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TRADUZIR MEMÓRIA: ENTRE O OBJETO DISTRIBUÍDO E A MEMÓRIA MULTIDIRECIONAL1 1 Trecho de “Daybooks 1970-1972”, traduzido do lituano ao inglês por Vyt Bakaitis.

TRANSLATING MEMORY: BETWEEN THE DISTRIBUTED OBJECT AND THE MULTIDIRECTIONAL MEMORY

Resumo

A ideia de memória de Alfred Gell, presente em seu “Arte e Agência”, que atravessa a biografia da pessoa (entendida não apenas enquanto humana, mas também como o próprio objeto de arte) é posta em diálogo com estudos contemporâneos sobre memória cultural a fim de se debater o papel da tradução na perpetuação do que se quer lembrar. As ideias de media de memória de Aleida Assmann intermedeiam todo o trabalho, sendo a hipótese de que a tradução é um medium de memória o que traça um caminho entre todo o raciocínio aqui desenvolvido. A tradução é aqui estudada em contato direto com a vida, bios, como parte da construção biográfica da pessoa e da obra de arte, ou, especificamente, literária, a fim de recolocá-la nos debates sobre memória cultural.

Palavras-chave
Objeto Distribuído; Memória Multidirecional; Biografia; Tradução

Abstract

Alfred Gell’s idea of memory presented in his “Art and Agency”, which passes through the biography of the person (understood not only as human being, but also as the object of art itself), is put in dialogue with contemporary studies on cultural memory in order to debate the role of translation on the perpetuation of remembrance. Aleida Assmann’s media and memory concepts mediate all this work, bringing up the hypothesis that translation is a medium of memory. The translation is here studied in direct contact with life, bios, as part of the biographical construction of the person and the work of art, or, specifically, of literature, in order to reallocate it in the debates about cultural memory.

Key-words
Distributed Object; Multidirectional Memory; Biography; Translation

by thin blood threads my language still clings to childhood blue pale sunbleached boards cracking Jonas Mekas 2 2 Trecho de “Daybooks 1970-1972”, traduzido do lituano ao inglês por Vyt Bakaitis.

Ainda que a tradução seja uma das principais mídias de transmissão do que entendemos por memória cultural (ou seja, forma que excede a experiência individual, dizendo respeito à coletividade), a reflexão sobre a tradução como meio (medium) de memória parece ainda ter poucas consequências dentro das áreas específicas de estudos sobre memória cultural e sobre tradução. É nessa lacuna que este pequeno estudo se insere, tendo por objetivo pensar a tradução literária e artística como meio de memória. Parto do estudo de Aleida Assmann acerca das formas (media) de memória e suas transformações, “Espaços da recordação” (2011), a fim de delinear as primeiras fronteiras de meu objeto de estudo. Para a autora, a memória pode ser pensada como ars/arte, uma “técnica” de armazenamento que remonta à mnemotécnica da antiguidade, ou como vis/potência, uma “recordação” pensada criticamente, que se transforma no tempo e nele age (Assmann, 31-6Assmann, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora Unicamp, 2011.) – tanto os arquivos, quanto o que se coloca para além deles interessam-na. Assim, em seu livro, Assmann mobiliza uma vasta gama de autores e modos de pensar para localizar a questão da memória cultural nas sociedades contemporâneas, o que se desdobra no problema das transformações tecnológicas dos meios (media, formas) que abrigam e transmitem essa memória, ou que, ao contrário, corroboram para o seu esquecimento, na medida em que “memória” é sempre um campo de disputa, ou, nas palavras de Assmann: “O que se seleciona para a recordação sempre está delineado por contornos de esquecimento” (Assmann 437Assmann, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora Unicamp, 2011.). Nesse sentido, a memória cultural é pensada pela autora necessariamente em consonância com as mídias que lhe fazem abrigo, as quais, por óbvio, não se reduzem à escrita (muito menos à literatura). O caráter interdependente dos procedimentos de memória (seja como arquivo ou como recordação) e de suas mídias é parte da tese de “Espaços da recordação”, sendo consequência disso a percepção de que os meios (media) transbordam de si em metáforas (como a ideia de “escavação”, entre outros). Para Assmann:

Existem estreitas correlações entre os media e as metáforas de memória. Pois as imagens que foram encontradas por filósofos, cientistas e artistas para os processos da recordação e do esquecimento seguem, cada qual, os sistemas materiais dominantes de anotação e as tecnologias de armazenamento. Trazer à mente algo do espectro dessas imagens é, por assim dizer, descrever a mudança das teorias da memória na área de intersecção com a história dos media.

