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A dança dos blocos, empresários, políticos e técnicos: condicionantes da dinâmica de colaboração Interorganizacional do carnaval de Salvador

The dance of "blocos", entrepreneurs, politicians and technicians: interorganizational collaboration dynamics of the carnival in Salvador

Resumos

Ao analisar a evolução dos processos de colaboração entre entidades públicas e privadas no planejamento e operação do Carnaval de Salvador, dentro de uma perspectiva histórica, propomos alguns fatores que ajudam a explicar a dinâmica de colaboração interorganizacional em megaeventos. Processos interativos envolvendo diferentes agências tornaram-se fundamentais na medida em que o evento cresceu em tamanho, diversidade e complexidade. Para tanto, sob o ponto de vista teórico, utilizamos as lentes das teorias de colaboração interorganizacional e, sob o ponto de vista empírico, utilizamos uma abordagem qualitativa por meio de análise documental e entrevistas em profundidade junto a 13 atores relevantes. Nossas análises apontam que os processos colaborativos para a organização do Carnaval de Salvador estão relacionados com o alinhamento político entre as esferas municipal e estadual, com o grau de centralidade ocupado por alguns atores no processo, com a presença de um corpo técnico detentor do know-how do evento e com elementos de natureza instrumental e simbólica.

Colaboração interorganizacional; Megaeventos; Carnaval; Salvador


Using the Carnival of Salvador as an example, in this paper we propose some explanations for the interorganizational collaboration of mega-events. Collaborative practices involving different public and private organizations are crucial, given the evolution of Carnival in Salvador in terms of its size, diversity and complexity. We view it through the lenses of the inter-organizational collaboration theories as our main theoretical framework. A qualitative approach using documentary analysis and in-depth interviews with 13 relevant actors is used. Our results suggest that the collaborative processes are related to the alignment between local and sub-national governments, to the degree of centrality of some key actors, to the presence of a specialized technical staff, who have the appropriate know-how for organizing and operating the event, and to the presence of symbolic and instrumental topics.

Interorganizational collaboration; Mega-events; Carnival; Salvador


A dança dos blocos, empresários, políticos e técnicos: condicionantes da dinâmica de colaboração Interorganizacional do carnaval de Salvador1 1 Os autores agradecem a um parecerista anônimo e aos editores, José Antônio Gomes de Pinho e Bernardo Buarque de Holanda, por suas valiosas contribuições; ao CNPq pelo suporte financeiro à pesquisa; e aos diversos entrevistados que contribuíram para a realização deste trabalho. Erros e omissões são de nossa inteira responsabilidade.

The dance of "blocos", entrepreneurs, politicians and technicians: interorganizational collaboration dynamics of the carnival in Salvador

Sandro CabralI; Dale KraneII; Fagner DantasIII

IDoutor em Administração pela Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia – EAUFBA Professor de Operações e Estratégia da EAUFBA, Salvador/BA/Brasil. Endereço:Av. Reitor Miguel Calmon, s/n, 3.andar. Salvador/BA. CEP: 41110-903. E-mail: scabral@ufba.br

IIDoutor em Ciência Política pela Universidade de Minnesota, Kayser Chair Professor, School of Public Administration da University of Nebraska, Omaha/NE/EUA. E-mail: dkrane@unomaha.edu

IIIMestre em Administração pela EAUFBA. Analista de Planejamento e Desenvolvimento Urbano da Secretaria Municipal de Urbanismo e Transportes da Prefeitura Municipal de Salvador. E-mail: fagnerd@yahoo.com.br

RESUMO

Ao analisar a evolução dos processos de colaboração entre entidades públicas e privadas no planejamento e operação do Carnaval de Salvador, dentro de uma perspectiva histórica, propomos alguns fatores que ajudam a explicar a dinâmica de colaboração interorganizacional em megaeventos. Processos interativos envolvendo diferentes agências tornaram-se fundamentais na medida em que o evento cresceu em tamanho, diversidade e complexidade. Para tanto, sob o ponto de vista teórico, utilizamos as lentes das teorias de colaboração interorganizacional e, sob o ponto de vista empírico, utilizamos uma abordagem qualitativa por meio de análise documental e entrevistas em profundidade junto a 13 atores relevantes. Nossas análises apontam que os processos colaborativos para a organização do Carnaval de Salvador estão relacionados com o alinhamento político entre as esferas municipal e estadual, com o grau de centralidade ocupado por alguns atores no processo, com a presença de um corpo técnico detentor do know-how do evento e com elementos de natureza instrumental e simbólica.

Palavras-chave: Colaboração interorganizacional. Megaeventos. Carnaval. Salvador.

ABSTRACT

Using the Carnival of Salvador as an example, in this paper we propose some explanations for the interorganizational collaboration of mega-events. Collaborative practices involving different public and private organizations are crucial, given the evolution of Carnival in Salvador in terms of its size, diversity and complexity. We view it through the lenses of the inter-organizational collaboration theories as our main theoretical framework. A qualitative approach using documentary analysis and in-depth interviews with 13 relevant actors is used. Our results suggest that the collaborative processes are related to the alignment between local and sub-national governments, to the degree of centrality of some key actors, to the presence of a specialized technical staff, who have the appropriate know-how for organizing and operating the event, and to the presence of symbolic and instrumental topics.

Keywords: Interorganizational collaboration. Mega-events. Carnival. Salvador.

Introdução

Independente das preferências estéticas, musicais e artísticas de cada indivíduo, não se pode negar que o Carnaval de Salvador ocupa posição de destaque no cenário mundial de manifestações culturais. Atraindo centenas de milhares de pessoas durante seis dias, o evento baiano, caracterizado por seus trios elétricos, é igualmente responsável pelo lançamento de diversos artistas locais e pela consolidação de uma indústria de entretenimento que articula ampla cadeia de fornecimento de pronunciada importância, tanto para a dinamização da economia local como para a própria cultura baiana. Com efeito, Dantas dos Reis (2000) lembra que o Carnaval de Salvador, além de promover a celebração da transgressão em seus mais diversos aspectos, também, reforça o sentimento de pertencimento à cultura local, com importantes consequências para a afirmação da identidade cultural do povo baiano. Tem-se, assim, um caso bastante peculiar de externalidades positivas geradas a partir de um evento de grandes proporções.

No entanto, o processo de planejamento e operação de um megaevento reveste-se de complexidade, na medida em que demanda a articulação de uma miríade de atores governamentais e não-governamentais. No primeiro grupo, figuram organizações responsáveis pelos serviços de organização do evento, segurança, gestão do trânsito, saúde, vigilância sanitária, organização do transporte, limpeza, ordenamento do uso do solo, juizado de menores, dentre outras agências governamentais. O segundo grupo é composto por empresários do setor de entretenimento responsáveis por blocos e camarotes, músicos, associações de classe e sindicatos, entidades culturais e carnavalescas, concessionários de energia elétrica, representantes dos setores hoteleiros, apenas para citar alguns. Seria de se esperar que as interações existentes não fossem isentas de conflitos e de episódios de completa não-cooperação na medida em que os atores possuem agendas distintas, não raro, desalinhadas entre si. Com efeito, disputas políticas entre agências estaduais e entidades municipais poderiam emergir na organização do evento ao ponto de inviabilizá-lo.

No entanto, a observação da realidade revela que a situação habitual de falta de colaboração interorganizacional não se observa plenamente no Carnaval de Salvador. Ao contrário, organizações que conflitam e não cooperam em suas atividades regulares, tendem a trabalhar de forma pactuada para realizar o planejamento e as atividades do Carnaval, como, por exemplo, as Polícias Civil e Militar ou as agências de saúde estaduais e municipais. Evidentemente, as práticas de gestão relacionadas ao Carnaval de Salvador não surgiram de forma intempestiva, sendo, na verdade, decorrentes de um processo histórico marcado por erros e acertos, avanços e retrocessos ao longo do tempo. Assim, no presente trabalho intentamos compreender os fatores que ajudam a explicar a dinâmica de colaboração interorganizacional em megaeventos como o Carnaval de Salvador.

