, as disposições para a produção de aparências são quase constantes, com condições de manifestação corriqueiras, tendo pequeno hiato temporal entre as condições de manifestação e a própria manifestação.

Além da comparação das cores com outras disposições do mundo físico, também seria interessante compará-las com outras qualidades secundárias. O paladar, por exemplo, tem condições de manifestações mais específicas e intermitentes. Os sons embora presentes o tempo todo, não são associados a objetos específicos, muito menos recobrem as superfícies destes. Ainda, os sons têm sido objeto de uma redução física bem sucedida. A comparação detalhada entre as qualidades secundárias, contudo, ficará para um trabalho posterior.

Conclusão

Pelo que foi dito acima, parece razoável considerar que a cor é uma disposição atrelada e constituída por suas manifestações, bem no espírito da tradição lockiana. No entanto, na perspectiva contemporânea, permite que façamos sentido da cor objetiva como disposição que pode ser dada a experiência perceptiva, juntamente com cores aparentes. Destas, o aparelho perceptivo extrai, por um processo a ser esclarecido pela ciência, a cor dos objetos. A análise disposicional permite um compromisso entre o eliminativismo e o fisicalismo. Evita os termos que atribuir um erro massivo ao senso comum. Claro está que do ponto de vista da física, especialmente a do século 17, podemos trabalhar no espírito galileano de eliminação das qualidades secundárias. Também resta um desconforto que, no enfrentamento da teoria físicalista das cores, a teoria disposicional representa um recuo para uma noção um tanto intangível de uma disposição sem uma base física minimamente unificada. Neste caso, entretanto, parece que o maior ônus é dos fisicalistas.