(Assmann 161Assmann, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora Unicamp, 2011.)

A mudança na compreensão do que seja memória é acompanhada por uma mudança em suas media. A mudança de mídias é algo abordado com profundidade em “Espaços da recordação”. O que proponho aqui é uma reflexão sobre a mudança no medium, ou melhor, em uma mídia específica, a tradução, enquanto meio possível de acesso à memória. Talvez por não se entender como um espaço perene, que seja capaz de manter, armazenar e transmitir por si só a memória cultural, a tradução não seja abordada mais do que lateralmente por Assmann e pela maioria dos estudiosos do campo da memória cultural. É fato, porém, que a tradução é um meio de invocar e – residindo aqui alguns “perigos” e polêmicas – transformar o que entendemos por memória cultural. Traduzir memória, assim, perpassa necessariamente a compreensão do que é tradução enquanto meio (medium) rememorativo, o que, para alguns autores, estaria ligado a uma tarefa. Pode-se pensar aqui nas ideias benjaminianas de Jean-Marie Gagnebin sobre memória, autora que escreve influenciada pelos restos deixados pela Shoah (porém já tempos depois dos seus horrores, quando as testemunhas que tiveram a experiência direta da guerra e do genocídio estão quase por inexistir). Em nosso período histórico a memória cultural se mantém como problemática relevante, visto que não se chegou a uma solução para a aparente potência de repetibilidade do horror. Para qualquer tradição benjaminiana, a tarefa da rememoração, afinal, é “altamente política: lutar contra o esquecimento e degeneração é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente)” (Gagnebin 47Gagnebin, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.). Isso se liga à própria ideia de “origem” de Walter Bejamin, a qual não se encontra destacada dos “fatos, mas se relaciona com sua pré- e pós-história” (Benjamin (a) 67-8Benjamin, Walter (a). Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.), sendo o originário sempre também algo “incompleto e inacabado” (idem), permeável, portanto.

