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MATHIEU DOSSE

MATHIEU DOSSE

O tradutor, professor e pesquisador Mathieu Dosse é Mestre e Doutor em Literatura Comparada pela Université Paris VIII - Vincennes-Saint-Denis (2005/2011). Em sua tese, intitulada Poétique de la lecture de la traduction: Nabokov, Guimarães Rosa, Joyce, Dosse faz reflexões sobre o ofício da tradução e suas dificuldades, refletindo sobre as implicações de se transpor autores de estilos de escrita tão particulares para outros idiomas, e discutindo também a forma com que a poética do texto original incide nas respectivas traduções. A sua tese deu origem à sua última publicação, o livro: Poétique de la lecture des traductions: Joyce, Nabokov, Guimarães Rosa (Editora Garnier/2016). O seu trabalho como pesquisador e tradutor de Guimarães Rosa o alçou à condição de especialista deste autor brasileiro no cenário internacional. O jovem tradutor trabalhou em obras de autores consagrados da literatura brasileira como Graciliano Ramos (Vidas secas/Vies arides - 2014), Luiz Ruffato (Estive em Lisboa e lembrei de você/A Lisbonne j’ai pensé à toi - 2015) e, também, João Guimarães Rosa (Estas estórias/Mon oncle le jaguar et autres histoires - 2016), todos publicados na França pela Editora Chandeigne.

ENTREVISTA COM MATHIEU DOSSE

Cadernos de Tradução (CT): Como e quando você começou a traduzir?

Mathieu Dosse (MD): A idéia surgiu enquanto estava fazendo meu doutorado sobre tradução. Tive que traduzir trechos do Grande Sertão: Veredas para o francês pois as traduções existentes não davam conta da complexidade do original. Adorei o trabalho. Depois tive vontade de traduzir o conto “Páramo” de Estas Estórias, que nunca havia sido traduzido em francês e que é, ao meu ver, um dos melhores do autor. Foi uma experiência tão forte que, depois de acabar meu doutorado, propus uma tradução do livro inteiro para a editora Chandeigne, que aceitou.

CT: Quais foram os primeiros autores brasileiros com os quais você teve contato?

MD: Leio em português desde criança. Me lembro em particular do Tesoura da Juventude, uma obra genial, que infelizmente não é mais editada. Mas meu primeiro encontro, já adulto, com um autor brasileiro, foi mesmo com o Guimarães Rosa.

CT: Qual é a sua relação com o Brasil e com a literatura brasileira? Qual foi a sua motivação para pesquisar Guimarães Rosa e dedicar parte de sua tese de doutorado na análise de Grande Sertão: Veredas?

MD: Sou filho de mãe brasileira e pai francês, portanto já conheço o português e o francês desde criança. Descobri Guimarães Rosa com 22 anos e fiquei maravilhado com a obra dele. Quando comecei a pensar num projeto de tese, depois de ter trabalhado sobre Nabokov no mestrado, a ideia da tradução e do Guimarães Rosa me veio naturalmente. Queria trabalhar com os meus autores preferidos!

CT: Em sua tese foram analisados três autores: James Joyce, Vladimir Nabokov e João Guimarães Rosa. Em sua opinião, qual é a relação que se pode estabelecer entre eles e em qual lugar o escritor brasileiro se encontra no cenário literário internacional?

MD: Existe uma ligação entre as invenções lexicais e estilísticas de Joyce e de Guimarães Rosa, mas acho que na verdade são escritores bem diferentes, embora sejam todos os dois gênios da literatura. O que se pode dizer sobre esses três escritores é que são três gênios singulares, com uma escritura absolutamente própria, que não se parece com nada. Joyce e Nabokov são reconhecidos internacionalmente, mas Guimarães Rosa ainda não; não somente pelo fato da sua obra ser tão difícil de ser traduzida, mas também porque o português não é o inglês...

CT: Seria possível falar/descrever algumas especificidades da forma de escrever de Guimarães Rosa? Como foi traduzir a literariedade autêntica deste autor? Como você se posiciona diante dos elementos estéticos e de estilo do autor?

