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Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras. 2017, 182 p.

Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Brandão, Eduardo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 182

O chileno Roberto Bolaño começou a publicar aos 43 anos, tardiamente, se levarmos em conta que morreu aos 50 em decorrência de uma doença grave no fígado. Ainda assim, deixou um número considerável de obras que rapidamente o alçaram ao patamar de principal escritor latino americano das últimas décadas do século XX. Tal notoriedade não definhou com sua morte precoce em 2003, pelo contrário, pareceu adensar-se ao ponto de já se falar em uma “bolañomania”1 Termo utilizado pelo tradutor Eduardo Brandão em entrevista ao portal da Folha de São Paulo, em 2010. , e vem sendo alimentada por uma série de publicações póstumas de manuscritos inéditos deixados pelo autor em seus cadernos de anotação.

Esse impressionante manancial de inéditos, comparado pelo crítico Christopher Domínguez Michael (Bolaño (A)Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)) ao de Fernando Pessoa, já legou, além do célebre 2666, obra monumental apontada pelo jornal El País como o melhor livro de língua espanhola publicado nos últimos 25 anos, outros sete títulos, dentre eles, O Espírito da ficção científica.

Este último, escrito nos anos 1980, foi a primeira incursão do autor, anteriormente poeta, pela prosa ficcional, e que, no entanto, por sua escolha, ficou engavetado. Por esse e outros motivos, foi lançado em meio a polêmicas. Uma delas foi a mudança de editora por parte dos herdeiros do escritor, isto é, a viúva Carolina Lopez e seus filhos, abandonando a Anagrama, do amigo de Bolaño Jorge Herralde, pela Alfaguara. A outra polêmica está ligada à discussão se é correto que os herdeiros publiquem manuscritos inéditos de escritores falecidos que, em vida, escolheram não os publicar. Claro que aqui entram em jogo interesses editoriais, mercadológicos, e, obviamente, financeiros, o que, por mais questionáveis que sejam, são inevitáveis, pois, segundo Michael (Bolaño (A) 10Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)) em seu prefácio à edição espanhola, “la novela nació ligada ao comercio desde los tempos de Walter Scott, Balzac e Eugène Sue”.

Ao contrário do que se possa deduzir acerca do acabamento de um manuscrito inédito guardado por mais de trinta anos, este romance foi fruto de árduo trabalho de longos anos, como atestam cartas trocadas por Bolaño com amigos. Como bem assinala Michael, qualquer outro escritor o teria publicado, e não faltariam editoras para fazê-lo, no entanto atribui a recusa do escritor à consciência de seu projeto literário, “un proyecto enorme, lleno de dificuldades e pruebas, en el cual decidió experimentar, absteniéndose de publicaciones precoces, acaso convencido secretamente del destino clásico de su trabajo” (Michael inBolaño (A) 12Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)).

Dessa forma, estilo, temas e personagens desta narrativa aparecerão e desenvolver-se-ão em obras posteriores (e que vieram a público anteriormente) de Bolaño. Os protagonistas são Jan, alter ego literário do próprio autor: “Jan Schrella, dito Roberto Bolaño”. (Bolaño 168Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)) e Remo, personagem que retornará em A pista de gelo, dois jovens chilenos recém-chegados à Cidade do México, onde vivem sua iniciação literária e sexual.

O estilo narrativo é fragmentário, com diversas vozes que desdobram outras narrativas. Poderíamos falar de uma narração principal, um eixo narrativo, feita por Remo em primeira pessoa. Nela acompanhamos o relato do cotidiano do jovem no Distrito Federal, seu convívio com o colega de quarto Jan, seu trabalho em periódicos literários de pequeno porte, sua visita a uma oficina de poesia onde conhecerá José Arco, que o acompanhará nas perambulações pela cidade, numa inusitada investigação acerca do espantoso número de periódicos e oficinas literárias na capital mexicana e em festas com outros jovens poetas regadas a álcool e sexo, em uma das quais o rapaz conhece Laura, por quem se apaixona.

