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Higienismo e forma urbana: uma biopolítica do território em evolução

Hygienism and urban form: a biopolicy of the evolving territory

Resumo

Este artigo analisa a evolução do pensamento higienista como biopolítica na cidade brasileira, especialmente no que se refere à sua influência sobre a forma urbana. A perspectiva histórica aqui adotada parte do pressuposto de que o higienismo jamais foi superado enquanto modelo urbanístico, mas que evoluirá, adequando-se a novos princípios e técnicas de ação decorrentes de razões de ordem social, econômica e política. Em tal perspectiva, considera-se a hipótese de que, desde o final do séc. XIX, o higienismo assumiu três encarnações em função de sua instrumentalização em políticas urbanas, a saber: higienismo sanitarista (1890-1930), higienismo universalista (1930-1990) e higienismo ambiental (1990-2020). A grande crise sanitária de 2020 parece indicar o fim de um ciclo e início de outro, cujos contornos ainda são nebulosos, mas que aqui o denominamos de “higienismo virtual”, com base em uma prospecção de algumas de suas causas e efeitos.

Palavras-chave:
Higienismo; Política urbana; Forma urbana; Biopolítica

Abstract

This work analyzes the evolution of hygienist thought as biopolitics in the Brazilian city, especially in terms of its influence on urban form. The historical perspective adopted here assumes that hygienism has never been overcome as an urban model but that it will evolve, adapting to new principles and techniques of action arising from social, economic, and political reasons. In this perspective, it is considered the hypothesis that, since the end of the 19th century, hygienism took on three incarnations due to its instrumentalization in urban policies, namely: sanitary hygienism (1890-1930), universalist hygienism (1930-1990) and environmental hygienism (1990-2020). The major health crisis of 2020 seems to indicate the end of a cycle and the beginning of another, whose contours are still hazy, but which we call here “virtual hygienism”, based on a prospection of some of its causes and effects.

Keywords:
Hygienism; Urban policy; Urban form; Biopolitics

Introdução

A crise sanitária das cidades, agravada pelo contínuo aumento populacional, teve um papel fundamental na própria criação do urbanismo como campo de conhecimento e ação. Desde meados do séc. XIX, medidas urbanísticas foram postas em prática para disciplinar a saúde coletiva, transformando a questão higiênica em uma questão socioespacial. Afinal, era no espaço urbano onde residiam as condições favoráveis para a ascensão de um ambiente doentio e contagioso, sendo preciso intervir e regulamentar para curar tais desvios.

O higienismo1 1 Cabe aqui uma nota de distinção entre o higienismo urbanístico e o movimento higienista (ou sanitário). Este último só pode ser definido em função da tensão constitutiva do seu objetivo central: estabelecer normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual. É somente nesse aspecto que se encontra certa homogeneidade nesse movimento. Fora isso, o que se observa é uma mentalidade higienista difusa e heterogênea, tanto no âmbito científico quanto político. como corrente de pensamento urbanístico nasce a partir de um conjunto de teorias e práticas políticas e sociais cujo princípio é projetar ações de saúde pública no espaço urbano, aplicando regras de higiene, de prevenção e de combate a epidemias, como a tuberculose, a febre amarela ou a varíola. Sua abordagem técnica orienta a decisão política na gestão das massas, com contribuições de ciências, como a epidemiologia e a demografia (Merlin & Choay, 2015Merlin, P., & Choay, F. (2015). Dictionnaire de l’urbanisme e de l’aménagement (4a ed.). Paris: PUF. ). Fundamentados nas teorias higienistas, os médicos passaram a realizar levantamentos das características físicas, sociais, econômicas e culturais dos lugares - as chamadas topografias médicas (Lacaz et al., 1972Lacaz, C. S., Baruzzi, R. G., & Siqueira, W. Jr (1972). Introdução à geografia médica no Brasil. São Paulo: Ed. Edgar Blücher.; Urteaga, 1980Urteaga, L. (1980). Miseria, miasmas y microbios: las topografias medicas y el estudio del médio ambiente en el siglo XIX. Revista Geo Critica, 29. Recuperado em 12 de maio de 2021, de http://www.ub.edu/geocrit/geo29.htm
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) -, que contribuíram para diagnosticar os males e localizar as doenças no espaço.

Quase ao mesmo tempo, o higienismo se tornará uma matéria relevante para o planejamento urbano, influenciando desde projetos ideais de cidade até os planos técnicos realistas2 2 Para citar dois exemplos: Idelfonso Cerdà, com sua Teoría General de la Urbanización (1867), propõe a quadra aberta com jardim interior, deixando entrar o ar, o sol, a luz. Ebenezer Howard, em sua obra Garden-Cities of To-Morrow (1897), diante das consequências sanitárias desastrosas da industrialização, propõe um modelo inovador de cidade-jardim. (Choay, 1965Choay, F. (1965). L’urbanisme, utopies et réalités: une anthologie. Paris: Seuil., 1980Choay, F. (1980). La régle et le modèle: sur la théorie de l’architecture e d’urbanisme. Paris: Seuil.). Com um certo exagero, Lévy (2012)Lévy, A. (2012). Ville, urbanisme et santé: les trois révolutions. Paris: Pascal & Mutualité Française. admite que a evolução das formas urbanas foi mais influenciada pelo imperativo da saúde do que pelo novo modo de produção capitalista e pela industrialização do edifício. Cabe lembrar a proposição desse autor ao estudar a relação entre urbanismo e saúde, distinguindo três revoluções: a pasteuriana, a freudiana e a ambiental. De todo modo, é necessário reconhecer que a tentativa de controle das adversidades higiênicas advindas com a Revolução Industrial foi responsável pelo surgimento das primeiras legislações no sentido de amenizar problemas estruturais da urbanização. Do higienismo saem os discursos e instrumentos que dão visibilidade aos regimes de exceção para o controle do espaço urbano, incorporando novos dispositivos formais.

A aplicação de métodos higiênicos, que responde à preocupação crescentemente científica de levar em conta a complexidade dos sistemas urbanos, dará corpo a uma ideologia higienista que evoluirá em sintonia com o desenvolvimento das cidades, assumindo características específicas e inerentes às exigências do momento histórico. Dito de outro modo, o higienismo irá permear todas as correntes e modelos vindouros do urbanismo e do planejamento urbano, transformando-se ele mesmo em uma expressão de biopolítica.

Na perspectiva conceitual de M. Foucault (2010), aFoucault, M. (2010). História da sexualidade: a vontade de saber. (Vol. 1). São Paulo: Edições Graal. biopolítica atua na esfera do coletivo e é promovida pelo Estado. Sua preocupação é conhecer e administrar as normas da população como um todo e, portanto, entender e regular, por exemplo, os problemas de saúde pública nas cidades. Segundo Taylor (2018)Taylor, D. (2018). Michel Foucault: conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes., Foucault concebe a biopolítica como uma das vertentes do biopoder, reunindo como seu objeto de estudo a população e os fenômenos naturais a ela subjacentes, regulando e intervindo sobre taxas de natalidade, fluxos de migração, epidemias, longevidade etc. Não é um poder individualizante, como as disciplinas, mas massifica os indivíduos a partir de sua identificação como uma realidade biológica fundamental.

Como apoio às dinâmicas conjunturais, a biopolítica do higienismo repousa em mecanismos disciplinares que afetam o comportamento, estimulando o seu enquadramento por meio da imposição de padrões de normalidade, isto é, de normas às quais os cidadãos devem se submeter. Adota-se, portanto, a leitura de Foucault (2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes., 2014Foucault, M. (2014). Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.) sobre os dispositivos disciplinares, que produzem a repartição e a distribuição dos corpos no espaço, dentro do qual são formadas construções discursivas e práticas de subjugação. Ainda que não seja o principal motor de transformação da forma urbana, seus resultados repercutem direta ou indiretamente sobre as determinações impostas ao ambiente construído.