MD: Guimarães Rosa é tão singular que cada frase, ou até mesmo várias palavras dele, são imediatamente reconhecíveis. Existem além disso muitas expressões que são quase incompreensíveis... mas a dificuldade, para o tradutor, é tentar manter, sempre que possível, a polissemia do original. Não traduzir uma frase enigmática por uma frase simples, não anular esse efeito tão particular. Quando um leitor comum lê Guimarães Rosa, ele não deve parar a cada frase ou palavra, ele deve se deixar levar por essa escritura, pela sonoridade das palavras... mas como fazer isso quando se traduz? O tradutor tem que parar quando ele não entende uma palavra ou um frase; parar e pesquisar nos dicionários, na internet... tentar entender algum sentido, para somente depois começar o processo de tradução e tentar reproduzir o mesmo efeito do original, mantendo se possível uma forma de ambiguidade.

CT: Você traduziu recentemente para o francês a obra rosiana Estas Estórias sob o título Mon oncle le jaguar et autres histoires. Quais foram as dificuldades encontradas no processo tradutório? Quanto tempo de trabalho foi necessário para realizar a tradução?

MD: Demorei um ano, mais ou menos, trabalhando todos os dias. Alguns contos foram mais fáceis que outros. Aqueles escritos no final dos anos 60 são sem dúvida os mais difíceis. Busquei arcaísmos em francês, palavras raras, um pouco envelhecidas, um ou outro regionalismo. Para o conto “A simples e exata estória do burrinho do Comandante” tive que pesquisar o vocabulário marítimo, muito usado pelo narrador, privilegiando sempre palavras antigas, pouco usadas. O importante, traduzindo Guimarães Rosa, é fugir os lugares comuns, as expressões corriqueiras, gastadas. Tem que ser uma escritura absolutamente nova!

CT: Como foi o processo de escolha das obras que você traduziu? Você que deu o start indicando autores e títulos ou isso parte da editora?

MD: Com o Guimarães Rosa, foi um projeto meu, que a editora aceitou. Quanto aos outros autores, traduzi a pedido deles.

CT: Qual foi o maior desafio que a tradução de Rosa lhe apresentou?

MD: Manter a originalidade do texto original, não nivelar tudo num francês que já existe, mas criar em francês uma forma de língua que seja tão bela quanto o português de Guimarães Rosa. Mas em alguns contos o texto é tão denso, tão difícil de acesso, que é preciso tempo para, num primeiro momento, entender o que está sendo dito, e depois começar o trabalho de tradução. Se o autor estivesse vivo, com certeza o meu trabalho teria sido mais fácil! Não são tanto os neologismos que são difíceis de traduzir (embora alguns tenha me tirado o sono), são também os arcaísmos, muito numerosos, e a complexidade rítmica do texto, essencial. É relativamente fácil traduzir criando, a partir do português, um francês simples, elegante, neutro. Mas isso não é o Guimarães Rosa! Cada frase dele é imediatamente reconhecível, em português. Então, idealmente, é importante que, em francês, ele seja também tão reconhecível, tão original.

CT: Você tomou por base outras traduções para desenvolver a sua tradução de Estas Estórias?

MD: O conto “Meu tio o iauaretê” tinha sido traduzido para o francês por Jacques Thiériot. Embora minha leitura de Guimarães Rosa seja bem diferente da desse tradutor, olhei de vez em quando em francês algumas expressões que ele usa.

CT: Qual(is) foi(ram) a(s) metodologia(s) de tradução que você utilizou para a tradução desta obra de Rosa?

MD: Sou um grande leitor de Henri Meschonnic, mas traduzindo procuro esquecer tudo que sei sobre teoria da tradução e servir, da melhor maneira possível, o texto original. Além disso, o Guimarães Rosa é tão particular, tão original, que ele desencadeia sua própria metodologia da tradução.

CT: Além da formação em Literatura, você possui alguma formação na área de tradução? Como começou o ofício de tradução na sua vida? Existe alguma teoria de tradução com a qual você se identifica para traduzir Guimarães Rosa?

MD: Fiz minha tese sobre teoria da tradução. Portanto li praticamente tudo que se fez nessa área. Com certeza considero Henri Meschonnic um dos maiores teóricos da tradução. Foi traduzindo trechos do Grande Sertão: Veredas para meu trabalho que senti a necessidade de traduzir Guimarães Rosa. Comecei com o conto “Páramo”, que é incrível, um dos melhores do autor, a meu ver.

CT: Você poderia descrever qual é o público francês que lê João Guimarães Rosa?

MD: Diria que é um público que gosta de literatura em geral, e que não tem medo de se aventurar na obra de um autor que não é sempre fácil de acesso. Mas alguns contos, como “Meu tio o iauaretê”, que são mais simples, quanto à linguagem, podem ser lidos por qualquer um. Outros exigem mais dedicação. Mas, de uma forma geral, acho que o público na França é o mesmo do que no Brasil.