Paralelamente, lemos as cartas escritas por Jan destinadas a famosos escritores de ficção científica – tais como Alice Sheldon, Forrest Ackerman, Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin, entre outros – gênero pelo qual o jovem é aficionado. Tais correspondências são enigmáticas e algumas vezes beiram o nonsense, no entanto também apresentam considerações acerca da obra dos escritores, reflexões do personagem sobre o porquê de ele enviar tais correspondências, além de fazer apelos a que intercedam pelo fim das políticas de agressão perpetradas pelos Estados Unidos contra a América Latina, pedindo que fortaleçam um “Comitê Norte-Americano de Ficção Científica Pró-Flagelados do Terceiro Mundo”.

Há ainda uma entrevista com um escritor de ficção científica, durante uma festa de sua premiação. A entrevistadora afirma que ele é o mais jovem escritor a ganhar tal prêmio. Tal escritor não é nomeado, mas podemos inferir que se trata de Jan em um futuro próximo. Esse seguimento narrativo se dá em formato dramático, sem a interferência de um narrador, no entanto, durante o diálogo, o escritor conta o enredo de seu livro premiado.

Esses seguimentos alternam-se ao longo do romance, traçando um panorama fragmentário e plural de tempos, espaços e vozes narrativas, que, à maneira de uma boneca russa, engendram outras e outras narrativas, sem que nenhuma delas encontre, de fato, um término. O seguimento da entrevista interrompe-se abruptamente sem ser retomado novamente, as cartas também parecem não resultar em nada, e mesmo a investigação empreendida por Remo e José Arco, que seria a coluna de sustentação da obra, não chega a conclusão alguma. Tal como a vida daqueles personagens, naquele momento, parece muitas vezes uma interminável perambulação sem sentido, assim também a narrativa resulta rotunda e inconclusa. Há quem possa considerar isso um defeito consequente da falta de maturidade e confiança de um escritor estreante que, consciente do inacabamento do romance, resolveu pô-lo de lado e se dedicar a projetos mais elaborados. Mas podemos ler esse dado também como a principal força metafórica desta narrativa pois, em sua própria estrutura, mimetiza a vida de seus personagens: poetas e intelectuais falidos do terceiro mundo, sem perspectivas ou objetivos claros, sustentando-se precariamente, tentando viver de sua poesia.

Assim, o título, O espírito da ficção científica, parece carregar uma ambiguidade. O espírito surge como uma espécie de força anímica, uma ideia ou uma acepção que define este gênero literário, mas pode ser também um fantasma que assombra os personagens das narrativas. O espírito é aquilo que Jan busca ao ler incessantemente obras e ficção científica e intentar escreve-las também, mas o espírito também o assombra em pesadelos perturbadores em parte causados pelos enredos aterrorizantes das obras que lê. É sintomático o sonho de Jan com Thea Von Harbour, escritora e atriz alemã, responsável por escrever, ao lado de Fritz Lang, o roteiro de um filme seminal na história do cinema de ficção científica, Metrópolis (1927), tendo posteriormente se filiado ao partido nazista.

O nazifascismo, os regimes totalitários, presentes em grande parte das obras de ficção científica futuristas distópicas, parece ser esse espectro atormentador. Como afirma Schneider Carpeggiani em resenha para o Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco:

Bolaño foi engenhoso ao subverter as leituras das grandes distopias de língua inglesa. No lugar de escrever ficção científica com enredos aterrorizantes, coloca-os em histórias lidas por seus personagens, em pesadelos que os perseguem e nas miragens que costumam acometer todos aqueles que buscam em algum momento fazer contato com algo ou alguém

(Carpegianni s/pCarpeggiani, Schneider. “Bolaño vê estrelas”. Disponível em http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/72-resenha/1807-roberto-bola%C3%B1o-v%C3%AA-estrelas.html.
http://www.suplementopernambuco.com.br/e...
).

Portanto, o fantasma do autoritarismo distópico é o que assombra esses jovens exilados, o fantasma dos regimes totalitários que assolaram a América Latina na segunda metade do século XX (Argentina, Brasil, Chile), financiados pela pátria desses autores a quem Jan parece pedir socorro. Um fantasma que não está num futuro hipotético, mas no aqui e agora (o ano de 1984 com o qual Bolaño data o término do livro lembra alguma coisa?2 2 Em resenha publicada no caderno de cultura do jornal Estadão, Ubiratan Brasil comenta as correspondências pessoais de Bolaño com amigos, apresentadas em reportagem do jornal espanhol El Periodico, nas quais o escritor chileno relata o processo criativo do Espírito.... Elas revelam que, apesar da data oficial do término do romance ser 1984, tal como está registrado, há cartas datadas de 1985 e até 1986 nas quais ele afirma ainda estar às voltas com a sofrida escrita desta narrativa. Pode-se, portanto, levantar a hipótese de que a data de 1984 seja fictícia, estipulada deliberadamente para fazer menção ao clássico de George Orwell. ).