Este artigo3 3 O artigo é fruto de um Pós-Doutorado desenvolvido, em 2019, por José Almir Farias na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (FAUMackenzie), sob a supervisão da Profa. Dra. Angélica A.T. Benatti Alvim. analisa a evolução do pensamento higienista como biopolítica na cidade brasileira, especialmente no que se refere à sua influência sobre as determinações da forma urbana. A perspectiva histórica aqui adotada parte do pressuposto de que o higienismo jamais foi superado enquanto modelo urbanístico, mas que evoluirá, adequando-se a novos princípios e técnicas de ação decorrentes de razões de ordem social, econômica e política. Concorda-se, assim, com a tese proposta por Góis Jr. (2003) de que o movimento higienista brasileiro do início do século XX extrapola a periodização tradicional que lhe imputa o término nos anos 1930 ou 1940 e prossegue com suas tradições e ideais heterogêneos até o fim do século XX e, muito possivelmente, até os dias de hoje.

Em tal perspectiva, considera-se a hipótese de que, desde o final do séc. XIX, o higienismo assumiu três encarnações em função de sua instrumentalização em políticas urbanas, a saber: higienismo sanitarista (1890-1930), higienismo universalista (1930-1990) e higienismo ambiental (1990-2020). A grande crise sanitária de 2020 parece indicar o fim de um ciclo e início de outro, cujos contornos ainda são nebulosos, mas que aqui o denominamos de “higienismo virtual”, com base em uma prospecção de algumas de suas causas e efeitos (ver Figura 1).

Figura 1
- Periodizações para uma história do urbanismo e do higienismo no Brasil. Fonte: Elaborado pelos autores com base em Ribeiro & Cardoso (1996)Ribeiro, L. C. Q., & Cardoso, A. L. (1996). Da cidade à nação: gênese e evolução do urbanismo no Brasil. In: Ribeiro, L. C. Q., & Pechman, R., eds Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno (pp. 53-78.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., Leme (1999)Leme, M. C. S. (1999). A formação do pensamento urbanístico no Brasil, 1895-1965. In M. C. S. Leme (Ed.), Urbanismo no Brasil - 1895-1965 (p. 20-38). São Paulo: Studio Nobel; Fauusp; Fupam. e Villaça (1999)Villaça, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In C. Deak, & S. R. Schiffer (Eds.), O processo de urbanização no Brasil (p. 171-243). São Paulo: Fupam; Edusp..

Um bom número de variáveis e eventos contribui mais ou menos para essa historicidade. Parte-se, com efeito, de uma ordenação em que convergem algumas das propostas de periodização já consagradas para estruturar a história do urbanismo e do planejamento urbano no Brasil. Cabe destacar, entretanto, que as bordas cronológicas adotadas são, antes de tudo, uma construção metodológica para a análise, já que não existem datas precisas para a superação de um modelo higienista por outro. As fronteiras são fluidas e elementos típicos de um período estão presentes em outros, ainda que de maneira distinta ou como valor incremental.

1º período: higienismo sanitarista (1890-1930)

O século XIX foi o século da Revolução Industrial e da aceleração da urbanização. A construção do higienismo ganhou repercussão em função, sobretudo, das péssimas condições de saúde nas cidades poluídas da “noite apavorante” (Hall, 2016Hall, P. (2016). Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX (4a ed.). São Paulo: Perspectiva. ). O expressivo crescimento urbano decorrente da revolução dos modos de produção, especialmente nas cidades europeias, defronta-se com inúmeros problemas relacionados à congestão, à degradação das condições de habitação da população operária, ao aumento do setor de serviços, às transformações ambientais e estéticas, entre outros. Para Campos (2002)Campos, C. M. (2002). Os rumos da cidade: urbanização e modernização em São Paulo. São Paulo: Senac., potencializa-se naquela ocasião a ação transformadora do capital, em que a modernização e a higienização das cidades constituem a principal referência da transformação urbanística.

Os médicos e os higienistas, baseados em teorias (miasmática ou contagiosa) que relacionavam a doença com o meio ambiente, propõem a medicalização do espaço e da sociedade, sugerindo normas de comportamento e de organização das cidades, como a localização mais adequada para os equipamentos urbanos, regras para a construção das edificações, intervenções pontuais nos ambientes considerados doentios e mesmo a migração temporária da população residente em áreas consideradas mais propensas às epidemias. As reformas sanitárias e legislações com vistas a regulamentar as construções foram acompanhadas, em meados do século XIX, pela criação de órgãos e entidades voltados para dotar as cidades de áreas saudáveis4 4 A Inglaterra foi pioneira ao instituir a Royal Commission on the State of Large Towns, em 1844, e o Public Health Act, em 1848. . No início do século XX, Ebenezer Howard (2010)Howard, E. (2010). Garden cities of tomorrow (1902). Whitefish: Kessinger Publishing., ao publicar seu clássico e inspirador livro, defende um modelo de cidade que se contrapõe à cidade industrial, no qual a natureza assume papel central. Suas ideias foram precursoras de inúmeras novas cidades na Europa (new towns) e dos bairros-jardins, alguns implementados nas cidades brasileiras (Abascal et al., 2006).

Diferentemente da Europa, o surgimento do higienismo no Brasil não está ligado ao caos instaurado pelo processo de industrialização, mas na necessidade de reformular e “modernizar” suas estruturas coloniais urbanas deficientes, vistas como foco de propagação de epidemias devido às suas condições deploráveis de habitabilidade. Os recursos gerados pela economia agroexportadora proporcionaram uma fase de grande expansão econômica e, também, de atração de capitais internacionais. Foi nesse período de transformação de um país colonial a um país republicano, com a modificação das relações de produção escravista para essencialmente capitalista, que se deu o impacto das políticas sanitárias no espaço urbano (Abreu, 1997Abreu, M. A. (1997). Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio; Zahar.).

O modelo de higienismo sanitarista que se sistematiza nesse período tem por princípio uma concepção médica de higiene pública para enfrentar a propagação de epidemias e doenças contagiosas, em uma intervenção preventiva voltada principalmente para lares de “desordem e miséria”. A cidade é também o “lócus da desordem”, mas o planejamento urbano incipiente não considera a cidade em sua totalidade, dedicando-se a intervenções localizadas visando, principalmente, às áreas de interesse das elites políticas e econômicas (Costa, 2013Costa, M. C. L. (2013). O discurso higienista definindo a cidade. Mercator, 12(29), 51-67. Recuperado em 20 de janeiro de 2021, de http://www.mercator.ufc.br/mercator/article/view/1226
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). O objetivo básico é criar uma imagem moderna de cidade em conformidade com os preceitos estéticos europeus. A modernização se torna, portanto, o princípio ordenador das intervenções, cujo ideário se constrói em uma associação entre as elites dominantes e os profissionais sanitaristas, ou seja, médicos e engenheiros (Damasceno, 1996Damasceno, A. N. (1996). Rio de Janeiro: a cidade que os médicos pensaram e os engenheiros produziram. In Anais do IV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo (Vol. 1). Rio de Janeiro: Prourb; FAU; UFRJ.). Benchimol (1992)Benchimol, J. L. (1992). Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do séc. XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes. pontua que a política de planejamento urbano do prefeito Pereira Passos para a capital da República foi emblemática, pois agregou dois novos atores: no primeiro momento, a figura profissional do médico sanitarista; e na segunda fase, os engenheiros e técnicos para buscar soluções de saneamento e circulação na cidade, além do padrão construtivo.