Destarte, a origem, categoria tão importante ao pensamento tradutológico, não se resume a um passado transcendental e/ou imutável, sendo antes uma potência de originar. Nessa ótica, a tradução enquanto meio (medium, forma) de memória não pode ser pensada (ao menos singularmente) enquanto arquivo ou ferramenta carregada unicamente de pulsões arquivísticas: a tradução, antes, carrega em si a potência de originar. Seja um debate, uma forma literária desconhecida a certo público (como peças polonesas que tratam dos horrores da Shoah e dos horrores do domínio soviético), uma imagem ainda alienígena a certa sociedade; a potência da tradução, a sua potência de forma, não reside simplesmente em suas qualidades de transporte e travessia, mas também no fato de, a partir de um contexto-alvo, de um “local de origem”, reimaginar/originar certa memória, e, assim, rememorá-la. O rememorar tradutório evidencia algo pertinente a qualquer objeto carregado de memória: a lembrança constantemente se transforma. Assim, o ato de traduzir memória configura-se também por suas necessárias alterações no percurso da travessia. Se pensarmos em memória cultural em tradução, novamente podemos invocar a ideia de Assmann: o lembrado é sempre delineado por uma gama de esquecimentos. Para além da melancolia da perda, encarar a tradução enquanto ferramenta de origem (capaz de incessantemente originar novos elementos em uma dada cultura, língua e linguagem) é ver nela um medium carregado de potência de intervenção. Do mesmo modo como a memória não pode ser tratada de forma monolítica, a tradução de memória cultural deve ser pensada a partir de seu caráter múltiplo. Traduzir memória é, sim, confiá-la a uma espécie de armazenamento, a uma mídia; o qual, porém, terá ação sobre o que é armazenado, a fim de apresentá-lo em um novo contexto. Os modos de tradução da memória cultural variam muito, ainda que para muitos pensadores desse campo de pesquisa haja certa aura intransponível nos objetos de memória, o que garantiria, a priori, um modo de tradução quase dogmático (baseado na experiência direta do horror e do trauma, por exemplo). Penso que – e sei que muitos assim o pensam – a intransponibilidade da experiência pouco tenha a ver com a possiblidade de tradução, de tê-la enquanto mídia e meio de memória. Contudo, a questão ética que mobilizou e mobiliza tantos debates nesse campo não deve ser entendida como ultrapassada ou resolvida, antes é possível se perceber o contrário, a atualidade do debate, uma vez que as tênues linhas que divisam o que se “fala” e o que se “cala” em arte no tocante à memória cultural após os horrores da Shoah nunca alcançaram a precisão desejada pela crítica. Quando se pensa no recordar como modo de evitar a repetição (algo especificamente interessante aos estudiosos da memória cultural), os modos de representação dos tristes fatos que conformaram as sociedades modernas e contemporâneas devem ser pensados com zelo. Calar nunca foi suficiente à lembrança ou ao esquecimento, tampouco o muito-dizer. A poesia e a arte em geral “após Auschwitz”, nesse sentido, ainda carregam a potência da rememoração em sua capacidade de originar, atentas à escuta do outro e tendo em vista uma responsabilidade ética – ao menos a arte que ainda se indigna perante às catástrofes do que chamamos história.

É certo que não falo aqui de todas as formas possíveis de tradução relacionadas à memória cultural. Ainda assim, não tenho por intenção repetir reverberações da “impossibilidade” de se produzir ou traduzir poesia/arte após a catástrofe. Para além de uma necessidade, de uma tarefa, penso que a tradução em contextos de memória cultural – pensada enquanto forma de memória, medium – carrega em si também certa liberdade de transformar e de se transformar (mudar, enquanto forma). Isso é devido à própria maleabilidade da lembrança e do trato com o passado. Em um estudo recente de Elizabeth Jelin acerca do trato da memória cultural na Argentina (e também em outras regiões da América Latina, em especial no Cone Sul), “La lucha por el pasado”, a insolubilidade das problemáticas de memória é clara: para Jelin, (– “as memorias são presente, uma busca por sentido do passado em função de um horizonte futuro”3 3 “las memorias son presente, una búsqueda de sentido del pasado en función de un horizonte futuro” (Jelin 32) , (Jelin 32Jelin, Elizabeth. La lucha por el passado: cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017., tradução minha), ou seja um “processo vivo”, o que impossibilita uma resolução definitiva sobre o que (se) foi (Jelin 58Jelin, Elizabeth. La lucha por el passado: cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017.), uma vez que a própria memória é um processo de atualização e, portanto, diferenciação. Nesse processo de atualização são necessários ferramentas e meios (media), como a tradução.