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  • WRIGHT, C. 1988. Moral Values, Projection and Secondary Qualities. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, 62: 1-26.
  • 1
    Com raízes no pensamento grego, a distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias afirma-se definitivamente no período moderno, envolvendo nomes como Descartes, Locke, Boyle, Galileu, dentre outros. Tal consolidação está intimamente ligada com a Revolução Científica e o quadro subjacente da teoria corpuscular. A experiência sensorial nos apresenta variadas propriedades. De um lado, temos extensão, tamanho, forma, movimento e posição, etc. De outro, temos cor, som, gosto, calor (quente e frio) e assim por diante. As propriedades ou qualidades do primeiro grupo são ditas primárias e, as do segundo grupo, secundárias. Tal terminologia, como a conhecemos hoje, foi introduzida por Boyle em 1666 e vulgarizada por Locke em 1689LOCKE, J. 1690a. An Essay concerning Human Understanding (ed. P. H. Nidditch), Oxford University Press, Oxford.. A distinção mobilizou e ainda mobiliza discussões em metafísica, percepção, filosofia da mente, filosofia da ciência, para citar apenas algumas áreas problemáticas.
  • 2
    A ilusão Müller-Lyer (ver desenho baixo) consiste em vermos 2 segmentos de reta de tamanhos idênticos como sendo diferentes devido ao contexto imagético. Mesmos quando medimos os 2 segmentos, a ilusão persiste.
  • 3
    The manifest ice cube presents itself to us as something which is Pink through and through, as a Pink continuum, all the regions of which, however small, are pink. It presents itself to us as ultimately homogeneous (Sellars, 1962SELLARS, W. 1962. Philosophy and the Scientific Image of Man. In: SOSA & MARTINICH (Eds.). Analytic Philosophy: an Anthology. Malden, Blackwell Publishing., p. 488).
  • 4
    A seguinte passagem de Stroud (2000STROUD, B. 2000. The Quest for Reality: subjectivism & the metaphysics of colour. Oxford, Oxford University Press.) é ilustrativa: “An object thought as of yellow would not be to thought to have that feature that serves to identify a perception as perception or “sensation” of yellow” (p. 120). Stroud chama essa posição de “indirect view”, não identificando de forma imediata com a teoria disposicional.
  • 5
    Uma expressão é lida não composicionalmente quando o seu significado não advém da dos significados de suas partes. Um exemplo particularmente interessante é a expressão “passar dessa para melhor” significando a morte.
  • 6
    Dizemos que o significado de um termo é apreendido por ostensão, e não por definição, quando é suficiente que algo nos seja apresentado por ocasião da enunciação.
  • 7
    The colour of an object on this view is a different property from what we see when we see colour. The colour of a physical object is something relational, not a categorical feature that an object possesses independently of all possible human reactions to it. It is in that sense that on this view colour is something “subjective” or dependent on or relative to human or other sentient responses. The view does not imply that objects in the world are not coloured or that the only place for colour in the world is as something perceived or as a feature of a “sensation”. Nor would there have to be systematic error or illusion involved in our beliefs about the colours of things. (Stroud, 2000STROUD, B. 2000. The Quest for Reality: subjectivism & the metaphysics of colour. Oxford, Oxford University Press., p. 123).
  • 8
    Isto é, um objeto de cor verde necessariamente produziria a experiência característica (parecer verde) para todos os percebedores. Estaríamos diante de uma verdade não-contingente.
  • 9
    Nas discussões sobre espectros invertidos, explora-se a possibilidade da existência de pessoas que usam as palavras para as cores como nós, mas tem percepções qualitativamente distintas, sendo tais diferenças impossíveis de serem detectadas.
  • 10
    “The proposal is that the beliefs, if any, which we (would) have formed, or will or would form, under the relevant C-conditions, serve to determine the extension of the concept red. And this claim is to be understood by contrast with the thought that such beliefs keep track of an extension which is independently determined” (Wright, 1988WRIGHT, C. 1988. Moral Values, Projection and Secondary Qualities. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, 62: 1-26., p. 18).
  • 11
    Em reflexão independente, Joshua Gert caminha na mesma direção quando diz “a mechanical color-detector has no authority of its own: it must initially be calibrated by comparison with a competent human judge” (Gert, 2008GERT, J. 2008. What Colors Could not Be: an argument for color primitivism, The Journal of Philosophy, 105(3): 128-155., p. 140).
  • 12
    The class of secondary qualities seems doomed to a career of declining membership, with instrumental investigation of warmth and sound already na accomplished fact, work on smell proceeding, and only taste and colour, so far as I know, remaining resolutely secondary (Campbell, 1972CAMPBELL, K. 1972. Primary and Secondary Qualities. Canadian Journal of Philosophy, 2(2): 219- 232., p. 226).
  • 13
    Obviamente, existem exceções. Durante um dia muito quente posso perceber a dilatação das minhas mãos. Fora do nosso corpo, lembremo-nos do exemplo baconiano da água fervente, onde movimento e calor se mostram correlacionados.
  • 14
    Claro está que progressos foram feitos nos 50 anos após o texto de Campbell. Mas são ainda inconclusivos.
  • 15
    “The appearance of sameness color across changing viewing conditions seems paradigmatically sensory rather than cognitive” (Hilbert, 2013HILBERT, D, 2005. Color Constancy and the Complexity of Color. Philosophical Topics, 33(1): 141-158., p. 147).
  • 16
    Helmholtz’s fundamental insight, that perceptual processing is devoted to recovering information about the distal causes of proximal stimuli, is embodied in the most influential current approach to explaining color constancy (Hilbert, 2005HILBERT, D, 2005. Color Constancy and the Complexity of Color. Philosophical Topics, 33(1): 141-158., p. 149).
  • 17
    There are exceptions to this focus on reflectance and thus algorithms that aim at other relatively illumination-independent features of a scene (Hilbert, 2005HILBERT, D, 2005. Color Constancy and the Complexity of Color. Philosophical Topics, 33(1): 141-158., nota 9).
  • 18
    Segundo Harding, há pelo menos 15 processos físicos diferentes responsáveis pelas cores, incluindo espalhamento, reflexão, difração polarização, dentre outros (Harding, 1988HARDIN, C. L. 1988. Color for Philosophers. Unweaving the Rainbow. Indianapolis: Hackett Publishing Co., p. 2-3).
  • 19
    No fenômeno do metamerismo, duas superfícies de constituição diferentes podem ter a mesma cor ou cor diferente dependendo da iluminação. No exemplo típico, duas superfícies são de um verde idêntico na luz do dia, mas, sob a luz de tungstênio, uma se mostra verde e a outra marrom.
  • 20
    One interesting point is that for a visible property to be represented in the kind of experience one has when one looks at something with that property, it need not be represented (entirely) in visual experience. That is, experience of visible things is not (entirely) visual experience (Gert, 2013GERT, J. 2013. Color constancy and dispositionalism. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, 162(2): 183-200., p. 184).
  • 21
    Tanto quanto conheço, o primeiro autor a sugerir esta abordagem foi Justin Broackes. Ele diz: to be dark blue is not crudely to have a disposition to present a single appearance in a single kind of lighting; it is to present a variety of appearances in a variety of kinds of lightning, according to a constant pattern. (Broackes, 1997BROACKES, J. 1992. The Autonomy of Color. In: BYRNE & HILBERT (Eds.). Readings on Color. Cambridge, The Mit Press., p. 215).
  • 22
    Talvez seja uma forma de saber como, cuja aquisição e funcionamento deve ser detalhado pela psicologia cognitiva.
  • 23
    Observando que Gert não é propriamente um defensor da análise disposicional, tendo se definido recentemente como primitivista. Ver o seu livro “Primitive Colors” (2017GERT, J. 2017. Primitive Colors. Oxford, Oxford University Press).
  • 24
    No caso de Gert, a disposição da cor se manifesta mesmo no escuro, produzindo uma aparência, embora essa aparência não dê qualquer informação sobre a cor dos objetos (Gert, 2013GERT, J. 2013. Color constancy and dispositionalism. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, 162(2): 183-200., p. 190).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2022
  • Aceito
    03 Out 2022
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