Para esses profissionais sanitaristas, a falta de hábitos higiênicos nos ambientes de trabalho, nos cortiços e nas favelas emergentes era um dos fatores determinantes relacionados à proliferação de doenças. Tais espaços ofereciam as condições ideais para a ocorrência de epidemias sazonais que atingiam toda cidade, inclusive os bairros burgueses. Sua influência na política urbana se consolidou a partir da criação de diferentes instituições voltadas para a saúde pública, que exigiam a intervenção do Estado para a construção da nação. Nesse período foram criadas: a Liga Pró-Saneamento (1918), a Sociedade Eugênica de São Paulo (1918) e a Liga Brasileira de Higiene Mental (1923). Para Souza (2012, pSouza, V. S. (2012). As Idéias eugênicas no Brasil: ciência, raça e projeto nacional no entre-guerras. Revista Eletrônica História em Reflexão, 6(11), 1-23. Recuperado em 8 de junho de 2021, de https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/historiaemreflexao/article/view/1877
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. 7), essas são “entidades de sentimento nacionalista e fomentadoras da Eugenia” e preocupadas com uma ampla reforma social, principalmente nos valores estéticos, nos hábitos higiênicos, na conduta pública, na educação intelectual e nos valores morais ligados à sexualidade. Por isso, esse período é conhecido também como “sanitarismo campanhista”, em função das diversas campanhas para erradicação de doenças, higienização e moralização dos mais pobres.

Com a ascensão da teoria contagiosa em saúde pública, a palavra de ordem dos higienistas era a circulação das águas e do ar, rejeitando tudo que contribuísse para sua estagnação. Até certo ponto, os médicos contribuíram orientando medidas de controle, como os cordões sanitários, as quarentenas, as fumigações e a desinfecção dos lugares. Todavia, a insuficiência dessas medidas levou à concepção de reformas urbanas a cargo dos engenheiros5 5 Entre os principais engenheiros sanitaristas do período estão: Saturnino de Brito, com projetos em várias cidades do país, Teodoro Sampaio (BA, SP) e João Moreira Maciel (RS). Alguns apresentam intervenções pontuais de infraestrutura, outros uma visão mais avançada de conjunto da cidade. , que preconizam novas técnicas com aplicações variadas na forma urbana: a abertura de vias urbanas arejadas para permitir melhor circulação de ar e menor densidade populacional, desenvolvimento de redes de esgoto, tratamento de águas residuais e a profilaxia ou o combate à tuberculose (Leme, 1999Leme, M. C. S. (1999). A formação do pensamento urbanístico no Brasil, 1895-1965. In M. C. S. Leme (Ed.), Urbanismo no Brasil - 1895-1965 (p. 20-38). São Paulo: Studio Nobel; Fauusp; Fupam.).

O higienismo sanitarista deverá, então, orientar o modus operandi de várias realizações urbanísticas que buscam uma modernização seletiva de espaços urbanos. Essas estratégias de contenção das epidemias acontecem principalmente nas áreas centrais, a começar pela intervenção de remoção pontual de cortiços, que alcança sua maior expressão na prática urbanística dos planos de melhoramentos e embelezamento. Esse modelo de inspiração francesa, cujo maior exemplo foi a Reforma Passos no Rio de Janeiro (1902-1906), marcou a forma urbana com mudanças estéticas decorrentes de múltiplas estratégias: a erradicação de cortiços e favelas nas áreas centrais; a mudança de função do centro, atendendo às exigências da acumulação e circulação do capital comercial e financeiro; mas também a razões políticas e ideológicas ligadas aos interesses da burguesia e exigências específicas do Estado republicano (Abreu, 1997Abreu, M. A. (1997). Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio; Zahar.; Benchimol, 1992Benchimol, J. L. (1992). Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do séc. XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes.; Villaça, 1999Villaça, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In C. Deak, & S. R. Schiffer (Eds.), O processo de urbanização no Brasil (p. 171-243). São Paulo: Fupam; Edusp.).

O problema das habitações insalubres não era menos importante. Na capital brasileira, as razões do adensamento das freguesias centrais já eram conhecidas desde os anos 1880, quando os relatórios Conselho Superior de Saúde Pública denunciavam as condições higienicamente perigosas dos cortiços; esse tipo de habitação se espraiou devido à abolição da escravatura, ao rápido aumento populacional, ao alto custo dos aluguéis e à falta de habitações populares adequadas. Em se tratando da salubridade das habitações6 6 Cabe destacar que, na década de 1920, tomam forma as primeiras políticas públicas de habitações higiênicas, articuladas ao modelo previdenciário das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) (Lei Elói Chaves, de 1923), organizadas por empresas, de natureza civil e privada, responsáveis pelos benefícios pecuniários e serviços de saúde dos seus empregados. , condenava-se as construções em lotes estreitos e profundos, carentes da penetração de luz solar, o que contribuía para a criação de quarteirões compactos, sombrios e insalubres. Dessa forma, “a casa doentia fazia os moradores doentes, não havendo drogas que curassem estes sem que seja aquela previamente curada, isto é, saneada” (Abreu, 1997, pAbreu, M. A. (1997). Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IplanRio; Zahar.. 49-50).

Em São Paulo, a ordem higienista e a pretensa modernização da cidade articulam-se aos ideais da nascente burguesia, que define, nas primeiras décadas do século XX, por meio de uma política de renovação urbana, os espaços de prestígios na área central e a formação dos bairros de elite, muitos dos quais nascem como bairros-jardins. Em contraposição, a industrialização, controlada pela burguesia, provoca uma crescente expansão e periferização da cidade, materializando, no final dos anos de 1930, a dialética centro-periferia. Os avanços e melhorias proporcionados pelo higienismo sanitarista são reconhecidos e bem documentados, mas não foram suficientes para suprimir os focos de problemas que tinham origem nas grandes contradições socioeconômicas e políticas do período. Além disso, como lembram Schwarcz & Starling (2015)Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras., se o país começou a República encantado com a modernidade, terminou seus anos 1920 entre angustiado e ansioso para conhecer certa “brasilidade”, rever seu passado e projetar um novo futuro. Parecia ter chegado o momento de buscar um modelo de identidade nacional. É hora de fechar a República Velha, esse período polêmico e ambíguo, porém igualmente afirmativo pela construção da distinção entre as esferas pública e privada.

2º período: higienismo universalista (1930-1990)

O universalismo, como construto filosófico, é um conceito que advoga o fato de algumas ideias terem aplicabilidade universal. O higienismo universalista assim o é porque enfatiza a higiene como um valor transcendente, desenvolvendo a percepção da necessidade de uma ordem nacional de saúde socialmente consciente. Sua evolução como biopolítica dependerá das condições internas do país, mas sua referência mais importante é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que afirma o caráter abrangente e absoluto dos Direitos Humanos, inclusive o direito ao trabalho, saúde, educação e bem-estar.

Nesse período de seis décadas, as cidades brasileiras passaram por intensas transformações, convertendo o país em majoritariamente urbano. Certamente, esse longo intervalo de tempo é motivo de muitas leituras de periodização. Em linhas gerais, apontam-se três ciclos: a Era Vargas (1930-1945), o desenvolvimentismo (1945-1964) e o Regime Militar (1964-1986). Villaça (1999)Villaça, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In C. Deak, & S. R. Schiffer (Eds.), O processo de urbanização no Brasil (p. 171-243). São Paulo: Fupam; Edusp., por exemplo, o divide em três subperíodos: o do Urbanismo e do Plano Diretor (1930-1965), o dos Superplanos (1965-1971) e o do "Plano sem Mapa” (1971-1992).