Para atingir o objetivo proposto, empregamos, sob o prisma analítico, as teorias de colaboração interorganizacional no setor público, por meio das quais se podem compreender os fatores estimuladores e impeditivos do processo colaborativo, assim como o papel de lideranças na dinâmica de cooperação e das redes de governança em meio a ambientes marcados por uma série de fontes de tensões (ANSELL; GASH, 2008; PROVAN; KENNIS, 2008; SAZ-CARRANZA; OSPINA, 2011). Usando tais lentes, recorremos a uma pesquisa de campo de cunho qualitativo, na qual, por meio de entrevistas em profundidade junto a 10 atores participantes no processo de planejamento e operacionalização do Carnaval de Salvador, e de análise documental utilizando fontes primárias e secundárias, discutimos a evolução histórica da colaboração relacionada ao evento. Nesse sentido, trabalhos prévios focalizando a gestão e a economia do Carnaval soteropolitano são invocados para ajudar a construir o panorama do evento (LOIOLA; MIGUEZ, 2009; MIGUEZ; LOIOLA, 2011).

Os achados de nosso trabalho apresentam implicações teóricas e práticas. Nessa linha, ressalta-se o papel dos incentivos explícitos e do sistema de valores e crenças locais para o desenvolvimento de processos colaborativos, ainda que em ambientes de conflito iminente. Em adição, o trabalho lança luzes sobre a questão pouco debatida na literatura que diz respeito ao processo colaborativo na organização de megaeventos, cada vez mais presentes nas agendas governamentais, além de verificar a aderência das teorias de colaboração interorganizacional num contexto pouco usual, porém, não menos relevante.

O trabalho está estruturado da seguinte forma. Na próxima seção, abordamos os principais aspectos teóricos do processo de colaboração interorganizacional. Na sequência, apresentamos as fontes de dados e a estrutura metodológica de nossa investigação. Posteriormente, descrevemos a gênese e a evolução do processo de colaboração para a organização do Carnaval de Salvador, compreendendo o período entre 1986 e 2011. Em seguida, ao discutir os fatores que influenciam a dinâmica de colaboração, oferecemos quatro proposições que ajudam a explicar os aspectos relacionados ao processo de colaboração para o planejamento e operação de megaeventos, tais como o Carnaval de Salvador. A última seção é dedicada às conclusões do trabalho.

Colaboração Interorganizacional: aspectos teóricos

O aumento das demandas dos cidadãos vem impondo uma série de desafios aos agentes governamentais em função do incremento da complexidade associada à provisão dos serviços e dos próprios custos correlatos, sobretudo em meio a um cenário marcado por restrições orçamentárias. Diante das limitações governamentais para a viabilização de bens e serviços de interesse público de forma isolada, práticas colaborativas envolvendo diferentes agências governamentais, atores privados e entidades ligadas ao terceiro setor têm surgido como alternativa em diversas localidades do mundo. Conforme argumentam Cabral, Krane e Dantas (2011), as mudanças engendradas a partir da combinação de diversos atores para provisão de serviços públicos, além de turvar as fronteiras que distinguem a esfera pública governamental da esfera privada, também contribuem para a descentralização e para a transferência das políticas públicas para além das estruturas centralizadas tradicionais.

Tal qual no mundo empírico, a emersão de arranjos colaborativos impõe desafios teóricos aos pesquisadores debruçados na temática das políticas públicas. Afinal, urge compreender quais fatores levam os atores a colaborar entre si (ALTER; HAGE, 1993), em meio a um processo cujos dilemas da ação coletiva trazem possibilidades de cooperação e conflito (OLSON, 1999), sobretudo em contextos nos quais indivíduos e organizações atuam de forma interdependente e tomam decisões voltadas ao atendimento de suas demandas de curto prazo, não raro levando a resultados coletivos sub-ótimos (OSTROM, 2005).

Ainda que se tenha observado uma extensiva produção relacionada à temática da colaboração ao longo das últimas décadas (OSTROM, 1990; RING; VAN DER VEN, 1994; BINGHAM; O'LEARY, 2008), como de hábito no mundo acadêmico, ainda não há um consenso sobre uma definição a respeito do conceito de colaboração interorganizacional. Nesse diapasão, Krane e Lu (2010) identificaram que o significado de colaboração varia de acordo com as preferências e as disciplinas de origem de cada autor, podendo ser tipificada como processo, como um relacionamento orientado a uma finalidade, como característica de uma rede, como o resultado de um processo interativo ou como ambos, processo e arranjo institucional. Dentre as várias definições existentes, Kirk, Nabatchi e Balogh (2012) oferecem uma definição de governança colaborativa que vai além da mera relação entre o gestor público e outras agências governamentais. Para eles, a governança colaborativa abrange o processo e a estrutura da decisão de política pública, envolvendo pessoas que agem de forma construtiva através das fronteiras entre governos, agências e outras esferas cívicas, de maneira a atender a um propósito que não seria atendido sem o processo interativo.

Como forma de propiciar a operacionalização analítica, modelos que sintetizam as dimensões envolvidas no processo de colaboração interorganizacional vêm sendo produzidos ao longo dos últimos anos. Um dos modelos mais aceitos na literatura é o proposto por Ansell e Gash (2008). Com 297 citações no Google Scholar em maio de 2012, o modelo dos autores preconiza que alguns fatores influenciam o processo colaborativo. Primeiramente, tem-se a importância das condições iniciais para a colaboração, as quais englobam a pré-história da cooperação e as assimetrias de poder, recursos e conhecimento entre as partes, que juntas moldam os incentivos e as restrições para a participação. Em paralelo, tem-se o desenho institucional que circunda o processo colaborativo composto pelas regras de participação, condições de inclusão de atores, além de aspectos ligados à responsabilização dos agentes e transparência do processo colaborativo. Um terceiro componente relevante é a presença de liderança facilitadora para que as diversas partes interessadas possam se comprometer com a colaboração interorganizacional. Esses três componentes alimentam o processo colaborativo em si, dentro do qual se observa um ciclo iniciado por diálogos presenciais que, por sua vez, estimulam a construção da confiança mútua necessária ao comprometimento dos diversos stakeholders com o processo de colaboração e ao entendimento compartilhado das missões, dos problemas e dos valores em comum, os quais levam às pequenas vitórias intermediárias capazes de reforçar o ciclo do processo de cooperação, até que se obtenha o resultado final decorrente da governança colaborativa.

A governança de múltiplas organizações engajadas em processos colaborativos é realizada normalmente em ambiente de rede. A rede, nesse caso, seria vital para a obtenção de resultados impossíveis de serem obtidos por meio da ação individual. Provan e Kenis (2008) pontuam que as redes de cooperação podem assumir formatos distintos com maior ou menor grau de centralização. De um lado, há estruturas em que os membros da rede colaboram sem a presença de uma entidade apta a governar as relações. Com decisões tomadas de forma compartilhada, tais redes se caracterizam pela intensa participação de seus membros, dependendo quase que exclusivamente do envolvimento e do comprometimento dos componentes da rede que, nesse caso, não apresenta pronunciadas assimetrias de poder, ainda que seus componentes possuam diferentes características. Em alguns casos, no entanto, as disfunções de um ambiente descentralizado suscitam a coordenação explícita de um ator da rede por meio de uma estrutura centralizada, a exemplo de cadeias de produção da indústria automotiva complexas, lideradas por uma entidade central em meio a um arranjo centro-radial, no qual uma organização âncora realiza os esforços de orquestração das atividades (SANTOS; CROCCO; LEMOS, 2002) ou de redes de pesquisa e desenvolvimento de equipamentos militares e sistemas de defesa nacional, coordenadas por órgãos de pesquisas governamentais (OUDOT, 2008).