Enquanto meio com potência de originar que cria relações entre diferentes momentos históricos, a tradução de memória e, em específico, de memória cultural, não se limita a uma fórmula. Assim como os movimentos de luta por memória mudam com o tempo (por meio de novas gerações e novas informações sobre diferentes experiências traumáticas que passam a complementar o que se intenta lembrar enquanto coletividade), a ideia de memória não resta estanque. Nesse sentido, penso que o conceito de memória multidirecional desenvolvido por Michael Rothberg seja emblemático da reimaginação da memória cultural em nossos tempos. Partindo dos horrores da Shoah – que tiveram como consequência a realocação do problema de memória (desde o fim da guerra, em diferentes frentes e por diferentes modos) no centro de debates contemporâneos transdisciplinares sobre nossas sociedades, seus produtos, e seus possíveis futuros e passados –, Rothberg propõe a ideia de uma memória cultural “não competitiva”, ou seja, que esteja aberta a usar suas ferramentas e suas formas para fazer diferentes fatos históricos dialogarem entre si, simultaneamente, uma vez que memória é necessariamente uma experiência compartilhada (mesmo dentro de um só corpo, de um só indivíduo). Dessa forma, o estudo de Rothberg que integra desde a Shoah até os debates decoloniais não é apenas possível, como extremamente necessário, ainda mais se pensarmos em tradução e na pletora de experiências e contextos que uma tradução carrega (seja interlingual ou intersemiótica). Ao confrontar algumas ideias de memória cultural, Rothberg defende não haver uma “linha direta entre a lembrança do passado e a formação de identidade no presente” (Rothberg 4Rothberg, Michael. Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the age of decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009.), sendo essa formação atravessada por diferentes memórias e traumas. Rothberg se contrapõe às batalhas que ocorrem dentro dos estudos sobre memória cultural, as quais acabam por estratificar o horror, ou pior, fazer da memória cultural um jogo de soma zero. É nesse sentido que surge sua proposta de memória multidirecional:

Contra a estrutura que compreende a memória coletiva como competitiva – como uma batalha de soma-zero por recursos escassos – sugiro que consideremos a memória como multidirecional: como sujeita a negociações contínuas, transreferencialidade e empréstimos; como produtiva e não privativa.4 4 A tradução é minha, assim como todas não marcadas na bibliografia. O original foi suprimido para adequação à economia deste periódico.

(Rothberg 4Rothberg, Michael. Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the age of decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009.)

Ao que complementa com a afirmação da memória como “uma forma de trabalho, trabalhar por meio de algo, labor ou ação” (idem 4), ou seja, algo que necessita uma intervenção. Rothberg pensa a memória cultural como algo que não exclui elementos de alteridade (Rothberg 5Rothberg, Michael. Multidirectional memory: remembering the Holocaust in the age of decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009.), mas antes forma convergência entre rememorações – na introdução de seu livro, o autor propõe essas ideias tendo em mente especificamente os embates identitários entre pensadores afro-americanos e judeus sobre a constituição de uma memória cultural nos EUA no que tange à visibilidade dos traumas e das memórias carregados pelos descendentes de pessoas escravizadas e pelos descendentes de sobreviventes da Shoah. Unindo a ideia de memória multidirecional às proposições de Assmann, podemos pensar que o meio ou forma da memória cultural exige a intervenção, o labor, a dedicação do memorialista sobre o objeto de memória.

Essa ideia de uma memória cultural não competitiva, não privativa, mas produtiva e que pense a identidade ligada à memória como algo construído por elementos convergentes a outras memórias, ou seja, de uma memória cultural multidirecional, é complementar à ideia de tradução aqui almejada. Se pensamos a tradução como uma forma de memória (individual e cultural/coletiva), e se a memória pode ser assumida como algo multiderecional, ou seja, em que uma gama de diferentes experiências, fatores e elementos convergem, a tradução – como só pode ser – é um medium multidirecional, eis que nunca uma língua-destino ou uma cultura-destino ou um indivíduo-destino podem ser encarados como figuras monolíticas. A tradução de memória carrega, assim, a característica multidirecional desta, abrindo-se ao contexto de destino como objeto pluripotente, capaz de dar acesso a novas relações a quem recebe a informação traduzida. Foi nesse sentido que desenvolvi em outro momento algumas traduções de Paul Celan ao português brasileiro influenciada por prerrogativas antropofágicas, acreditando ser possível escutar o genocídio ameríndio dentro da língua portuguesa se o movimento poético de inflexão e tritura no e do alemão de Celan for reimaginado em nosso contexto (2018). Ao se estudar mundos distantes do padrão moderno, em que as artes verbais têm existência e funções diferentes, a relação que caracteriza a tradução adquire novos elementos, assim, a ideia de multidirecionalidade é bem-vinda à tradução produzida em um território em que convivem tantos povos diferentes. A transdisciplinaridade necessária ao campo dos Estudos da Tradução fica evidente quando desejamos nos aproximar de mundos que ainda pouco compreendemos. Quando pensamos em memória multidirecional, assim como pensada por Rothberg – uma evidência da participação não conflitante de diversos elementos na produção da memória, a qual acontece no presente e, assim, imagina o passado – o contato entre mundos parece ter um caminho não conflitivo e eticamente responsável. Não teríamos, portanto, uma tarefa de tradução, que incumbe à memória restituições e contenção de repetições por meio objetos fixos, exemplares, mas antes a tradução enquanto criação de um corpo, meio ao e do outro – que faz trilha ao outro e que é parte de outro, ambas as coisas compartilhadas com quem é afetado pela tradução.