No Brasil o livro foi publicado pela Companhia das Letras, mesma editora que vem publicando toda a obra do autor por aqui, e traduzido por Eduardo Brandão, também tradutor de todos os livros de Bolaño publicados no Brasil, com exceção de Estrela Distante (traduzido por Bernardo Ajzenberg) e A literatura nazista na América (traduzido por Rosa Freire D’Aguiar).

O paratexto da edição brasileira rompe com um certo padrão das obras do autor publicadas anteriormente. Nessas (a última, As agruras do verdadeiro tira, de 2013) o nome do autor vinha abaixo do título do livro, em uma fonte menor. Em O espírito... o nome de Roberto Bolaño vem primeiro, em uma fonte grande, do mesmo tamanho do título do livro, e abaixo de ambos, em uma fonte bem menor, a indicação “Romance inédito do autor de 2666 e Os detetives selvagens”. Esse dado parece indicar que a popularidade do autor cresceu nos últimos anos no Brasil, e a editora já busca tirar proveito disso, reforçando ainda mais o apelo comercial com a indicação de suas obras mais célebres.

O nome do tradutor aparece apenas na folha de rosto. Após a ficha catalográfica, vem a dedicatória “Para Carolina Lopez”, e então segue-se o romance. Não constam nessa edição o prólogo de Christopher Domínguez Michael, nem os fac-símiles de algumas páginas do manuscrito original, presentes na edição espanhola. Por outro lado, esta última possui apenas uma nota de rodapé, enquanto que a edição brasileira traz algumas notas explicativas do tradutor e outras do editor. Em alguns casos, essas notas esclarecem dados do contexto cultural e social do México, como por exemplo, quando aparece o nome Hoja Cultural de Conasupo (56), o tradutor escolhe mantê-lo em espanhol, e em nota explica que Conasupo quer dizer “Compañia Nacional de Subsistencias Populares”, ou ainda, quando surge o termo pulquería (75), o tradutor também o mantém em espanhol, e em nota diz se tratar de “Bar de pulque, bebida alcoólica mexicana”.

Em outros casos, essas notas trazem esclarecimentos acerca de elementos de livros de ficção científica lidos e citados por Jan. Por exemplo, em carta destinada a Ursula K. Le Guin, Jan cita os crichis, que, em nota, o tradutor elucida se tratar de uma raça alienígena colonizada por humanos no romance O nome do mundo é a floresta, da referida autora.

Há outras ocasiões, no entanto, em que essa tendência explicativa não vem em notas de pé de página, mas no próprio corpo do texto traduzido. Por exemplo, enquanto na edição espanhola nós temos: “Así que le dije no te mueras, estás igualito que el Príncipe Idiota, te traería un espejo se tuviéramos un espejo (...)” (Bolaño (A) 21Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)), o tradutor brasileiro escolheu vertê-lo para o português da seguinte maneira: “Assim, eu disse a ele não morra, está igualzinho ao idiota de Dostoiévski, eu lhe traria um espelho se tivéssemos um” (Bolaño (B) 11Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)).

Observemos que “el Príncipe Idiota” foi traduzido por “idiota de Dostoiévski”. A referência à obra do autor russo no texto original é reconhecível de maneira implícita, e, se fosse traduzida para o português literalmente, manter-se-ia o efeito de sentido.3 3 Há traduções desta obra do escritor russo para o espanhol intituladas Príncipe Idiota, já para o português, a primeira tradução chamava-se O Príncipe Idiota. Em traduções posteriores, modificaram-se os títulos para El idiota, em castelhano, e O Idiota, em português. No entanto, o tradutor escolheu tornar a referência mais explícita. Trata-se de um exemplo do que Berman chamou de “clarificação”, isto é, uma tendência de o tradutor “tornar ‘claro’ o que não é e não quer ser no original”. (Berman 71).