A diferença fundamental entre o higienismo sanitarista e o higienismo universalista que se anuncia está na ocorrência de uma tripla ação de deslocamento: das campanhas sanitaristas sazonais para a institucionalização e nacionalização das políticas de saúde; das intervenções estéticas localizadas do urbanismo clássico para o planejamento físico-territorial, abarcando toda a cidade e assimilando o formalismo do Movimento Moderno em Arquitetura e Urbanismo; e, por fim, a transição da competência restrita a médicos e engenheiros para uma frente variada de especialistas (arquitetos, sociólogos, geógrafos, economistas, advogados, administradores etc.), fazendo do urbano objeto de estudos multidisciplinares. Segue uma descrição resumida sobre esses eventos.

Uma primeira modificação se deve ao desenvolvimento gradativo da institucionalização e centralização das políticas de saúde que tem início nos anos que comportam a chamada Era Vargas (1930-1945). O Brasil empreende sua transição para um modelo urbano-industrial, ao passo que consolida os alicerces de uma identidade nacional. As estruturas provisórias do sanitarismo campanhista passam por uma reorganização e capilaridade crescentes. O arcabouço institucional e normativo, que prospera a partir de então, impressiona por sua profissionalização e instrumentalização, alcançando políticas públicas de seguridade social, trabalho, habitação, educação e saúde. No caso da saúde pública, o objetivo é dar-lhe um caráter nacional por meio da uniformização dos departamentos estaduais e interiorização dos serviços de atenção básica. A gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde Pública (MES), entre 1934-1945, notabilizou-se pela criação dos Serviços Nacionais, em 1941, auxiliando as campanhas contra endemias, epidemias e combate a diversas doenças (Hochman, 2005Hochman, G. (2005). Reformas, instituições e políticas de saúde no Brasil (1930-1945). Educar, 25, 127-141. http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.370.
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).

Nos anos que comportam a chamada Era Desenvolvimentista (1945-1984), nela incluindo-se o período do Regime Militar, o que se verá é a ampliação do higienismo universalista. Em 1953, a criação do Ministério da Saúde consolida esse setor como política de Estado. O Regime Militar conceberá, em 1966, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em uma perspectiva modernizadora que amplia o poder de regulação do Estado sobre a sociedade, mas que desemborcará na valorização de um modelo de assistência à saúde individual e privatista. Esse modelo se assenta no seguinte tripé: a) o Estado como financiador do sistema, por meio da Previdência Social; b) o setor privado nacional como maior prestador de serviços de assistência médica; e c) o setor privado internacional como o mais significativo produtor de insumos, em especial equipamentos médicos e medicamentos (Cunha & Cunha, 1998Cunha, J. P. P., & Cunha, R. E. (1998). Sistema Único de Saúde - SUS: princípios. In: Campos, F. E., Oliveira, M. Jr, & Tonon, L. M., eds Planejamento e gestão em saúde. pp. 11-26.). Belo Horizonte: Coopmed.). Nos anos 1980, os movimentos pela reforma urbana e pelo sanitarismo, em defesa da redemocratização, irão preconizar o direito à cidade e a busca pela universalidade da infraestrutura de saneamento e do atendimento médico à população marginalizada. A nova Constituição Federal de 1988 incluiu, pela primeira vez, um capítulo sobre a política urbana (artigos 192 e 193) e uma seção sobre a saúde (artigos 196 a 200).

O segundo deslocamento reporta aos anos emblemáticos da construção de uma identidade nacional, quando o Movimento Moderno em Arquitetura e Urbanismo se torna brasileiro (Cavalcanti, 2006Cavalcanti, L. (2006). Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro: Zahar. ). Para acompanhar os esforços de industrialização, uma nova arte fomenta os postulados da forma urbana moderna, traduzida na prática por um planejamento físico-territorial marcadamente regulatório e influenciado pelos princípios modernistas de Le Corbusier (2010Le Corbusier (2010). Planejamento urbano (3a ed.). São Paulo: Perspectiva., 2011Le Corbusier (2011). Por uma arquitetura (6a ed.). São Paulo: Perspectiva.) e da Carta de Atenas. Um determinismo físico traduz a metáfora da máquina em sua busca de adaptar a cidade à era industrial e às necessidades do capitalismo. As bases da harmonia social dessa modernidade encontram-se na ordem e na higiene.

De fato, codifica-se a noção de cidade higiênica, em torno do quarteirão aberto, das vias separadas do edifício, da cidade-parque plena de espaços verdes; e, também, a noção de cidade funcional, definida por quatro funções urbanas (moradia, trabalho, lazer e circulação), reformulando-se as escalas de ação para abranger toda a cidade em seus diferentes aspectos técnicos. Nesse modelo urbanístico prevalece a imagem de uma cidade limpa, na qual regras higiênicas agregam-se a medidas relacionadas ao traçado regulador e à harmonia espacial definida pela forma, volume e disposição funcional das unidades perfeitamente eficientes (Le Corbusier, 2010Le Corbusier (2010). Planejamento urbano (3a ed.). São Paulo: Perspectiva.). Ele interpreta um higienismo universalista porque se faz como receituário para o homem-tipo e para todas as cidades, sem distinção, incorporando o formalismo à ordem e à racionalidade, pilares da ideia de modernização urbana. Sua ênfase no potencial da arquitetura e da planificação como definidores da forma da cidade nos leva a crer nas qualidades redentoras do desenho para resolver os problemas urbanos. Todavia, esse dogmatismo encontrará fortes limitações em um cenário real de urbanização deficitária típica das cidades brasileiras.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o país passará por profundas mudanças nas aspirações e demandas da vida urbana. A modernização advinda da industrialização e do crescimento econômico se traduz na multiplicação e diversificação de bens de consumo que remodelam a forma urbana a partir das melhorias infraestruturais e introdução de novas tecnologias na construção civil. Essas medidas garantem inéditos requisitos de assepsia do espaço privado, sobretudo para aqueles que possuem condições econômicas, protegendo-os da exposição e dos riscos advindos do espaço público que, em geral, continuará a apresentar recorrentes problemas sanitários.

A manifestação formal mais visível é a verticalização das áreas centrais, embora a expansão das periferias empobrecidas tenha ocorrido de modo simultâneo. O processo de verticalização altera a implantação da edificação no terreno, separa o local de trabalho do da moradia e, sobretudo, responde às demandas por espaço ao passo que aumenta a eficiência das redes de infraestrutura. Por outro lado, ele substitui os antigos cortiços insalubres, expulsando seus moradores de baixa renda que se viram forçados a construir moradias improvisadas nos morros e subúrbios (Souza, 1994Souza, M. A. A. de (1994). A identidade da metrópole. São Paulo: Hucitec; Edusp.). O processo de verticalização das cidades brasileiras excluiu, portanto, a questão social de sua ótica. Por isso, Somekh (1997)Somekh, N. (1997). A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo: Edusp; Nobel; Fapesp. denomina-o modernizador, contrapondo-se à caracterização de moderno ou modernista. De todo modo, ele foi intensificado a partir das políticas públicas habitacionais instituídas durante o período da Ditadura Militar (1964-1985), sobretudo na construção e financiamento de grandes conjuntos populares, proporcionando moradias “baratas”, “seguras” e “eficientes”.