Pouco antes de morrer prematuramente por conta de um câncer, Alfred Gell escreveu e organizou um último livro em sua cama de hospital. “Arte e agência”, uma obra-prima com toques de inacabamento, é o esforço de Gell de sistematizar uma ambiciosa antropologia da arte que se desligasse de juízos estéticos. Ao se distanciar de debates sobre o “belo” e se aproximar da produção artística de outros mundos possíveis (outras “culturas”), o antropólogo analisa o “fazer” (Gell 12Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.) através de ferramentas conceituais de alta definição que, quase obsessivamente, categorizam as diversas possibilidades do objeto artístico. Ainda que a arte verbal seja pouco abordada por Gell, acredito que o debate que aqui travamos tenha aproximações muito interessantes com a sua antropologia da arte, em especial com o que se apresenta nos últimos três capítulos de seu livro, nos quais uma teorização menos presa a seus próprios conceitos parece despontar como uma última tentativa de firmar suas ideias sobre o que era apaixonado, a arte. Se aceitarmos que a literatura é um objeto de arte, podemos avançar com mais tranquilidade em direção ao pensamento gelliano. Para ele, objeto de arte não tem uma natureza intrínseca, dependendo antes de uma matriz social-relacional (Gell 31Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.); ademais, os objetos de arte são também inseridos na categoria de pessoa (Gell 34Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.), a fim de serem estudados antropologicamente. Se olharmos com atenção, essa pessoa carregada de técnica que transporta diferentes informações é bastante parecida com a ideia de medium (meio/forma/mídia) que temos utilizado a partir das proposições de Aleida Assmann. Há um pequeno complicador, todavia. Ao diferenciar a antropologia da arte de outras teorias sobre a arte, Gell coloca a relação com a vida como uma demarcação necessária à especificidade do estudo antropológico:

A antropologia se distingue delas por oferecer certa profundidade de foco, que talvez possa ser caracterizada como ‘biográfica’; ou seja, a visão que a antropologia tem dos agentes sociais tenta restituir a perspectiva temporal desses agentes sobre eles próprios, enquanto a sociologia (histórica) é muitas vezes, por assim dizer, suprabiográfica, e as psicologias social e cognitiva são infrabiográficas. Assim, a antropologia tende a se concentrar no ‘ato’ no contexto da ‘vida’ – ou, mais precisamente, em uma ‘etapa da vida’ do agente. A periodicidade fundamental da antropologia é o ciclo vital.

(Gell 36Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.)

Pode-se pensar que, por tratarmos de memória cultural em tradução, a dimensão biográfica de que trata a antropologia e a antropologia da arte não seja de nosso interesse. Se nos atentamos ao argumento da memória multidirecional, entretanto, acredito que uma peça chave para se entender a tradução como meio de memória desponta, o atravessamento do corpo, que ocorre na esfera biográfica. A memória intercambia porque está relacionada à vida, ao “fazer” que é a arte de que trata Gell. Como já se deve ter presumido, embora o antropólogo não entre nesse campo, estamos a falar de poiesis e ars, o “fazer” e a “técnica” que se relacionam com e modificam a esfera da bios (“vida”). Toda memória é biográfica, afinal, incrustrada na pele pela dor ou alegria da lembrança; no âmbito da memória cultural é um trauma coletivo que não deve simplesmente pairar desconhecido do corpo. A “tarefa” da tradução deveria ser, portanto, tornar-se meio para um novo corpo, aquele que portará a lembrança, regrafando a vida de quem passa a rememorar. Para voltarmos às interessantes terminologias de Gell, penso a tradução literária/artística de memória (multidirecional) por meio do seu conceito de “objeto distribuído” que é utilizado para analisar tanto a arte nas ilhas Marquesas (“O conjunto da arte marquesana pode ser concebido, em uma escala macroscópica, como um ‘objeto distribuído’ no tempo e no espaço” (Gell 321Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.)), quanto na obra do artista “ocidental”:

A obra do artista, portanto, é espacial e temporalmente dispersa. Após a morte do artista, uma vez que a totalidade da obra está constituída, ela se torna um bloco independente do espaço-tempo, podendo ser acessada por intermédio de cada obra individual, que funciona como um índice de todas as outras, bem como do contexto histórico-biográfico de sua produção.

(Gell 336)

A produção artística é distribuída temporal e espacialmente, sendo acessada por índices (uma obra do artista, por exemplo), uma vez que é parte da concepção fractal de pessoa desenvolvida por Gell a partir do estudo de diferentes culturas. A pessoa, que também pode ser o próprio objeto de arte, distribui-se de forma diferenciada a quem quer que lhe acesse – o objeto distribuído, portanto, desdobra-se em uma memória multidirecional, carregada por diferentes formas. Adicione-se a isto que o objeto distribuído, a obra do artista, está sujeito à repetição (à cópia) segundo o antropólogo, fazendo dela uma necessária possibilidade de memória:

Os artistas são hoje repreendidos pelos críticos por se ‘repetirem’, traindo a demanda de contínua inovação feita pelo público. No entanto, o fato é que toda prática artística depende inevitavelmente de uma certa forma de repetição, sem a qual seria impossível aplicar o próprio conceito de ‘estilo’, baseado em uma estreita semelhança entre todas as obras de um conjunto. Sem repetição, a arte perderia a memória.

(Gell 338Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.)

A ideia de repetição gelliana se liga à imagem da reprodução biológica. Assim, penso que uma aproximação com a ideia de Fortleben (pervivência, na tradução de Haroldo de Campos) de Walter Benjamin não seria absurda. Se tradução garante a pervivência da obra ao se doar ao que passa a ser a obra de arte traduzida, o que Haroldo de Campos analisa como um movimento luciferino de inversão de poder entre tradução e original – ou de usurpação, como o tradutor coloca –, uma vez que aquela mantém a obra viva e garante a sua transmissão (Campos 179-180Campos, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008.), podemos inferir que a tradução é um modo de reprodução do objeto de arte enquanto pessoa gelliana, um modo de se fazer nova forma, novo corpo. Poder-se-ia argumentar que isso muito difere da repetição/cópia, pois a relação entre tradução e original não é a mesma que a repetição mantém com este. São movimentos distintos, realmente, porém, não tão diferentes a ponto de não podermos relacioná-los. A cópia, de certo modo, também garante pervivência ao que copia/repete, uma vez que essa pervivência é a própria garantia de memória de que fala Alfred Gell. A tradução, assim, é uma espécie de repetição diferenciadora (como, no final das contas, toda repetição é), pois o movimento de memoração, de criação de memória (movimento sempre presente, lembre-se), se dá por meio de repetição e diferenciação, de reestruturação biográfica e de reassunção da nossa própria fractalidade. Desse modo, pode-se dizer que a tradução de memória está próxima da ideia de “recordação” pesquisada por Assmann, que pressupõe deslocamentos e deformações (Assmann, 33-4Assmann, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Tradução de Paulo Soethe. Campinas: Editora Unicamp, 2011.), uma revaloração da lembrança por sua própria potência de transformar e de se transformar.