Em meio às formas polares de governança de redes, Provan e Kennis (2008) apresentam o conceito de organizações administrativas independentes voltadas à governança das redes. Nesse caso, embora os membros da rede tenham a possibilidade de interagir entre si, a estrutura centralizada permite uma melhor coordenação dos esforços, atenuando os esforços adversos de estruturas compartilhadas. A liderança de tais organizações pode ser apontada pelos próprios membros ou por atores governamentais externos interessados nos resultados positivos da rede (SAZ-CARRANZA; OSPINA, 2011). Embora as escolhas para a adoção de uma ou outra forma para governança de rede possam se dar por preferências ou experiência prévias de seus membros, a existência de menores níveis de confiança entre os membros da rede, o maior número de participantes, a maior divergência de preferências entre os participantes e uma maior necessidade de competências específicas para o gerenciamento de redes são fatores que levam a uma maior chance de estruturas centralizadas serem mais efetivas. No caso de estruturas administrativas voltadas explicitamente à gestão de redes de colaboração, sua eficácia será maior quando o nível de confiança entre os participantes apresenta moderada intensidade, quando a organização puder ser monitorada por seus membros, quando o número de participantes for elevado, quando o consenso em relação aos objetivos for de moderado a alto e quando se necessita de alta capacitação para lidar com a articulação junto a atores internos e externos, como forma de assegurar a legitimidade e a longevidade da rede (PROVAN; KENNIS, 2008).

Conflitos e tensões em redes de colaboração interorganizacional

Evidentemente, redes colaborativas não são isentas de tensões e conflitos entre os seus membros, especialmente quando os participantes da rede possuem diferentes aspirações, metas distintas e características organizacionais diversas (SAZ-CARRANZA; OSPINA, 2011). As fontes de tensão em redes de colaboração incluem os dilemas: eficiência versus inclusão, legitimidade interna versus legitimidade externa, flexibilidade versus estabilidade (PROVAN; KENNIS, 2008) e unidade versus diversidade (SAZ-CARRANZA; OSPINA, 2011).

Além de imporem desafios ao processo colaborativo, as fontes de conflito, relacionadas acima, ameaçam a efetividade da rede como um todo. Assim, cabe analisar cada um desses aspectos em particular como forma de prover instrumentos teóricos aos gestores e pesquisadores interessados na temática de colaboração interorganizacional. Primeiramente, são patentes as tensões entre eficiência, medida pelo número de produtos em relação aos insumos empregados, e inclusão dos diversos atores no processo decisório da rede, na medida em que uma participação mais abrangente pode diminuir a velocidade e comprometer o foco das decisões tomadas, ainda que potencialmente aumente o comprometimento dos participantes (PROVAN; KENNIS, 2008). Por outro lado, uma menor confiança entre os agentes de uma rede, decorrente de sua exclusão no processo de decisório, pode comprometer a dinâmica do processo colaborativo e, logo, os resultados da rede de colaboração (ANSELL; GASH, 2008).

Em segundo lugar, as redes de colaboração interorganizacionais podem enfrentar o dilema entre a busca de aceitação entre os membros da rede (legitimidade interna) e o reconhecimento por parte de atores externos ao arranjo (legitimidade externa). Com efeito, ao atender as demandas internas de seus membros, uma rede pode comprometer sua imagem perante à parcela importante da opinião pública, por exemplo, caso os vetores de preferências sejam distintos. Por outro lado, caso haja assimetria de poder entre os componentes da rede, sua legitimidade interna e externa pode estar em xeque, sobretudo, quando há divergência nos objetivos do grupo dominante, dos demais grupos internos e do ambiente externo, comprometendo, além do processo de colaboração em si, a própria eficácia da rede. Destarte, a eficácia envolve ações que equilibrem as demandas internas e externas, como forma de beneficiar a rede com um todo (HUMAN; PROVAN, 2000).

Adicionalmente, Provan e Kennis (2008) chamam a atenção para o trade-off entre flexibilidade e estabilidade. De um lado, uma rede mais flexível e com regras e códigos de condutas menos rígidos permite uma maior adaptabilidade aos desafios externos (DYER, 1997). No que tange a serviços públicos, redes colaborativas podem, por exemplo, contornar as diversas restrições institucionais e burocráticas existentes, coordenando os esforços de várias agências como forma de responder a uma demanda latente, especialmente quando estão envolvidas questões emergenciais que afetam porções representativas da população (AGRANOFF; MCGUIRE, 2001). Por outro lado, dentro de uma perspectiva de longo prazo, a estabilidade e a sustentabilidade da rede precisam ser levadas em consideração, na medida em que são cruciais para a provisão de respostas aos diversos stakeholders existentes no entorno da rede e para a própria eficiência gerencial da rede ao longo do tempo. Assim, dado que a busca por estabilidade pode enrijecer as estruturas administrativas da rede, minando sua flexibilidade, o equilíbrio entre essas duas dimensões não é trivial, fazendo com que uma ou outra vertente acabe prevalecendo (PROVAN; KENNIS, 2008).

Por fim, Saz-Carranza e Ospina (2011) pontuam que, além das três fontes de conflitos acima relacionadas, a variabilidade nas características culturais, econômicas e organizacionais dos atores participantes de uma rede colaborativa constitui-se em fontes de tensões em processos colaborativos, tanto de pequenos grupos quanto de arranjos interorganizacionais mais amplos. As incompatibilidades entre um ambiente mais homogêneo, logo, mais propenso a garantir maior focalização e eficiência nas atividades da rede, e um contexto marcado por atores com distintas características, por isso mais predisposto a promover a inclusão de mais atores ao processo decisório, acabam por impor desafios adicionais ao processo de gestão da colaboração interorganizacional. De fato, uma menor heterogeneidade entre os membros da rede, ao tempo em que pode aumentar a confiança entre os atores, estimulando o processo colaborativo, pode, por outro lado, fechar a rede para novas informações, tecnologias e conhecimentos vitais para a flexibilidade, comprometendo a longevidade do arranjo colaborativo e das organizações que a compõem (UZZI, 1997). Em seu turno, a excessiva diversidade pode fazer com que seja difícil encontrar um ponto comum de interesse capaz de alavancar o processo colaborativo interorganizacional.

Dados e Método

No intuito de compreender a evolução das práticas colaborativas para a organização do Carnaval de Salvador, empregamos uma análise eminentemente qualitativa de caráter exploratório, recomendada para situações em que se deseja obter uma melhor compreensão de uma situação pouco estudada (BABBIE, 2010).

Nessa linha, nos valemos de 10 entrevistas em profundidade junto a atores participantes do planejamento do Carnaval, alguns deles membros de uma organização externa voltada a fomentar as discussões e estimular a colaboração das partes interessadas no sucesso do evento: o Conselho Municipal do Carnaval (COMCAR). Mais especificamente, utilizamos entrevistas semiestruturadas contendo questões previamente formuladas a partir das teorias de colaboração interorganizacional, sem, necessariamente, ter seguido o roteiro em sua plenitude, de forma a capturar novas dimensões emergentes a partir do processo de interação com os entrevistados. O roteiro, em nosso caso, serviu como direcionador dos diálogos. As entrevistas foram conduzidas entre maio de 2011 e maio de 2012, sendo que cada entrevista durou entre 60 e 160 min, totalizando mais de 17 horas de diálogo. Algumas das entrevistas foram gravadas e transcritas, já outras, para evitar constrangimentos por parte dos respondentes, não foram gravadas. Nesse último caso, além de tomar nota durante as conversações, o responsável por esse tipo de entrevista confeccionou relatórios detalhados imediatamente após a realização da interação com o entrevistado. O Quadro 1 mostra os perfis dos entrevistados e seu respectivo tempo de experiência no processo de planejamento do Carnaval.


Os relatórios das entrevistas foram em seguida analisados pelos três autores do trabalho, os quais promoveram a codificação e rotulação das principais categorias e conceitos presentes nos depoimentos. Tal procedimento faz-se necessário para que seja possível descobrir padrões de consistência nos dados coletados (MYERS, 2009). Em função do questionário (disponível se requisitado pelo leitor) ter sido construído a partir das teorias de colaboração, como era de se esperar, dimensões ligadas a conflitos, tensões, incentivos para a colaboração, por exemplo, emergiram na análise de conteúdo. No entanto, as análises dos textos revelaram dimensões não presentes nas teorias analisadas previamente, a exemplo dos fatores simbólicos para a cooperação e do comprometimento para o sucesso do evento, demonstrando novas nuances do processo colaborativo que emergem a partir da análise dos dados (GLASER; STRAUSS, 1967).