Consequentemente, um terceiro deslocamento se anuncia quando a ênfase recai sobre a necessidade de saber como as cidades “funcionam”, levando à “cientificização” do planejamento (de base positivista), e para isso requerendo a contribuição de vários tipos de profissionais que concebem uma dimensão multidisciplinar7 7 Sobre esse aspecto, cabe lembrar a influência precursora de Patrick Geddes, cujo pensamento norteia a elaboração do pioneiro plano Regional Survey of New York and Its Environs, de 1927. no trato do urbano. Essa crescente racionalidade instrumental conduzirá, nos anos 1960, aos enfoques físico-territorial convencional (regulative planning) e sistêmico (systems planning), que se manifestam no modelo de planejamento urbano integrado. No cerne dessa modelização, encontra-se a regulação espacial, fundamentada em uma explicação científica para os usos e ocupação do solo urbano (Gaudin, 2014Gaudin, J.-P. (2014). Desenho e futuro das cidades: uma antologia. Rio de Janeiro: Rio Book’s.; Souza, 2003Souza, M. L. (2003). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos (2a ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.; Villaça, 1999Villaça, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In C. Deak, & S. R. Schiffer (Eds.), O processo de urbanização no Brasil (p. 171-243). São Paulo: Fupam; Edusp.).

Os princípios higienistas universalistas são incorporados às ações e normas do planejamento urbano por meio da regulação espacial. A adoção do zoneamento funcional8 8 O funcionalismo (do latim, functio, atividade natural), foi um neologismo adotado pelo urbanismo modernista para opor o anacronismo e a inadequação das antigas convenções formais e responder às necessidades específicas da nova sociedade de massa. Para diversos pesquisadores, a crítica a essa doutrina conduziu a uma depreciação do termo. , que procede do cruzamento de diferentes estratégias, permitia estabelecer um relacionamento operatório entre a especialização funcional e as áreas urbanas. Complementarmente, os novos códigos de obras e de posturas determinam parâmetros construtivos para penetração de luz, ventilação e vegetação. Eles tratam das regras de limpeza pública, conservação, conforto, salubridade e segurança das habitações. Bonduki (2004)Bonduki, N. (2004). Origens da habitação social no Brasil (4a ed.). São Paulo: Estação Liberdade. lembra que o nascimento da habitação como uma questão social também significou a formulação de uma ação higienista sobre a moradia, presente nos pressupostos da edificação em série, padronização e pré-fabricação, como instrumentos para atender às grandes demandas do operariado.

Todos esses instrumentos regulatórios9 9 Nesse campo, ganha destaque a Lei Federal nº 6.766/1979, que define as regras para o parcelamento do solo urbano e obriga a aprovação de projeto de loteamento perante os órgãos municipais. servirão para assegurar o controle espacial da gestão de problemas sanitários, embora o planejamento urbano modernista tenha provocado diversos desvios na forma urbana. É possível destacar: redução da cidade a um esquema abstrato unificador aos moldes do zoneamento funcional; ausência deliberada de políticas e normas públicas para o trato das áreas periféricas; e prática de um rodoviarismo urbano, varrendo o passado e o que restava dos tecidos antigos, sacrificando, assim, o patrimônio urbano.

Essa expectativa de racionalidade teve como efeito incompatível a dura realidade da explosão das muitas formas de irregularidade do uso e ocupação do solo: favelas, loteamentos clandestinos ou irregulares e ocupações espontâneas, que se configuram de maneiras distintas no país e se tornam parte expressiva do território urbanizado. Até mesmo loteamentos e conjuntos habitacionais promovidos pelo Estado passam a fazer parte desse vasto universo de irregularidade associada à pobreza e que traz consigo algum tipo de risco. Risco na ocupação de terrenos de altas declividades, sob redes de alta tensão, ou nas faixas de domínio de rodovias, gasodutos e troncos de distribuição de água ou coleta de esgotos. Além disso, risco de saúde devido à facilidade de propagação de doenças transmissíveis relacionadas tanto ao entorno quanto à unidade habitacional (Pasternak, 2016Pasternak, S. (2016). Habitação e saúde. Estudos Avançados, 30(86), 51-66. http://dx.doi.org/10.1590/SO103-40142016.00100004.
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).

O combate às "irracionalidades no uso do solo urbano” elevou a segregação urbana a níveis alarmantes, pois zonas diferenciadas por densidades e valores do solo resultaram em uma cidade partida pelas diferenças socioeconômicas da população. Se o planejamento urbano deu base para inovações gestionárias e administrativas, ele também serviu para condicionar, estigmatizar ou reduzir as ações de saúde pública no espaço intraurbano. O higienismo universalista incorporado a esse modelo começa a ser superado após a promulgação da Constituição de 1988, quando, e com algum atraso, chega entre nós a crítica epistemológica ao modernismo, mas embebida nas novas demandas e exigências sociais, ambientais e políticas.

3º período: higienismo ambiental (1990-2020)

No início dos anos 1990, a jovem democracia brasileira encontrou-se, aos sobressaltos, com a globalização neoliberal e sua consequência mais genérica: a crise ambiental planetária e o aumento das desigualdades socioeconômicas. Os dois fenômenos, gestados desde uma dezena de anos atrás, iriam afetar fortemente a forma urbana, levando a um novo ajuste da prática higienista. A aceleração do imperativo produtivista incitou a figura da metrópole e sua metropolização dispersa, inseparáveis do planejamento urbano estratégico (mercadológico, empresarial) e das noções de desempenho, produtividade e marketing urbano. O modelo de planejamento urbano se volta, prioritariamente, para o crescimento econômico, privilegiando demandas de setores corporativos, mesmo quando justificadas pela distribuição de renda, por melhorias sociais e pela ampliação dos canais de participação e fiscalização popular (Arantes et al., 2000Arantes, O., Vainer, C., & Maricato, E. (2000). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Ed. Vozes.; Souza, 2003Souza, M. L. (2003). Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos (2a ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.).

Esse novo contexto global produz uma fratura que é simultaneamente ideológica, territorial e ambiental, com grande influência sobre o que se convencionou chamar de “sustentabilidade urbana”. A polarização teórica e prática entre ecologia cultural e ecologia política que chega ao debate urbano reflete tanto o reacionarismo exaltado quanto as insurgências recorrentes (Jatobá et al., 2009Jatobá, S. U., Cony, L., & Vargas, G. M. (2009). Ecologismo, ambientalismo e ecologia política: diferentes visões da sustentabilidade e do território. Sociedade e Estado, 24(1), 47-87. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922009000100004.
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). Não há aproximação possível entre a preconização de medidas técnicas para a resolução dos problemas ambientais e a defesa de mudanças das estruturas sociais e políticas que oprimem as populações mais pobres e desassistidas. Como explica Acselrad (2001, pAcselrad, H. (2001). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A Editora; Crea-RJ.. 49), “[...] a noção de cidade sustentável instaura uma nova cena de enunciação, em que uma trama de múltiplos personagens e falas entrecruzadas reelabora as representações da cidade”.

Os problemas de saúde, de fato, já não pertencem exclusivamente às ciências da vida e da terra. Eles acionam as ciências sociais ao questionar sobre o status do ser humano no ambiente em que vive e o tipo de desenvolvimento social e econômico que deseja. A “epidemia global de doenças crônicas”, sobre a qual se manifesta a Organização Mundial de Saúde (OMS), traz mais uma vez a questão higienista para o centro do debate sobre a forma urbana, com problemas gerados pelos descartes do hiperconsumismo e pelos resíduos dos congestionamentos gigantescos, mas também devido às péssimas condições de vida das populações com poucos recursos. A medicina, apesar do seu enorme progresso, que elevou a expectativa de vida média, parece impotente para conter a explosão de doenças crônicas, também chamadas de “doenças da civilização”, em relação ao nosso modo de vida e ligadas, em grande parte, à degradação do meio ambiente. Crise ecológica e explosão de doenças crônicas demandam uma conscientização ambiental em face da destruição da biodiversidade, do esgotamento dos recursos naturais e da perturbação do clima.