CT: Como é a recepção hoje, na França, das obras de Guimarães Rosa? Você acha que o interesse tem evoluído com o tempo?

MD: Tenho a impressão de que está cada vez melhor. Ainda falta, talvez, uma nova tradução de Grande Sertão: Veredas para que o autor seja realmente considerado como um dos maiores artistas do século passado, mas acho que esse dia vai chegar.

CT: Como é o mercado editorial para obras de autores como Guimarães Rosa?

MD: A editora Chandeigne, para a qual trabalho, vem fazendo há anos um imenso trabalho de divulgação da literatura em língua portuguesa. É graças a ela que a literatura brasileira vem sendo cada vez mais conhecida na França.

CT: Qual é a situação atual da tradução da literatura brasileira na França? Como é a recepção da tradução de autores brasileiros no seu país?

MD: Ano passado, o Brasil foi pela segunda vez o convidado especial do Salon du Livre de Paris. Cada vez mais a literatura brasileira vem sendo conhecida e reconhecida. Se falou muito do Brasil nos últimos anos, com a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. É um Brasil de verde-amarelo que vende muito: festa, carnaval, música. Os franceses adoram. Mas sempre digo que a jóia escondida do Brasil, o diamante dentro da pedra, é o Guimarães Rosa.

CT: Até que ponto você acredita que o tradutor precisa ser também um escritor? O que busca em suas traduções?

MD: Me parece que não se deve confundir o escritor com o tradutor. São atividades distintas. É claro que o tradutor deve saber escrever e ter um bom ouvido (saber escutar o autor que traduz e saber ouvir na língua para a qual traduz), mas isso não quer dizer que um escritor será necessariamente um bom tradutor, ou que um bom tradutor seja um bom escritor. É uma questão que já foi muito debatida, mas devemos lembrar que há na tradução algo da restituição, e não somente da criação. Além disso, um ponto importantíssimo, é que a tradução é, por essência, mortal, ao contrário do texto original. O escritor tem a esperança de que sua obra atravesse os tempos; o tradutor sabe que ele apenas pode servir essa obra original, que seu trabalho é de qualquer forma (porque toda língua evolui e toda tradução envelhece) efêmero. Mas isso não deve ser considerado um ponto negativo; ao contrário, tomando em conta esse mortalidade, podemos, como tradutor, trabalhar o texto e a língua para a qual traduzimos, criar algo novo, que acrescente algo.

CT: Com qual tradução você mais se identificou? Por quê?

MD: Não diria que me identifico com o que traduzo. Tento escutar o autor e fazer com que o leitor francês tenha um efeito similar (não idêntico) na sua leitura à experiência do leitor brasileiro. É necessário abandonar algo quando se traduz. Não se pode traduzir tudo. Por isso, busco a essência do texto original, aquilo que, além do simples sentido, faz com que o texto seja um grande texto.

CT: Sabemos que o ofício de tradutor ainda não é uma profissão institucionalizada (ao menos no Brasil). Na França é possível viver atuando somente como tradutor?

MD: É difícil viver só de traduções literárias, mas não impossível, ao meu ver. Isso pede tempo e também sorte. Por enquanto vivo disso. Vamos ver o que o futuro reserva!

CT: Você está trabalhando atualmente em alguma tradução? Você tem algum projeto de traduzir (ou retraduzir) outras obras de Guimarães Rosa para a língua francesa?

Em razão de sigilo profissional Mathieu Dosse não pôde informar quais obras está traduzindo no momento.

ANEXO

    Livros traduzidos

    • RAMOS, Graciliano. Vies arides Tradução de Mathieu Dosse. Paris: Éditions Chandeigne, 2014. 160 p.
    • ROSA, João Guimarães. Mon oncle le jaguar et autres histoires Tradução de Mathieu Dosse. Paris: Éditions Chandeigne, 2016. 432 p.
    • RUFFATO, Luiz. A Lisbonne j’ai pensé à toi Tradução de Mathieu Dosse. Paris: Éditions Chandeigne, 2015. 112 p.

    Publicações

    • DOSSE, Mathieu. Poétique de la lecture des traductions: Joyce, Nabokov, Guimarães Rosa Paris: Classiques Garnier, 2016. 479 p.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      May-Aug 2017

    Histórico

    • Recebido
      19 Out 2016
    • Aceito
      28 Dez 2016
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