Adicionalmente, foram analisados documentos oficiais, relatórios internos e atas de reuniões do planejamento e operação do Carnaval. Todos os dados coletados por meio de diferentes fontes foram triangulados de acordo com as recomendações de Myers (2009). Naturalmente, visões conflitantes e coincidentes dos fenômenos sociais investigados emergiram durante o processo de confronto das diferentes fontes de informação.

Colaboração no Carnaval de Salvador

Na presente seção, apresentamos dois aspectos da evolução do Carnaval de Salvador que vêm moldando o processo colaborativo que hoje permite, entre críticas e elogios, a realização do evento. Em um primeiro momento, será apresentado, em breve panorama, o histórico da festa em si, do seu surgimento como sucedâneo do entrudo português, passando pelo redimensionamento ocasionado pela criação do trio elétrico, para, por fim, lançar um olhar mais detalhado sobre a dinâmica da festa nos 25 anos que compõem o período examinado (1986-2011). Em um segundo momento, um aspecto específico dessa evolução será aqui destacado. Trata-se da evolução dos modelos de gestão e arranjos colaborativos que foram sendo formados em resposta às mudanças que ocorreram ao longo da existência do evento durante o período correspondente ao nosso recorte temporal.

Carnaval de Salvador: evolução

Tendo suas raízes ligadas ao entrudo lusitano, a origem do Carnaval baiano tem sido explorada por diversos estudiosos (RISÉRIO, 1981; GÓES, 1982; MENEZES, 1994; MIGUEZ, 1996; MOURA, 2001; DIAS, 2002). Das brincadeiras, por vezes violentas, marcadas pelo lançamento de água, lama e bolas de cera com conteúdos dos mais diversos matizes, aos desfiles das sociedades Carnavalescas e dos bailes em ambientes fechados à aristocracia local, ao retorno das festividades para o espaço público, o Carnaval de Salvador tem se reconfigurado ao longo do tempo.

A segunda metade do século XX trará novas reconfigurações da festa. Essas reconfigurações decorreram de quatro grandes mudanças ocorridas entre a década de 1950 e os anos 2000, tendo como divisor de águas a década de 1980. Assim, em 1950, é criado por Adolfo Nascimento (Dodô) e Osmar Macedo (Osmar) o que viria a ser o maior símbolo do Carnaval de Salvador: o trio elétrico. Desconstruindo, de uma só tacada, o distanciamento entre palco e plateia, a geografia fixa dos salões e o controle hierárquico dos participantes, a popularização do trio elétrico esvaziaria os tradicionais clubes Carnavalescos (MIGUEZ, 1996; MIGUEZ; LOIOLA, 2011), redemocratizando a festa por meio da centralidade do papel da rua no evento (DIAS, 2002). O segundo elemento que reforçará tanto o papel da rua, já potencializado pelo trio elétrico, mas principalmente a popularização e a atratividade do Carnaval, será a "reafricanização" da festa (RISÉRIO, 1993). Fenômeno ocorrido na década de 1970, o autor descreve a ascensão dos blocos Carnavalescos de matriz africana e o sucessos dos afoxés na atração tanto da maioria negra da cidade, quanto de visitantes que se encantavam com essa marca distintiva do Carnaval de Salvador.

Em meio a esse processo de democratização e popularização do Carnaval de rua de Salvador, chama-se atenção para os primeiros movimentos de mercantilização mais intensa da festa, a partir das oportunidades comerciais abertas pelo trio elétrico (MENEZES, 1994). Curiosamente, potencialidades detectadas não tanto por Dodô e Osmar, icônicos pais da ideia, mas por Orlando Campos, criador do Trio Elétrico Tapajós, adaptado para ser usado inclusive em comícios políticos (MIGUEZ, 1996), abre-se espaço para a terceira mudança, qual seja, a emersão dos blocos de trio que, a partir da década de 1980, passam a predominar sobre os blocos independentes. Com efeito, após aquele momento de clara preponderância do espaço da rua, local de redes secundárias que abriam mão das individualidades homogeneizantes em favor da generalidade heterogênea, o bloco de trio conduz um novo movimento em favor de redes primárias reestilizadas, já que, ao fechar o espaço ocupado por seus integrantes com uma corda, descontrói, em um movimento inverso aos dos primeiros trios independentes, a geografia fixa dos clubes, reconstruindo, portanto, uma segregação, agora "móvel". O quarto movimento, que, na verdade, reforça as configurações centradas nos artistas sobre os trios, é caracterizado pela assunção de espaços privados ao longo dos circuitos da festa: os camarotes. Tais espaços, ao tempo em que contribuíram para o deslocamento geográfico do Carnaval de Salvador – do centro da cidade ao circuito litorâneo localizado na Orla Barra-Ondina que, por suas características, é mais atrativo à comercialização dos camarotes –, ressignificam a relação entre palco e plateia, criando uma nova audiência de alto poder aquisitivo e, não raro, desconectada com o evento em si, em função do leque de serviços disponibilizados por esses espaços. Por exemplo, há camarotes que oferecem, além de visão privilegiada ao evento, uma gama de opções de entretenimento e conforto, desde alimentação e bebidas de alto padrão, passando por serviços de massoterapia, salões de beleza e danceterias, sendo frequentados por moradores locais e turistas de alto poder aquisitivo ou por convidados dos diversos patrocinadores do evento.

Ao longo de seis dias de festa, o evento atrai em seus três circuitos (Barra-Ondina, Campo Grande e Pelourinho) mais de 650.000 pessoas por dia (MIGUEZ; LOIOLA, 2011), gerando um volume de negócios de R$ 500 milhões (INFOCULTURA, 2007). Ainda que o modelo vigente do Carnaval de Salvador tenha conferido dividendos materiais ao Estado em função das oportunidades de negócios e de empregos gerados para o atendimento das necessidades do evento e que o formato atual tenha sido decisivo para o aumento da visibilidade de diversos artistas baianos, a julgar pela projeção nacional e internacional de profissionais locais oriundos do Carnaval soteropolitano, pairam diversos questionamentos em relação a sua configuração e ao formato de participação popular.

De fato, a cobrança de acesso por parte dos blocos com cordas é vista como antirrepublicana, na medida em que além de impedirem o acesso de não-pagantes aos espaços públicos que compõem o circuito, reforçam a segregação econômica existente na sociedade baiana. No entanto, dado que o folião-pipoca, aquele que não integra o bloco e nem frequenta os camarotes, ainda compõe a imensa maioria da audiência do Carnaval de Salvador (MIGUEZ; LOIOLA, 2011) e que esse público se locomove para os locais dos desfiles para ver gratuitamente os artistas financiados pelos pagantes dos blocos e pelos patrocinadores privados interessados na vinculação de suas marcas junto a artistas de renome, pode-se argumentar o contrário: o modelo atual atende aos anseios de parte significativa da população, a julgar pelo expressivo número de pessoas locais que continuam a prestigiar o evento nas ruas da cidade. Nesse sentido, uma minoria de pagantes, ao viabilizar o financiamento dos artistas que a maioria das pessoas está interessada em ver, garante a sustentabilidade financeira do Carnaval.

Evidentemente, o volume de recursos financeiros movimentados ao longo do Carnaval contribuiu para a formação de coalizões de atores públicos e privados interessados em perpetuar seus ganhos monetários e políticos. A defesa das posições conquistadas com vistas à manutenção do status quo ou a busca de novas oportunidades de ganhos passa por uma maior influência no desenho e na operacionalização do evento. Sucede que, por envolver uma miríade de stakeholders públicos e privados com vetores de preferências distintos, a organização de um evento das proporções do Carnaval de Salvador não é trivial, requerendo arranjos de colaboração interorganizacional, discutidos adiante.

Organização e operação do carnaval de Salvador (1986-2011)

Além dos artistas e dos foliões, a operacionalização do Carnaval de Salvador requer a presença de uma série de serviços públicos de apoio, tais como segurança pública, organização dos desfiles, saúde, vigilância sanitária, limpeza pública, iluminação especial, transporte coletivo, organização do trânsito de veículos, organização da atuação de vendedores ambulantes, juizados de menores, regulamentação para uso e controle do solo, apenas para citar alguns. Embora a festa seja realizada no município de Salvador, em função do volume de recursos necessários e da visibilidade política-institucional conferida pelo evento, o governo do Estado da Bahia sempre teve um papel preponderante na organização do Carnaval de Salvador.