O propósito do higienismo sanitarista foi o de desinfectar porções específicas do espaço urbano, enquanto o higienismo universalista visava adaptar e regular os princípios de saúde para todo o ambiente construído, inclusive a expansão futura da cidade. O desafio que se apresenta, agora, é o de um higienismo ambiental que seja capaz de convalescer esse ente urbano, fonte irradiadora de externalidades negativas em termos sociais, econômicos e ambientais. O higienismo ambiental ganha validade, portanto, em indicadores que alertam para esses novos problemas, fazendo uso de novas técnicas de ação e novas escalas de articulação. O tema do ambiente torna-se a base da legitimidade de discursos e políticas públicas, incorporando as ideias de participação, autonomia local e desregulamentação.

Como já lembrava Topalov (1992), aTopalov, C. (1992). De la planification à l’écologie: naissance d’un nouveau paradigme de l’action sur la ville et l’habitat? In Anais da 5ª Conferência Internacional de Investigação sobre a Moradia. Montreal. sociedade, como objeto de ação, foi substituída pela caracterização da natureza como sistema global, no qual os homens são incluídos. O planeta e o nível local passam a ser os novos territórios da ação coletiva. É nessa perspectiva que a ética universalista anterior é substituída pela ética utilitarista10 10 As referências remetem a Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), que sistematizaram o princípio da utilidade e conseguiram aplicá-lo a questões concretas – sistema político, legislação, justiça, política econômica, liberdade sexual, emancipação feminina etc. . A saúde do planeta passou a ser o parâmetro, o cálculo, a metodologia e os fins, induzindo as sucessivas “cúpulas da terra”, organizadas pela ONU, a se revestirem de teorias consequencialistas para justificar a necessidade de se recuperar o equilíbrio do planeta, em benefício de todos os seus habitantes.

O problema é que essa moral eudemonista, que insiste no fato de que devemos considerar o bem-estar de todos, tem no individualismo crescente uma poderosa fonte de desequilíbrio, uma contradição. Não por acaso, o movimento higienista cede à pressão de trocar seu princípio de ação sobre o coletivo para centrar o “individual” como base de conhecimento científico. O surgimento do Health Movement (Goldstein, 1992Goldstein, M. S. (1992). The Health Movement: promoting fitness in America: social movements past and presente. New York: Twayne Publishers.) nas últimas décadas do século XX reforça esse crescente nível de individualização da orientação da saúde. Expressão da preocupação com o corpo, o personal training torna-se um dos símbolos dessa tendência, cujo acesso só é possível a quem pode pagar pela prestação do serviço (Góis Jr. & Lovisolo, 2003).

Enquanto as dimensões funcionais e operacionais do higienismo ambiental são menos compreendidas, suas dimensões espaciais tendem a adotar abordagens territoriais com preocupações estética e neomalthuseana. As chamadas “abordagens eco-freindly” defendem uma forma urbana comunitária em equilíbrio com a natureza, na qual o planejamento da paisagem busca resguardar as habilidades do ecossistema. Por isso, o interminável debate entre dois modelos: a cidade difusa, acusada de consumir inescrupulosamente o estoque disponível de recursos naturais; e a cidade densa e compacta, considerada ideal para a sustentabilidade, pois tira proveito da otimização da infraestrutura instalada, embora continue operando com combustíveis fósseis. Pincetl (2010)Pincetl, S. (2010). From the sanitary city to the sustainable city: challenges to institutionalising biogenic (nature’s services) infrastructure. Local Environment, 15(1), 43-58. http://dx.doi.org/10.1080/13549830903406065.
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coloca os pés no chão ao admitir que a mudança para um modelo de cidade sustentável não só implica em adequação da infraestrutura física, mas exige mudanças substanciais sobre como as cidades são governadas, enfrentando-se questionamentos sobre financiamento, legitimidade, transparência e equidade.

Efetivamente, esses modelos teóricos buscam controlar um fenômeno que se pronuncia na forma urbana contemporânea: a urbanização dispersa. Para Reis (2006, pReis, N. G. (2006). Notas sobre a urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. São Paulo: Via das Artes.. 12), trata-se de uma “extensão dos tecidos urbanos por vastos territórios [...] com o predomínio das baixas densidades habitacionais apoiadas em amplo sistema de infraestrutura viária, fragmentando-se a ocupação pela descontinuidade do espaço construído”. Descontinuidade que deixa a impressão errônea da ocorrência de “vazios” que, na prática, são partes produtivas e intrínsecas às dinâmicas urbanas. Concomitantemente, novos polos de atração são gerados a partir de megaempreendimentos fechados ou áreas autônomas de reurbanização, configurando-se em “enclaves fortificados”, que prescindem e rejeitam relações com seus entornos (Caldeira, 2000Caldeira, T. P. R. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp; Editora 34.). Isso posto, a dispersão urbana é reconhecida como irreversível, global, mas também como problemática, ambientalmente dispendiosa, socialmente excludente e culturalmente empobrecida, resultado de um modelo de urbanização privada.

Ao desconectar os espaços de vida cotidianos, essa urbanização em saltos perturba os deslocamentos espaciais da população, acarretando relevantes efeitos negativos: além da elevação dos custos sociais para a oferta de saneamento básico e equipamentos coletivos, aumentam-se a dependência e a precariedade dos transportes automotores. Pesquisas11 11 Ver, por exemplo, o projeto Mobilidade Urbana Saudável (MUS), estudo sobre o impacto da (i)mobilidade cotidiana na saúde e bem-estar. Recuperado de https://www.hum-mus.org/pt/home-2 apontam que a mobilidade urbana precária e prolongada afeta negativamente a qualidade de vida e o bem-estar. Objetivamente, cresceu o consumo do tempo em que a população fica submetida ao trânsito e à poluição, fato que altera seus marcadores de inflamação, cujos sintomas cobram um preço sob a forma de maior risco de câncer, aterosclerose e de envelhecimento precoce dos pulmões. Consequentemente, dorme-se mal e em menos tempo. Como lembra Saldiva (2018)Saldiva, P. (2018). Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles (1a ed.). São Paulo: Contexto. , um ruído ambiental danifica a qualidade do sono; e o sono com arquitetura fragmentada está relacionado à hipertensão, à diabetes e à depressão.

De todo modo, a ideia de qualidade de vida passou a fazer parte tanto da lógica da saúde física e mental quanto da lógica de preservar, de preocupar-se com as condições de equilíbrio do ambiente. O conceito de qualidade de vida se esclarece, assim, em uma abordagem de preservação psicológica e moral, na medida em que se propõe considerar o bem-estar e a felicidade dos moradores urbanos. O higienismo ambiental funciona, então, como um elo entre a busca por uma melhor qualidade de vida e um melhor ambiente de vida. Os cidadãos tendem a considerar novas prioridades para melhorar a pureza da água, do ar, a limpeza de ruas e dos espaços coletivos; além de ambicionarem a proximidade de espaços verdes e de lazer, acessibilidade ao local de trabalho, serviços e lazer.