A percepção do memorialista como um tradutor de Bella Brodzki (2007)Brodzki, Bella. Can these bones live? Translation, survival and cultural memory. Stanford: Stanford University Press, 2007. a partir de leituras de Jorge Semprún e de uma leitura benjaminiana sobre a tradução complementa a ideia aqui esboçada. Para Brodzki, “translation serves every interest” (Brodzki 189Brodzki, Bella. Can these bones live? Translation, survival and cultural memory. Stanford: Stanford University Press, 2007. - “a tradução serve a todos os interesses”), dependendo de como seja abordada, uma vez que “a tradução nunca é definitiva ou autoritária, assim como original não era, ela não promete nada além de uma outra chance, é a promessa de um outro caminho: pois palavras continuam mas nada permanece”5 5 “translation is never final or authoritative, just as the original was not, it promises nothing but another chance, the promise of yet another way: for words continue but nothing remains” (Brodzki 189). (ibidem 189) – a tradução, afinal, é um meio. As palavras que permanecem como “promessa de memória” (como uma promessa de outro caminho) são índices do objeto distribuído, a “promessa de memória”, afinal, nada mais é que a potência tradutória de redistribuição do objeto artístico. “Artefatos e acontecimentos nunca são tradicionais ou inovadores em termos absolutos – ou, como dizem os filósofos do tempo, sub specie aeternitatis” (Gell 367Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.), pois a arte e o fazer são sempre sub specie alteritatis, alteração e alteridade que a relação criada pela tradução promove no interior de sua função de rememoração. Afinal, o corpo, a pessoa, esse fragmento do que seja sociedade e cultura nunca é uma clausura, muito menos um ser imutável:

[...] talvez não seja absurdo pensar que as pessoas são externamente (e coletivamente) uma espécie de réplica do que são interiormente, sobretudo, se, como eu mesmo farei, considerarmos que a palavra ‘pessoa’ não se limita a organismos biológicos fechados, mas abrange também todos os objetos ou acontecimentos de um dado meio a partir do qual a agência ou a personitude podem ser inferidas por abdução.

Se consideradas a partir dessa perspectiva, a pessoa e sua mente não se limitam a coordenadas espaçotemporais, mas consistem em uma série de acontecimentos biográficos e lembranças de acontecimentos, bem como um conjunto disperso de objetos, vestígios e restos materiais que podem ser atribuídos a um indivíduo. Estes, quando reunidos, dão testemunho do que é ser agente e paciente ao longo de uma extensão biográfica que, de fato, pode ir muito além da morte biológica. Assim, a pessoa é entendida como a soma dos índices que dão testemunho, durante sua vida e após sua morte, de sua existência biográfica. Por ser uma intervenção no meio causal, a agência pessoal gera um desses ‘objetos distribuídos’, isto é, um conjunto de diferenças materiais no modo ‘como as coisas são’, a partir do qual uma determinada agência pode ser inferida por abdução.

(Gell 323Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018., grifo meu)

“Pessoa”, como entendida por Gell, além do humano, é uma agenciadora de memórias – vestígios e restos materiais – cujo “fazer” é sempre, em potência, um “objeto distribuído”. A tradução enquanto meio de memória é agente de redistribuição do objeto artístico (entendido como o “fazer”), o que possibilita a reescritura biográfica, afetada pela lembrança do que (se) foi – em categorias benjaminianas, é um Medium e um Mittel (Benjamin (b) 53-4Benjamin, Walter (b). Escritos sobre mito e a linguagem (1915-1921). Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2011.), ou seja, é uma forma de comunicar e uma potência de transformação. A soma de índices que pertencem à biografia, espalhados pelo mundo em media, são transportados e incidem sobre a formação das tantas pessoas que coabitam nosso espaço-tempo. Nesse sentido, a “tarefa” da tradução enquanto mídia memorialista, se é que a ideia de “tarefa” ainda tem pertinência, é de não cessar de originar lembrança e vida. Tradução é um quase-sinônimo de relação, sendo assim, tal qual a origem imaginada por Walter BenjaminBenjamin, Walter (c). “A tarefa do tradutor”. Escritos sobre mito e linguagem, Gagnebin, Jeanne Marie (Org.). Tradução de Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2013. p. 101-119, um elo entre a pré- e pós-história do objeto artístico/literário. Talvez menos do que a ideia de “tarefa”, o que ordene o fazer tradutório seja uma espécie de princípio vital, de direcionar-se à vida, à sobrevida e à pervivência, à lembrança, como diz Mekas na epígrafe deste texto, da infância que se recusa a se desapegar de sua língua. A tradução pensada nas fronteiras da memória cultural não pode se esquecer das biografias que afeta e por que é afetada. Traduzir, reproduzir, dar novo sopro à obra, ao fazer, ao poema, é, antes de tudo, um movimento biográfico, que não se extingue com o fim da vida humana e do corpo orgânico. A transmissão de uma tradição, “a objetivação da memória” (Gell 366Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.), é um procedimento de afetos que transcende uma espaço-temporalidade específica.