Apesar do Carnaval, enquanto manifestação pública e coletiva, ter sempre demandado algum tipo de ordenamento por parte das autoridades instituídas, é fato que a gama de competências sob a responsabilidade dessa autoridade foi crescendo proporcionalmente à complexidade da própria festa. Antes do intenso apelo comercial que passou a ter o Carnaval nos anos 1980, as atribuições do poder público até então eram muito reduzidas, como mostra a fala de um dos nossos entrevistados:

O que o carnaval da Bahia tinha nessa época (década de 1960 e 1970) era a constatação do poder público de que a obrigação dele era decorar a cidade. Decorar e zelar pela segurança. O resto o povo fazia. O povo espontaneamente criava um carnaval onde a estrela era o próprio folião. (Cronista do Carnaval de Salvador).

Entretanto, em 1986, primeiro ano da gestão de Mário Kertész, eleito em novembro de 1985, a prefeitura de Salvador rompe com o modelo vigente e passa a ser a responsável pela organização do evento. Coube a Fundação Gregório de Matos (FGM), órgão criado naquele ano para realizar a política cultural do município, o planejamento e realização do Carnaval de 1987, sob o comando do poeta tropicalista Wally Salomão, o qual procurou reforçar a identidade cultural no evento, deixando o aspecto turístico-mercantil em segundo plano (DIAS, 2002), em que pese o aumento da popularidade nacional de uma série de artistas até então circunscritos ao público local, tais como: Luiz Caldas, Chiclete com Banana, Cid Guerreiro e Sarajane. A nota dissonante dessa estruturação inicial da gestão pública do Carnaval era o seu caráter transitório, uma vez que a comissão formada para planejar e organizar o Carnaval era destituída após a festa, voltando a se reunir apenas para o Carnaval seguinte (VIEIRA, 2009). Com o esvaziamento da FGM promovido pelo prefeito Fernando José (1989-1992), o caráter participativo é deixado de lado, suscitando pressões à esquerda por uma maior pluralidade na gestão da festividade. Regulamenta-se, assim, em 1992 o Conselho Municipal do Carnaval (COMCAR), criado na Lei Orgânica Municipal de 1990 para ser órgão responsável pela organização das discussões sobre planejamento e operação do evento por meio do envolvimento de várias entidades interessadas, ficando a cargo da empresa municipal de turismo (à época, EMTURSA e, desde 2009, SALTUR) a responsabilidade pela gestão do evento.

Na gestão Lídice da Mata (1992-1996), conforme demonstram nossas entrevistas junto a atores relevantes, observam-se algumas transformações na gestão do evento, dentre elas a perenização da gestão do Carnaval, por meio da criação da Casa do Carnaval, um espaço fixo para a centralização de recursos materiais e humanos voltados à realização da festa. Neste imóvel, especialmente alugado para essa função, funcionavam, além do seu núcleo técnico, do Conselho Municipal do Carnaval e da Coordenação Executiva do Carnaval (ambas criadas pela Lei Orgânica), a Comissão Especial do Carnaval, também criada em 1993, formada por nove representantes do Poder Público municipal, que respondiam pelos órgãos municipais diretamente vinculados à gestão da festa. Nesse período, verificou-se a democratização das discussões em torno da festa, com a realização dos Seminários do Carnaval e a valorização do Conselho Municipal do Carnaval (COMCAR). Além disso, a falta do apoio explícito do Governo do Estado, comandado por Antônio Carlos Magalhães, suscitou a necessidade de captação privada de recursos para o Carnaval. Nesse período, paradoxalmente sob a batuta de uma frente de esquerda, inicia-se a regulamentação do uso publicitário dos espaços da cidade visando à comercialização de cotas de patrocínio, especialmente por parte de cervejarias. Além disso, com o crescimento da complexidade do evento e com o aumento na quantidade de blocos de trio e de outras entidades carnavalescas, são estabelecidas, no âmbito do COMCAR, regulamentações para os desfiles, visando conferir um melhor ordenamento à festa, fruto das pressões engendradas por empresários, promotores e Carnavalescos no sentido de uma maior profissionalização do Carnaval.

Os dois mandatos do governo de Antônio Imbassahy (1994-1996/1996-2000), que simbolizam o retorno da hegemonia de Antônio Carlos Magalhães em Salvador, após as eleições seguidas de três prefeitos de oposição, trarão também algumas mudanças no modelo de gestão do Carnaval de Salvador. A principal delas é a completa desconsideração do papel do Conselho Municipal do Carnaval, no momento em que o prefeito Imbassahy se autonomeia coordenador direto do Carnaval. Outra característica que chamou atenção foi a centralidade da empresa municipal de turismo na gestão do carnaval sob o comando de Eliana Dumet, um sinal inequívoco da preocupação municipal com a atração de turistas. Em paralelo, tendo diversos artistas baianos já consagrados no cenário nacional (Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Olodum, Asa de Águia, Margarete Menezes, Netinho, Chiclete com Banana, apenas para citar alguns) e com a exportação do modelo baiano para outras cidades brasileiras através dos carnavais fora de época, as micaretas, o Carnaval de Salvador passa a ocupar ainda mais espaço na mídia, tendo como consequência a atração de mais pessoas ao evento soteropolitano. A centralização da gestão, ao tempo em que permitia uma articulação com menores fricções entre organismos municipais e estaduais, gerou algumas insatisfações na classe artística, sobretudo no que tange ao corte no pagamento de artistas do Carnaval por meio de dinheiro público, o qual deveria ser coberto por meio de patrocínios captados pela produção do artista ou por meio de contribuições dos consumidores do bloco, afetando evidentemente artistas com menor potencial de captação, notadamente artistas emergentes e de estilo musical distinto dos padrões comerciais.

Por fim, com a ascensão de João Henrique Barradas Carneiro ao Palácio Tomé de Souza (2004-2008/2008-2012), há tentativas de reativação do COMCAR, sem, contudo, alterar o caráter comercial do produto Carnaval de Salvador, consolidado nos últimos anos. Tal qual anteriormente, o desalinhamento entre municipalidade e governo estadual contribuiu, novamente, para a emersão de formatos mais participativos, sendo o COMCAR o lócus onde os poderes estaduais e municipais recuam ou avançam em suas pautas próprias. Nessa linha, com a fragilização das finanças municipais, o papel do Estado como sustentáculo financeiro do Carnaval aparece como moeda de troca em favor de uma participação mais efetiva do Estado não só no financiamento, mas também no processo decisório da festa e na colheita dos dividendos políticos decorrentes do sucesso do evento. Como forma de acomodar os anseios por um papel mais destacado no processo de operação do Carnaval e de promover a necessária integração para a resolução dos problemas, algumas inovações de ordem institucional foram implantadas, dentre elas a oficialização do Grupo de Trabalho de Governança Institucional do Carnaval e a promulgação do Estatuto das Festas Populares, o qual define regras para instalação física, para concessão de licenças para as atividades relacionadas ao evento, bem como recomendações àqueles que produzem o conteúdo da festa. Sob o ponto de vista operacional, foi instituída a Central do Carnaval, uma espécie de centro de operações, na qual representantes do governo e da prefeitura se reúnem de forma perene durante o evento para discutir os problemas observados. Nesse caso, conforme pode ser apreendido de nossas incursões no campo, é pronunciada a centralidade da Polícia Militar na condução das pautas de discussões.

Uma vez realizada a descrição dos aspectos relacionados à organização do Carnaval de Salvador, dedicamos a próxima seção à discussão dos fatores que podem explicar a dinâmica de colaboração na organização do megaevento.

Discussão: fatores determinantes no processo colaborativo de megaeventos

A partir do confronto entre os dados colhidos em nossas análises empíricas e as previamente discutidas teorias sobre colaboração interorganizacional, apresentamos um conjunto de elementos que permitem expandir o conhecimento existente sobre os fatores que podem estimular ou impedir a dinâmica de cooperação entre diferentes atores públicos e privados na organização de megaeventos como o Carnaval de Salvador. De forma sintética, o alinhamento entre os poderes executivo municipal e estadual, a centralidade de determinados atores nas decisões, os laços de confiança desenvolvidos ao longo do tempo entre componentes do quadro técnico, assim como aspectos de natureza simbólica ajudam a compreender o processo colaborativo.