Cabe reforçar que a questão ambiental traz para o centro do debate sobre a prática urbanística a questão da desigualdade, frequentemente mascarada ou oculta nos projetos de urbanização e de políticas da cidade. Para Charles et al. (2007)Charles, L., Emelianoff, C., Ghorra-Gobin, C., Roussel, I., Roussel, F. X., & Scarwell, H. J. (2007). Les multiples facettes des inégalités écologiques. Développement Durable & Territoires, 9, 1-16. http://dx.doi.org/10.4000/developpementdurable.3892.
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, ocorrem três facetas de desigualdades: sanitária, habitacional e de justiça. A sanitária refere-se a uma reflexão sobre o conceito de exposição, localizada na interface entre o homem e seu ambiente. A habitação é considerada um forte fator na produção de desigualdades sociais, em relação direta com a sua localização, condições construtivas e infraestrutura, especialmente ao saneamento ambiental. A questão da justiça está no cerne do problema porque é um poderoso mecanismo social, um vetor de iniciativas e intervenções em todas as escalas, individuais ou coletivas, para compensar uma realidade vivida. Assim, coube ao higienismo ambiental questionar se saúde, habitação e justiça são atributos de uma classe social, de indivíduos ou de territórios.

Rumo a um higienismo virtual (!?)

Aventa-se, aqui, a pressuposição de nos encontramos no início de um novo período, aqui nomeado de “higienismo virtual”, que recoloca em cena a concepção de P. Virilio de que a forma urbana continuará a se libertar de seus condicionantes físico-espaciais e ambientais, pois ela já não é mais manifestada por qualquer demarcação, uma linha divisória, tornando-se a “programação de um emprego do tempo” (Virilio, 2014, pVirilio, P. (2014). O espaço crítico (2a ed.). São Paulo: Ed. 34.. 15). As causas para esse questionamento já se encontram catalogadas: o avanço das tecnologias de comunicação e informação, a degradação ambiental acelerada, o decréscimo da qualidade de vida, o aumento das desigualdades sociais que resultam em mais segregação, moradia precária, baixo emprego e violência. Por outro lado, a evolução do neoliberalismo nos empurra a uma “dromocracia” (Virilio, 1996Virilio, P. (1996). Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade.), isto é, um governo da corrida e da velocidade, em que se tem a “entrada no mundo do equivalente-velocidade ao equivalente-riqueza”, ou seja, já vivemos o fenômeno da produção da velocidade que se opera pelo uso excessivo e decorrente dependência das tecnologias digitais. Somadas, todas essas tendências são facilitadoras prováveis das latentes contaminações via novas famílias viróticas.

À guisa de uma pauta para o debate, identifica-se aqui três aspectos que dão contorno ao higienismo virtual.

A distopia dos corpos dóceis em espaço (público) asséptico

Durante a pandemia de 2020, o mundo ocidental se impressionou com “os altos níveis de disciplina” dos coreanos nos espaços semiprivados e públicos. As máscaras de proteção tornam-se o novo signo social de conscientização, fato reconhecido por T. Vonier, presidente da União Internacional dos Arquitetos (UIA)12 12 Recuperado em 12 de agosto de 2021, de https://www.uia2021rio.archi/ . Não há como não se reportar a Foucault (2014)Foucault, M. (2014). Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes. quando este argumenta que a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. O higienismo virtual deverá pressionar ainda mais a coerção disciplinar para aumentar as forças dos corpos (em termos econômicos de utilidade) e diminuir essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)? A cultura capitalista continuará a fornecer insumos para cenários de distopia, fazendo do corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada? Essas são questões que merecem respostas inadiáveis.

De todo modo, a forma urbana deverá repercutir a diminuição das interações físicas entre seres humanos, que passam a ser vistas com apreensão, trazendo como consequência mudanças no domínio do projeto arquitetônico e urbanístico. Inevitavelmente, nossos prédios e espaços públicos refletirão o desconforto de se encontrar perto de outras pessoas por muito tempo. Novos projetos de design de informação e sinalização irão incorporar uma nova família de mobiliário urbano e privado, como as estações de lavagem de mãos e dispensadores de desinfetantes para as mãos. Técnicas de “neuroarquitetura”13 13 Recuperado em 19 de agosto de 2021, de https://digital.formobile.com.br/colunistas/como-ser-o-universo-da-arquitetura-e-do-design-ps-pandemia começam a ser aplicadas para um home office eficaz, já que, no ambiente doméstico, vida e trabalho vão se misturar ao ponto em que o ambiente de trabalho do futuro é “onde a vida acontece”. Complementarmente, é possível que a “arquitetura temporária”14 14 Ver, por exemplo, o projeto Cura (Unidades Conectadas para Doenças Respiratórias). Recuperado em 23 de agosto de 2021, de https://www.archdaily.com.br/br/936298/carlo-ratti-propoe-uti-movel-com-conteiner-para-tratar-casos-graves-de-covid-19 ganhe um papel mais relevante, com a concepção de estações de quarentena de emergência em larga escala, capazes de abrigar abordagens rápidas, eficazes e econômicas.

Big Data, cidades inteligentes e o espectro do grande irmão

Em todo o mundo, a urbanização é intensa e os seus efeitos colaterais são bastante conhecidos: congestionamentos, deterioração do meio ambiente, déficit habitacional, desemprego. Esse contexto nos faz compreender que o espaço cibernético influenciará mais e mais o planejamento urbano, com seus sistemas computacionais, internet e, principalmente, fluxo de informações. Entramos definitivamente no uso urbanístico do Big Data15 15 Recuperado em 25 de agosto de 2021, de https://www.conen.com.br/big-data-pode-ajudar-na-estruturacao-de-cidades-inteligentes/ , isto é, de informações coletadas em modo contínuo. Uma massiva quantidade de dados obtida com o uso de variadas tecnologias de geração de informação pode descrever e monitorar em tempo real os inúmeros elementos urbanos, como edifícios, pessoas, tráfego, logística, meio ambiente. A instrumentalização do Big Data urbano pela biopolítica higienista promete alterar a visão linear da saúde para um ambiente multidimensional de antecipação de prognósticos.

Todavia, a geração, processamento, análise, compartilhamento e armazenamento de grandes quantidades de dados resultam em preocupações e desafios, com destaque para a privacidade, proteção e segurança dessas informações. É o fantasma do grande irmão a nos espreitar, já que parte importante desse material é constituído de identificações pessoais, suscitando a inquietude quanto à tutela de grandes corporações privadas e/ou de um Estado altamente vigilante e autoritário. A experiência dos dados fornecidos pela geolocalização de celulares16 16 Recuperado em 25 de agosto de 2021, de https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/04/23/teles-criam-site-para-governos-monitorarem-isolamento-com-dados-de-celular.htm?cmpid=copiaecola é o exemplo a reter. O monitoramento centralizado possibilita, claro, criar "manchas de calor" sobre onde há maior concentração de pessoas e, assim, controlar os fluxos de propagação de doenças. O desafio, então, é tentar obter os benefícios de produzir e usar dados urbanos, minimizando os efeitos perniciosos e os eventuais danos ao direito dos cidadãos de ir e vir.