O exemplo acima é paradigmático, mas há ainda outras ocasiões em que essa tendência clarificadora se apresenta na tradução. Por exemplo, na primeira vez em que a Cidade do México é mencionada no texto em espanhol, é referida apenas como “DF” (Bolaño, 26Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)), isto é, o Distrito Federal. Ao decorrer da narrativa, quando o espaço vai se delineando e estabelecendo, identifica-se que a história se passa na capital mexicana. Mas, talvez por questões didáticas, Eduardo Brandão traduz essa primeira menção como “Cidade do México” (Bolaño (B)16Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)), esclarecendo de imediato aquilo que pode ficar subentendido no texto original. Em outro momento, quanto o texto na língua de origem faz menção a um “anuncio de Tecate” (Bolaño (A) 51Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)), o tradutor verte para “anúncio da cerveja Tecate” (Bolaño (B) 38Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)), dessa vez esclarecendo aquilo que poderia ficar obscuro para um leitor de língua portuguesa pouco familiarizado com a cultura mexicana.

Outra característica que notei na tradução foram algumas omissões de palavras, e, ocasionalmente, frases inteiras. A primeira ocorrência que pode ser citada está na página 25 da edição espanhola, quando um personagem menciona a “Academia da Papa o de la Patata”, traduzido apenas como “Academia da Batata” (Bolaño (B) 15Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)). Omissão justificável pelo fato de não haver em português, como há no castelhano, mais de uma palavra para designar batata (pata e patata são variações regionais de batata em espanhol). Exemplo semelhante ocorre no trecho: “com panes e paltas, que em adelante y para siempre llamaria aguacates (...)” (Bolaño (A) 30Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)), traduzida apenas como “com pães e abacates” (Bolaño (B) 20Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)). Mais uma vez, uma variação regional do castelhano que não encontra equivalente em português e foi suprimida.

Entretanto, há outras omissões cujas causas não são tão evidentes. Chama a atenção o trecho a seguir. Enquanto no texto fonte temos: “El origen, creo, está en el Kriegsspiel alemán, los grandes tableros estratégicos donde en el siglo passado se jugaban las guerras antes de inciarse, o en el ajedrez, un juego de guerra abstracto” (Bolaño (A) 166Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A)), lê-se no texto traduzido: “A origem, creio, está no Kriegspiel alemão, um jogo de guerra abstrato” (Bolaño (B) 137Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B)). Percebe-se aí que há uma considerável e injustificada simplificação, com a supressão de dois apostos que acrescentam informações muito relevantes ao tema.

Há ainda um caso patente daquilo que Berman (75)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013., chama de empobrecimento qualitativo, isto é, a

substituição dos termos, expressões, modos de dizer etc. do original por termos, expressões, modos de dizer, que não têm nem sua riqueza sonora, nem sua riqueza significante ou — melhor — icônica. É icônico o termo que, em relação ao seu referente, “cria imagem”, produz uma consciência de semelhança.

Avaliemos o seguinte excerto do texto de partida: “fue entonces cuando me di cuenta que no solo sudaba a mares sino que el mar era frío” (Bolaño(A)Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A) 21), que na tradução de Eduardo Brandão ficou: “ foi então que me dei conta que não só suava a cântaros, mas que o mar era frío” (Bolaño (B)Bolaño, Roberto. O espírito da ficção científica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2017. (B) 11).

Notamos aqui que Eduardo Brandão substituiu o termo “sudaba a mares” por “suava a cântaros”, modificando não só a metáfora, mas também o recurso poético sonoro alcançado com a repetição de “mares” em “mar”, optando por recorrer a uma expressão da língua portuguesa: “suava a cântaros”. Dessa forma, o tradutor elimina o eco, ainda que mantendo, parcialmente a aliteração e a assonância, e empobrece a riqueza sonora do trecho, tal como aponta Berman.