Alinhamento político

No contexto brasileiro, o alinhamento entre prefeitos e governadores ajuda a explicar porque alguns municípios recebem maiores transferências financeiras e apoio institucional em seus projetos (FERREIRA; BUGARIN, 2007), sendo muitas vezes uma estratégia racional para obtenção daquilo que não se conseguiria obter por meio de recursos próprios (ARRETCHE et al., 2006). Por outro lado, são frequentes os relatos de que quando grupos político-partidários antagônicos ocupam posições distintas nos planos municipal e estadual, a colaboração interorganizacional é comprometida, não raro, inviabilizando ações que beneficiariam a sociedade de forma mais ampla.

A exemplo de outros megaeventos, como Copa do Mundo de Futebol ou Olimpíadas, os dividendos políticos decorrentes do sucesso (ou do insucesso do oponente) na organização do Carnaval de Salvador criam incentivos para a ocupação de uma posição de destaque na organização do evento. Engendra-se, assim, uma fonte potencial de conflitos, sobretudo quando projetos políticos com agendas diferentes disputam o poder. Há o temor que o "oponente" capitalize as externalidades positivas do evento, mesmo sem ter realizado esforços para tal, conforme ilustrado por um entrevistado:

...é normal que exista a vaidade e que haja disputa para ser o "pai da criança (...) desde que aquele que quer ser o "pai da criança" haja como tal e não apenas dê a sugestão e, na hora de implementá-la, fique "de camarote", assistindo os outros (...) Não cabe ao governo do estado querer usurpar a primazia do município na organização da festa. (...) é necessário que seja reconhecida também a importância da participação do governo do estado. (Representante do governo do Estado na coordenação executiva do Carnaval 2011).

Conforme lembram Saz-Carranza e Ospina (2011), um ambiente no qual os atores possuem preferências homogêneas é muito mais propenso ao processo colaborativo, da mesma forma que contextos marcados por um menor número de partes interessadas. O Carnaval de Salvador apresenta comportamento oposto, ou seja, há uma miríade de partes interessadas com agendas completamente díspares: blocos de trio, blocos afro, camarotes, grupos de artistas independentes, foliões interessados em seguir o modelo atual, foliões mais afeitos a um carnaval sem os trios, frações da sociedade civil contrária ao evento em seu bairro, apenas para citar alguns pontos dissonantes. Na linha do dilema estabilidade versus flexibilidade em ambientes colaborativos, mencionado por Provan e Kennis (2008), técnicos com larga experiência no processo de planejamento e operação do Carnaval reconhecem os limites para o envolvimento de parcelas mais amplas da sociedade no processo de planejamento do evento: "Democracia demais atrapalha (...) não discutimos com associações de moradores nossas decisões, pois atrapalharia o processo." (Profissional entrevistado que terá a identificação preservada).

No entanto, em que pese as recomendações teóricas acerca da importância da transparência nas decisões (ANSELL; GASH, 2008), assim como as pressões por parte da sociedade para uma maior democratização nas decisões relacionadas à gestão do Carnaval e a efetiva participação de todas as partes interessadas, a análise histórica do processo de planejamento e operação do Carnaval de Salvador mostra que estruturas mais descentralizadas e plurais se deram somente em momentos de desalinhamento entre governos estaduais e municipais. Nas palavras de um dos entrevistados: "a falta do apoio explícito do Governo do Estado levou à necessidade de novos parceiros (...) o conselho também poderia servir a esse propósito" (Gestor da SALTUR). Ou seja, a busca por maior pluralidade por meio de novos parceiros é encarada como substituta ao alinhamento político com esferas superiores de governo.

Reclamações por falta de envolvimento de atores relevantes e por uma maior pluralidade nas discussões na formatação de megaeventos ocorrem, também, no Rio de Janeiro, palco da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, em que os governos estaduais e municipais demonstram-se bastante alinhados (VAINER, 2010). Situações semelhantes de ausência de reduzida pluralidade nas decisões são levantadas por Hall (2011), ao discutir os Jogos Olímpicos de Sydney realizados em 2000 e o Grande Prêmio da Austrália de Fórmula 1. Logo, ao que aparenta, os clamores por maior pluralidade vão além do Carnaval de Salvador.

Desta forma, tem-se a seguinte proposição:

Proposição 1: A busca por estruturas colaborativas para a provisão de megaeventos tende a ser maior quando o responsável pela organização do evento, por exemplo, gestor municipal, não está alinhado politicamente com níveis superiores de governo, estadual ou federal.

Centralidade nas decisões e credibilidade dos arranjos colaborativos

Ainda que o processo de colaboração interorganizacional possa ocorrer por meio de redes de cooperação em que os atores participem intensamente, assimetrias de informação e de poder entre os membros podem comprometer os resultados gerados pelo processo colaborativo (ANSELL; GASH, 2008; PROVAN; KENNIS, 2008), em que pese o reconhecimento de que a diversidade dos componentes de um arranjo colaborativo seja parte fundamental de seu sucesso (OSPINA; FOLDY, 2010). Sucede que, em meio ao universo de atores participantes do esforço de colaboração visando ao atendimento de uma finalidade específica, é inevitável que alguns stakeholders se sobreponham a outros, seja de forma consensual ou de forma coercitiva, seja em função do reconhecimento de sua importância pelos demais membros para a obtenção dos resultados da rede ou por sua capacidade de se fazer ouvir (HUMAN; PROVAN, 2000).

Nossas análises empíricas sugerem que, dentre os vários atores presentes no processo de colaboração interorganizacional do Carnaval de Salvador, duas entidades se destacam: a Polícia Militar (PM) e os detentores de conteúdo de entretenimento que desfrutam de grande popularidade. No primeiro caso, pelas características do evento, marcado pela adensada concentração humana nas ruas da cidade, dançando e, literalmente, "pulando" ao som dos trios, e em meio ao consumo irrestrito de bebidas alcoólicas, é de se esperar algum nível de distúrbio, uma vez que a redução do espaço pode colaborar para a eclosão da violência (MELO; MELO, 2007). Em todas as entrevistas realizadas, a PM figurou como um dos elementos chave para a organização do evento, na medida em que suas recomendações técnicas em prol da segurança do evento tendem a ser seguidas na maior parte das vezes, muito em função de sua legitimidade perante aos demais stakeholders:

A Polícia Militar baiana é referência em controle de multidões no país (...) Decisões de segurança são incontestáveis (...) a PM baiana já tem uma experiência acumulada que a faz ser respeitada. (Coordenador dos Carnavais de 2009 e 2010);

A PM é um dos órgãos estratégicos sem os quais não há carnaval (...) começam a planejar o próximo carnaval na quarta-feira de cinzas. (Diretor de Festas Populares da empresa municipal de turismo - SALTUR);

Vetamos a proposta de dispersão dos trios no Largo dos Aflitos, pois não havia condições técnicas. (Representante da Polícia Militar no Planejamento do Carnaval).

Os produtores de conteúdo, notadamente artistas que possuem o controle sobre blocos de trios e camarotes, apresentam, igualmente, alto grau de centralidade nas decisões. Com efeito, em meio a um modelo de evento que prioriza a atração de turistas e a divulgação da cidade e das festividades por meio de transmissões ao vivo para telespectadores, situados em outros estados e em outros países, é evidente que as preocupações para com o principal produto a ser demonstrado pelo modelo do Carnaval de Salvador, o artista, ganhem relevância. Afinal, segundo um de nossos entrevistados ligados aos produtores de conteúdo, "artistas tendem a ter participação relevante. Por exemplo, a banda "Asa de Águia" atrai turistas e consumidores do produto Carnaval". Por sua capacidade de articulação, grandes artistas podem influenciar, também, nas decisões colegiadas tomadas no âmbito do Conselho Municipal do Carnaval, por meio da conquista de apoio dos diversos membros que compõem a organismo colaborativo. A estrutura anacrônica de formação do Conselho Municipal do Carnaval propicia decisões favoráveis aos atores com maior capacidade de articulação estratégica e/ou maior poder econômico, conforme os relatos abaixo:

(...) desde que se criou essa coisa de Conselho do Carnaval que o pessoal de trio nunca se afastou, sempre tiveram o controle (...) eles sempre tiveram esse controle, até porque nós do lado de cá nunca nos interessamos por isso (...) porque tem cadeiras no conselho que não mais se justifica, né? Representante dos barraqueiros? Representante dos cronistas carnavalescos? (...) Representante dos feirantes? (...) Tem gente que vai lá só para fazer o coeficiente para votação de quem tem interesse. (Dirigente de Bloco-Afro).