Desigualdades sociais, vidas saudáveis desiguais

Apesar de toda evolução tecnológica e comunicacional, a dimensão territorial continua onipresente, sobretudo na permanente validade da ideia de “cidade produtiva” (Besson, 2017Besson, R. (2017). Vers une biopolitique des villes: la pensée contemporaine des villes productives. Revue Urbanisme, 1-6. Recuperado em 15 de abril de 2020, de https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01732455/document
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). O fenômeno mais marcante e revelador, por mais antigo que ele seja, da pandemia provocada pela covid-19, é o efeito da desigualdade socioambiental nas condições de saúde da população (Charles et al., 2007Charles, L., Emelianoff, C., Ghorra-Gobin, C., Roussel, I., Roussel, F. X., & Scarwell, H. J. (2007). Les multiples facettes des inégalités écologiques. Développement Durable & Territoires, 9, 1-16. http://dx.doi.org/10.4000/developpementdurable.3892.
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). Já em 2017, uma pesquisa (Xavier et al., 2018Xavier, H. S., Ximenes, R., & Helene, S. (2018). Vidas desiguais na cidade de São Paulo. São Paulo: Le Monde Diplomatique Brasil. Recuperado em 27 de agosto de 2021, de https://diplomatique.org.br/vidas-desiguais-na-cidade-de-sao-paulo/
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) revelava que a desigualdade territorial entre os distritos pobres e ricos da cidade de São Paulo provocava resultados estarrecedores sobre a expectativa de vida: os moradores dos bairros mais pobres vivem, em média, quase 24 anos a menos do que os que vivem em bairros nobres. Segundo a mesma pesquisa, a população moradora em sete bairros periféricos mais pobres somava 1,3 milhão de pessoas, isto é, 2,4 vezes maior que os sete bairros mais ricos da metrópole.

Assim, não surpreende que as análises de mapas e números dos casos de contaminação e morte por covid-19 nas grandes cidades brasileiras confirmem a periferia e os bairros pobres como epicentros da doença. Todos esses dados apontam os efeitos nocivos das desigualdades sociais, econômicas e ambientais sobre as pessoas. Nessa transição epidemiológica em que vivemos, a biopolítica do higienismo, em sua roupagem virtual, deverá enfrentar as velhas e conhecidas características comuns à forma urbana ligadas à pobreza: inadequação de serviços de saneamento básico (abastecimento de água, coleta de esgoto e lixo, fornecimento de energia), dificuldades inerentes ao padrão urbanístico irregular e o agravante das restrições de ocupação do solo.

Para concluir

Como vimos, este artigo traça uma periodização para a evolução do pensamento higienista como biopolítica na cidade brasileira, especialmente no que se refere à sua influência sobre as determinações da forma urbana. A nossa perspectiva histórica parte do pressuposto de que o higienismo jamais foi superado enquanto modelo urbanístico, mas evoluiu, adequando-se a novos princípios e técnicas de ação decorrentes de razões de ordem social, econômica e política. A aplicação de métodos higiênicos dará corpo a uma ideologia higienista que evoluirá em sintonia com o desenvolvimento das cidades, assumindo características específicas e inerentes às exigências do momento histórico. Do higienismo sanitarista ao universalista e deste ao ambiental, o desafio em comum, embora em constante alteração escalar, foi o do controle espacial por meio de uma biopolítica do território que influencia diretamente a forma urbana. A grande crise sanitária que se avoluma com o novo coronavírus nos empurra para o encerramento de um ciclo e início de outro, ainda de contornos imprecisos, mas já real, cuja característica principal é um “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2020Zuboff, S. (2020). A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca.) derivado das novas tecnologias de comunicação e informação, e que rege uma arquitetura global de modificação comportamental com o controle político do tempo, da velocidade e da “verdade”.

Seja qual for sua conformação no futuro, o higienismo continuará a inferir nas concepções teóricas e nas ações práticas da forma urbana. Isso porque, como diz Saldiva (2018), aSaldiva, P. (2018). Vida urbana e saúde: os desafios dos habitantes das metrópoles (1a ed.). São Paulo: Contexto. cidade é um paciente cujos diagnósticos são visíveis e variados: ela sofre de obesidade porque cresceu mais do que o seu esqueleto e suas articulações podem suportar; sua calvície é devida à expressiva destruição da sua cobertura vegetal; sua bronquite crônica resulta de anos de inalação de ar poluído; assim como sua insuficiência renal, consequência de sua incapacidade de excretar os resíduos de modo adequado e eficiente.

  • 1
    Cabe aqui uma nota de distinção entre o higienismo urbanístico e o movimento higienista (ou sanitário). Este último só pode ser definido em função da tensão constitutiva do seu objetivo central: estabelecer normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual. É somente nesse aspecto que se encontra certa homogeneidade nesse movimento. Fora isso, o que se observa é uma mentalidade higienista difusa e heterogênea, tanto no âmbito científico quanto político.
  • 2
    Para citar dois exemplos: Idelfonso Cerdà, com sua Teoría General de la Urbanización (1867), propõe a quadra aberta com jardim interior, deixando entrar o ar, o sol, a luz. Ebenezer Howard, em sua obra Garden-Cities of To-Morrow (1897), diante das consequências sanitárias desastrosas da industrialização, propõe um modelo inovador de cidade-jardim.
  • 3
    O artigo é fruto de um Pós-Doutorado desenvolvido, em 2019, por José Almir Farias na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie (FAUMackenzie), sob a supervisão da Profa. Dra. Angélica A.T. Benatti Alvim.
  • 4
    A Inglaterra foi pioneira ao instituir a Royal Commission on the State of Large Towns, em 1844, e o Public Health Act, em 1848.
  • 5
    Entre os principais engenheiros sanitaristas do período estão: Saturnino de Brito, com projetos em várias cidades do país, Teodoro Sampaio (BA, SP) e João Moreira Maciel (RS). Alguns apresentam intervenções pontuais de infraestrutura, outros uma visão mais avançada de conjunto da cidade.
  • 6
    Cabe destacar que, na década de 1920, tomam forma as primeiras políticas públicas de habitações higiênicas, articuladas ao modelo previdenciário das Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) (Lei Elói Chaves, de 1923), organizadas por empresas, de natureza civil e privada, responsáveis pelos benefícios pecuniários e serviços de saúde dos seus empregados.
  • 7
    Sobre esse aspecto, cabe lembrar a influência precursora de Patrick Geddes, cujo pensamento norteia a elaboração do pioneiro plano Regional Survey of New York and Its Environs, de 1927.
  • 8
    O funcionalismo (do latim, functio, atividade natural), foi um neologismo adotado pelo urbanismo modernista para opor o anacronismo e a inadequação das antigas convenções formais e responder às necessidades específicas da nova sociedade de massa. Para diversos pesquisadores, a crítica a essa doutrina conduziu a uma depreciação do termo.
  • 9
    Nesse campo, ganha destaque a Lei Federal nº 6.766/1979, que define as regras para o parcelamento do solo urbano e obriga a aprovação de projeto de loteamento perante os órgãos municipais.
  • 10
    As referências remetem a Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), que sistematizaram o princípio da utilidade e conseguiram aplicá-lo a questões concretas – sistema político, legislação, justiça, política econômica, liberdade sexual, emancipação feminina etc.
  • 11
    Ver, por exemplo, o projeto Mobilidade Urbana Saudável (MUS), estudo sobre o impacto da (i)mobilidade cotidiana na saúde e bem-estar. Recuperado de https://www.hum-mus.org/pt/home-2
  • 12
    Recuperado em 12 de agosto de 2021, de https://www.uia2021rio.archi/
  • 13
  • 14
    Ver, por exemplo, o projeto Cura (Unidades Conectadas para Doenças Respiratórias). Recuperado em 23 de agosto de 2021, de https://www.archdaily.com.br/br/936298/carlo-ratti-propoe-uti-movel-com-conteiner-para-tratar-casos-graves-de-covid-19
  • 15
  • 16
  • Como citar: Farias Filho, J. A., & Alvim, A. T. B. (2022). Higienismo e forma urbana: uma biopolítica do território em evolução. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, 14, e20220050. https://doi.org/10.1590/2175-3369.014.e20220050

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Editado por

Editor responsável: Rodrigo Firmino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2022
  • Aceito
    08 Jul 2022
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