Nas últimas páginas de sua última obra, Alfred Gell analisa a construção das casas adornadas dos Maori. Nessa análise, caso façamos uma leitura atenta e consciente das circunstâncias da escrita do final do trabalho, é possível ler uma reflexão sobre vida e morte do próprio autor. As casas analisadas provavelmente ficavam “aquém do que gostariam” (Gell 369Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.) os Maori, nunca superando a intenção contida nos esboços, que encarnavam “a promessa da casa definitiva” (idem 369). Tanto na intenção quanto no esforço do fazer, mesmo que não sejam encarados como “sucesso definitivo”, os movimentos de rememoração e tradução inevitavelmente se fazem presente:

A casa de reunião maori, em sua totalidade, é um objeto que podemos traçar como um movimento de pensamento, um movimento de memórias imersas no passado e um movimento de aspiração que avança para um futuro não realizado e talvez impossível de realizar. Ao estudar tais artefatos, compreendemos a ‘mente’ como uma disposição externa (e eterna) de atos públicos de objetivação, bem como a consciência em evolução de um coletivo, transcendendo o cogito individual e as coordenadas de qualquer aqui e agora particular.

(Gell 369-370Gell, Alfred. Arte e agência. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2018.)

Assim é também a memória que chamamos de cultural: um esforço de transcendência do aqui e agora particular, para uma rede biográfica cujos índices nos remetam sempre a novas possibilidades de originar lembrança e crítica. De tantos restos de mundos subjugados, arruinados, foram-se criando diferentes possibilidades de repetição e de não repetir. A tradução, nessa trama complexa de vida, é medium, uma potência transformacional de corpos, um fio de movimento inexato que origina passado em presente e vice-versa. A tradução não poderia ser ignorada ao se falar de memória e rememoração, embora por sua óbvia existência enquanto meio geralmente o seja. Ela é também “movimento de aspiração”, um fazer na biografia, um sopro contra o império da morte e do esquecimento.

  • 1
    Pesquisa desenvolvida com auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.
  • 2
    Trecho de “Daybooks 1970-1972”, traduzido do lituano ao inglês por Vyt Bakaitis.
  • 3
    “las memorias son presente, una búsqueda de sentido del pasado en función de un horizonte futuro” (Jelin 32Jelin, Elizabeth. La lucha por el passado: cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2017.)
  • 4
    A tradução é minha, assim como todas não marcadas na bibliografia. O original foi suprimido para adequação à economia deste periódico.
  • 5
    “translation is never final or authoritative, just as the original was not, it promises nothing but another chance, the promise of yet another way: for words continue but nothing remains” (Brodzki 189Brodzki, Bella. Can these bones live? Translation, survival and cultural memory. Stanford: Stanford University Press, 2007.).
  • 1
    Trecho de “Daybooks 1970-1972”, traduzido do lituano ao inglês por Vyt Bakaitis.

Referências

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  • Simões, Hugo. A tradução do que se cala: Paul Celan entre genocídios Dissertação de mestrado. Curitiba: UFPR, 2018. Acervo digital da Universidade Federal do Paraná. 27/01/2020. Disponível em: https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/56126
    » https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/56126

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2020
  • Aceito
    29 Maio 2020
  • Publicado
    Set 2020
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