(...) os grandes poderosos com mais grana, mais poder, mais apoio público, mais interferência no poder. Resultado: os blocos de trio passam a mandar no carnaval de Salvador (...) Então, o que é que o Conselho passa a fazer? Ele passa a ter mão de ferro para coordenar esse modelo. (Cronista do Carnaval de Salvador)

Adicionalmente, alguns artistas de maior destaque acabam não participando diretamente dos processos de discussão nos âmbitos dos conselhos, uma vez que possuem vasos comunicantes com políticos de alto escalão e/ou com órgãos técnicos relevantes para a viabilização de suas apresentações e de seus interesses comerciais, como, por exemplo, a Polícia Militar. No primeiro caso, artistas podem transferir seu prestígio a elementos da classe política em troca de concessões, a exemplo da anistia de tributos municipais conferida pela gestão Imbassahy a diversas entidades carnavalescas, algumas delas sabidamente lucrativas (VIEIRA, 2009). De igual sorte, conforme mencionado por um dos entrevistados que terá sua identificação preservada, artistas famosos que atrasam os desfiles por conta de, por exemplo, parar o trio elétrico por longos períodos em frente a um determinado camarote, dificilmente, para não dizer, quase nunca, sofrem sanções pelo não cumprimento dos regulamentos. Ao longo das entrevistas, foram captados diversos exemplos de concessões, não previstas no planejamento prévio, favorecendo empresários do setor de entretenimento, as quais não serão relatadas para evitar um tom de denúncia e de jornalismo investigativo no artigo.

As coalizões entre os principais artistas baianos e a Polícia Militar são igualmente evidentes, reforçando os seus papéis de relevo no evento. O cultivo de laços mútuos entre principais artistas e PM é emblematizado pela troca de amabilidades e homenagens de parte a parte. De igual sorte, tais relações também ocorrem entre políticos e artistas, a exemplo das loas tecidas a políticos do alto de seus trios.

(...) por uma questão de escala, tanto blocos como camarotes de maior porte têm uma relação mais direta nesse processo de organização, porque envolve um maior deslocamento de pessoas e materiais e, portanto, precisam de estratégias próprias, muitas vezes acertadas diretamente com a PM ou com a organização do carnaval. (Representante da Polícia Militar no Planejamento do Carnaval).

A existência de acordos fechados por alguns atores fora do espaço de colaboração institucionalizado gera desconfianças nos demais atores envolvidos, minando a efetividade do processo colaborativo como um todo (ANSELL; GASH, 2008). Convém ressaltar que o papel de destaque dos principais detentores de conteúdo e dos organismos de segurança pública é observado em outros megaeventos esportivos e culturais, a exemplo das exigências para a organização da Copa do Mundo de Futebol. Assim, tem-se a seguinte proposição.

Proposição 2: Detentores de conteúdo com forte apelo midiático e empresários, por terem acesso a canais especiais para o atendimento de suas demandas, podem comprometer a credibilidade e a efetividade dos arranjos colaborativos formados para a provisão de megaeventos

O papel da confiança entre os componentes do corpo técnico

A confiança mútua entre os atores envolvidos no processo colaborativo é a chave para arranjos bem-sucedidos (ANSELL; GASH, 2008). A construção da confiança é facilitada quando os atores possuem visões de mundo parecidas (PROVAN; KENNIS, 2008), requerendo, no entanto, a edificação de um ambiente em que os atores confiam uns nos outros. Isso requer interações repetidas, por meio das quais as partes podem inferir o comportamento esperado do indivíduo ou da entidade com quem se está transacionando (DYER, 1997).

O Carnaval de Salvador abrange processos de negociações, acordos e tensões que ocorrem de forma sistemática, ou seja, anualmente. Nesse caso, os pontos divergentes necessitam ser resolvidos, ou acomodados, antes do início da festividade, e, em cada novo evento a ser planejado e discutido, os acordos previamente estabelecidos podem ser revistos e renegociados (CABRAL, KRANE; DANTAS, 2011).

A constante rotatividade de dirigentes de agências públicas, normalmente apontados ao sabor de afinidades políticas com o grupo à frente do poder executivo em tela, poderia diminuir a frequência das interações entre os indivíduos ao ponto de comprometer a construção do clima de confiança necessário ao sucesso do evento. Entretanto, nossas análises empíricas mostram a existência de um conjunto de funcionários estáveis que estão lotados nas diversas agências governamentais envolvidas e que possuem um conhecimento bastante aprofundado acerca do funcionamento do evento. Desta forma, ao atenuar os efeitos adversos da descentralização das estruturas de governança colaborativa (PROVAN; KENNIS, 2008), a presença de técnicos perenes além de mitigar os efeitos da rotatividade nos escalões superiores contribui para a blindagem das decisões de ordem técnica, minimizado, porém não extinguindo, desmandos políticos e pleitos autointeressados de outros atores. Como forma de resolver diversos problemas que se apresentam com frequência, os próprios agentes técnicos comunicam-se diretamente, contornando as restrições burocráticas formais. A larga experiência desses profissionais confere a eles legitimidade externa e interna, fazendo com que estes, em muitos casos, sejam mais ouvidos (e respeitados) que seus superiores hierárquicos:

Todo mundo que senta nessa mesa já se conhece há muito tempo, isso facilita a colaboração (...) há um alinhamento técnico e isso acaba por prevalecer. (Diretora de Trânsito da empresa municipal de trânsito e transporte, relatando o processo de planejamento do Carnaval de Salvador).

...é o técnico que pensa o carnaval com antecedência (...) tem aquele técnico que sabe qual a tampa que tem que ser aberta para evitar enchente, o que tem que ser retirado para o trio não bater quando faz a curva (...) o conhecimento acumulado dos técnicos é fundamental. (Diretor da Associação dos Produtores de Axé Music).

Os conflitos de ordem técnica parecem estar circunscritos às atividades de operação do Carnaval, as quais são normalmente resolvidas, acomodadas ou solenemente ignoradas pelos próprios agentes de campo, a exemplo das contendas entre vigilância sanitária e órgãos responsáveis pela licença dos ambulantes, fiscais dos pontos de táxi e forças de segurança pública, dentre outras tensões que comprovam que a organização de um evento dessas proporções traz em seu bojo contornos de complexidade. Assim:

Proposição 3: A presença de um corpo técnico estável e detentor da memória da organização do megaevento mitiga o efeito adverso da alternância de poder e de eventuais instabilidades políticas.

A complementariedade entre instrumentalidade e fatores simbólicos

Práticas colaborativas na provisão de serviços públicos têm sido disseminadas como alternativas a arranjos competitivos lastreados em práticas de mercado (HUDSON et al., 1999). Entretanto, a diversidade de atores envolvidos em arranjos colaborativos tende a estimular a criação de tensões, sobretudo quando consensos precisam ser atingidos (SAZ-CARRANZA; OSPINA, 2011). Mais especificamente, as disputas entre membros de uma rede são esperadas quando os componentes do arranjo possuem: diferentes objetivos, diferentes culturas organizacionais, modos de operação distintos, assimetrias de poder e vários fóruns de decisão (O'LEARY; VIJ, 2012).