Cabe tratar ainda do que Berman (2013)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013. chama de “a destruição dos ritmos” na tradução em questão. Segundo o teórico francês a prosa, não diferente da poesia, possui um ritmo próprio, ou ainda uma multiplicidade de ritmos. Uma das formas de reconhece-lo é por meio da pontuação. A pontuação de Bolaño, em O espírito da ficção científica, não é convencional, podendo haver grandes períodos sem vírgula ou ponto, provocando uma proposital aceleração no ritmo da narrativa. A tradução, por sua vez, tem um número consideravelmente maior de vírgulas, o que fica bem mais evidente em alguns trechos, como nos que seguem:

Cuando desperté lo primero que vi fue la cara de Jan con las mejillas coloreadas y el perfil griego de Angélica Torrente fumando un Delicado y luego la sonrisa de Laura serena y expectante y una especie de arco de energía muy delgado y mui negro que parecía unirlos y que atribuí a mis legañas y finalmente, mientras me cubría con la sábana hasta la nariz, vi la puerta abierta y las plantas del corredor que se estremecían y a la hija de una de las arrendatarias que se alejaba con un rollo de papel higiénico en una mano y una radio de transistores a todo volumen em la otra.

(Bolaño (B)Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A) 193)

Quando acordei, a primeira coisa que vi foi a cara de Jan com as bochechas coloridas e o perfil grego de Angélica Torrente fumando um Delicado e depois o sorriso de Laura, serena e expectante, e uma espécie de arco de energia muito fino e muito preto que parecia uni-los e que atribuí a minhas remelas, e finalmente, enquanto me cobria com o lençol até o nariz, via porta aberta e as plantas do corredor que estremeciam e a filha de uma das inquilinas que se afastava com um rolo de papel higiênico numa mão e um rádio transistorizado a todo volume na outra.

(Bolaño (B)Bolaño, Roberto. El espiritu de la ciência-ficción. Prólogo de Christopher Dominguez Michael. Nueva York: Vintage Español/Penguin Randon House, 2016. (A) 159)

Note-se que as duas vírgulas do texto fonte transformaram-se em seis no texto traduzido. Essa multiplicação das pausas e quebra na cadência do texto ocorre também em outras partes do romance, talvez como uma tentativa de corrigir aquilo que causa desconforto por ser, nas palavras de Berman (77)Berman, Antoine. A tradução e a letra ou o albergue longínquo. Tradução de Marie-Hélène C. Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Florianópolis: PGET/UFSC, 2013. “da ordem do diverso, mesmo do disparate”.

Feitas essas considerações, é possível concluir que Eduardo Brandão, um tradutor experiente e profundo conhecedor da obra de Roberto Bolaño, produziu uma tradução muito próxima lexical e sintaticamente do texto fonte, operando, no entanto, algumas transformações no sentido de tornar o texto mais facilmente compreensível para o leitor de língua portuguesa, ou ainda de torná-lo mais palatável, eliminando ou aplainando alguns elementos que possam causar estranhamento por fugir da norma, o que é, justamente, uma característica da prosa literária, sobretudo a de um escritor experimental como Roberto Bolaño.

  • Termo utilizado pelo tradutor Eduardo Brandão em entrevista ao portal da Folha de São Paulo, em 2010.
  • 2
    Em resenha publicada no caderno de cultura do jornal Estadão, Ubiratan BrasilBRASIL, Ubiratan. “Chega ao Brasil ‘O Espírito da Ficção Científica’, outro livro póstumo de Roberto Bolaño”. Disponível em http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,chega-ao-brasil-o-espirito-da-ficcao-cientifica-outro-livro-postumo-de-roberto-bolano,70001644349.
    http://cultura.estadao.com.br/noticias/l...
    comenta as correspondências pessoais de Bolaño com amigos, apresentadas em reportagem do jornal espanhol El Periodico, nas quais o escritor chileno relata o processo criativo do Espírito.... Elas revelam que, apesar da data oficial do término do romance ser 1984, tal como está registrado, há cartas datadas de 1985 e até 1986 nas quais ele afirma ainda estar às voltas com a sofrida escrita desta narrativa. Pode-se, portanto, levantar a hipótese de que a data de 1984 seja fictícia, estipulada deliberadamente para fazer menção ao clássico de George Orwell.
  • 3
    Há traduções desta obra do escritor russo para o espanhol intituladas Príncipe Idiota, já para o português, a primeira tradução chamava-se O Príncipe Idiota. Em traduções posteriores, modificaram-se os títulos para El idiota, em castelhano, e O Idiota, em português.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2019
  • Aceito
    25 Jul 2019
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