Verifica-se que todas as condições acima estão presentes na organização do Carnaval de Salvador. Afinal, há múltiplos atores com agendas conflitantes (por exemplo, blocos de trio consolidados e blocos-afro e afoxés sem apoio midiático), disputas políticas entre agências municipais e estaduais e, até mesmo, entidades sob o mesmo comando que não apresentam histórico de colaboração no restante do ano, a exemplo das polícias militar e civil, apenas para citar alguns. Entretanto, surpreendentemente, em que pese alguns inconvenientes inerentes ao evento e reclamações relacionadas à governança deficiente do Carnaval (MIGUEZ; LOIOLA, 2011), observa-se que, ao final, o evento transcorre, já que turistas são atraídos, pessoas se divertem, níveis de eficiência em alguns serviços públicos, não verificados em outras épocas do ano, são observados e que algum tipo de colaboração entre agências governamentais acontece, fruto das pequenas vitórias intermediárias obtidas em processos interativos de cooperação (ANSELL; GASH, 2008).

Duas dimensões complementares ajudam a explicar esse fenômeno da colaboração. A primeira delas é de natureza instrumental, uma vez que o insucesso do evento pode trazer consequências indesejáveis aos políticos e gestores de alto escalão envolvidos, tal o nível de exposição midiática do Carnaval de Salvador. Nas palavras de um entrevistado: "um fracasso estrondoso seria uma morte política" (Diretor de Festas Populares da Empresa Municipal de Turismo - SALTUR). Um evento sem a ocorrência de mortes, com múltiplos visitantes, incluindo pessoas com apelo midiático, pode contribuir decisivamente para o aumento da popularidade dos governantes. Incentivos pecuniários a funcionários públicos envolvidos na operacionalização do Carnaval de Salvador ajudam a explicar a relativa performance do evento. No caso da Polícia Militar, por exemplo, as gratificações relacionadas ao trabalho no Carnaval giram em torno de 20% do salário mensal, conforme pesquisa de campo. Além disso, sanções são facilmente empregadas: "... se não aparecer para trabalhar não ganha" (Diretora de Trânsito da Empresa Municipal de Trânsito e Transporte).

Por outro lado, grupos rivais ou atores com menor grau de poder, porém relevantes para a realização do evento, poderiam não denotar os níveis de esforços necessários ou poderiam participar do processo colaborativo de forma apenas protocolar. No entanto, a visibilidade conferida pelo evento parece estimular a participação: "o evento é tão amplo e traz tanta visibilidade que todos querem estar presentes. E na medida em que todos querem participar, fica mais fácil se negociar, dialogar..." (Presidente da SALTUR). Além disso, pôde ser capturado, em nossas análises, a presença de um sentimento de orgulho em relação ao evento, na medida em que o Carnaval é uma das mais fortes formas de representação e de afirmação da identidade soteropolitana, muitas vezes unindo atores com posições antagônicas:

...mesmo com todas as brigas e interesses divergentes, os agentes envolvidos "engolem sapo" e fazem o que for preciso para realizar a festa, inclusive trabalhar junto. (Diretor de Festas Populares da empresa municipal de turismo - SALTUR).

O espírito do carnaval faz com que os caras se conversem (...) ninguém quer que dê errado. (Diretor da Associação dos Produtores de Axé Music).

Todo mundo tem seus objetivos, seus caminhos, mas todos querem fazer um Carnaval da Bahia bonito. (...) Mas. o que soma é o coletivo. é o carnaval como um todo (...) mas se não tiver o mínimo de compreensão, se cada um só olhar o seu lado não funciona. (...) Porque se cada um não der a sua parcela para o carnaval seguir, prejudica todo mundo. (Dirigente de Bloco-Afro).

Presume-se que o que leva uma entidade a participar do carnaval é o amor ao carnaval, porque ela gosta de brincar. (...) Brincar, ficar feliz, cantar e dançar. Se você pode ganhar dinheiro com isso, melhor. Contanto que esse seu 'ganhar dinheiro' não faça com que as consequências sejam nefastas para a maioria dos carnavalescos. (...) Quem disse que carnaval é só fruição de música e loucura? Carnaval é um estado de espírito carnavalesco. (Cronista do Carnaval de Salvador).

Diante disso emerge nossa quarta e última proposição:

Proposição 4: A combinação de mecanismos instrumentais e simbólicos contribui para o processo de colaboração interorganizacional no planejamento e na operação de megaeventos

Conclusões

Atraindo mais de dois milhões de pessoas ao longo de seis dias de festa, o Carnaval de Salvador está entre os principais eventos artísticos-culturais do mundo. Conforme observamos ao longo da pesquisa, a organização do evento envolve um sem-número de entidades privadas e de agências governamentais que atuam de forma interdependente, visando à preparação da festividade. Ao longo dos últimos anos, foram observadas diversas tentativas no sentido de promover estruturas de governança que incluíssem os anseios das diversas partes interessadas (cidadãos, artistas, turistas, agências governamentais e empresários), culminando na emersão de organismos institucionalizados voltados à estruturação e encaminhamento das discussões relacionadas ao evento por meio da atuação colaborativa dos vários stakeholders envolvidos.

Utilizando as lentes das teorias de colaboração interorganizacional e por meio de uma pesquisa empírica qualitativa sobre o processo de planejamento do Carnaval de Salvador, numa perspectiva histórica, foi possível encontrar alguns fatores que ajudam a explicar a dinâmica de cooperação relacionada ao megaevento. Nossas quatro proposições que emergiram a partir dos dados da pesquisa fornecem algumas pistas. Primeiro, uma maior pluralidade na organização do Carnaval tende a ocorrer em momentos de desalinhamento entre as esferas estadual e municipal. Segundo, os canais privilegiados de negociação utilizados por detentores de conteúdo de entretenimento e por empresários do ramo podem minar a eficácia do processo de colaboração. Terceiro, as interações repetidas entre as equipes técnicas espalhadas nas diversas agências envolvidas auxilia a criar mecanismos de confiança que facilitam a colaboração interorganizacional, ao tempo em que atenuam os câmbios políticos. Quarto, a combinação de elementos instrumentais e simbólicos parece estimular práticas colaborativas em megaeventos, inclusive entre entes com agendas distintas. Em suma, nossas análises sugerem que o carnaval de Salvador aparenta ser algo bastante crítico, a ponto de não se tolerar a possibilidade de falhas maiores. Talvez, isso explique as razões pelas quais esforços consideráveis são empreendidos para que se construam alguns consensos mesmo entre partes muito antípodas.

A falta de dados precisos sobre a evolução do número de foliões ao longo das duas últimas décadas é um aspecto limitante do trabalho. Sob o ponto de vista metodológico, pode-se clamar a ausência de entrevistas junto a alguns atores, tais como associações de moradores do entorno dos circuitos do Carnaval e representantes dos vendedores ambulantes. No entanto, ainda que reconheçamos que um maior número de entrevistas é sempre desejável, deve-se levar em consideração que o presente trabalho apresenta um extensivo trabalho de campo, incluindo 1030 minutos de entrevistas junto a uma miríade de atores relevantes com perspectivas bastante diversas, sendo que as respostas obtidas ajudam a desenhar um quadro consistente da evolução do evento e sobre os efeitos da colaboração interorganizacional no processo de gerenciamento do Carnaval de Salvador.

O artigo possibilita avançar na reflexão relacionada aos mecanismos que permitem a superação ou a acomodação de divergências de interesses e superposição de agendas próprias por meio da atividade colaborativa. Futuros trabalhos sobre o tema podem aprofundar algumas das questões suscitadas ao longo deste artigo como, por exemplo, a importância de burocracias profissionalizadas no processo colaborativo ou, ainda, o inter-relacionamento entre incentivos explícitos e implícitos no planejamento e na operacionalização de outros megaeventos culturais, esportivos, cívicos ou religiosos.

Artigo recebido em 20/06/2012.

Última versão recebida em 07/11/2012.

Artigo aprovado em 04/01/2013.

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    Os autores agradecem a um parecerista anônimo e aos editores, José Antônio Gomes de Pinho e Bernardo Buarque de Holanda, por suas valiosas contribuições; ao CNPq pelo suporte financeiro à pesquisa; e aos diversos entrevistados que contribuíram para a realização deste trabalho. Erros e omissões são de nossa inteira responsabilidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Mar 2013

    Histórico

    • Recebido
      20 Jun 2012
    • Aceito
      04 Jan 2013
    • Revisado
      07 Nov 2012
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